segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

A GUERRA DE TRÓIA


     Minerva era a deusa da sabedoria, mas, certa vez, cometeu uma tolice: disputou um concurso de beleza com Juno e Vênus. O fato se passou da seguinte maneira: todos os deuses foram convidados para o casamento de Peleu e Tétis, com exceção de Éris, ou Discórdia. Furiosa com sua exclusão, a deusa atirou entre os convivas um pomo de ouro com a inscrição “À mais bela”. Juno, Vênus e Minerva reclamaram a maçã ao mesmo tempo. Júpiter, não querendo decidir assunto tão delicado, mandou as deusas ao Monte Ida, onde o belo pastor Páris apascentava seus rebanhos, e a ele foi confiada a decisão. As deusas compareceram então diante dele. Juno prometeu-lhe poder e riqueza, Minerva, glória e fama na guerra e Vênus, a mais bela das mulheres para esposa, cada uma delas procurando influenciar a decisão a seu favor. Páris decidiu favoravelmente a Vênus e entregou-lhe o pomo de ouro, tornando, assim, suas inimigas as outras duas deusas. Sob a proteção de Vênus, Páris viajou para a Grécia e foi hospitaleiramente recebido por Menelau, rei de Esparta. Ora, Helena, esposa de Menelau, era, na realidade, a mulher que Vênus destinara a Páris, como a mais bela de seu sexo.  Sua mão fora disputada por numerosos pretendentes, e por sugestão de Ulisses, que era um deles, prestaram juramento de que a defenderiam contra qualquer injúria e lutariam por sua causa, se necessário. Helena escolheu Menelau, e vivia feliz com ele, quando Páris se tornou hóspede do casal. Com a ajuda de Vênus, Páris convenceu-a a fugir em sua companhia e levou-a para Tróia, o que provocou a famosa guerra, assunto dos maiores poemas da antigüidade, os de Homero e Virgílio.
     Menelau apelou para seus irmãos chefes da Grécia, para que cumprissem  o prometido e ajudassem-no em seus esforços para recuperar a esposa. De um modo geral, todos atenderam ao apelo, mas Ulisses, que se casara com Penélope e se sentia muito feliz com a esposa e o filho, não se mostrou disposto a participar de aventura tão incerta. Assim sendo, recuou e Palamedes foi mandado para lembrar-lhe seus compromissos. Quando Palamedes chegou a Ítaca, Ulisses fingiu-se de doido e atrelando ao arado, juntos, um burro e um boi, pôs-se a semear sal. Para experimentá-lo, Palamedes colocou seu filhinho, Telêmaco, em frente ao arado, o que levou o pai a desviar-se, para não matá-lo, mostrando, assim, claramente, que não estava louco e que, portanto, não podia se negar a cumprir a promessa feita.
     Tendo sido conquistado à participação na empresa, Ulisses tratou de prestar ajuda para convencer outros chefes relutantes, especialmente Aquiles. Este herói era filho de Tétis, em cujo casamento o pomo da discórdia fora atirado entre as deusas. Tétis era ela própria uma das imortais, uma ninfa do mar, e sabia que seu filho estava destinado a morrer diante de Tróia se participasse da expedição, pelo que tratou de evitar que ele fosse. Mandou-o, então, para a corte do rei Licomedes e convenceu-o a esconder-se entre as filhas do rei, disfarçado de mulher. Sabendo que ele ali se encontrava, Ulisses, disfarçado de mercador, foi ao palácio, oferecendo à venda ornamentos femininos, entre os quais colocou algumas armas. Enquanto as filhas do rei se deleitavam com os outros artigos apresentados pelo mercador, Aquiles manejava as armas e se traiu, assim, aos olhos atilados de Ulisses, que não teve grande dificuldade em persuadi-lo a desrespeitar os prudentes conselhos maternos e juntar-se a seus patrícios na guerra.
     O rei de Tróia era Príamo, e Páris, o pastor que seduzira Helena, seu filho. Páris fora criado na obscuridade, porque havia certos augúrios funestos a seu respeito, desde a infância, segundo os quais ele seria a causa da ruína do estado. Essas profecias pareciam afinal prestes a se realizar, pois o armamento grego ora em preparativo era o maior de que se tinha notícia até então. Agamênon, rei de Micenas e irmão do injuriado Menelau, foi escolhido para comandante-chefe. Aquiles era o mais ilustre guerreiro. Depois dele vinham: Ajax, de estatura gigantesca e grande coragem, mas pouco inteligente; Diomedes, superado apenas por Aquiles em suas qualidades de herói; Ulisses, famoso por sua sagacidade, e Nestor, o mais velho dos chefes gregos e procurado por todos como conselheiro. Tróia, porém, não era um inimigo desprezível. Príamo, o rei, estava velho, mas fora um príncipe esclarecido e fortalecera seu estado, graças a um bom governo e a numerosas alianças com os vizinhos. O principal esteio e apoio do trono, contudo, era seu filho Heitor, um dos mais nobres caracteres pintados pela antigüidade pagã. Embora tivesse, desde o princípio, pressentido a queda de seu país, Heitor perseverara em sua heróica resistência, sem querer justificar, ao mesmo tempo, o erro de que resultara o perigo para Tróia. Estava unido pelo casamento a Andrômaca e, como marido e pai, seu caráter não era menos admirável do que como guerreiro. Além de Heitor, os principais chefes do lado dos troianos eram Enéias, Deífobo. Glauco e Sarpédon.
     Após dois anos de preparativos, a frota e o exército gregos reuniram-se no porto de Áulis, na Beócia. Ali, Agamênon, caçando, matou um veado consagrado a Diana, que, em represália, assolou o exército com a peste e provocou uma calmaria que impediu os navios de deixar o porto. O adivinho Cauchas anunciou, então, que a ira da deusa virgem somente poderia ser aplacada pelo sacrifício de uma virgem em seu altar e que somente seria aceitável a filha do ofensor. Agamênon, embora relutante, deu seu consentimento e a donzela Ifigênia foi mandada, sob o pretexto de que iria casar-se com Aquiles. Quando ia ser sacrificada, a deusa abrandou-se e arrebatou-a, deixando em seu lugar uma vitela, e Ifigênia, envolta numa nuvem, foi levada a Táuris, onde Diana fê-la sacerdotisa do seu templo.
     No poema “Sonho das mulheres belas”, Tennyson faz Ifigênia assim descrever suas sensações no momento do sacrifício:

     A esperança perdi inteiramente,
     Nesse lugar maldito, cujo nome
     Nem como em pensamento ouso dizer.
     Meu pai estende a mão sobre meu rosto.
     As lágrimas me cegam e em vão me esforço
     Para falar. Tudo parece um sonho.
     Dos reis cruéis que me rodeiam vejo
     As barbas negras e os lupinos olhos
     Que me fitam esperando minha morte.
     Os altos mastros dos navios tremem
     E o templo e a multidão que me rodeia.
     Sinto o corte de lâmina aguçada,
     Devagar, devagar... e nada mais.

     O vento começou a soprar favorável e a frota zarpou e levou as tropas à costa de Tróia. Os troianos opuseram-se ao desembarque e, no primeiro encontro, Protesilau caiu pela mão de Heitor. Protesilau deixara em sua terra a esposa, Laodâmia, que o amava com ternura. Quando chegou notícia de sua morte, ela implorou aos deuses que a deixassem conversar com o marido apenas durante três horas. O pedido foi atendido. Mercúrio levou Protesilau de volta ao mundo superior e, quando ele morreu pela segunda vez, Laodâmia morreu com ele. Há uma versão segundo a qual as ninfas plantaram em torno de seu túmulo ulmos que cresciam tanto que de cima deles se podia avistar Tróia e, depois, murchavam, enquanto novos galhos nasciam das raízes.
     Worsdworth aproveitou a história de Protesilau e Laodâmia para um poema. O oráculo anunciara que a vitória caberia ao partido que perdesse a primeira vítima na guerra. O poeta apresenta Protesilau, durante seu breve regresso à Terra, assim descrevendo a Laodâmia o que lhe sucedera:

     Soprou a viração; no mar silente
     O oráculo consultei. Quis o destino
     Fosse o meu primeiro, entre mil barcos,
     Cuja proa tocou terra inimiga
     E o meu sangue o primeiro derramado
     Sobre o solo de Tróia. Na verdade,
      Nada se comparava ao sofrimento
     De compreender, então, o que perdera,
     Saber que te perdera, esposa amada!

A ILÍADA

     A guerra prosseguiu, sem resultado decisivo, durante nove anos. Ocorreu, então, um acontecimento que pareceu fatal à causa dos gregos e que foi a disputa entre Aquiles e Agamênon. É nesse ponto que se inicia o grande poema de Homero, “A Ilíada”. Os gregos, embora sem êxito contra Tróia, haviam tomado as cidades vizinhas e aliadas, e, na divisão dos despojos, uma cativa chamada Criseis, filha de Crises, sacerdote de Apolo, coubera a Agamênon. Crises, levando os emblemas sagrados de seu cargo, fora implorar a libertação da filha, e Agamênon recusara. Crises, então, rogou a Apolo que afligisse os gregos até que  eles fossem forçados a desistir de sua presa. Apolo atendeu à prece de seu sacerdote e mandou a peste ao acampamento helênico. Foi, então, convocado um conselho para deliberar sobre a maneira de apaziguar a ira dos deuses e evitar a peste. Aquiles, atrevidamente, atribuiu a causa dos infortúnios a Agamênon, por conservar Criseis cativa. Agamênon, enfurecido, concordou em libertar a cativa, mas exigiu que, em compensação, Aquiles lhe cedesse Briseis, uma donzela que lhe coubera como presa, na partilha. Aquiles resignou-se, mas declarou que dali em diante não participaria mais da guerra. Retirou suas forças do acampamento geral e proclamou abertamente sua intenção de retornar à Grécia.
     Os deuses e deusas interessavam-se tanto por esta guerra famosa como as próprias partes. Sabiam muito bem que o destino decretara que Tróia cairia, afinal, se seus inimigos perseverassem e não abandonassem a empresa voluntariamente. Havia, contudo, bastante oportunidade para o acaso, de maneira a excitar, alternativamente, as esperanças e os temores das divindades que se colocavam de um lado ou de outro. Juno e Minerva, em conseqüência do menosprezo manifestado por Páris para com sua beleza, eram hostis aos troianos; Vênus, pelo motivo contrário, favorecia-os e arrastou para o mesmo lado seu admirador Marte, ao passo que Netuno era favorável aos gregos. Apolo ficou neutro, tendendo às vezes para um lado, às vezes para outro, e o próprio Jove, embora amasse o bom Rei Príamo. Demonstrou um certo grau de imparcialidade, não sem exceções, contudo.
     A mãe de Aquiles, Tétis, sentiu profundamente a injúria feita ao filho e dirigiu-se imediatamente ao palácio de Jove, a quem pediu que fizesse os gregos se arrependerem da injustiça praticada contra seu filho, concedendo o sucesso às armas troianas. Júpiter acedeu ao pedido e, na batalha que se seguiu, os troianos saíram vitoriosos e os gregos, expulsos do acampamento, tiveram de refugiar-se nos navios.
     Agamênon convocou, então, um conselho dos chefes mais sábios e mais valentes. Nestor sugeriu que fosse enviada uma embaixada a Aquiles, para persuadi-lo a voltar ao acampamento e que Agamênon restituísse a donzela causadora da disputa, com grandes presentes, para corrigir o erro cometido. Agamênon concordou, e Ulisses, Ajax e Fênix foram encarregados de transmitir a Aquiles a mensagem de arrependimento. Os três executaram a incumbência, mas Aquiles mostrou-se surdo às suas palavras. Negava-se, peremptoriamente, a voltar ao acampamento e persistia em sua idéia de embarcar sem demora para a Grécia.
     Os gregos construíram um bastião em torno dos navios e, em vez de sitiarem Tróia, tornaram-se, de certo modo, sitiados. No dia seguinte àquele em que fora enviada a Aquiles a malsucedida embaixada travou-se uma batalha, e os troianos, favorecidos por Jove, conseguiram abrir passagem entre o bastião helênico e estavam na iminência de incendiar os navios. Netuno, vendo os gregos em situação tão crítica, foi em seu socorro. Apareceu sob a forma do profeta Cauchas, estimulou os guerreiros com seus gritos e apelou para cada um deles individualmente, até elevar o seu ardor a tal ponto que eles forçaram os troianos a recuar. Ajax executou prodígios de valor e, finalmente, encontrou-se com Heitor, a quem gritou um desafio. Heitor replicou a atirou sua lança contra o gigantesco guerreiro. A mira foi bem feita e a arma atingiu Ajax onde as correias que sustentam a espada e o escudo se cruzam sobre o peito. Essa dupla proteção a impediu de penetrar, e a lança caiu ao chão, inofensiva. Ajax, então, agarrou uma enorme pedra, uma das que serviam para imobilizar os navios, e atirou-a contra Heitor, atingindo-o no pescoço e atirando-o ao chão. Seus comandados imediatamente o apanharam e levaram-no atordoado e ferido.
     Enquanto Netuno ajudava, desse modo, os gregos e obrigava os troianos a recuar, Júpiter nada via do que se passava, pois sua atenção fora desviada do campo de batalha, pelas artimanhas de Juno. A deusa revestira-se de todas as suas graças, e, para completar, tomara emprestado de Vênus seu cinto, chamado “Cestus”, que tinha o dom de aumentar a tal ponto os encantos de sua portadora que estes se tornavam irresistíveis. Assim preparada, Juno foi-se juntar ao marido que, sentado no Olimpo, assistia à batalha. Ao vê-la, achou-a tão encantadora que o velho ardor amoroso reviveu e, esquecendo-se dos exércitos em choque e de todos os outros assuntos sérios, pensou apenas nela e deixou a batalha de lado.
     Essa distração, contudo, não continuou por muito tempo e quando, voltando os olhos para baixo, avistou Heitor estendido na planície, quase sem vida, em conseqüência da dor e das contusões, despediu Juno, furioso, ordenando-lhe que lhe mandasse Íris e Apolo. Quando Íris chegou, enviou-a, levando uma enérgica mensagem a Netuno, a quem ordenou que se afastasse imediatamente do campo de batalha. Apolo foi mandado tratar dos ferimentos de Heitor e reanimá-lo. Estas ordens foram cumpridas tão rapidamente que, enquanto o combate ainda prosseguia, Heitor voltou ao campo de batalha, e Netuno aos seus próprios domínios.
     Uma seta lançada pelo arco de Páris feriu Machaon, filho de Esculápio, que herdara do pai a arte de curar, e era, portanto, de grande valor para os gregos como cirurgião, além de ser um dos guerreiros mais bravos. Nestor colocou Machaon em seu carro e levou-o para fora do campo de batalha. Ao passarem diante dos navios de Aquiles, este herói, olhando para o campo, viu o carro de Nestor e reconheceu o velho chefe, mas não pôde distinguir quem era o guerreiro ferido. Assim, chamando Pátroclo, seu companheiro e mais querido amigo, mandou-o à tenda de Nestor a fim de indagar a respeito.
     Ali chegando, Pátroclo viu Machaon ferido e, tendo revelado a causa de sua vinda, quis regressar sem demora, mas Nestor o deteve, para contar-lhe a extensão das desgraças gregas. Lembrou-lhe, também, como, na ocasião em que partiram para Tróia, ele e Aquiles haviam recebido conselhos diferentes dos respectivos pais: Aquiles deveria aspirar aos pináculos da glória e Pátroclo, como o mais velho, deveria velar sobre o amigo e guiá-lo em sua inexperiência.
     -Agora – disse Nestor – chegou a ocasião de exercer essa influência. Se quiserem os deuses, conseguirá reconquistá-lo para a causa comum. Se, contudo, não o trouxerdes, pelo menos que ele mande seus soldados ao campo de batalha e que venhas tu, Pátroclo, envolto em tua armadura, e talvez baste isso para provocar a derrota dos troianos.
     Pátroclo ficou profundamente impressionado com esse apelo e voltou para junto de Aquiles refletindo sobre tudo que vira e ouvira. Contou ao príncipe a triste situação no acampamento de seus antigos companheiros: Diomedes, Ulisses, Agamênon, Machaon, todos feridos, o bastião rompido, o inimigo entre os navios, preparando-se para queimá-los e impedir, assim, todos os meios de regressar à Grécia. Enquanto falavam, irromperam chamas em um dos navios. Vendo isso, Aquiles cedeu até o ponto de concordar com o pedido de Pátroclo, no sentido de permitir que ele levasse os mirmidões (assim eram chamados os soldados de Aquiles) ao campo de batalha, e deixá-lo usar sua armadura, a fim de provocar maior terror no espírito dos troianos. Sem demora os soldados foram reunidos. Pátroclo revestiu-se da brilhante armadura, subiu ao carro de Aquiles e assumiu o comando dos homens, pronto a entrar na batalha. Antes que ele partisse, porém, Aquiles recomendou-lhe, insistentemente, que se contentasse em repelir o inimigo.
     - Não procures atacar os troianos sem a minha presença, para que não aumentes ainda mais o meu infortúnio.
     Então, exortando os soldados a combater com maior denodo despediu-os cheios de ardor para o combate.
     Pátroclo e seus mirmidões mergulharam-se imediatamente na luta onde ela se travava mais feroz e, vendo-os, os gregos gritavam de alegria e a aclamação ecoava nos navios. Ao avistarem a conhecida armadura, os troianos, tomados de terror, procuraram refúgio por todos os lados. Primeiro, aqueles que haviam-se apoderado do navio e o incendiado permitiram que os gregos o retomassem e extinguissem as chamas. Depois, o resto dos troianos fugiu desanimado. Ajax, Menelau e os dois filhos de Nestor executaram prodígios de valor. Heitor foi forçado a retirar-se do acampamento, deixando seus homens fugir como podiam. Pátroclo impeliu-os diante dele, ninguém se atrevendo a resistir-lhe.
     Afinal, Sarpédon, filho de Jove, aventurou-se a enfrentar Pátroclo em combate. Júpiter baixou os olhos sobre ele e o teria livrado do destino que o aguardava, se Juno não tivesse observado que, se assim fizesse, iria induzir todos os outros habitantes do céu a intervir de maneira semelhante,  sempre que algum de seus filhos estivesse em perigo. Diante disso, Jove cedeu. Sarpédon atirou a lança, mas não atingiu Pátroclo, que lançou a sua, com mais sorte. A lança penetrou no peito de Sarpédon, que caiu e, gritando aos amigos que salvassem seu corpo do inimigo, expirou. Seguiu-se uma luta furiosa em disputa da posse do cadáver. Os gregos triunfaram e arrancaram a armadura de Sarpédon. Jove, porém, não permitiu que os despojos de seu filho fossem desonrados e, por sua ordem, Apolo retirou do meio dos combatentes o corpo e entregou-o aos cuidados dos irmãos gêmeos Morte e Sono, que o levaram a Lícia, terra natal de Sarpédon, onde foram realizados os devidos ritos fúnebres.
     Até então, Pátroclo fora bem-sucedido em seu desejo de repelir os troianos e aliviar seus patrícios, mas ocorreu, depois, uma mudança da fortuna. Heitor, em seu carro, enfrentou-o. Pátroclo atirou contra ele uma grande pedra, que errou o alvo, mas atingiu o cocheiro, Cebriones, lançando-o fora do carro. Heitor saltou do carro para socorrer o amigo e Pátroclo desceu também, para completar a vitória. Os dois heróis encontraram-se, então, frente a frente. Neste momento decisivo, o poeta, como se relutasse em atribuir a glória a Heitor, relembra que Febo participou da luta contra Pátroclo, arrancando-lhe o elmo da cabeça e a lança da mão. No mesmo momento, um troiano obscuro feriu-o nas costas e Heitor, avançando, trespassou-o com a lança. Ele caiu mortalmente ferido.
     Travou-se, então, uma luta feroz para disputa do corpo de Pátroclo, mas sua armadura caiu imediatamente em posse de Heitor, que, retirando-se para pequena distância, despiu a própria armadura, vestiu a de Aquiles e voltou ao combate. Ajax e Menelau defenderam o corpo de Pátroclo e com seus mais valentes guerreiros lutaram para capturá-lo. A batalha prosseguia indecisa, quando Jove envolveu em escura nuvem toda a face do céu. Relâmpagos cortaram o espaço, o trovão reboou, e Ajax, olhando em torno, à procura de alguém que pudesse enviar a Aquiles para contar-lhe a morte do amigo e o iminente perigo que corriam seus restos de cair em poder dos troianos, não pôde ver um mensageiro à altura. Foi então que exclamou, conforme os versos tantas vezes citados:

     Pai da terra e do céu! Livrai, imploro,
     O céu e a terra desta treva espessa!
     Se quereis nos punir, nós nos curvamos
     Mas deixai-nos morrer à luz do dia.

     Júpiter ouviu a prece e dispersou as nuvens. Ajax mandou, então, por Antíloquo, a notícia da morte de Pátroclo e da luta que se travava pela disputa de seus restos. Os gregos conseguiram, afinal, levar o corpo para o navio, perseguidos de perto por Heitor, Enéias e os demais troianos.
     Tamanho foi o sofrimento de Aquiles ao ouvir a notícia do que sucedera a seu amigo, que Antíloquo receou, por um momento, que ele se matasse. Seus gemidos chegaram aos ouvidos de sua mãe, Tétis, nas profundezas do oceano, onde mora, e ela se apressou em procurar o filho para saber o motivo. Encontrou-o tomado de remorsos por haver levado tão longe seu ressentimento e permitido que o amigo caísse como vítima. Consolava-se, porém, com a expectativa da vingança e queria correr imediatamente à procura de Heitor, mas sua mãe lembrou-lhe que ele estava sem armadura e prometeu-lhe que, se esperasse até o dia seguinte, ela conseguiria para ele com Vulcano um jogo de armaduras melhor do que aquele que perdera. Aquiles concordou e Tétis dirigiu-se, sem demora, ao palácio de Vulcano. Encontrou-o trabalhando em sua forja, na construção de trípodes destinadas ao seu próprio uso e tão habilidosamente feitas que se moviam sozinhas, quando chamadas, e se retiravam, quando despedidas. Ouvindo o pedido de Tétis, Vulcano, imediatamente, deixou o seu trabalho e tratou de satisfazer o desejo da ninfa fabricando para Aquiles um esplêndido jogo de armaduras: primeiro, um escudo caprichosamente adornado, depois, um elmo com crista de ouro, uma couraça e grevas de aço impenetrável, tudo perfeitamente adaptado às normas do guerreiro e executado com consumada perfeição. Tudo foi feito numa noite e Tétis, depois de recebê-lo, desceu com ele à terra e colocou-o aos pés de Aquiles ao amanhecer o dia.
     Pela primeira vez, desde a morte de Pátroclo, Aquiles teve uma sensação de prazer, ao ver a armadura. E logo, revestido dela, correu ao acampamento, convocando os chefes para o conselho. Quando todos se reuniram, a eles se dirigiu. Pondo de lado o seu ressentimento contra Agamênon e lamentando amargamente os males que dele havia resultado, apelou para os chefes no sentido de que se dirigissem imediatamente ao campo de batalha. Agamênon respondeu sem demora, lançando toda a culpa do ocorrido a Ate, a deusa da discórdia, e os dois heróis reconciliaram-se plenamente.
     Aquiles, então, lançou-se à batalha excitado pela ira e pela sede de vingança, que o tornaram irresistível. Os mais bravos guerreiros fugiam dele ou caíam sob sua lança. Heitor, advertido por Apolo, manteve-se afastado, mas o deus, tomando a forma de um dos filhos de Príamo, Licaonte, incitou Enéias a enfrentar o terrível guerreiro. Enéias, embora se sentisse inferior, não fugiu ao combate. Arremessou a lança, com toda a força, contra o escudo, obra de Vulcano. Era formado de cinco chapas metálicas, sendo duas de bronze, duas de estanho e uma de ouro. A lança atravessou duas camadas, mas foi detida na terceira. Aquiles arremessou a sua lança com melhor sucesso. Atravessou o escudo de Enéias, mas resvalou perto do ombro e não causou ferimento. Enéias, então, levantou uma pedra, que dois homens dos tempos modernos mal poderiam erguer, e ia lançá-la contra Aquiles, enquanto este, de espada desembainhada, estava prestes a investir contra ele, quando Netuno, que assistia ao combate, apiedando-se de Enéias – que cairia vitimado, sem dúvida alguma, se não fosse socorrido sem demora -, espalhou uma nuvem entre os combatentes e conduziu-o ao fundo do campo de batalha, sobre as cabeças dos guerreiros e dos corcéis de guerra. Aquiles, quando a nuvem se dissipou, procurou em vão o adversário, e, reconhecendo o prodígio, voltou suas armas contra outros campeões. Ninguém, contudo, se atrevia a enfrentá-lo, e Príamo, olhando da cidade, viu todo o seu exército recuar para dentro das portas. Ordenou que estas fossem abertas, para receber os fugitivos, e fechadas tão logo os troianos tivessem passado, a fim de que o inimigo também não entrasse. Aquiles, porém, perseguia o inimigo tão de perto, que teria sido impossível tal coisa, se Apolo não o tivesse enfrentado durante algum tempo, sob a forma de Agenor, filho de Príamo, depois fugido, afastando-se da cidade. Aquiles investiu e teria perseguido sua suposta vítima até muito longe das muralhas, mas percebeu que fora iludido, quando Apolo se revelou, e desistiu da perseguição.
     Depois, porém, de todos terem fugido para dentro da cidade, Heitor permaneceu do lado de fora, disposto a combater. Seu velho pai chamou-o das muralhas, implorando-lhe que se retirasse, sem tentar o encontro. Também Hécuba, sua mãe, lhe fez igual apelo, mas tudo em vão.
     - Como poderei eu, sob cujo comando o povo saiu para travar o combate de hoje, onde tantos caíram – disse ele a si mesmo -, procurar proteção contra um único inimigo? Mas, e se eu oferecer-lhe a entrega de Helena e de todos os nossos tesouros? Não! É demasiadamente tarde. Ele nem chegaria a ouvir-me: matar-me-ia enquanto eu estivesse falando.
     Enquanto assim murmurava, Aquiles aproximou-se, terrível como Marte, com a armadura flamejando ao avançar. Vendo-o, o coração de Heitor fraquejou e ele fugiu. Aquiles o perseguiu velozmente. Os dois correram, conservando-se perto das muralhas, até terem feito três vezes a volta da cidade. Sempre que Heitor se aproximava mais da muralha, Aquiles o interceptava, obrigando-o a ampliar o círculo. Apolo, porém, sustentou as forças de Heitor, não permitindo que ele fraquejasse. Palas, então, tomando a forma de Delfobo, o mais valente os irmãos de Heitor, apareceu, de súbito, ao lado deste. Heitor viu-o com satisfação e, assim fortalecido, deteve a fuga e virou-se para enfrentar Aquiles, atirando sua lança, que atingiu o escudo do adversário e caiu. Heitor voltou-se, para receber outra lança das mãos de Delfobo, mas este já desaparecera. Heitor compreendeu, então, e exclamou:
     - Ah! Não resta dúvida de que chegou a hora da minha morte! Pensei que Delfobo estivesse ao meu lado, mas Palas me iludiu e ele está em Tróia. Não cairei sem glória, porém.
     Assim dizendo, desembainhou a espada e correu ao combate. Aquiles, protegido pelo escudo, esperou sua aproximação e, quando o viu ao alcance de sua lança, escolhendo com o olhar uma parte vulnerável, onde a armadura deixa o pescoço descoberto, visou-a. Heitor caiu mortalmente ferido, e disse, com a voz fraca:
     - Poupa meu corpo! Permite que meus pais o resgatem e que eu receba os ritos fúnebres por parte dos filhos e filhas de Tróia.
     Ao que Aquiles respondeu:
     - Cão! Não fales em resgate nem peças piedade a mim, a quem tanto fizeste sofrer. Não! Podes estar certo de que coisa alguma livrará dos cães tua carcaça. Eu recusaria entregá-la, ainda que fossem oferecidos vinte resgates e teu peso em ouro.
     Assim dizendo, retirou a armadura do cadáver e, amarrando-o pelos pés, com cordas, ao seu carro, arrastou-o, para cá e para lá, diante da cidade.
     Que palavras poderiam exprimir o pesar do Rei Príamo e da Rainha Hécuba ao verem tal coisa? Dificilmente contiveram o velho rei, que queria sair. Príamo atirou-se ao pó e implorou a cada um, pelo nome, que o deixasse ir. A dor de Hécuba não foi menos violenta. Os cidadãos rodearam os dois, chorando. As lamentações chegaram aos ouvidos de Andrômaca, esposa de Heitor, que estava sentada, trabalhando no meio de suas servas, e ela, pressentindo a desgraça, correu à muralha. Ao ver o espetáculo, quis atirar-se do alto das muralhas, mas desmaiou e caiu nos braços de suas servas. Voltando a si, lamentou seu destino, pintando para si mesma o quadro de seu país arruinado, ela própria cativa e seu filho dependendo, para comer o pão, da caridade de estranhos.
     Depois de se terem vingado do matador de Pátroclo, Aquiles e os outros gregos trataram de prestar as devidas honras fúnebres a seu amigo. Foi erguida uma fogueira e o corpo queimado com toda a solenidade. Seguiram-se competições de força e destreza, corridas de carros, lutas e provas de arco e flecha. Depois disso os chefes reuniram-se no banquete fúnebre, antes de irem repousar. Aquiles, porém, não compartilhou do banquete nem do sono. A lembrança do amigo que perdera o mantinha acordado, recordando os labores e perigos compartilhados, na batalha e no mar. Antes de amanhecer, deixou sua tenda e, atrelando ao carro os velozes corcéis, amarrou, atrás do carro, o corpo de Heitor, que arrastou, fazendo-o dar duas voltas em torno do túmulo de Pátroclo e deixando-o, afinal, estendido no pó. Apolo, porém, não permitiu que o corpo fosse dilacerado ou desfigurado, apesar de tudo isso, e conservou-o livre de decomposição.
     Enquanto Aquiles aplacava sua raiva ultrajando a tal ponto o valente Heitor, Júpiter, compadecido, chamou Tétis à sua presença e disse-lhe para procurar o filho e conseguir que ele entregasse o corpo de Heitor a seus amigos. Em seguida, Júpiter enviou Íris ao rei Príamo, a fim a animá-lo a procurar Aquiles e implorar a entrega do corpo de seu filho. Íris transmitiu a mensagem e Príamo dispôs-se imediatamente a obedecer. Abriu seu tesouro e retirou ricos ornamentos e vestuários, com dez talentos em ouro, dois esplêndidos tripés e uma taça de ouro de acabamento impecável. Em seguida, chamando os filhos, encarregou-os de preparar sua liteira e nela colocar os diversos artigos que seriam entregues a Aquiles para o resgate. Quando tudo ficou pronto, o velho rei com um único companheiro tão idoso quanto ele próprio, o arauto Ideu, saiu das portas, ali deixando sua esposa Hécuba e seus amigos, que o lamentavam, pois tinham como certa a sua morte.
     Júpiter, porém, contemplando compadecidamente o venerável rei, enviou Mercúrio para servir-lhe de guia e protetor. Mercúrio, tomando a forma de um jovem guerreiro, apresentou-se aos dois velhos e, enquanto, ao vê-lo, os dois hesitavam, sem saber se deveriam fugir ou ficar, o deus aproximou-se e, segurando a mão de Príamo, ofereceu-se para servir-lhe de guia até a tenda de Aquiles. Príamo aceitou prazerosamente e, subindo à carruagem, Mercúrio pegou as rédeas e levou-os à tenda de Aquiles. Com sua varinha encantada, o deus fez adormecer todos os guardas e, sem dificuldade, levou Príamo para dentro da tenda onde Aquiles se achava sentado, ao lado de dois de seus guerreiros. O velho atirou-se aos seus pés e beijou aquelas terríveis mãos que haviam matado tantos de seus filhos.
     - Pensa, ó Aquiles – exclamou -, em teu próprio pai, já velho como eu e trêmulo pelos muitos anos que viveu. Talvez agora mesmo algum dos chefes vizinhos o persiga e não há ninguém que possa socorrê-lo em sua aflição. No entanto, sem dúvida, sabendo que Aquiles ainda vive, ele se regozija, esperançoso de que um dia contemplará de novo o seu rosto. Nenhum consolo, contudo, posso esperar, eis que os mais valentes de meus filhos, a flor de Ílion, todos caíram. Ainda me restava um todavia, um mais do que os outros a proteção da minha velhice e que, combatendo por sua pátria, foi morto por ti. Venho para resgatar seu corpo, trazendo comigo uma soma de valor inestimável. Aquiles! Reverencia os deuses! Lembra-te de teu pai! Em seu nome, mostra compaixão por mim!
     Estas palavras comoveram Aquiles, que chorou, lembrando-se tanto do pai ausente como do amigo perdido. Apiedado à vista da barba e dos cabelos brancos de Príamo, levantou-se do chão e assim falou:
     - Príamo, sei que aqui chegaste conduzido por algum deus, pois, sem ajuda divina, nenhum mortal, mesmo no ardor de sua juventude, ter-se-ia atrevido a tentar. Atendo ao teu pedido, levado a isso pelo evidente desejo de Jove.
     Assim dizendo, levantou-se, saiu acompanhado pelos dois amigos e descarregou a liteira, deixando dois mantos e uma túnica para cobrir o cadáver, que colocaram na liteira, cobrindo-o com os panos, para que não voltasse descoberto a Tróia. Depois, Aquiles mandou de volta o velho rei acompanhado de seus servidores, tendo, primeiro, se comprometido a estabelecer uma trégua de doze dias para os funerais.
     Quando a liteira se aproximou da cidade e foi vista das muralhas, o povo acorreu para contemplar mais uma vez o rosto de seu herói. Destacando-se entre todos, vieram a mãe e a esposa de Heitor, que reiniciaram seus lamentos, à vista do corpo sem vida. Todo o povo chorou com elas e, até esconder-se o sol, não houve pausa nem diminuição em sua dor.
     No dia seguinte, foram feitos os preparativos para os solenes funerais. Durante nove dias, o povo ajuntou lenha e ergueu a fogueira, e no décimo dia ali foi colocado o corpo e ateado fogo, enquanto Tróia inteira rodeava a pira funerária. Quando o corpo se consumiu inteiramente, as cinzas foram regadas de vinho, os ossos recolhidos e colocados numa urna de ouro, que foi enterrada no chão, tendo por cima uma pilha de pedras.

     Ao seu herói Tróia rendeu tais honras
     E tranqüila dormiu de Heitor a sombra

A QUEDA DE TRÓIA

     A “Ilíada” termina com a morte de Heitor e é na “Odisséia” e em poemas posteriores que ficamos sabendo o destino dos outros heróis. Tróia não caiu imediatamente à morte de Heitor, mas, recebendo ajuda de novos aliados, ainda continuou sua resistência. Um desses aliados foi Mêmnon, o príncipe etíope cuja história já contamos. Outra aliada foi Pentensiléia, rainha das Amazonas, que chegou à frente de um bando de guerreiras. Todas as autoridades afirmam sua bravura e o terrível efeito do seu grito de guerra. Pentensiléia matou muitos dos mais bravos guerreiros, mas afinal foi morta por Aquiles. Quando, porém, o herói se debruçou sobre o cadáver da inimiga caída e contemplou sua beleza e mocidade, lamentou amargamente a vitória. Tersites, um fanfarrão insolente, ridicularizou seu pesar e foi por isso morto pelo herói.
     Por acaso, Aquiles viu Polixena, filha do rei Príamo, talvez por ocasião da trégua que concedera aos troianos para os funerais de Heitor. Ficou cativado por seu encanto e dispôs-se a usar sua influência com os gregos para concessão da paz a Tróia, a fim de desposá-la. Enquanto estava no templo de Apolo, negociando o casamento, Páris lançou contra ele uma seta envenenada, que, guiada por Apolo, feriu-o no calcanhar, o único lugar vulnerável de seu corpo, pois sua mãe, Tétis, o mergulhara, quando criança, no Rio Estige, que o tornara invulnerável, exceto no calcanhar, por onde a mãe o segurava.
     O corpo de Aquiles, tão traiçoeiramente morto, foi recuperado por Ajax e Ulisses. Tétis aconselhou os gregos a entregarem a armadura do herói àquele de todos os sobreviventes que fosse julgado mais digno de usá-la. Os únicos pretendentes foram Ajax e Ulisses. Foi escolhido um grupo seleto de outros chefes para decidir. A armadura foi oferecida a Ulisses, ficando a sabedoria, assim, colocada acima da bravura, o que levou Ajax ao suicídio. No lugar onde seu sangue molhou a terra, nasceu uma flor, chamada jacinto, que traz nas folhas as duas primeiras letras do nome Ajax, em grego, AI, e que significam um lamento. Assim, Ajax, juntamente com o jovem Jacinto, é pretendente à honra de ter dado origem àquela flor. Há uma espécie de esporinha que representa o jacinto dos poetas, conservando a lembrança do acontecimento, o Delphinium Ajacis.
     Tinha-se descoberto, então, que Tróia só poderia ser tomada com a ajuda das setas de Hércules que estavam em poder de Filoctetes, o amigo que estivera por último com Hércules e que acendera a pira funerária. Filoctetes juntara-se à expedição grega contra Tróia, mas ferira acidentalmente o pé com uma das setas envenenadas e o cheiro desprendido pela ferida era tão desagradável que seus companheiros o levaram para a Ilha de Lemnos e lá o deixaram. Diomedes foi mandado para convencê-lo a voltar ao exército e foi bem-sucedido. Filoctetes foi curado de sua ferida por Machaon, e Páris foi a primeira vítima das setas fatais. Em sua desgraça, Páris lembrou-se de alguém de que se esquecera nas épocas venturosas. Era a ninfa Enone, com quem se casara quando jovem e a quem abandonara pela beleza fatal de Helena. Enone, lembrando-se dos ultrajes que sofrera, negou-se a tratar do ferimento e Páris voltou a Tróia, e morreu. Enone arrependeu-se logo e apressou-se em seguir Páris, com os remédios, mas chegou demasiadamente tarde, e enforcou-se de pesar.
     Havia em Tróia uma celebrada imagem de Minerva, chamada o Paládio, que se dizia ter caído do céu, acreditando-se que a cidade não seria tomada enquanto essa imagem permanecesse dentro dela. Ulisses e Diomedes entraram na cidade disfarçados e apoderaram-se do Paládio, levando-o para o acampamento grego.
     Tróia, contudo, ainda resistia, e os gregos começaram a desanimar de conquistá-la pela força e, a conselho de Ulisses, resolveram recorrer a um estratagema. Fingiram estar fazendo preparativos para abandonar o sítio, e uma parte dos navios foi retirada e escondida atrás de uma ilha vizinha. Os gregos construíram, então, um imenso cavalo de pau, que fingiram ser um sacrifício oferecido a Minerva, mas que de fato estava cheio de homens armados. O restante dos gregos embarcou, então, em seus navios, que zarparam, como se estivesse partindo definitivamente. Os troianos, vendo que o acampamento fora levantado e a frota partira, chegaram à conclusão de que o inimigo abandonara o sítio. As portas foram abertas e toda população saiu para gozar a liberdade há muito negada de passear à vontade no local onde estivera o acampamento. O grande cavalo foi o principal objeto de curiosidade. Todos queriam saber qual seria a sua finalidade. Alguns sugeriam que ele fosse levado para dentro da cidade, como troféu, ao passo que outros se mostravam receosos dele.
     Enquanto hesitavam, Laocoonte, o sacerdote de Netuno, exclamou:
     -Que loucura é esta, cidadãos? Não aprendestes bastante a respeito da solércia grega para vos prevenirdes contra ela? Quanto a mim, temo os gregos, mesmo quando oferecem presentes.
     Assim dizendo, atira ao flanco do cavalo sua lança, que o atingiu, e um som cavo ressoou como um gemido. O povo talvez tivesse seguido, então, o seu conselho e destruído o fatal cavalo e o que ele continha, se, justamente nesse momento, não tivesse surgido um grupo de pessoas, arrastando um homem que parecia ser um prisioneiro grego. Estupefato de terror, esse homem foi levado perante os chefes, que o tranqüilizaram, prometendo poupar sua vida, com a condição de que ele falasse a verdade, ao responder às perguntas que lhe fossem feitas. O prisioneiro informou que era grego, que se chamava Sínon e que, em conseqüência da malícia de Ulisses, fora abandonado pelos companheiros. Com referência ao cavalo de pau, disse que se tratava de uma oferta a Minerva e que seu tamanho descomunal tinha expressamente a finalidade de impedir que fosse levado dentro da cidade, pois o profeta Cauchas predissera que, se os troianos se apoderassem dele, teriam assegurado seu triunfo sobre os gregos. Estas palavras fizeram mudar o rumo da opinião do povo, que se pusera a imaginar quais seriam os melhores meios para assegurar a posse do monstruoso cavalo e dos augúrios favoráveis com ele relacionados, quando ocorreu um prodígio que não deixou mais lugar a dúvida alguma. Apareceram, avançando sobre o mar, duas imensas serpentes, que chegaram à terra, fazendo a multidão fugir em todas as direções. As serpentes avançaram, então, diretamente para o lugar onde se achava Laocoonte com seus dois filhos. A primeira atacou as crianças, enroscando-se em torno de seus corpos e exalando em suas faces a respiração mortífera. Tentando salvá-las, o pai foi, logo em seguida, apanhado e envolto pelas dobras das serpentes. Lutou para desvencilhar-se, mas elas venceram todos os seus esforços, estrangulando-o e as crianças, em suas dobras peçonhentas. Esse acontecimento foi considerado como clara indicação do desprazer dos deuses ante a maneira irreverente com que Lacoonte se referira ao cavalo de madeira, que ninguém mais hesitava em considerar um objeto sagrado, preparando-se todos para conduzi-lo à cidade, solenemente como competia. Isso foi feito ao som de cantos e aclamações triunfais, e o dia terminou festivamente. À noite, os homens armados que se encontravam dentro do cavalo, tendo sido libertados pelo traiçoeiro Sínon, abriram as portas da cidade aos seus amigos, que haviam voltado sob a proteção da noite. A cidade foi incendiada; a população, entregue ao festim e ao sono, passada a fio de espada e Tróia completamente vencida.
     Um dos mais célebres grupos esculturais existentes é o que representa Laocoonte e seus filhos esmagados pelas serpentes e cujo original se encontra no Vaticano. Os versos seguintes são do “Childe Harold” de Byron:

     Voltando ao Vaticano, pode ver
     A tortura cruel de Laocoonte
     Que o sofrimento humano significa.
     Amor paterno e as dores dos mortais
     Com a coragem de deuses recebida.
     Inútil luta! Inútil resistência!
     As duras roscas da cruel serpente
     O velho esmaga. Imobiliza os membros,
     Tira-lhe o ar o peçonhento elo.

     Os poetas cômicos também costumam lançar mão de exemplos clássicos. Os versos seguintes são do poema “Descrição de um temporal na cidade”, de Swift:

     Em poltrona espaçosa acomodado,
     Ouve a chuva bater sobre o telhado
     E mau grado, por vezes a vaidade,
     Treme por dentro ouvindo a tempestade.
     Foi assim quando, em Tróia, Laocoonte
     O cavalo de pau feriu de fronte,
     Os dez heróis da Grécia, muito aflitos,
     Ao ruído do ferro, deram gritos.

     O rei Príamo viveu bastante para ver a queda do seu reino e foi morto no fim daquela noite fatal em que os gregos conquistaram a cidade. Ele se armou e estava prestes a se misturar com os combatentes, mas foi impedido por Hécuba, a velha rainha, que o convenceu a refugiar-se, com ela e suas filhas, no altar de Júpiter. Enquanto ali estavam, seu filho mais moço Polites, perseguido por Pirro, filho de Aquiles, entrou correndo, ferido e expirou aos pés de seu pai. Príamo, indignado, atirou, com as mãos débeis, sua lança contra Pirro¹ e foi morto por este.
     A rainha Hécuba e sua filha Cassandra foram levadas como cativas para a Grécia. Cassandra fora amada por Apolo, que lhe dera o dom da profecia. Depois, porém, irritando-se com ela, tornara inútil aquele dom, determinando que ninguém acreditaria em suas previsões. Polixena, outra filha, que tinha sido amada por Aquiles, foi exigida pela alma do guerreiro e sacrificada pelos gregos sobre o seu túmulo.
¹ A exclamação de Pirro “Não é essa a ajuda, nem tais defensores que a ocasião requer”, tornou-se proverbial. Non tali auxilio nec defensoribus istís. Tempus eget – Virgílio.

MENELAU E HELENA

     Os leitores devem estar interessados em saber o destino de Helena, a bela, mas causadora de tantos morticínios. Com a queda de Tróia, Menelau recuperou a esposa, que não deixara de amá-lo, embora tivesse se curvado ao poder de Vênus e o abandonado por outro. Depois da morte de Páris, ela ajudara os gregos, secretamente, em diversas ocasiões, em particular quando Ulisses e Diomedes entraram na cidade disfarçados para roubar o Paládio. Helena vira e reconhecera Ulisses, mas mantivera segredo e ajudara os gregos a se apoderarem da imagem. Desse modo, reconciliou-se com o marido, e os dois foram os primeiros a deixar as praias de Tróia, para voltar à terra natal. Tendo, porém, incorrido no desprazer dos deuses, foram arrastados por tempestades de costa em costa do Mediterrâneo, visitando Chipre, a Fenícia e o Egito. No Egito, foram hospitaleiramente acolhidos e receberam ricos presentes, cabendo a Helena uma roca de ouro e um cesto com rodas, destinados a guardar a lã e os carretéis para os trabalhos de fiação da rainha.
     Deyer, em seu poema “Velocino”, faz a seguinte alusão ao episódio:

     Muitas se apegam ainda à velha roca
     E mesmo a caminhar o fuso movem.
     ..........................................................
     Veio de antigos, gloriosos dias,
     A arte de fiar, quando do Egito
     O príncipe ofereceu à bela Helena
     Uma roca de ouro.
     Milton, também, faz alusão a uma famosa receita para uma bebida revigorante, chamada Nepente, que a rainha egípcia ofereceu a Helena:
     Não aquele Nepente que, no Egito,
     De Tone a esposa ofereceu a Helena,
     Que alegra os tristes e apazigua a sede.
                                                       Do “Comus”

     Finalmente, Menelau e Helena chegaram sãos e salvos a Esparta, reassumiram sua dignidade real e viveram e reinaram com esplendor. Quando Telêmaco, o filho de Ulisses, chegou a Esparta, procurando seu pai, encontrou Menelau e Helena celebrando o casamento de sua filha Hermíone com Neoptolemus, filho de Aquiles.

AGAMÊNON, ORESTES E ELECTRA

     Agamênon, o comandante-chefe dos gregos, irmão de Menelau, e que fora arrastado à guerra para vingar o infortúnio de seu irmão, e não o próprio, não foi tão feliz. Durante sua ausência, sua esposa, Clitenestra, não lhe fora fiel e, quando seu regresso foi anunciado, ela e seu amante, Egisto, tramaram um plano para eliminá-lo, e o assassinaram durante o banquete realizado para comemorar o seu regresso.
     Os conspiradores pretendiam matar também o filho de Agamênon, Orestes, ainda muito criança para causar apreensão, mas que poderia, depois de adulto, tornar-se perigoso. Electra, sua irmã, salvou-lhe a vida, mandando-o, secretamente, para junto de seu tio Estrófius, rei da Fócida. No palácio de Estrófius, Orestes foi criado com o filho do rei, Pílades, com o qual se uniu por uma amizade tão forte que se tornou proverbial. Electra, freqüentemente, relembrava ao irmão, por meio de mensagens, o dever de vingar a morte do pai e quando se tornou homem, Orestes consultou o oráculo de Delfos, que fortaleceu sua intenção nesse sentido. Ele se dirigiu, então, disfarçado, a Argos, fingindo ser um mensageiro de Estrófius, encarregado de anunciar a morte de Orestes e de conduzir as cinzas do morto numa urna funerária. Depois de visitar o túmulo do pai e nele sacrificar, de acordo com os ritos dos antigos, deu-se a conhecer a sua irmã Electra e, pouco depois, matou tanto Egisto como Clitenestra.
     Esse ato revoltante, o assassinato da mãe pelo próprio filho, embora atenuado pela culpabilidade da vítima e pela determinação expressa dos deuses, não deixou de provocar entre os antigos a mesma revolta que nos causaria. As Eumênides, divindades da vingança, apossaram-se de Orestes e o levaram, sem descanso, de terra em terra. Pílades acompanhou-o em suas peregrinações, velando por ele. Finalmente, respondendo a uma segunda consulta, o oráculo o mandou a Táuris, na Cítia, para dali trazer uma imagem de Diana, que se acreditava ter caído do céu. Orestes e Pílades dirigiram-se, portanto, para Táuris, cujos bárbaros habitantes tinham o costume de sacrificar à deusa todos os estrangeiros que lhes caíam nas mãos. Os dois amigos foram aprisionados e levados para o templo, a fim de serem sacrificados. A sacerdotisa de Diana, porém, não era outra senão Ifigênia, a irmã de Orestes, que, como devem se lembrar os nossos leitores, fora arrebatada por Diana, no momento em que ia ser sacrificada. Sabendo, pelos prisioneiros, quem eram eles, Ifigênia deu-se a conhecer e os três fugiram com a imagem da deusa, e voltaram a Micena.
     Orestes, contudo, não se livrou da vingança das Erínias. Finalmente, refugiou-se em Atenas, buscando a proteção de Minerva, que a concedeu e designou o tribunal do Areópago para decidir seu destino. As Erínias fizeram a acusação, e Orestes invocou como justificativa a ordem do oráculo de Delfos. Tendo os votos do tribunal se dividido igualmente, Orestes foi absolvido pelo voto de Minerva.
     No Canto IV do “Childe Harold”, Byron faz alusão à história de Orestes:

     Tu que, jamais, jamais, erros humanos
     Ó Nêmesis, poupaste do castigo,
     Tu que invocaste as Fúrias nos abismos
     E atormentaste Orestes, sem piedade,
     Em teu antigo reino, hoje te invoco,
     Levanta-te do pó em que tu dormes!

     Uma das cenas mais patéticas da tragédia clássica é aquela em que Sófocles representa o encontro de Orestes e Electra, quando ele regressa da Fócida. Orestes, tomando Electra por uma das servas, e, querendo manter em segredo sua chegada, até à hora da vingança, apresenta a urna em que, supostamente, se encontravam seus restos mortais. Electra, acreditando que ele estivesse realmente morto, recebe a urna, aperta-a nos braços e lamenta-se, com palavras repassadas de ternura e desespero.
     Milton diz, em um dos seus sonetos:

     Do poeta de Electra a triste ária
     Teve o dom de salvar da morte certa
     De Atenas a muralha milenária.

     Essa alusão se refere ao fato de que, em certa ocasião, a cidade de Atenas esteve à mercê de seus inimigos espartanos e foi proposta sua destruição, mas a idéia foi rejeitada, graças à citação acidental, feita por alguém, de um coro de Eurípedes.

TRÓIA

     Depois de tantas referências a Tróia e aos seus heróis, talvez o leitor fique surpreendido ao saber que a localização exata da famosa cidade é, até agora, objeto de controvérsias. Há alguns vestígios de túmulos na planície que mais de perto corresponde à descrição feita por Homero e pelos geógrafos antigos, mas não existe nenhuma outra prova da existência da grande cidade.
     Byron assim descreve o aspecto atual da região:

               O vento sopra forte, e o mar irado
                                           Ruge na escuridão.
               A noite cobre o solo já regado
                                           Por tanto sangue em vão.
               Da luz de Tróia, a Príamo tão cara,
                                           Um raio sequer brilha.
               De tudo resta só o que cantara
                                            O vale cego da rochosa ilha.

                                                 Da “Noiva de Abidos”.



A GUERRA DE TRÓIA é o Capítulo XXVII de O LIVRO DE OURO DA MITOLOGIA, de THOMAS BULFINCH.


Do original "The Age of Fable".
Copyright da tradução by Ediouro Publicações S.A.
Tradução de David Jardim Jr. - 11ª ed. - Rio de Janeiro - Ediouro, 2000

Livro de Ouro da Mitologia corresponde ao volume A Idade da Fábula de Thomas Bulfinch. É o melhor livro de referência e divulgação da mitologia, indicado em centenas de escolas e universidades em todo o mundo.
Thomas Bulfinch nasceu em 1796 em Masschusetts, Estado Unidos, filho do famoso arquiteto Charles Bulfinch. Graduou-se em 1814 pela Universidade de Harvard e foi professor da Boston Latin School. Bulfinch tentou o comércio, mas foi à falência.
A literatura foi seu interesse principal durante toda a vida, e A Idade da Fábula, seu trabalho mais conhecido. Tornou-se o livro mais famoso de divulgação da mitologia. Estava escrevendo Heróis e Sábios da Grécia e Roma quando faleceu, em 1867.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

MARECHAL DEODORO


     Manuel Mendes, vereador na cidade das Alagoas, estava furioso com a idéia do Governo de transferir a sede provincial da cidade das Alagoas para a vila de Maceió.
     “Não percebem que isso prejudica os interesses de proprietários, comerciantes e demais cidadãos, todo fiéis servidores do Império?”, pensava o vereador. A mudança da capital começava. O povo nas ruas protestava, e pedia a Manuel Mendes que usasse seu prestígio para impedir a transferência. Manuel Mendes, vereador e militar, estava diante de um dilema: sempre cumprira ordens, era um soldado saído do corpo de tropa, que só atingira o oficialato em 1823, aos 38 anos de idade. O presidente da Província era um superior a quem devia obediência. Mas e esse povo que grita nas ruas? Essa gente que se volta para ele pedindo ação?
     E o Major Manuel Mendes da Fonseca Galvão decidiu-se. Puxou a espada e mandou que as tropas saíssem à rua. Soldados e povo confraternizaram. E a população das Alagoas desafiou o Império.
     Pobre rebelião, grito de agonia de uma pequena cidade. Sem qualquer dificuldade, o Governo dominou a insurreição, e em dezembro de 1839 Maceió era a nova capital.
     A Manuel Mendes, cabeça da revolta, restou a fuga. Seguiu para Sergipe, deixando em Alagoas a esposa Rosa Maria Paulina e os filhos: Hermes Ernesto, Severiano, Manuel Deodoro, Pedro Paulino, Hipólito, Eduardo Emiliano, João Severiano, Emília Rosa e Amélia Rosa. Anos depois, teria ainda outro filho, Afonso Aurélio, nascido em 1845.
     Mas em 1839, como foragido político, Manuel Mendes não podia pensar no futuro. Sua carreira militar estava praticamente encerrada, e só seria revivida por seus filhos, que ingressariam no Exército. Manuel Mendes refugiou-se em Sergipe. Manuel Deodoro da Fonseca tinha, então, doze anos.

          Outro tempo, outro lugar, outra revolta

     Pernambuco, 1849. De cada quatro habitantes, três vivem no litoral sem conseguir trabalho fixo.
     As terras férteis pertencem a poucas famílias, proprietárias de todos os engenhos de açúcar. Nas fazendas não há emprego para homens livres, todo o trabalho é feito por escravos.
     O comércio nas cidades é dominado pelos portugueses, desde os tempos da Colônia. Há muito que os pernambucanos almejam a nacionalização do comércio para obter trabalho em condições de igualdade com os estrangeiros, e a aplicação dos impostos territoriais progressivos, que obrigue os grandes proprietários a se despojarem de parte das suas terras.
     Desde 1845, Chichorro da Gama, presidente da Província, vinha dando apoio à ala radical do Partido Liberal pernambucano – conhecida com Praia -, que encabeçava as duas reivindicações básicas e investia sistematicamente contra os privilégios dos conservadores. Mas as conquistas eram lentas, as promessas muitas.
     Em 1847 ocorreram os primeiros conflitos: grupos armados de praieiros decidiram apelar à violência para apressar as reformas. Os liberais mais moderados, que olhavam com desconfiança a evolução dos acontecimentos, retraíram-se. Chichorro acaba se demitindo. E a situação torna-se ainda mais alarmante para os praieiros quando, em setembro de 1848, cai o Gabinete liberal de Francisco de Paula Sousa e o jovem imperador chama para organizar o novo Gabinete Pedro de Araújo Lima, o mais convicto conservador de Pernambuco. O destino da Praia estava selado.
     Inicia-se a repressão, tentando sufocar pela força o movimento.
     O povo de Pernambuco e as guarnições de Olinda e Igaraçu rebelam-se.
     As tropas legais correm a abafar a revolta. Entre os soldados que, a 2 de fevereiro de 1849, tomaram a sede do Governo revolucionário estava o segundo-tenente de Artilharia a Pé, o jovem Manuel Deodoro da Fonseca que, há apenas doze meses, terminara seus estudos na Escola Militar.
     Iniciava sua carreira com um batismo de fogo, participando de uma luta entre irmãos. Não lhe competia discernir se a causa era boa ou má.
     Acima de tudo estava o dever a cumprir, a obediência que, como soldado, devia aos superiores. Contudo, havia também a dignidade pessoal, a honra humana.
     Quarenta anos depois, na qualidade de chefe, seria um rebelde. Começou a carreira militar ajudando a sufocar uma rebelião, e encerrou-a encabeçando uma revolução.

          Uma rápida viagem à fronteira sul

     Foi preso pela primeira vez em 1851. Deixara de apresentar a ordem do dia. Nos dois anos seguintes, mais quatro prisões disciplinares. Jovem e impulsivo, Deodoro tinha dificuldade em conter seu temperamento e sujeitar-se ao severíssimo regulamento militar.
     Por fim, desacatou o comandante; depois de nova prisão, foi chamado à Corte.  Ali, alguém – sua mãe Rosa Paulina ou o irmão Severiano – deve ter tido uma influência moderadora. Deodoro tornou-se mais controlado, disciplinou-se e logo mereceu um elogio do comandante da Fortaleza de Santa Cruz. Sua carreira voltava à tranqüilidade, só quebrada com a passagem a capitão (1856), a nomeação para ajudante-de-ordens do presidente da Província de Mato Grosso, e o casamento com Dona Mariana Cecília de Sousa Meireles (1860).
   O Natal de 1864 encontra Deodoro com a família. Está-se despedindo; no dia seguinte embarcará rumo ao Sul. Ele não pensa em ausentar-se por muito tempo. A campanha no Sul, supõe, será rápida. Trata-se apenas de solucionar alguns atritos entre o Brasil e o Uruguai. Mas estava enganado. Tinha início a longa e difícil Guerra do Paraguai.

          “Fiz essa guerra de fio a pavio”

     Itororó, 6 de dezembro de 1868. O troar dos canhões, o tagarelar da metralha, o gemido dos homens.
     Deodoro no chão, um ferimento de bala no ventre. Antes de ser atingido, vira o irmão, Hermes Ernesto, cair com um tiro na perna. A padiola em que o colocam pode ser a mesma em que momentos antes estava deitado, coberto por um lençol de sangue, o corpo morto de outro irmão, o Major Eduardo Emiliano.
     Desde o princípio Deodoro dera mostras de seu valor. No desembarque em terras do Paraguai, impediu que as tropas do General Osório fossem cercadas. Promovido a major, participara da terrível vitória de Tuiuti e da terrível derrota de Curupaiti. Depois, Potrero Obella e Taji, onde o comandante, Caxias, mencionou-o na ordem do dia “pela perícia e denodo com que se houve, patenteando a bem merecida reputação de que goza”. Por atos de bravura, tornou-se tenente-coronel.
     Os paraguaios resistem. A ponte de Itororó é tomada e perdida muitas vezes. Onde estariam os irmãos? O caçula, Alferes Afonso Aurélio, morrera em Curuzu, o Capitão Hipólito, em Curupaiti. Os que não estão feridos, como Deodoro, lutam ainda. No hospital de campanha, para onde é levado, sabe da grande vitória em Itororó. A guerra está decidida. Agora, é uma questão de tempo. Na Corte, as casas se encheriam de guirlandas e bandeirolas, as fachadas iluminadas para saudar a vitória. Eu sua casa haveria festa. A mãe, Rosa Paulina, escondendo as lágrimas pela morte dos filhos, diria: “O que importa é a vitória alcançada pela nossa Pátria, que eles foram defender”.
     Mas no campo de batalha era diferente. Do fogo, para o hospital. Do hospital, para o fogo. Deodoro volta à luta na campanha da Cordilheira, guerra de perseguição às tropas de Solano López. No entanto, seus ferimentos nunca cicatrizarão. Ele diria: “Nem sei como prossegui”, mas participa da captura de Peribebuí e do ataque a Nhu Guaçu.
     Finalmente, na manhã de 1º de março de 1870, as tropas brasileiras encurralam o último contingente paraguaio. E a guerra acaba.
     Haviam passado cinco anos. O Coronel Deodoro da Fonseca já pode voltar para casa.

          Idéias estranhas para súdito do Império

    Rio Grande do Sul, 1885. Os cabelos ralos, a barba branca, Deodoro – marechal de campo – envelhece na rotina dos quartéis.
     O equilíbrio político do Império, baseado no interesse comum das oligarquias regionais, estava-se modificando. Novas forças surgiam no cenário político. A proclamação da República francesa (1870) e a filosofia positivista de Augusto Comte haviam tomado conta da intelectualidade brasileira. Falava-se na vocação republicana da América, e o Império era combatido em nome da ciência e da razão. Benjamim Constant, professor da Escola Militar, seduzia com suas idéias os jovens oficiais. O equilíbrio econômico se rompera. As zonas cafeeiras de São Paulo desejavam maior força política e o poder moderador de Pedro II, acomodando também os interesses das regiões pouco produtivas, não ligadas ao café, era um obstáculo às pretensões dos cafeicultores.
     Por outro lado, boa parte das lavouras de café era de formação recente, posterior à abolição do tráfico de escravos (1850), e lutava contra a falta de mão-de-obra, mostrando-se favorável à substituição dos escravos – em número cada vez menor – por trabalhadores assalariados. Por diferentes razões e objetivos, a lavoura do café e as camadas urbanas estavam erguendo duas bandeiras, às vezes em separado, às vezes em conjunto: Abolição e República.
     Abolicionistas e republicanos buscavam a adesão do Exército, cujos membros haviam saído, em sua maioria, dos setores urbanos. Porém, os partidos oficiais também desejavam o apoio militar. Por isso, Henrique Pereira de Lucena, presidente da Província do Rio Grande do Sul, insistiu para que Deodoro assumisse o cargo de vice-presidente, sem prejuízo de suas demais funções. O militar, entretanto, não tinha pretensões de envolver-se em política.
     Para Deodoro, as virtudes do homem eram a honra, a honestidade e a franqueza. Jamais teria aceito o convite, se soubesse que, antes de assumir o Governo do Rio Grande do Sul, Lucena tivera uma conversa preliminar com Cotegipe, chefe do Gabinete conservador:
     “Procure fazer de Deodoro seu amigo”, dissera Cotegipe. “É o comandante das armas da Província e será o primeiro vice-presidente para substituí-lo quando você vier assumir sua cadeira de deputado”.
     Cotegipe planejava transformar Deodoro no grande marechal conservador, esteio militar do regime. No ano seguinte, 1886, o Barão de Lucena regressa à Corte e Deodoro assume a presidência do Rio Grande.
     Os planos do ministro pareciam caminhar tranqüilamente.

          Uma questão importante, a militar

     Mas os militares iam-se distanciando dos partidos políticos do Império. Algumas idéias, azedas aos políticos, eram-lhes cada vez mais caras.
     A idéia de abolir a escravidão, por exemplo, generalizava-se no Exército, cujas fileiras eram formadas por numerosos negros e mulatos.
     Também servindo em diversos pontos do País, os militares podiam ver homens do Norte  nomeados para governar o Sul, que desconheciam, ou vice-versa. As províncias aguardavam meses ou anos para que viessem da Corte instruções sobre assuntos corriqueiros. Era preciso descentralizar o Governo e criar uma federação.
     Se bem que a idéia de federação não desembocasse necessariamente em república, eram os republicanos os principais defensores da medida, e iam ganhando adeptos.
     Em pouco tempo, o Exército e Ministério entraram em conflito.
     O Coronel Cunha Matos, veterano da Guerra do Paraguai, inspecionando a guarnição do Piauí, denunciou irregularidades nos fornecimentos ao Exército. O deputado conservador Simplício Coelho de Resende, da tribuna da Câmara, atacou o militar que acusara seus correligionários. A resposta de Cunha Matos, pela imprensa, foi igualmente violenta. Em conseqüência, o ministro da Guerra, Alfredo Chaves, puniu-o por indisciplina. Iniciava-se a Questão Militar.
     No Senado, o Visconde de Pelotas expressava o pensamento do Exército:
     - Mas o honrado ministro, em vez de defender o honrado oficial, preferiu conservar-se mudo, reservando toda a sua veemência para castigar o oficial, quando este protestou pela imprensa. É preciso pedir licença até para gemer.
     No Rio Grande do Sul, o Tenente-Coronel Sena Madureira, atacava o Senador Franco de Sá pelas páginas de A Federação, jornal republicano de Júlio de Castilhos. Instado pelo Governo, Deodoro recusou-se a censurar o oficial sob seu comando, e argumentou que não havia indisciplina, pois a discussão não era entre militares.
     Cotegipe telegrafou:
     - V. Exa., em seu ofício, procura justificar os promotores das manifestações... provocado pelo que V. Exa. Chama de imposição do Sr. Ministro da Guerra. Deodoro respondeu-lhe:
     - Houve motivos para tumultuosas reuniões porque militares não podem nem devem estar sujeitos a ofensas e insultos... conhecerá V. Exa. Que prefiro ser desagradável levado pela verdade do que agradável pela reserva ou mentira.
     A 5 de dezembro de 1886, uma seca comunicação destitui Deodoro dos cargos que ocupava na Província.
     Os conservadores perdiam o “seu” marechal. E a Questão Militar continuava sem solução.
    
          Abolição, um passo para a República

     Deodoro, doente, não compareceu a uma audiência com o imperador. Iria pedir, em nome do Exército, que Pedro II anulasse as punições contra Cunha Matos e Sena Madureira, numa solução do conflito “digna do Governo e da classe militar”. Enfermo, valeu-se de um ajudante-de-ordens para levar sua posição definitiva: se não fossem os militares atendidos, ele, Deodoro, requeria respeitosamente exoneração das Forças Armadas.
     A Questão Militar incompatibilizara certas áreas políticas e o Exército. A comunicação de Deodoro a Cotegipe mostra a extensão do conflito:
     - Se a sorte determinar o rebaixamento da classe militar, no dia em que eu desconfiar que na frente de soldados não passarei de simples vulto político, quebrarei minha espada; envergonhado, irei procurar como meio de vida, a exemplo de muitos, uma cadeira de deputado para poder insultar a quem quer que seja.
     Muitos militares eram abolicionistas e partidários da federação. Quanto à república, os veteranos do Exército devotavam ainda um profundo respeito ao imperador, que a seu ver não era o responsável pela situação.
     Deodoro e os militares da sua geração ignoravam as palavras de Quintino Bocaiúva, ao apontar a farda do Tenente Lauro Muller: “É com isso que eu conto fazer a república”.
     Em outubro de 1887, através do seu órgão de classe, o Clube Militar, o Exército rompe definitivamente com os escravocratas. Deodoro, servindo mais uma vez de porta-voz, declara que o Exército não mais colaborará na perseguição e captura de negros fugidos, pois que os soldados brasileiros estavam sendo utilizados como capitães-do-mato, fim completamente estranho a tudo o que havia de mais nobre para o militar.
     Enfim, em março de 1888, o desprestigiado Cotegipe deixa o Governo. Seu sucessor, João Alfredo, prepara em dois meses o decreto da abolição da escravatura em terras do Brasil. O dia 13 de maio, em que a Princesa Isabel referendou a lei libertadora, foi seguido por mais de uma semana de comemorações públicas no Rio de Janeiro. Espetáculos teatrais gratuitos, bailes, paradas, passeatas, fogos de artifício. A abolição era uma festa nacional.
     Todos sabiam, porém, que o Gabinete conservador jamais a teria patrocinado por iniciativa própria. Além disso, a aliança entre os intelectuais republicanos, a juventude militar e os cafeicultores já se estabelecera.
     Nessas condições, o decreto João Alfredo, além de não atrair as simpatias oposicionistas, ainda afastava o apoio dos escravocratas.
     O Gabinete João Alfredo se enfraquecia sob uma oposição parlamentar (liberais) e extra-parlamentar, dirigida pelos jornais republicanos, onde pontificava Rui Barbosa.
     A 30 de setembro de 1888, a queda do trono parecia uma questão de tempo. A pressão republicana era cada vez maior. Poucos ainda diriam:
     -“República no Brasil é coisa impossível porque será uma verdadeira desgraça... Os brasileiros estão e estarão muito mal educados para republicanos; o único sustentáculo do nosso Brasil é a monarquia... Se mal com ela, pior sem ela”. Palavras de Deodoro.

          Uma rápida transformação

     Apenas um ano mais tarde Deodoro diria:
     - Só mesmo mudando a forma de governo. Da monarquia nada mais se pode esperar em benefício da Pátria e do levantamento do Exército.
     Era 4 de novembro de 1889 e Deodoro decidira-se. A transformação ocorrida em seu pensamento começara ainda no ano anterior. O Gabinete João Alfredo nomeara-o para Mato Grosso, o que equivalia a um desterro. Quintino Bocaiúva comentou; “O grande soldado vai ficar às ordens do presidente da Província”. Deodoro relutou, tentou protelar sua viagem, mas, soldado responsável, acabou seguindo para a nova guarnição. Os oficiais sob seu comando eram republicanos, e o marechal ouvia-os, já sem dizer que “a república é impossível”.
     A 19 de março morreu-lhe o irmão Severiano, Barão das Alagoas, monarquista por quem Deodoro tinha grande respeito. “Morreu a única pessoa que ainda podia me conter”, disse ele.
     Na Corte, Pedro II tenta continuar o velho jogo político, alternando ministérios liberais e conservadores no poder, e convida o liberal Visconde de Ouro Preto para formar novo Gabinete.  Pouco depois, Ouro Preto nomeia o Coronel Cunha Matos, que se reconciliara como o governo, para presidente da Província de Mato Grosso, colocando Deodoro sob suas ordens. Diante disso, o velho marechal, aos 62 anos, insubordinou-se. Sem dar satisfação aos superiores, abandonou o posto e voltou ao Rio.
     Contudo, ainda não estava decidido. A revolta era contra o Ministério. Não era fácil transformar toda uma vida dedicada ao imperador. Permanece hesitante e diz a Benjamim Constant, que se esforça por convencê-lo: “Que Pedro II permaneça no poder até a morte... depois então...”
     Em sua casa, a 4 de novembro, recebe notícias inquietantes. O Barão do Rio Apa fora incumbido de armar e adestrar a Guarda Nacional. A Guarda Cívica era rapidamente ampliada e comentava-se que obteria os melhores armamentos. O Império não confiava mais em seu Exército.
     - Só mesmo mudando a forma de governo...
     Os republicanos exultaram e a conspiração cresceu em torno do leito de Deodoro, abalado pela idade. Por que os republicanos necessitavam desse homem? Por que não marchavam sem ele? Os militares e políticos mais antigos não haviam rompido com Pedro II por apego à história de suas próprias vidas, respeito ao soberano e temor de que a república pudesse trazer uma crise de autoridade.
     Diz Tobias Monteiro: “Era preciso uma grande audácia e, sobretudo, um grande prestígio diante da tropa, para arcar contra 67 anos de tradições monárquicas e quase cinqüenta de reinado”. Deodoro tinha esse prestígio. E também a audácia. Sua história era a história do Segundo Reinado, sua autoridade uma garantia de que o País não se dissolveria. Sem Deodoro, a república seria uma aventura militar. Com ele, uma conquista pacífica.
     A 11 de novembro, em presença de Quintino Bocaiúva, Aristides Lôbo, Rui Barbosa, o chefe de esquadra Eduardo Wandenkolk e Benjamim Constant, o Marechal Deodoro da Fonseca dá sua palavra final:
     - Eu queria acompanhar o caixão do imperador, que está idoso e a quem respeito muito. Mas se ele já não governa, não há mais o que esperar da monarquia. Façamos a república.
     E Deodoro assume o comando.

          Rio de Janeiro, é madrugada

     A noite desceu sobre a cidade do Rio de Janeiro. Uma noite igual às outras. Os últimos boêmios que estavam a ouvir canções francesas na Maison Moderne já se foram. O Recreio Dramático está com a platéia vazia e as luzes apagadas, as cervejarias do Largo do Rossio fecharam as portas. A cidade dorme.
     Dorme Isabel, a princesa, em seu palácio nas Laranjeiras. Dorme também o Conde d’Eu, comandante-geral da Artilharia e marechal do Exército. Dorme arquejante Deodoro, cujo estado de saúde se agravou. Dormem muitos conspiradores, que aguardam chegar o dia 20, data marcada para fazer a república.
     Os quartéis, entretanto, estão em atividade. Espalhara-se pela guarnição o boato de que Quintino Bocaiúva e Aristides Lôbo tinham sido presos, e que Benjamim Constant e Deodoro da Fonseca também o seriam. Revolta-se o I Regimento.
     Por isso, Ouro Preto não dorme. Informado, comanda a resistência. Segue para o Arsenal da Marinha e de lá para o Quartel-General, onde se reunirá o Ministério.
     Também os conspiradores vão sendo avisados e não pretendem perder a oportunidade. Os alunos da Escola Militar da Praia Vermelha aderem aos republicanos. Benjamim Constant providencia apoio da tropa do quartel de São Cristovão, que sai às ruas.
     Três horas da manhã. Alguém acorda Deodoro e conta-lhe a situação. O velho marechal esquece a doença. Levanta-se, veste-se, arma-se de um revólver. Falta-lhe apenas a espada: o ventre dolorido não lhe permitia suportar o peso.
     Próximo ao gasômetro, Deodoro encontra-se com as tropas de São Cristovão e dirigem-se para o Quartel-General. Em pouco, a sede do Ministério estava sitiada pela artilharia. Deodoro, a cavalo, vê chegar a carruagem de um ministro retardatário, o Barão de Ladário, e manda detê-lo. Ladário reage e cai ferido por uma bala. Mostrava-se a determinação republicana.
     Do outro lado, a obstinação dos monarquistas. Ouro Preto pretende resistir. Manda que o Marechal Almeida Barreto assuma a defesa do Quartel-General. Em obediência, Almeida Barreto sai à frente de uma coluna. Defronta-se com Deodoro. Conversam, o monarquista hesita e, por fim, cede. Apoiaria Deodoro. Ouro Preto joga sua última cartada. Em termos ásperos, ordena ao ajudante-general que vá rechaçar os atacantes com os meios de que dispõe. Mas ele lhe responde: “Os galões que possuo, Exa., foram ganhos nos campos de batalha e não por serviços prestados aos ministros”. Era Floriano Peixoto.
     Ouro Preto, velho homem de Estado, sabe agora que a causa está perdida. Não se rende. Aguarda apenas que Deodoro invada o quartel e decida seu destino. O marechal ataca e não encontra resistência. Dirige-se a Ouro Preto e deixa extravasar sua mágoa:
     - Os demais estão livres, mas os senhores dois (Ouro Preto e Cândido Oliveira, ministro de Guerra) estão presos e serão deportados para a Europa... Vossa Excelência, senhor visconde, é homem teimosíssimo, mas não tanto quanto eu...
     Nenhuma palavra contra o Império. Deodoro monta outra vez a cavalo e põe-se à frente da tropa. Era a alvorada de 15 de novembro. A notícia da queda do Ministério já começara a circular. Uma multidão se comprimia pelas ruas próximas. Deodoro da Fonseca arranca o quepe e o agita no ar com um grito: “Viva a República Brasileira”.
     A multidão aplaude. Nenhuma resistência. Estava feita a República. Só faltava avisar a família imperial, que ainda dormia.

          Um Governo apenas provisório

     Exatamente um ano depois, a 15 de novembro de 1890, o novo regime submete-se pela primeira vez às urnas, para a eleição de uma Assembléia Constituinte. Nesse intervalo, sob a expectativa simpática da população, o Brasil vinha sendo administrado por um governo provisório, cuja principal missão era garantir a ordem, a liberdade e os direitos do cidadão.
     Deodoro, à frente do Governo, formara um Gabinete que se revelara uma autêntica fábrica de leis. No curto espaço de um ano criava-se o regime federativo, a Igreja separava-se do Estado, instituía-se o casamento civil, concedia-se nacionalidade brasileira a todos os residentes estrangeiros que a solicitassem, regulamentava-se o trabalho industrial dos menores e reformavam-se a lei hipotecária, a lei de falência e o Código Penal.
     De permeio, a inexperiência política de Deodoro levava também a erros, que provocariam ressentimentos. O ministro da Fazenda, Rui Barbosa, apresentou um plano para a criação de bancos emissores no Rio de Janeiro, Salvador e Porto Alegre. Transformado em decreto, a despeito da oposição de alguns setores do Governo, tal plano deu lugar a violenta especulação financeira e acabou por levar a nação a uma crise econômica, que ficou conhecida como o Encilhamento, e cujos efeitos negativos ainda se fariam sentir quinze anos depois.
     A faceta autoritária de Deodoro manifestara-se na discussão desse decreto. Como seus ministros não chegassem logo a um acordo, ameaçou renunciar.
     O decreto aprovado custou a demissão do Ministro Demétrio Ribeiro, que a ele se opunha.
     Não obstante, Deodoro era uma figura popular e estimada na cidade. Outorgam-lhe o título de generalíssimo, que ele aceita como uma homenagem natural. As audiências que concedia ao povo no Itamarati tornaram-se célebres.
     A candidatura de Deodoro à presidência é lançada antes mesmo da eleição da Constituinte. Os homens da República parecem unidos em torno de Deodoro. Todos os ministros de seu Governo que se candidatam são eleitos, como também seus dois irmãos, Hermes e Pedro Paulino, e um sobrinho.
     No entanto, essa coesão era aparente. Na eleição para a mesa da Assembléia, as cisões começaram a aparecer. Saldanha Marinho, velho senador, era o candidato natural. Porém, os representantes dos cafeicultores conseguiram eleger Prudente de Morais. Um decreto de Rui Barbosa omitira, no primeiro momento, São Paulo entre os Estados merecedores de um banco emissor. Com isso, agastaram-se os paulistas, principalmente Campo Sales, com o apoio da facção gaúcha de Demétrio Ribeiro. A vitória que obtiveram pela liderança na Assembléia fazia prever o surgimento de um bloco de oposição.
     Finalmente, a primeira Constituinte republicana é promulgada a 24 de fevereiro de 1891. Divulga-se então os oposicionistas que Deodoro pretendera “sancionar” a Constituição. Conta-se que só a ação rápida do deputado governista Lopes Trovão impediu a publicação do decreto absurdo na imprensa oficial. No dia seguinte, 25 de fevereiro, a Assembléia reunida escolhia o presidente da República. Deodoro foi eleito por pequena diferença.

          Uma estranha festa

     Deodoro jurara que, quando fosse eleito presidente da República, tomaria posse com a farda de marechal e todas as condecorações que recebera. Pouco lhe importava que a Constituição houvesse abolido as distinções imperiais. Suas medalhas, ele as ganhara no campo de batalha, no inferno da metralha e à custa de sangue.
     Pouco se lha dava que fosse uma afronta à República. A República também o afrontara. Exemplo haviam sido as eleições. Não fosse por temor à tropa e talvez essa Assembléia houvesse eleito Prudente de Morais. Ele, que fizera a República, era escolhido por pequena margem. O vice-presidente, Floriano Peixoto, ligado aos jovens oficiais, elegera-se com uma votação muito superior.
     Alarmados, os governistas enviam a Baronesa das Alagoas, cunhada de Deodoro, para convencê-lo a abandonar a idéia. Pronto para a cerimônia, Deodoro não cede.
     A baronesa impacienta-se e resolve retirar ela mesma as grã-cruzes, placas e medalhas, desprendendo-as da farda de Deodoro. O marechal consente indignado, e nesse estado de espírito prepara-se para a posse.
     Era o dia seguinte à eleição. Os salões do Itamarati e a Rua Larga de São Joaquim apinhavam-se de gente.
     Fora do salão nobre, Deodoro acompanha o discurso de abertura proferido pelo presidente da Câmara, Prudente de Morais. É um discurso curto e frio.
     Finalmente, às 13h10, Deodoro entra no salão nobre. Algumas palmas são logo abafadas por imperiosos pedidos de silêncio.
     Deodoro tem a impressão de que alguma coisa se prepara contra ele. E a afronta surge com a entrada do vice-presidente, Floriano Peixoto. Uma ovação formidável o saúda. Palmas e palmas. É clara a provocação a Deodoro e o velho marechal empalidece. A custo contém-se para pronunciar o juramento de praxe.
     E assim tomou posse o primeiro presidente eleito da República do Brasil.

          Um cativo depois da abolição

     Deodoro impôs sua vontade ao Ministério até 15 de junho de 1891, quando se instalaram os trabalhos do Legislativo. Depois disso, o Parlamento o amarrou. Campos Sales chefiava a oposição, e Prudente de Morais, como vice-presidente do Senado, combatia sistematicamente os projetos do Governo. O Legislativo rejeitava todas as iniciativas presidenciais. Deodoro, em réplica, vetava os projetos que lhe chegavam às mãos. A república estava num impasse.
     O Ministério chefiado pelo Barão de Lucena era alvo de violentos ataques. Aníbal Falcão afirmava na Câmara:
     - Ficamos sob o látego do Sr. De Lucena! Já se foi o tempo dos senhores de engenho, da Câmara dos Servis, dos césares caricatos e dos barões assinalados!
     Procurando permitir a Deodoro um acordo político com a oposição, o Ministério exonerou-se.
     Mas o marechal não se dispunha a negociar. Se o Congresso não se subordinava e queria luta, teria luta. Não aceitou a demissão dos ministros:
     - Como se pretende tolher-me o direito de conservar um Ministério que merece minha inteira confiança?
     E voltou ao ataque:
     - Isso que aí temos não é um Congresso Legislativo, mas um ajuntamento anárquico que deve desaparecer para a felicidade do Brasil.
     Manda que seus batalhões tomem os edifícios da Câmara e do Senado. A 3 de novembro 1891, afrontando a Constituição, Deodoro dissolve o Parlamento e assume poderes absolutos.
     A parada militar do aniversário da República seria um fato importantíssimo. Corriam boatos de uma rebelião no Rio Grande do Sul, e a parada demonstraria a unidade militar. A doença dera a Deodoro uma noite de padecimentos. Não tinha forças para levantar-se e dois ordenanças tiveram de carregá-lo até a sala.
     O velho marechal vencia suas dores para comparecer à cerimônia. Faltava-lhe, no entanto, a companhia do vice-presidente. Floriano Peixoto não compareceu ao desfile. Dele só se recebeu um aviso lacônico: “A farda que tenho não está capaz”.
     A unidade do Exército estava ameaçada.
     Alastra-se a rebelião gaúcha. No Rio de Janeiro, os ferroviários entram em greve. Quintino Bocaiúva e o Almirante Wandenkolk estão presos, mas outro almirante, Custódio José de Melo, foge para o encouraçado Riachuelo e declara-se em rebelião.
     Na madrugada de 22 de novembro, os ministros permanecem indecisos. Deodoro dorme depois de violentos ataques de dispnéia. Somente às 6 horas da manhã é informado da situação. Arma-se imediatamente e prepara-se para reagir. Lucena faz-lhe ver que sua saúde não suportaria mais esse esforço e aconselha-o a desistir.
     Deodoro ouve de cabeça baixa e parece refletir. Finalmente, exclama:
     - Lamenha, diga a Saldanha que julgue sem efeito as ordens dadas.
     E a outro:
     - Lôbo Botelho, diga a Floriano que venha falar-me.
     Ao receber Floriano, passa-lhe o Governo e pede sua reforma dos serviços das armas. Aos 64 anos, Deodoro, afinal, cedia. E disse, ao assinar o termo de renúncia:
     - Acabo de assinar a carta de alforria do derradeiro escravo do Brasil.

          Nada mais. Só o fim

     Passa os dias numa poltrona, imóvel, o olhar perdido. Os poucos movimentos são para acariciar Tupi, seu pequeno vira-lata de pêlo branco.
     Os dias passam. Deodoro talvez pense nos antigos bailes onde comandava o compasso: “Les dames en avant, les chevaliers em arrière”. Os olhos longe, quem sabe estarão vendo uma pequenina rebelião, na perdida cidade das Alagoas? O sorriso é certamente para a lembrança de uma das muitas mulheres que cortejou. A última paixão foi a gaúcha J.B., de “olhos negros fatais, mas bem-amados, que zangados ferem, que sorrindo matam”. Um riso mais largo. Lembra-se de outro escrito seu: “A Guerra do Paraguai por um português – 10 décimas de grande comicidade, assim como várias cançonetas saltitantes e brejeiras que nunca foram divulgadas, por impróprias”.
     Já não usa farda e nem sai de casa. Coloca todas as fitas e condecorações numa lata que pretende atirar ao mar.
     Entre 19 de janeiro de 10 de abril de 1892, velhos companheiros de farda ainda voltam-se para ele, preparam-lhe manifestações, querem sua ajuda para enfrentar Floriano. Mas Deodoro está morrendo.
     Na manhã de 23 de agosto de 1892, Deodoro parecia um pouco melhor. Conseguira falar com a esposa e se confessara. Respirava mais livremente, sem aflição. De repente, os olhos rolam nas órbitas. O irmão segura-lhe o pulso. Deodoro morreu.
     Foi um dos maiores funerais que o Rio de Janeiro já conheceu. Presentes amigos e inimigos: Custódio de Melo, Rui Barbosa, Campos Sales, Saldanha da Gama, Serzedelo Correia. Atrás do coche fúnebre, cabisbaixo, segue Floriano Peixoto.
     No esquife, Deodoro em trajes civis, conforme seu desejo expresso. Sem insígnias ou condecorações. Nenhuma das honrarias que recebeu está consigo. No último momento, ele que fora tão afeito às homenagens, que lutara por usá-las em desobediência à Constituição, desprezou-as.
     Não queria consigo lembranças do poder e da glória passada. Nem mesmo os símbolos do heroísmo.
     Sobre seu peito apenas uma pequena medalha sem valor. Quase um pedaço de lata. Só ela o acompanharia ao túmulo. Só ela Deodoro quisera manter como símbolo de uma longa existência. Das suas muitas aventuras, só desejou levar aquela recordação. Fôra sua última decisão.
     A banda de música da Brigada Policial executa uma marcha fúnebre. Os militares perfilam-se. No Campo de Santana, um caixão baixa à sepultura. Dentro, o Marechal Manuel Deodoro da Fonseca, herói de muitas batalhas, proclamador da República e seu primeiro presidente. Sobre o seu peito, a humilde medalha da Confederação Abolicionista.



MARECHAL DEODORO é um fascículo encadernável da coleção GRANDES PERSONAGENS DA NOSSA HISTÓRIA, integrante do volume III.
Uma edição da ABRIL CULTURAL.
Editor VICTOR CIVITA.
Copyright mundial, 1969, Abril Cultural Ltda.
O texto foi elaborado à base de monografia do seguinte colaborador:
SUELY ROBLES REIS QUEIRÓS, assistente do curso de História da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.