Nem sempre os produtos agrícolas que fazem
em determinada época a riqueza duma região são dela originários ou nela foram
inicialmente cultivados. Quase sempre ali chegam após várias experiências em
outras partes e como resultado de diversas tentativas anteriores que se
malograram ou ficaram contidas dentro de certos limites. No decurso da história
econômica dos povos, esse fenômeno tem sido constantemente observado.
Foram os antigos colonizadores portugueses
mestres na transplantação de grãos e frutos preciosos, e de tal modo alguns deles
se tornaram aqui e ali tão opimos e abundantes que hoje são tomados como
autóctones. A maioria de nossas melhores frutas veio de terras estranhas: a
ata, pinha ou fruta de conde, da África; a goiaba branca ou vermelha, das
Antilhas; o abacate, da América Central; a manga e a jaca, da Índia; a
fruta-pão, da Oceania; o cáqui, do Japão; a carambola, da China. Entre suas
colônias da África e da Ásia, também, os navegadores lusos permutaram plantas.
A história dessas transplantações ainda está por ser feita e, quando o for, nos
dará uma interessantíssima visão da obra civilizadora de Portugal no mundo.
Dentro desse panorama, o caso do café é
digno de nota, é típico, porque demonstra a tese com que iniciamos este rápido
estudo. A cultura dessa rubiácea da Etiópia, que os jornais classificaram como
preciosa, desenvolveu-se extraordinariamente nas províncias, hoje Estados, do
Centro-Sul do País: Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais e São Paulo,
alastrando rumo ao Oeste e invadindo agora o Paraná; mas não foi aí que teve
início. É já ponto pacífico da história do café no Brasil que ele veio do
Extremo-Norte, através do Nordeste, para o Sul, onde se fixou e atingiu o
apogeu. Sua marcha está definitivamente documentada.
A 27 de maio de 1727, chegava a Belém do
Pará o capitão-tenente Francisco de Melo Palheta, trazendo, às escondidas, de
Caiena, na Guiana Francesa, cinco mudas de cafeeiros, as primeiras que se
plantaram no nosso País. Cerca de quatro anos mais tarde, a 25 de janeiro de
1751, a "Gazeta de Lisboa Ocidental" estampava em suas páginas a
notícia de que tinha dado entrada no porto daquela cidade, vindo do Norte do
Brasil, um carregamento de café, superior
em qualidade ao do Levante, acrescentando que, no lugar onde fora colhido,
prudentemente não indicado, havia já carga do mesmo produto para vinte navios.
As primeiras plantações de café no Brasil,
segundo se sabe, foram feitas com entusiasmo e proveito na região amazonense do
Rio Branco, no Pará e no Maranhão, desde a introdução das mudas de Melo
Palheta, na primeira metade do Século XVIII. Até 1748 chegaram, conforme
notícias da citada Gazeta, muitos carregamentos de café brasileiro a Lisboa.
Mas, dentro de pouco tempo, esse comércio fenecia porque as colheitas
minguavam, até que cessou de todo. Foi então, sem dúvida, que começaram nas
zonas nordestinas, a principiar pelo Ceará, novas tentativas da cultura do
cafeeiro.
No ano de 1747, o capitão-mor da vila de
Sobral e da ribeira do Acaracu, hoje Acaraú, no norte da capitania do Ceará
Grande, tronco de ilustre família, José de Xerez Furna Uchoa, plantou no sítio
de sua propriedade, "Santa Úrsula", na serra da Meruoca, um pé de café,
que viveu 114 anos, pois, conforme afirma o historiador cearense Barão de
Studart, ainda existia em 1861. Foi ele que forneceu sementes para os cafezais
plantados naquela serra e na da Ibiapaba, que lhe fica próximo. Sua história é
muito interessante.
O capitão-mor José de Xerez Furna Uchoa,
potentado sertanejo, era natural da vila de Goiana, em Pernambuco, localidade
que deu grande número dos mais antigos povoadores do Ceará, fidalgo de quatro
costados, com brasão de armas e vasta parentela em Portugal. Numa viagem que
fez à Metrópole para conhecê-la, de 1743 a 1746 mais ou menos, foi até Paris, onde,
visitando o famoso Jardim das Plantas, deparou alguns cafeeiros presenteados ao
rei Luís XV por navegadores holandeses que os haviam trazido do Oriente. José
de Xerez Furna Uchoa teve logo a ideia de plantar o precioso arbusto nas suas
terras da Meruoca e não descansou enquanto não a viu vitoriosa.
Exercia o governo da França sob a égide
real o famoso duque de Choiseul, ministro todo-poderoso como o marquês de
Pombal no Reino Lusitano e o conde de Aranha na Espanha, aliado, pode-se dizer,
do primeiro na luta contra os jesuítas. Naturalmente, por intermédio da representação
diplomática portuguesa na capital da França, conseguiu Furna Uchoa forte
recomendação para o duque, diante da qual lhe mandou entregar duas daquelas
mudas de café oferecidas ao seu rei. Trouxe-as o capitão-mor para o Nordeste do
Brasil com os maiores cuidados. Todavia, uma delas não resistiu à demorada
travessia do Atlântico. A outra foi a que durou 114 anos rio sítio Santa Úrsula.
Assim, o primeiro cafeeiro do Ceará veio diretamente de Paris e pertenceu a
Luís XV.
A tentativa de Furna Uchoa não leve
imitadores naquelas priscas eras. Durante quase um século, 97 anos exatamente,
não se difundiu no Ceará, fora da Meruoca, o cultivo do café. Só em 1824, dois
anos após a Independência, Antônio Pereira de Queirós, dono do sitio Munguaípe,
e Filipe Castelo Branco, proprietário do sítio Bagaço, ambos na serra de
Baturité, iniciaram o plantio da rubiácea. As mudas ou sementes usadas pelo
primeiro desses agricultores eram procedentes da região do Cariri, ao sul da
província, limítrofe com a de Pernambuco. As do segundo tinham vindo do Pará.
Foi esse o começo das plantações de café, à
sombra, de Baturité, que mais tarde se tornariam sobejamente conhecidas
pela superior qualidade do seu produto. Até hoje os cafezais da citada serra
continuam a produzir ótimo café, que é consumido no Ceará, onde mal chega para
as encomendas. Dali o plantio se espalhou pelas outras serras frescas da
redondeza: Aratanha, Pacatuba, Maranguape.
As sementes vindas do Cariri eram de
procedência pernambucana, pois na zona chamada do agreste, na província de Pernambuco, a cultura cafeeira já vinha
sendo experimentada desde alguns anos antes de 1824. Mais ou menos por essa
mesma época, o cafeeiro foi plantado na Paraíba, onde até nossos dias goza de
justa fama o café de Mamanguape, rival em cheiro e sabor ao de Baturité.
Desta sorte, vê-se que foram os nortistas
e nordestinos os primeiros do cultivo do cafeeiro em nosso País; no Pará em
1727, no Ceará em 1747, vinte anos depois. No começo do Século XIX, ele introduzido
no Sul, onde o esperava glorioso desenvolvimento.
É interessante que tenhamos devido às
primeiras mudas de café à França: as de Caiena e a de Paris.
- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, de onde foi copiado este capítulo, em 2004, sob os auspícios da FUNCET-PMF.
Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.
- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, de onde foi copiado este capítulo, em 2004, sob os auspícios da FUNCET-PMF.
Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.