O Corão, livro quase da mesma extensão do Novo Testamento, é uma das mais impressionantes escrituras da História. Moldou a vida de milhões de pessoas e deu origem a poderosa e duradoura religião conhecida como islamismo e que contribuiu para a formação do mundo moderno. Ao contrário dos livros sagrados dos judeus e dos cristãos, que são coletâneas de narrativas religiosas, leis, poemas, provérbios, profecias e orações, datando de épocas diferentes e escritos por diferentes autores, cada palavra do Corão foi transmitida ao mundo pelos lábios de um único homem, o Profeta Maomé, durante um período de vinte e dois anos, nos inícios do século VII.
Alguns dos capítulos do Corão, os suras, são avisos curtos e veementes do fim, proclamando um Dia do Juízo Final e exigindo a adoração de um só Deus. Outros discutem os profetas bíblicos e as lições contidas em suas respectivas vidas. Outros ainda estabelecem regras detalhadas com relação à família, à propriedade e à justiça. Todos são expressos num árabe repleto de fascínio que contribuiu para convencer os primeiros ouvintes do Corão – tribos árabes, orgulhosas tanto da própria eloqüência como da coragem que lhes era peculiar – de não ser ele a palavra de um homem, mas a palavra do próprio Deus.
O Corão é a alma do Islã – palavra que significa muito simplesmente “submissão a Deus”. O islamismo começou como um movimento religioso nos tórridos desertos da Arábia e logo se estendeu pelo Oriente Médio. Abrangeu muitos povos diferentes, que passaram a se chamar mulçumanos – ou crentes – unindo-os em imenso Estado monoteísta. Menos de dez anos após a morte do Profeta, empregando o método da conquista e da conversão, o Islã abalou as fundações de Bizâncio e da Pérsia, as duas mais poderosas civilizações da época. Em menos de um século, varreu parte da Ásia, da África e da Europa, dominando uma área mais extensa do que a do Império Romano durante seu apogeu. Posteriormente iria tornar o idioma arábico a língua comum de cerca de 90 milhões de pessoas, ditar uma forma de vida para uma em cada sete pessoas na face da Terra, e exercer poderosa influência sobre o Ocidente.
Por mais de seis séculos – desde a aurora do Islã, quando a cavalo ou em camelos, ondas de novos convertidos lançavam-se da Arábia, até o ponto crítico de sua longa história, aquela em que nômades mongóis saquearam a capital muçulmana de Bagdá, em 1258 – o islamismo foi a religião mais contestada do mundo, sua mais acentuada força política e sua cultura mais importante. Pela primeira vez na História, essa cultura reuniu povos diferentes e distantes, como espanhóis, negros africanos, persas, turcos, egípcios e indianos. Nesse papel unificador, o Islã transmitiu mais de uma invenção de comprovada importância para o desenvolvimento da civilização ocidental. Os mulçumanos aprenderam a técnica do fabrico do papel com os guerreiros chineses capturados numa batalha próximo de Samarcanda, passando mais tarde o processo para a Europa. Os algarismos “arábicos” foram trazidos da Índia e transmitidos para o mundo ocidental, onde se tornaram símbolos matemáticos padrões. O Islã também prestou outro relevante serviço: a herança da Grécia Clássica – tanto científica como filosófica – durante séculos perdida para o Ocidente, lhe foi em sua maior parte devolvida através de traduções levadas a efeito em terras islâmicas.
Ao mesmo tempo, os adeptos de Maomé criaram uma cultura própria, distinta e importante. Fazia parte do espírito do Islã a faculdade de tomar elementos das várias culturas que abrangia, sintetizá-los e, então, desenvolver esse amálgama. Na medicina, por exemplo, os mulçumanos desenvolveram a teoria grega através da observação prática e da experiência clínica. Fizeram também contribuições significativas no campo da química, da física e da matemática – a álgebra, a geometria e, particularmente, a trigonometria desenvolveram-se amplamente no Islã.
Na arquitetura, a conquista mais característica do Islã foi a mesquita. Um estilo popular de decoração exterior empregado em tais construções consistia em ricos desenhos com motivos em volutas e entrelaçados – copiados largamente por toda parte, tornaram-se conhecidos como “arabescos”. Em trabalhos de arte secundários, como na tapeçaria, na cerâmica, na encadernação, na caligrafia, no entalhe em marfim e madeira, os artesãos islâmicos criaram obras primorosas. Na literatura, o Islã produziu trabalhos famosos como As Mil e Uma Noites, que alguns estudiosos consideram um precursor do romance ocidental, e o clássico poema persa, o Rubayat, de Omar Khayyam.
O movimento religioso que deu origem a essas grandes forças culturais e políticas estabeleceu-se no que pareceria ser um dos lugares mais improváveis do globo – uma faixa de terra, quente e ressecada, que se estende por mais de um milhão de quilômetros quadrados entre a África e a Ásia. No século VII, muitos de seus habitantes faziam parte de tribos nômades beduínas que viviam em tendas tecidas com pêlo de cabra e de camelo e se alimentavam frugalmente, à base de tâmaras e leite. Muitas vezes se envolviam em rixas sangrentas com outras tribos. Incursões esporádicas faziam parte de seu modo de viver.
Os beduínos pré-islâmicos adoravam em pedras, árvores e pedaços de madeira as moradas de espíritos por eles mesmos imbuídos de poderes sobrenaturais. Para eles, a suprema virtude humana era a masculinidade, expressa sob a forma de lealdade, generosidade e coragem. A lealdade, sobretudo, era necessária na luta pela sobrevivência no deserto árido; homem algum podia viver sem a proteção de sua tribo, a que só se permitia agir unida. A lealdade era o centro do asabiyya, ou espírito tribal. Esperava-se que um homem fosse valente ao ponto de morrer em defesa dos direitos de sua tribo, relacionados, em grande parte, com o pasto e com a água num deserto árido em que poços valiam mais que ouro. A generosidade se expressava dentro do conceito de hospitalidade do deserto – conhecido conto popular árabe louva um jovem que matou três dos camelos de seu pai para alimentar forasteiros ocasionais. A coragem envolvia a proteção das respectivas esposas e a participação em muitas incursões – tinha-se em grande conta a destreza do homem no manejo do arco e no domínio do cavalo.
A eloqüência tão admirada pelas tribos árabes exprimia-se melhor na poesia, forma de arte falada, própria para gente que só podia transportar poucos bens, em virtude de sua permanente mobilidade. Essa poesia foi sua mais importante conquista artística e representou papel relevante na vida diária. Um poeta podia inspirar os guerreiros de sua tribo e liquidar-lhe os inimigos, mas exercia também muitas outras funções, incluindo a de porta-voz da comunidade, cronista, publicista contratado e historiador dos feitos de seu povo.
Em meado do século VI havia três importantes cidades no Norte da Arábia, todas localizadas numa região montanhosa denominada Hijaz, limitada, a oeste, pelo mar Vermelho, e, a leste, pelo grande deserto. Na parte central do Hijaz situava-se Iatribe, fértil oásis composto de fazendas e aldeolas espalhadas por mais de 30 quilômetros quadrados. Cerca de 400 quilômetros ao sul ficava Taife, ameno refúgio de verão nas montanhas, aproveitada pelas famílias árabes abastadas. Exatamente a noroeste de Taife estava Meca, a aproximadamente 80 quilômetros do mar Vermelho e situada numa ravina rochosa, cercada de montanhas destituídas de qualquer tipo de vegetação.
Dessas três cidades, Meca foi decididamente a mais próspera e importante. Primeiro por se localizar no ponto de confluência do lucrativo comércio de caravanas. Extensas caravanas de camelos conduzindo especiarias, perfumes, metais preciosos, marfim e seda enfileiravam-se pela cidade, encaminhando-se para o norte, do Iêmen e Hadramaute até os mercados da Síria, e para o oriente, vindas do mar Vermelho, e atravessando o deserto até o Iraque. Além dos lucros das caravanas havia um ativo comércio de peregrinos, pois Meca era sítio do mais sagrado santuário pagão da Arábia, que, localizado no centro da cidade, se constituía de simples construção de forma cúbica conhecida como a Caaba. Entre seus objetos religiosos havia um meteorito consagrado, denominado Pedra Negra, embutido numa parede a um canto. A principal divindade dos habitantes de Meca era Alá, o Criador do universo, que partilhava o poder com trezentos outros deuses e deusas, cujas estátuas enchiam o lugar sagrado. Quem viesse em peregrinação para adorar tais divindades, bem como os viajantes que acorriam a Meca para comerciar, visitava os grandes mercados montados na cidade e deixava atrás de si boa soma em dinheiro.
Os cidadãos que dirigiam esse centro comercial e religioso pertenciam a poderosa tribo conhecida como curaixita. Graças a seus amplos interesses, os curaixitas constituíram um grande poderio financeiro e militar e governavam Meca dentro de um sistema primário de “república”, através de um conselho formado de representantes das famílias mais influentes da cidade.
Foi nessa movimentada cidade que nasceu Maomé, aproximadamente em 570. Em arábico seu nome significa “muito louvado”. Ele não chegou a conhecer o pai, comerciante de nome Abdulá, morto pouco antes de seu nascimento. Embora o próprio Abdulá não fosse rico, na verdade ele pertencia à poderosa tribo dos curaixitas. Segundo costume da aristocracia de Meca, a mãe do menino levou-o para o deserto a fim de que fosse amamentado por uma mãe beduína. Como o ar do deserto era mais fresco e saudável que o ar sufocante de Meca, julgava-se que nesse clima um menino citadino se iniciaria na vida com maior firmeza.
Depois de dois ou três anos no deserto, o menino órfão foi levado de volta a Meca. Tinha seis anos quando sua mãe morreu, e ele foi entregue aos cuidados do avô, que, no entanto, também morreu logo depois. O tio paterno de Maomé, Abu Talib, tornou-se então seu pai adotivo e foi quem o criou até a idade adulta.
Jovem sem fortuna própria, Maomé teve de trabalhar para viver. Exerceu as mais diversas e estranhas atividades, entre as quais a guarda de carneiros e a compra e venda de mercadorias em Meca. Foi quando começou a trabalhar como representante de uma mulher de nome Cadija, viúva possuidora de consideráveis interesses comerciais. Em seu nome, viajou rumo norte com uma das caravanas que se dirigia para a Síria, parte então do poderoso império cristão bizantino, e Maomé deve ter entrado ali em contato com muitos cristãos.
Por essa ocasião poderosas influências religiosas externas faziam-se sentir na Arábia. Tais influências tinham-se infiltrado na península, vindas da Síria e da Palestina, bem como da Abissínia cristã (Etiópia), através do mar Vermelho, provenientes do Sul da Arábia. Alguns árabes tinham-se convertido ao cristianismo e vários oásis encontravam-se parcialmente ocupados por judeus árabes. Em Meca habitava uma colônia de cristãos abissínios. Havia também, na Arábia, nesse tempo, os hanifs, homens insatisfeitos com o paganismo árabe e que levavam vida ascética e acreditavam num só deus.
Dessas fontes, assim como de sua viagem à Síria, Maomé com toda a certeza ouviu falar de Jesus e dos profetas e do Deus adorado tanto por judeus como por cristãos. Cada vez mais deve ele ter sentido, em sua própria gente, a falta de coerência religiosa. Por ter conhecido a pobreza e a orfandade, ele particularmente se ressentia com a arrogância dos ricos e poderosos – homens que acreditavam ser o dinheiro e os bens materiais tudo na vida, não mais respeitando a antiga moral do deserto, segundo a qual se esperava que os ricos partilhassem os próprios bens com os membros mais pobres das respectivas tribos.
Maomé, conhecido por sua natureza contemplativa, por sua brandura e integridade, era muito estimado em Meca. Tinha o apelido de al-Amin – “O Honrado”. Apesar de tal natureza branda, sabe-se que era dono de forte personalidade e que deve ter causado notável impressão: belo e robusto, ombros largos, mãos e pés grandes, larga testa encimando escuras e espessas sobrancelhas e profundos e grandes olhos negros. De altura mediana, caminhava impelindo para diante, com ímpeto, a cabeça extraordinariamente grande. Quando lhe falavam, voltava não apenas a cabeça, mas todo o corpo, ficando de frente para o interlocutor. Quando enraivecido, surgia-lhe entre as sobrancelhas uma ruga profunda.
Cadija impressionou-se com Maomé, tanto pessoalmente como pela maneira como lhe cuidava dos negócios, e propôs-lhe casamento quando ele ainda contava cerca de 25 anos. Casada duas vezes anteriormente, era uns quinze anos mais velha que ele. No entanto, Maomé aceitou a proposta de Cadija e permaneceu-lhe fiel durante os 25 anos que ela ainda teve de vida. Cadija deu-lhe três filhos, mortos quando ainda crianças, e quatro filhas, que viveram, mas das quais apenas uma, Fátima, lhe sobreviveu e lhe deixou descendentes, que viriam a figurar posteriormente na história do Islã.
O casamento livrou Maomé da maior parte dos seus problemas financeiros e concedeu-lhe mais tempo para si mesmo. Muitas vezes ele fugiria do alvoroço da cidade, retirando-se para uma caverna na montanha vizinha de Hira, onde ia meditar – por vezes sozinho, outras vezes acompanhando-se da família. Nesse local, ocorriam-lhe certos vislumbres espirituais – diria ele mais tarde: “como o romper da aurora”.
No ano 610 tinha Maomé cerca de 40 anos de idade, quando passou por uma experiência que lhe abalaria a existência tranqüila e o colocaria no caminho que viria a transformar a vida de milhões de pessoas. Há muitos relatos fantasiosos sobre tal fato, baseados nas várias tradições surgidas de sua vida. Infelizmente, todas elas deixam muitas perguntas sem resposta. O relato mais frequentemente mencionado é o de Ibn Ishaq, o primeiro biógrafo de Maomé, que viveu no século seguinte à morte do Profeta.
Segundo Ibn Ishaq, naquele memorável dia Maomé tinha ido a Hira com a família e dormia na gruta quando um anjo lhe apareceu. “Ele veio até mim”, cita o biógrafo, como se o Profeta estivesse falando, “com uma colcha de brocado, onde havia algo escrito e ordenou ‘Leia!’ Eu perguntei: ‘O que devo ler?’ Ele me apertou com ela de tal forma que pensei morrer; então ele me soltou e ordenou: “Leia!’... Ele dizia:
‘Leia em nome do teu Senhor que criou,
Que criou homem de sangue coagulado.
Leia! Teu Senhor é o mais generoso,
Que ensinou através da pena,
Ensinou aos homens o que eles não sabiam’.”
Maomé despertou do sono mergulhado num tumulto espiritual. Inicialmente temeu estar possuído por alguma espécie de demônio. Tão perturbado ficou que saiu para subir a montanha e se matar. Então, segundo a narrativa, ele ouviu uma voz do Céu. Erguendo os olhos viu “o vulto de um homem com os pés sobre o horizonte que dizia: ‘Ó Maomé! Tu és o apóstolo de Deus e eu sou o Gabriel’.”
Maomé voltou para Cadija e contou-lhe o ocorrido. Ela imediatamente procurou um hanif parente seu. O santo homem escutou-lhe as palavras e, sem titubear, pronunciou o veredito: Maomé fora visitado pela mesma inspiração celestial que havia descido para Moisés e ele viria a ser o profeta de seu povo.
Maomé, no entanto, não representou seu papel imediatamente. Por longo tempo não mais recebeu mensagens de Deus e experimentou temores e dúvidas de si mesmo. Teve então uma segunda revelação que lhe ordenava iniciar o trabalho, “levantar-se e avisar” as gentes.
Realmente Maomé começou a pregar em público em Meca, no ano 613. Ensinou que Alá não era um deus entre muitos, mas o único e eterno Soberano do Universo e que a Ele os homens deveriam agradecer a própria existência e apenas a Ele adorar. Pregou a igualdade de todos os crentes perante Deus, e que aos ricos caberia partilhar a fortuna com os pobres. Também avisou que o destino do homem estava nas mãos de Deus – para todos haveria o Dia do Juízo Final.
Dessa forma dava Maomé novos valores à vida. Sob o paganismo acreditava-se que a morte era o final de toda existência. Agora, segundo Maomé, todos os homens seriam responsáveis num outro mundo por seus atos terrenos – extraordinário conceito para um povo que tinha acreditado ser o padrão de sucesso a fortuna acumulada em vida pelo homem. Para os que aceitassem Deus, e Maomé como Seu Mensageiro, disse ele, haveria justiça neste mundo e uma vida gloriosa após a morte. Mas para aqueles que não se submetessem, haveria o fogo do Inferno e torturas terríveis.
A primeira conversão do profeta foi a de sua esposa Cadija, logo seguida de três outras: Ali, um primo mais moço de Maomé; Zaid, um escravo por ele libertado, e Abu-Béquer, um homem de posses. Abu-Béquer e Ali iriam representar importantes papéis na ascensão do Islã. Muitos dos primeiros discípulos de Maomé provinham das camadas pobres e oprimidas, aferrando-se avidamente à sua mensagem de esperança neste mundo e no próximo. No entanto, a maioria dos aristocráticos curaixitas não somente recusaram aceitá-lo como um profeta, como também o receberam com violenta oposição. Viam na fé que fazia da piedade – mais do que da posição, a medida do valor humano – séria ameaça a toda uma forma privilegiada de vida. Temiam também que, se conquistasse bom número de seguidores, Maomé viesse a converter seu poder religioso num imenso poder político e a dominar a cidade. Finalmente, viam que o ataque de Maomé a seus deuses pagãos conduziria à falência de lucrativo comércio. Os curaixitas ridicularizaram Maomé, chamando-o de mentiroso e de “poeta”, insinuando que suas revelações eram apenas produto de sua própria imaginação. Chegaram mesmo a submeter alguns muçulmanos à lapidação e açoites.
Com o tempo esses desmandos tornaram-se tão rigorosos que Maomé aconselhou um grupo de discípulos a fugir para a abissínia cristã. Cerca de oitenta deles concordaram e lá receberam refúgio. Mas uma delegação de curaixitas perseguiu os fugitivos e instou a Négus, rei da Abissínia, a que os expulsasse como gente que lhe tinha infamado a religião. Os líderes dos mulçumanos foram convocados para refutarem as acusações vindas de Meca. Como prova de que o islamismo não atacava o cristianismo, leram uma passagem do capítulo de Maria, tirado do Corão. O Corão rendia o mais alto respeito a Jesus e Sua Mãe – embora sustentasse ser Jesus apenas um profeta, não o Filho de Deus. Considerando esse ponto de vista inofensivo, Négus concordou com a permanência dos mulçumanos.
Enquanto isso, Maomé e seus seguidores eram submetidos em Meca a ataques cada vez mais violentos. Por essa época a esposa do Profeta, Cadija, morria, sendo sua morte logo seguida pela do tio de Maomé, Abu Talib, que o criara e através do qual ele gozara da proteção tribal. Agora a posição de Maomé na cidade tornava-se extremamente instável e ele se decidiu a abandoná-la.
Partiu inicialmente para Taife, mas lá a população o ridicularizou e insultou, forçando-o a retornar a Meca. A essa altura o destino vem em socorro de Maomé. Um grupo de peregrinos proveniente de Iatribe, que escutara uma pregação de Maomé e com ele se impressionara, convidou-o a ir para a sua cidade. Dividida por uma rixa entre duas tribos árabes que ali viviam, Iatribe necessitava de um árbitro que lhe trouxesse a paz. Maomé aceitou o convite e animou seus adeptos para que fossem na frente. Semanas depois, o próprio Maomé se retirou de Meca e reuniu-se a eles. A migração, a célebre Hijra, ou Hégira, teve lugar em setembro, no ano de 622, e mais tarde passou a assinalar o início da era islâmica.
Em Iatribe, Maomé começou a formar em redor de si e de seus seguidores uma comunidade maior de crentes mulçumanos, que marcaria a fundação do Estado islâmico. Os árabes ex-membros das tribos litigantes aos poucos se submeteram aos comandos de Deus, revelados por intermédio de Seu Profeta Maomé. A substituição da fé por laços de sangue tornou possível a supressão de velhas rivalidades tribais e deu origem a uma unidade política revolucionária. Iatribe, sede da nova comunidade do Islã, ficou conhecida pelo nome de Madinat al-Nabi, “a cidade do Profeta”, ou simplesmente Medina, “a cidade”, nome pelo qual é conhecida em português hoje em dia.
Daí por diante o papel de Maomé passou por drástica mudança. Enquanto em Meca ele não passara de líder religioso de um pequeno grupo, seguindo um tanto ou quanto a tradição dos primeiros profetas hebreus, uma vez fixado em Medina ele representaria um papel novo e mais influente, com aumento de autoridade espiritual e política. De acordo com sua nova posição, a natureza de suas contínuas revelações deixou de ter caráter puramente religioso para se imbuir de um maior conteúdo social e legislativo.
Um dos primeiros problemas de Maomé em Medina relacionou-se com os judeus locais. Várias tribos judaicas controlavam as terras mais férteis e tinham-se aliado formalmente a uma das duas tribos árabes que dominavam o oásis. Maomé, segundo estudiosos ocidentais, esperava que os judeus o aceitassem como profeta, dessa forma lhe fortalecendo a posição em Medina. Num esforço para lhes conquistar o apoio, adotou algumas de suas práticas, entre elas a de jejuar no Dia da Expiação e o costume de orar voltado para Jerusalém. Alguns dos judeus tornaram-se muçulmanos, mas a maioria viu no crescimento do islamismo uma ameaça para seus próprios interesses políticos e econômicos. Longe de aceitarem Maomé como um profeta, rejeitaram-lhe a pretensão e criticaram-no asperamente, alegando que muitas de suas revelações contradiziam suas próprias Escrituras, sendo, portanto, falsas. Maomé rebateu, afirmando que os judeus haviam deturpado as Escrituras e que apenas o Corão era a verdadeira Palavra de Deus. Vendo não lhe ser possível obter o apoio dos judeus, Maomé se entregou, então, à edificação de uma comunidade islâmica, constituída essencialmente de árabes.
À medida que o tempo passava, o Profeta começou a dotar o islamismo de seus próprios e singulares costumes religiosos. Em vez de matracas de madeira e das trompas de chifre de carneiro, usados por judeus e cristãos como sinais religiosos, a sonora voz de Bilal, convertido abissínio, conclamava os fiéis à oração – Bilal foi, assim, o primeiro muezim, o arauto que em determinadas horas, nas comunidades islâmicas, convoca os mulçumanos para a oração. Substituiu-se o jejum do Dia da Expiação por um mês inteiro de jejum durante o Ramadã, o nono mês do calendário lunar islâmico. Em vez de orarem voltados para Jerusalém, os mulçumanos receberam ordem de se prostrarem voltados para a Caaba, Meca, considerada o santuário de Alá. Autorizou-se que se beijasse a Pedra Negra, meteorito venerado embutido numa das paredes da Caaba.
Esse período também assinalou o início de uma nova forma de atividade contrária aos inimigos da fé em Meca. Maomé passou a liderar seus adeptos em incursões contra caravanas de Meca que atravessassem território de Medina. Há quem afirme que a razão de tais incursões era puramente econômica, uma forma de os imigrantes adquirirem alimento e provisões. Outros, porém, dão uma explicação diferente. Dizem que alguns dos discípulos de Maomé souberam que suas famílias em Meca estavam sendo perseguidas e tendo as propriedades confiscadas: assim, pediram vingança contra a população de Meca, e Maomé aplacou-lhes a ira atacando as caravanas.
Uma dessas incursões redundou no primeiro encontro armado sério entre mulçumanos e mecanos. Dois anos depois de os mulçumanos terem migrado para Medina, Maomé soube que uma caravana de Meca, cheia de mercadorias de valor, estava prestes a passar nas proximidades de Medina. Imediatamente planejou o ataque. As informações logo chegaram aos ouvidos da caravana, cujo chefe imediatamente mudou de caminho e enviou um mensageiro a Meca pedindo reforços. A caravana escapou, mas os mulçumanos defrontaram-se com os reforços em Badr, parada de caravanas a sudoeste de Medina.
Maomé contava com cerca de 300 homens, o maior grupo que jamais reuniu, ao passo que o número de mecanos chegava quase a um milhar. Os mulçumanos não poderiam fugir sem perda de prestígio. Para os de Meca essa era uma boa oportunidade para ensinar Maomé e seus seguidores a deixarem Meca e seu comércio em paz. Maomé dirigiu seus adeptos de um esconderijo das proximidades, passando boa parte do tempo em oração enquanto as duas facções combatiam. Surpreendentemente, o pequeno grupo do Profeta infligiu arrasadora derrota aos orgulhosos curaixitas, que não tinham esperado tão feroz oposição.
A surpreendente vitória de Maomé teve efeitos de grande alcance. Por toda parte árabes encararam-na como um milagre, um sinal do favor de Deus para com a causa do Profeta, dessa forma fortalecendo a afirmação de Maomé de ser ele o apóstolo de Deus. Além disso, os guerreiros mulçumanos partilhavam da pilhagem das incursões e logo correu o boato de que a causa de Deus poderia trazer recompensas tanto na terra como no céu. Então tribos vizinhas passaram a aderir ao islamismo e a lutar sob sua bandeira. Se vitoriosos, participavam da pilhagem. Se mortos em combate, certos estavam de irem para o céu, onde o Profeta lhes prometera o gozo permanente das mais sensuais delícias terrenas.
Os curaixitas, porém, não aceitaram assim tão simplesmente a derrota sofrida em Badr. No ano seguinte uma força mecana de 3.000 homens atacou os mulçumanos em Medina, infligindo-lhes uma derrota sem importância, mas o próprio Profeta saiu ferido em ação. Dois anos mais tarde, no ano 627, os curaixitas, resolvidos a acabar com Maomé, prepararam um assalto em larga escala a Medina, com 10.000 homens escolhidos dentre seus aliados, incluindo poderosa linha de frente de 600 cavaleiros, com os quais esperavam derrotar os mulçumanos. Maomé, pretensamente aconselhado por um convertido persa experimentado em fortificações, cavou profunda vala sem água diante da parte exposta da cidade – em termos táticos, verdadeira novidade na guerra do deserto. A inovação confundiu de tal maneira os atacantes que lhes tornou inútil a cavalaria, interrompendo-lhe a carga. Mudando de tática, os homens de Meca acamparam perto de Medina, e entraram em negociações com um clã judaico do oásis a fim de que o ataque aos mulçumanos partisse de dentro para fora. As negociações, no entanto, fracassaram, e a temperatura caiu. Quarenta dias depois, os guerreiros de Meca, já desmoralizados e sem provisões, trataram de voltar para a sua cidade.
Maomé, que viera a saber das negociações dos judeus com o inimigo, foi rigorosíssimo com eles: ordenou a decapitação de todos os homens – cerca de 600 ao todo – e a escravização de mulheres e filhos, permitindo ainda que os mulçumanos lhes tomassem as terras. Um leitor dos dias de hoje poderá estranhar tamanha violência num líder religioso. Mas o que surpreendia o povo de Iatribe era o total desprezo de Maomé pela antiga aliança entre os judeus e árabes locais – aliança considerada virtualmente sagrada pelo código beduíno. Com tal ato o Profeta não mostrava apenas aos judeus, e a qualquer possível inimigo do islamismo, que não toleraria mais oposições. Mostrava também a seus patrícios árabes que a velha noção tribal de lealdade, que por tanto tempo redundava em rixas que os enfraqueciam e dividiam, não mais estava em vigor. A única lealdade então reconhecida dirigia-se ao próprio islamismo.
Em 628 Maomé partiu em peregrinação para Meca com 1.400 adeptos seus. Sabedores disso, os habitantes de Meca enviaram 200 cavaleiros para interceptá-lo. Houve uma ameaça de luta, mas os dois lados concordaram num tratado que lhes propiciasse uma trégua de 10 anos e aos mulçumanos o retorno para Medina com a condição de, no ano seguinte, poderem voltar a Meca em peregrinação. Ambas as partes salvaram as aparências, mas Maomé conquistou uma vitória, considerando-se no mesmo nível dos curaixitas, uma vez que entrara em acordo com eles. E mais: saindo em peregrinação – antigo costume pagão – ele demonstrara que o islamismo era uma religião de cunho árabe.
No ano seguinte Maomé conduziu 2.000 mulçumanos na prometida peregrinação à Caaba, mas choques subseqüentes entre gente de Meca e mulçumanos puseram fim ao acordo, e em 630 Maomé marchou para Meca disposto a resolver o assunto, levando consigo uma tropa de 10.000 homens. Meca, enfraquecida pela perda de muitos de seus líderes nas lutas contra Maomé e conseqüentes dissensões com respeita à liderança da cidade, caiu dando apenas uma prova de resistência. Maomé entrou triunfante na Caaba, exclamando: “Chegou a verdade e desapareceu a falsidade”.
E passou a destruir os ídolos pagãos que enchiam o lugar santo. Posteriormente estabeleceu-se uma tradição em que se proibia aos não-mulçumanos entrarem na cidade. A purificada Caaba de Meca passou então a centro espiritual do Islã, assim como Medina passou a ser sua capital política.
O Profeta mostrou-se um conquistador indulgente e generoso, e em breve até os dirigentes de Meca, que lhe tinham feito tanta oposição, tornaram-se mulçumanos. Ao mesmo tempo suas tropas começaram a se internar cada vez mais na Arábia. Breve, quase todas as tribos da península tinham aderido ao Islã, graças a um fervor recém-adquirido ou à esperança de ganhos materiais. Permitiram-se a cristãos e judeus a prática de suas próprias crenças, com a imposição de um tributo, que, indiretamente, concorreria para o poderio sempre crescente do Islã.
Nos seus 22 anos de profeta, Maomé realizou uma síntese da tradição judaico-cristã de um único Deus com latente sentido de nacionalismo árabe, tendo seu povo descoberto nessa síntese uma causa pela qual se pudesse unir, lutar e vencer. Ainda assim o próprio Maomé se manteve incrivelmente o mesmo. Em toda a sua vida, mesmo depois de se tornar o governante absoluto de uma nova e poderosa nação, conservou gostos basicamente simples – conta-se que chegava mesmo a remendar as próprias roupas. Como líder transmitiu a seu povo um conceito mais amplo de humanidade, abolindo muitos males sociais. Modificou, por exemplo, o sentido da escravidão da Arábia – ainda permitia essa prática, mas que se desse tratamento humano aos escravos. Já então lhes permitia que se casassem e lhes possibilitava a compra da própria liberdade. E mais: encarava a libertação dos escravos como ato meritório. Maomé também tornou ilegais o jogo, a usura e o vinho, como contrários à lei de Deus.
Para seus adeptos, Maomé encarnava um novo ideal humano. Realmente, de tal maneira piedosos admiradores exageraram na idealização de sua imagem que por vezes a tornaram praticamente irreconhecível. Imaginava-se o Profeta possuidor de todas as virtudes, particularmente as mais caras aos árabes. Como a virilidade masculina era tida em alta conta, alguns árabes pintaram Maomé como um homem de imensa potência – retrato que posteriormente daria origem a muito ridículo e sátira no Ocidente. Verdade que uma tradição cita o Profeta quando diz estarem as mulheres entre as três coisas que lhe davam mais prazer (as duas outras: perfumes agradáveis e oração). Fosse qual fosse o grau de sua sensualidade, o fato é que a moderavam sua própria bondade e lealdade.
Por mais de duas décadas Maomé permaneceu fiel a uma mulher bem mais velha que ele. Depois da morte de Cadija ele tomou nove esposas (o Corão permitia que os mulçumanos tomassem até quatro esposas, mas se abriu uma exceção no caso do Profeta). A maioria dos casamentos de Maomé foram determinados essencialmente por motivos de ordem política ou humana. Algumas de suas esposas eram as viúvas de lugares-tenentes seus, mortos em luta pelo Islã, enquanto outras eram filhas de importantes líderes árabes. Uma delas, Aixa, era filha de Abu-Béquer, o amigo mais querido e o conselheiro mais íntimo do Profeta. Quando a desposou ela contava menos de dez anos e ainda brincava com bonecas. As mulheres de Maomé moravam em aposentos separados, em volta do pátio de sua casa, e com elas ele aplicava o sistema de rodízio. O Corão dava aos maridos o direito de açoitarem as mulheres rebeldes, mas Maomé era um marido indulgente. Em certa ocasião, levou Aixa consigo numa expedição e ela se deixou ficar atrás por causa de um colar perdido. Bem mais tarde, ela chegou a Medina acompanhada de um belo e jovem membro da tribo. Alguns partidários de Maomé acusaram-na de infidelidade, mas o Profeta logo teve uma revelação absolvendo a jovem esposa. O Corão ordenou que a partir daí seriam necessárias quatro testemunhas para que alguém acusasse uma mulher de adultério, e a falta de comprovação implicaria no castigo de oitenta açoites.
Em seu 63º aniversário, décimo da nova era do Islã, Maomé caiu doente. Sobreveio-lhe repentina febre, acompanhada de violentas dores de cabeça. Ele falou de morte com Aixa, mas ela se mostrou serena, pensando provavelmente, como muitos mulçumanos, que o Profeta de Deus era imune à morte. Mas os padecimentos aumentaram e Maomé pediu permissão às suas outras mulheres para ficar com Aixa. Dali ele conseguiu alcançar cambaleando a mesquita, onde mais uma vez disse a seus adeptos que os fiéis o acompanhariam ao Paraíso e que os infiéis seriam punidos. Por sua maneira de se expressar, seu amigo Abu-Béquer pôde dizer que ele estava à morte.
Pela última vez, o Profeta regressou à casa de Aixa. Quando lhe sobreveio a agonia da morte, murmurou: “Mais ainda (escolhi) a sublime companhia do céu”. E morreu nos braços de Aixa.
Quando a notícia da morte de Maomé se espalhou por Medina, seus seguidores foram dominados por um choque que chegou às raias do pânico. Em meio à confusão Abu-Béquer manteve a serenidade. “Quem quer que adore Maomé – gritou ele aos aturdidos seguidores do Profeta – saiba que Maomé está morto. Mas quem quer que adore a Deus, saiba que Deus vive e não morre”.
UM MENSAGEIRO DE DEUS é o primeiro capítulo (num total de oito) do livro ANTIGO ISLÃ, da série BIBLIOTECA DE HISTÓRIA UNIVERSAL LIFE.
Early Islam, copyright 1973 de Time Inc.
Edição original em língua inglesa de 1967, Time Inc.
Livraria José Olympio Editora S.A. - Rio de Janeiro
O autor: DESMOND STEWART, escritor inglês, viveu no Oriente Médio, por onde viajou bastante. Em 1948 completou seus estudos em Oxford, diplomando-se Doutor em Letras Clássicas. Nomeado no mesmo ano professor de Literatura pelo Ministério da Educação do Iraque, passou a lecionar no Líbano. Colaborou em publicações inglesas e americanas com artigos sobre assuntos ligados ao Oriente Médio e é autor, além de bom número de romances, de O Mundo Árabe e Turquia.
O editor consultivo: DANIEL KRIEGER, ex-professor de História em Yale, é professor da Universidade de Chicago e autor de The Germam Idea of Freedom e The Politics of Discretion, além de co-autor de Hystory, escrito em colaboração com John Higham e Felix Gilbert.
A tradução para a língua portuguesa é de Iracema Castello Branco.
Alguns dos capítulos do Corão, os suras, são avisos curtos e veementes do fim, proclamando um Dia do Juízo Final e exigindo a adoração de um só Deus. Outros discutem os profetas bíblicos e as lições contidas em suas respectivas vidas. Outros ainda estabelecem regras detalhadas com relação à família, à propriedade e à justiça. Todos são expressos num árabe repleto de fascínio que contribuiu para convencer os primeiros ouvintes do Corão – tribos árabes, orgulhosas tanto da própria eloqüência como da coragem que lhes era peculiar – de não ser ele a palavra de um homem, mas a palavra do próprio Deus.
O Corão é a alma do Islã – palavra que significa muito simplesmente “submissão a Deus”. O islamismo começou como um movimento religioso nos tórridos desertos da Arábia e logo se estendeu pelo Oriente Médio. Abrangeu muitos povos diferentes, que passaram a se chamar mulçumanos – ou crentes – unindo-os em imenso Estado monoteísta. Menos de dez anos após a morte do Profeta, empregando o método da conquista e da conversão, o Islã abalou as fundações de Bizâncio e da Pérsia, as duas mais poderosas civilizações da época. Em menos de um século, varreu parte da Ásia, da África e da Europa, dominando uma área mais extensa do que a do Império Romano durante seu apogeu. Posteriormente iria tornar o idioma arábico a língua comum de cerca de 90 milhões de pessoas, ditar uma forma de vida para uma em cada sete pessoas na face da Terra, e exercer poderosa influência sobre o Ocidente.
Por mais de seis séculos – desde a aurora do Islã, quando a cavalo ou em camelos, ondas de novos convertidos lançavam-se da Arábia, até o ponto crítico de sua longa história, aquela em que nômades mongóis saquearam a capital muçulmana de Bagdá, em 1258 – o islamismo foi a religião mais contestada do mundo, sua mais acentuada força política e sua cultura mais importante. Pela primeira vez na História, essa cultura reuniu povos diferentes e distantes, como espanhóis, negros africanos, persas, turcos, egípcios e indianos. Nesse papel unificador, o Islã transmitiu mais de uma invenção de comprovada importância para o desenvolvimento da civilização ocidental. Os mulçumanos aprenderam a técnica do fabrico do papel com os guerreiros chineses capturados numa batalha próximo de Samarcanda, passando mais tarde o processo para a Europa. Os algarismos “arábicos” foram trazidos da Índia e transmitidos para o mundo ocidental, onde se tornaram símbolos matemáticos padrões. O Islã também prestou outro relevante serviço: a herança da Grécia Clássica – tanto científica como filosófica – durante séculos perdida para o Ocidente, lhe foi em sua maior parte devolvida através de traduções levadas a efeito em terras islâmicas.
Ao mesmo tempo, os adeptos de Maomé criaram uma cultura própria, distinta e importante. Fazia parte do espírito do Islã a faculdade de tomar elementos das várias culturas que abrangia, sintetizá-los e, então, desenvolver esse amálgama. Na medicina, por exemplo, os mulçumanos desenvolveram a teoria grega através da observação prática e da experiência clínica. Fizeram também contribuições significativas no campo da química, da física e da matemática – a álgebra, a geometria e, particularmente, a trigonometria desenvolveram-se amplamente no Islã.
Na arquitetura, a conquista mais característica do Islã foi a mesquita. Um estilo popular de decoração exterior empregado em tais construções consistia em ricos desenhos com motivos em volutas e entrelaçados – copiados largamente por toda parte, tornaram-se conhecidos como “arabescos”. Em trabalhos de arte secundários, como na tapeçaria, na cerâmica, na encadernação, na caligrafia, no entalhe em marfim e madeira, os artesãos islâmicos criaram obras primorosas. Na literatura, o Islã produziu trabalhos famosos como As Mil e Uma Noites, que alguns estudiosos consideram um precursor do romance ocidental, e o clássico poema persa, o Rubayat, de Omar Khayyam.
O movimento religioso que deu origem a essas grandes forças culturais e políticas estabeleceu-se no que pareceria ser um dos lugares mais improváveis do globo – uma faixa de terra, quente e ressecada, que se estende por mais de um milhão de quilômetros quadrados entre a África e a Ásia. No século VII, muitos de seus habitantes faziam parte de tribos nômades beduínas que viviam em tendas tecidas com pêlo de cabra e de camelo e se alimentavam frugalmente, à base de tâmaras e leite. Muitas vezes se envolviam em rixas sangrentas com outras tribos. Incursões esporádicas faziam parte de seu modo de viver.
Os beduínos pré-islâmicos adoravam em pedras, árvores e pedaços de madeira as moradas de espíritos por eles mesmos imbuídos de poderes sobrenaturais. Para eles, a suprema virtude humana era a masculinidade, expressa sob a forma de lealdade, generosidade e coragem. A lealdade, sobretudo, era necessária na luta pela sobrevivência no deserto árido; homem algum podia viver sem a proteção de sua tribo, a que só se permitia agir unida. A lealdade era o centro do asabiyya, ou espírito tribal. Esperava-se que um homem fosse valente ao ponto de morrer em defesa dos direitos de sua tribo, relacionados, em grande parte, com o pasto e com a água num deserto árido em que poços valiam mais que ouro. A generosidade se expressava dentro do conceito de hospitalidade do deserto – conhecido conto popular árabe louva um jovem que matou três dos camelos de seu pai para alimentar forasteiros ocasionais. A coragem envolvia a proteção das respectivas esposas e a participação em muitas incursões – tinha-se em grande conta a destreza do homem no manejo do arco e no domínio do cavalo.
A eloqüência tão admirada pelas tribos árabes exprimia-se melhor na poesia, forma de arte falada, própria para gente que só podia transportar poucos bens, em virtude de sua permanente mobilidade. Essa poesia foi sua mais importante conquista artística e representou papel relevante na vida diária. Um poeta podia inspirar os guerreiros de sua tribo e liquidar-lhe os inimigos, mas exercia também muitas outras funções, incluindo a de porta-voz da comunidade, cronista, publicista contratado e historiador dos feitos de seu povo.
Em meado do século VI havia três importantes cidades no Norte da Arábia, todas localizadas numa região montanhosa denominada Hijaz, limitada, a oeste, pelo mar Vermelho, e, a leste, pelo grande deserto. Na parte central do Hijaz situava-se Iatribe, fértil oásis composto de fazendas e aldeolas espalhadas por mais de 30 quilômetros quadrados. Cerca de 400 quilômetros ao sul ficava Taife, ameno refúgio de verão nas montanhas, aproveitada pelas famílias árabes abastadas. Exatamente a noroeste de Taife estava Meca, a aproximadamente 80 quilômetros do mar Vermelho e situada numa ravina rochosa, cercada de montanhas destituídas de qualquer tipo de vegetação.
Dessas três cidades, Meca foi decididamente a mais próspera e importante. Primeiro por se localizar no ponto de confluência do lucrativo comércio de caravanas. Extensas caravanas de camelos conduzindo especiarias, perfumes, metais preciosos, marfim e seda enfileiravam-se pela cidade, encaminhando-se para o norte, do Iêmen e Hadramaute até os mercados da Síria, e para o oriente, vindas do mar Vermelho, e atravessando o deserto até o Iraque. Além dos lucros das caravanas havia um ativo comércio de peregrinos, pois Meca era sítio do mais sagrado santuário pagão da Arábia, que, localizado no centro da cidade, se constituía de simples construção de forma cúbica conhecida como a Caaba. Entre seus objetos religiosos havia um meteorito consagrado, denominado Pedra Negra, embutido numa parede a um canto. A principal divindade dos habitantes de Meca era Alá, o Criador do universo, que partilhava o poder com trezentos outros deuses e deusas, cujas estátuas enchiam o lugar sagrado. Quem viesse em peregrinação para adorar tais divindades, bem como os viajantes que acorriam a Meca para comerciar, visitava os grandes mercados montados na cidade e deixava atrás de si boa soma em dinheiro.
Os cidadãos que dirigiam esse centro comercial e religioso pertenciam a poderosa tribo conhecida como curaixita. Graças a seus amplos interesses, os curaixitas constituíram um grande poderio financeiro e militar e governavam Meca dentro de um sistema primário de “república”, através de um conselho formado de representantes das famílias mais influentes da cidade.
Foi nessa movimentada cidade que nasceu Maomé, aproximadamente em 570. Em arábico seu nome significa “muito louvado”. Ele não chegou a conhecer o pai, comerciante de nome Abdulá, morto pouco antes de seu nascimento. Embora o próprio Abdulá não fosse rico, na verdade ele pertencia à poderosa tribo dos curaixitas. Segundo costume da aristocracia de Meca, a mãe do menino levou-o para o deserto a fim de que fosse amamentado por uma mãe beduína. Como o ar do deserto era mais fresco e saudável que o ar sufocante de Meca, julgava-se que nesse clima um menino citadino se iniciaria na vida com maior firmeza.
Depois de dois ou três anos no deserto, o menino órfão foi levado de volta a Meca. Tinha seis anos quando sua mãe morreu, e ele foi entregue aos cuidados do avô, que, no entanto, também morreu logo depois. O tio paterno de Maomé, Abu Talib, tornou-se então seu pai adotivo e foi quem o criou até a idade adulta.
Jovem sem fortuna própria, Maomé teve de trabalhar para viver. Exerceu as mais diversas e estranhas atividades, entre as quais a guarda de carneiros e a compra e venda de mercadorias em Meca. Foi quando começou a trabalhar como representante de uma mulher de nome Cadija, viúva possuidora de consideráveis interesses comerciais. Em seu nome, viajou rumo norte com uma das caravanas que se dirigia para a Síria, parte então do poderoso império cristão bizantino, e Maomé deve ter entrado ali em contato com muitos cristãos.
Por essa ocasião poderosas influências religiosas externas faziam-se sentir na Arábia. Tais influências tinham-se infiltrado na península, vindas da Síria e da Palestina, bem como da Abissínia cristã (Etiópia), através do mar Vermelho, provenientes do Sul da Arábia. Alguns árabes tinham-se convertido ao cristianismo e vários oásis encontravam-se parcialmente ocupados por judeus árabes. Em Meca habitava uma colônia de cristãos abissínios. Havia também, na Arábia, nesse tempo, os hanifs, homens insatisfeitos com o paganismo árabe e que levavam vida ascética e acreditavam num só deus.
Dessas fontes, assim como de sua viagem à Síria, Maomé com toda a certeza ouviu falar de Jesus e dos profetas e do Deus adorado tanto por judeus como por cristãos. Cada vez mais deve ele ter sentido, em sua própria gente, a falta de coerência religiosa. Por ter conhecido a pobreza e a orfandade, ele particularmente se ressentia com a arrogância dos ricos e poderosos – homens que acreditavam ser o dinheiro e os bens materiais tudo na vida, não mais respeitando a antiga moral do deserto, segundo a qual se esperava que os ricos partilhassem os próprios bens com os membros mais pobres das respectivas tribos.
Maomé, conhecido por sua natureza contemplativa, por sua brandura e integridade, era muito estimado em Meca. Tinha o apelido de al-Amin – “O Honrado”. Apesar de tal natureza branda, sabe-se que era dono de forte personalidade e que deve ter causado notável impressão: belo e robusto, ombros largos, mãos e pés grandes, larga testa encimando escuras e espessas sobrancelhas e profundos e grandes olhos negros. De altura mediana, caminhava impelindo para diante, com ímpeto, a cabeça extraordinariamente grande. Quando lhe falavam, voltava não apenas a cabeça, mas todo o corpo, ficando de frente para o interlocutor. Quando enraivecido, surgia-lhe entre as sobrancelhas uma ruga profunda.
Cadija impressionou-se com Maomé, tanto pessoalmente como pela maneira como lhe cuidava dos negócios, e propôs-lhe casamento quando ele ainda contava cerca de 25 anos. Casada duas vezes anteriormente, era uns quinze anos mais velha que ele. No entanto, Maomé aceitou a proposta de Cadija e permaneceu-lhe fiel durante os 25 anos que ela ainda teve de vida. Cadija deu-lhe três filhos, mortos quando ainda crianças, e quatro filhas, que viveram, mas das quais apenas uma, Fátima, lhe sobreviveu e lhe deixou descendentes, que viriam a figurar posteriormente na história do Islã.
O casamento livrou Maomé da maior parte dos seus problemas financeiros e concedeu-lhe mais tempo para si mesmo. Muitas vezes ele fugiria do alvoroço da cidade, retirando-se para uma caverna na montanha vizinha de Hira, onde ia meditar – por vezes sozinho, outras vezes acompanhando-se da família. Nesse local, ocorriam-lhe certos vislumbres espirituais – diria ele mais tarde: “como o romper da aurora”.
No ano 610 tinha Maomé cerca de 40 anos de idade, quando passou por uma experiência que lhe abalaria a existência tranqüila e o colocaria no caminho que viria a transformar a vida de milhões de pessoas. Há muitos relatos fantasiosos sobre tal fato, baseados nas várias tradições surgidas de sua vida. Infelizmente, todas elas deixam muitas perguntas sem resposta. O relato mais frequentemente mencionado é o de Ibn Ishaq, o primeiro biógrafo de Maomé, que viveu no século seguinte à morte do Profeta.
Segundo Ibn Ishaq, naquele memorável dia Maomé tinha ido a Hira com a família e dormia na gruta quando um anjo lhe apareceu. “Ele veio até mim”, cita o biógrafo, como se o Profeta estivesse falando, “com uma colcha de brocado, onde havia algo escrito e ordenou ‘Leia!’ Eu perguntei: ‘O que devo ler?’ Ele me apertou com ela de tal forma que pensei morrer; então ele me soltou e ordenou: “Leia!’... Ele dizia:
‘Leia em nome do teu Senhor que criou,
Que criou homem de sangue coagulado.
Leia! Teu Senhor é o mais generoso,
Que ensinou através da pena,
Ensinou aos homens o que eles não sabiam’.”
Maomé despertou do sono mergulhado num tumulto espiritual. Inicialmente temeu estar possuído por alguma espécie de demônio. Tão perturbado ficou que saiu para subir a montanha e se matar. Então, segundo a narrativa, ele ouviu uma voz do Céu. Erguendo os olhos viu “o vulto de um homem com os pés sobre o horizonte que dizia: ‘Ó Maomé! Tu és o apóstolo de Deus e eu sou o Gabriel’.”
Maomé voltou para Cadija e contou-lhe o ocorrido. Ela imediatamente procurou um hanif parente seu. O santo homem escutou-lhe as palavras e, sem titubear, pronunciou o veredito: Maomé fora visitado pela mesma inspiração celestial que havia descido para Moisés e ele viria a ser o profeta de seu povo.
Maomé, no entanto, não representou seu papel imediatamente. Por longo tempo não mais recebeu mensagens de Deus e experimentou temores e dúvidas de si mesmo. Teve então uma segunda revelação que lhe ordenava iniciar o trabalho, “levantar-se e avisar” as gentes.
Realmente Maomé começou a pregar em público em Meca, no ano 613. Ensinou que Alá não era um deus entre muitos, mas o único e eterno Soberano do Universo e que a Ele os homens deveriam agradecer a própria existência e apenas a Ele adorar. Pregou a igualdade de todos os crentes perante Deus, e que aos ricos caberia partilhar a fortuna com os pobres. Também avisou que o destino do homem estava nas mãos de Deus – para todos haveria o Dia do Juízo Final.
Dessa forma dava Maomé novos valores à vida. Sob o paganismo acreditava-se que a morte era o final de toda existência. Agora, segundo Maomé, todos os homens seriam responsáveis num outro mundo por seus atos terrenos – extraordinário conceito para um povo que tinha acreditado ser o padrão de sucesso a fortuna acumulada em vida pelo homem. Para os que aceitassem Deus, e Maomé como Seu Mensageiro, disse ele, haveria justiça neste mundo e uma vida gloriosa após a morte. Mas para aqueles que não se submetessem, haveria o fogo do Inferno e torturas terríveis.
A primeira conversão do profeta foi a de sua esposa Cadija, logo seguida de três outras: Ali, um primo mais moço de Maomé; Zaid, um escravo por ele libertado, e Abu-Béquer, um homem de posses. Abu-Béquer e Ali iriam representar importantes papéis na ascensão do Islã. Muitos dos primeiros discípulos de Maomé provinham das camadas pobres e oprimidas, aferrando-se avidamente à sua mensagem de esperança neste mundo e no próximo. No entanto, a maioria dos aristocráticos curaixitas não somente recusaram aceitá-lo como um profeta, como também o receberam com violenta oposição. Viam na fé que fazia da piedade – mais do que da posição, a medida do valor humano – séria ameaça a toda uma forma privilegiada de vida. Temiam também que, se conquistasse bom número de seguidores, Maomé viesse a converter seu poder religioso num imenso poder político e a dominar a cidade. Finalmente, viam que o ataque de Maomé a seus deuses pagãos conduziria à falência de lucrativo comércio. Os curaixitas ridicularizaram Maomé, chamando-o de mentiroso e de “poeta”, insinuando que suas revelações eram apenas produto de sua própria imaginação. Chegaram mesmo a submeter alguns muçulmanos à lapidação e açoites.
Com o tempo esses desmandos tornaram-se tão rigorosos que Maomé aconselhou um grupo de discípulos a fugir para a abissínia cristã. Cerca de oitenta deles concordaram e lá receberam refúgio. Mas uma delegação de curaixitas perseguiu os fugitivos e instou a Négus, rei da Abissínia, a que os expulsasse como gente que lhe tinha infamado a religião. Os líderes dos mulçumanos foram convocados para refutarem as acusações vindas de Meca. Como prova de que o islamismo não atacava o cristianismo, leram uma passagem do capítulo de Maria, tirado do Corão. O Corão rendia o mais alto respeito a Jesus e Sua Mãe – embora sustentasse ser Jesus apenas um profeta, não o Filho de Deus. Considerando esse ponto de vista inofensivo, Négus concordou com a permanência dos mulçumanos.
Enquanto isso, Maomé e seus seguidores eram submetidos em Meca a ataques cada vez mais violentos. Por essa época a esposa do Profeta, Cadija, morria, sendo sua morte logo seguida pela do tio de Maomé, Abu Talib, que o criara e através do qual ele gozara da proteção tribal. Agora a posição de Maomé na cidade tornava-se extremamente instável e ele se decidiu a abandoná-la.
Partiu inicialmente para Taife, mas lá a população o ridicularizou e insultou, forçando-o a retornar a Meca. A essa altura o destino vem em socorro de Maomé. Um grupo de peregrinos proveniente de Iatribe, que escutara uma pregação de Maomé e com ele se impressionara, convidou-o a ir para a sua cidade. Dividida por uma rixa entre duas tribos árabes que ali viviam, Iatribe necessitava de um árbitro que lhe trouxesse a paz. Maomé aceitou o convite e animou seus adeptos para que fossem na frente. Semanas depois, o próprio Maomé se retirou de Meca e reuniu-se a eles. A migração, a célebre Hijra, ou Hégira, teve lugar em setembro, no ano de 622, e mais tarde passou a assinalar o início da era islâmica.
Em Iatribe, Maomé começou a formar em redor de si e de seus seguidores uma comunidade maior de crentes mulçumanos, que marcaria a fundação do Estado islâmico. Os árabes ex-membros das tribos litigantes aos poucos se submeteram aos comandos de Deus, revelados por intermédio de Seu Profeta Maomé. A substituição da fé por laços de sangue tornou possível a supressão de velhas rivalidades tribais e deu origem a uma unidade política revolucionária. Iatribe, sede da nova comunidade do Islã, ficou conhecida pelo nome de Madinat al-Nabi, “a cidade do Profeta”, ou simplesmente Medina, “a cidade”, nome pelo qual é conhecida em português hoje em dia.
Daí por diante o papel de Maomé passou por drástica mudança. Enquanto em Meca ele não passara de líder religioso de um pequeno grupo, seguindo um tanto ou quanto a tradição dos primeiros profetas hebreus, uma vez fixado em Medina ele representaria um papel novo e mais influente, com aumento de autoridade espiritual e política. De acordo com sua nova posição, a natureza de suas contínuas revelações deixou de ter caráter puramente religioso para se imbuir de um maior conteúdo social e legislativo.
Um dos primeiros problemas de Maomé em Medina relacionou-se com os judeus locais. Várias tribos judaicas controlavam as terras mais férteis e tinham-se aliado formalmente a uma das duas tribos árabes que dominavam o oásis. Maomé, segundo estudiosos ocidentais, esperava que os judeus o aceitassem como profeta, dessa forma lhe fortalecendo a posição em Medina. Num esforço para lhes conquistar o apoio, adotou algumas de suas práticas, entre elas a de jejuar no Dia da Expiação e o costume de orar voltado para Jerusalém. Alguns dos judeus tornaram-se muçulmanos, mas a maioria viu no crescimento do islamismo uma ameaça para seus próprios interesses políticos e econômicos. Longe de aceitarem Maomé como um profeta, rejeitaram-lhe a pretensão e criticaram-no asperamente, alegando que muitas de suas revelações contradiziam suas próprias Escrituras, sendo, portanto, falsas. Maomé rebateu, afirmando que os judeus haviam deturpado as Escrituras e que apenas o Corão era a verdadeira Palavra de Deus. Vendo não lhe ser possível obter o apoio dos judeus, Maomé se entregou, então, à edificação de uma comunidade islâmica, constituída essencialmente de árabes.
À medida que o tempo passava, o Profeta começou a dotar o islamismo de seus próprios e singulares costumes religiosos. Em vez de matracas de madeira e das trompas de chifre de carneiro, usados por judeus e cristãos como sinais religiosos, a sonora voz de Bilal, convertido abissínio, conclamava os fiéis à oração – Bilal foi, assim, o primeiro muezim, o arauto que em determinadas horas, nas comunidades islâmicas, convoca os mulçumanos para a oração. Substituiu-se o jejum do Dia da Expiação por um mês inteiro de jejum durante o Ramadã, o nono mês do calendário lunar islâmico. Em vez de orarem voltados para Jerusalém, os mulçumanos receberam ordem de se prostrarem voltados para a Caaba, Meca, considerada o santuário de Alá. Autorizou-se que se beijasse a Pedra Negra, meteorito venerado embutido numa das paredes da Caaba.
Esse período também assinalou o início de uma nova forma de atividade contrária aos inimigos da fé em Meca. Maomé passou a liderar seus adeptos em incursões contra caravanas de Meca que atravessassem território de Medina. Há quem afirme que a razão de tais incursões era puramente econômica, uma forma de os imigrantes adquirirem alimento e provisões. Outros, porém, dão uma explicação diferente. Dizem que alguns dos discípulos de Maomé souberam que suas famílias em Meca estavam sendo perseguidas e tendo as propriedades confiscadas: assim, pediram vingança contra a população de Meca, e Maomé aplacou-lhes a ira atacando as caravanas.
Uma dessas incursões redundou no primeiro encontro armado sério entre mulçumanos e mecanos. Dois anos depois de os mulçumanos terem migrado para Medina, Maomé soube que uma caravana de Meca, cheia de mercadorias de valor, estava prestes a passar nas proximidades de Medina. Imediatamente planejou o ataque. As informações logo chegaram aos ouvidos da caravana, cujo chefe imediatamente mudou de caminho e enviou um mensageiro a Meca pedindo reforços. A caravana escapou, mas os mulçumanos defrontaram-se com os reforços em Badr, parada de caravanas a sudoeste de Medina.
Maomé contava com cerca de 300 homens, o maior grupo que jamais reuniu, ao passo que o número de mecanos chegava quase a um milhar. Os mulçumanos não poderiam fugir sem perda de prestígio. Para os de Meca essa era uma boa oportunidade para ensinar Maomé e seus seguidores a deixarem Meca e seu comércio em paz. Maomé dirigiu seus adeptos de um esconderijo das proximidades, passando boa parte do tempo em oração enquanto as duas facções combatiam. Surpreendentemente, o pequeno grupo do Profeta infligiu arrasadora derrota aos orgulhosos curaixitas, que não tinham esperado tão feroz oposição.
A surpreendente vitória de Maomé teve efeitos de grande alcance. Por toda parte árabes encararam-na como um milagre, um sinal do favor de Deus para com a causa do Profeta, dessa forma fortalecendo a afirmação de Maomé de ser ele o apóstolo de Deus. Além disso, os guerreiros mulçumanos partilhavam da pilhagem das incursões e logo correu o boato de que a causa de Deus poderia trazer recompensas tanto na terra como no céu. Então tribos vizinhas passaram a aderir ao islamismo e a lutar sob sua bandeira. Se vitoriosos, participavam da pilhagem. Se mortos em combate, certos estavam de irem para o céu, onde o Profeta lhes prometera o gozo permanente das mais sensuais delícias terrenas.
Os curaixitas, porém, não aceitaram assim tão simplesmente a derrota sofrida em Badr. No ano seguinte uma força mecana de 3.000 homens atacou os mulçumanos em Medina, infligindo-lhes uma derrota sem importância, mas o próprio Profeta saiu ferido em ação. Dois anos mais tarde, no ano 627, os curaixitas, resolvidos a acabar com Maomé, prepararam um assalto em larga escala a Medina, com 10.000 homens escolhidos dentre seus aliados, incluindo poderosa linha de frente de 600 cavaleiros, com os quais esperavam derrotar os mulçumanos. Maomé, pretensamente aconselhado por um convertido persa experimentado em fortificações, cavou profunda vala sem água diante da parte exposta da cidade – em termos táticos, verdadeira novidade na guerra do deserto. A inovação confundiu de tal maneira os atacantes que lhes tornou inútil a cavalaria, interrompendo-lhe a carga. Mudando de tática, os homens de Meca acamparam perto de Medina, e entraram em negociações com um clã judaico do oásis a fim de que o ataque aos mulçumanos partisse de dentro para fora. As negociações, no entanto, fracassaram, e a temperatura caiu. Quarenta dias depois, os guerreiros de Meca, já desmoralizados e sem provisões, trataram de voltar para a sua cidade.
Maomé, que viera a saber das negociações dos judeus com o inimigo, foi rigorosíssimo com eles: ordenou a decapitação de todos os homens – cerca de 600 ao todo – e a escravização de mulheres e filhos, permitindo ainda que os mulçumanos lhes tomassem as terras. Um leitor dos dias de hoje poderá estranhar tamanha violência num líder religioso. Mas o que surpreendia o povo de Iatribe era o total desprezo de Maomé pela antiga aliança entre os judeus e árabes locais – aliança considerada virtualmente sagrada pelo código beduíno. Com tal ato o Profeta não mostrava apenas aos judeus, e a qualquer possível inimigo do islamismo, que não toleraria mais oposições. Mostrava também a seus patrícios árabes que a velha noção tribal de lealdade, que por tanto tempo redundava em rixas que os enfraqueciam e dividiam, não mais estava em vigor. A única lealdade então reconhecida dirigia-se ao próprio islamismo.
Em 628 Maomé partiu em peregrinação para Meca com 1.400 adeptos seus. Sabedores disso, os habitantes de Meca enviaram 200 cavaleiros para interceptá-lo. Houve uma ameaça de luta, mas os dois lados concordaram num tratado que lhes propiciasse uma trégua de 10 anos e aos mulçumanos o retorno para Medina com a condição de, no ano seguinte, poderem voltar a Meca em peregrinação. Ambas as partes salvaram as aparências, mas Maomé conquistou uma vitória, considerando-se no mesmo nível dos curaixitas, uma vez que entrara em acordo com eles. E mais: saindo em peregrinação – antigo costume pagão – ele demonstrara que o islamismo era uma religião de cunho árabe.
No ano seguinte Maomé conduziu 2.000 mulçumanos na prometida peregrinação à Caaba, mas choques subseqüentes entre gente de Meca e mulçumanos puseram fim ao acordo, e em 630 Maomé marchou para Meca disposto a resolver o assunto, levando consigo uma tropa de 10.000 homens. Meca, enfraquecida pela perda de muitos de seus líderes nas lutas contra Maomé e conseqüentes dissensões com respeita à liderança da cidade, caiu dando apenas uma prova de resistência. Maomé entrou triunfante na Caaba, exclamando: “Chegou a verdade e desapareceu a falsidade”.
E passou a destruir os ídolos pagãos que enchiam o lugar santo. Posteriormente estabeleceu-se uma tradição em que se proibia aos não-mulçumanos entrarem na cidade. A purificada Caaba de Meca passou então a centro espiritual do Islã, assim como Medina passou a ser sua capital política.
O Profeta mostrou-se um conquistador indulgente e generoso, e em breve até os dirigentes de Meca, que lhe tinham feito tanta oposição, tornaram-se mulçumanos. Ao mesmo tempo suas tropas começaram a se internar cada vez mais na Arábia. Breve, quase todas as tribos da península tinham aderido ao Islã, graças a um fervor recém-adquirido ou à esperança de ganhos materiais. Permitiram-se a cristãos e judeus a prática de suas próprias crenças, com a imposição de um tributo, que, indiretamente, concorreria para o poderio sempre crescente do Islã.
Nos seus 22 anos de profeta, Maomé realizou uma síntese da tradição judaico-cristã de um único Deus com latente sentido de nacionalismo árabe, tendo seu povo descoberto nessa síntese uma causa pela qual se pudesse unir, lutar e vencer. Ainda assim o próprio Maomé se manteve incrivelmente o mesmo. Em toda a sua vida, mesmo depois de se tornar o governante absoluto de uma nova e poderosa nação, conservou gostos basicamente simples – conta-se que chegava mesmo a remendar as próprias roupas. Como líder transmitiu a seu povo um conceito mais amplo de humanidade, abolindo muitos males sociais. Modificou, por exemplo, o sentido da escravidão da Arábia – ainda permitia essa prática, mas que se desse tratamento humano aos escravos. Já então lhes permitia que se casassem e lhes possibilitava a compra da própria liberdade. E mais: encarava a libertação dos escravos como ato meritório. Maomé também tornou ilegais o jogo, a usura e o vinho, como contrários à lei de Deus.
Para seus adeptos, Maomé encarnava um novo ideal humano. Realmente, de tal maneira piedosos admiradores exageraram na idealização de sua imagem que por vezes a tornaram praticamente irreconhecível. Imaginava-se o Profeta possuidor de todas as virtudes, particularmente as mais caras aos árabes. Como a virilidade masculina era tida em alta conta, alguns árabes pintaram Maomé como um homem de imensa potência – retrato que posteriormente daria origem a muito ridículo e sátira no Ocidente. Verdade que uma tradição cita o Profeta quando diz estarem as mulheres entre as três coisas que lhe davam mais prazer (as duas outras: perfumes agradáveis e oração). Fosse qual fosse o grau de sua sensualidade, o fato é que a moderavam sua própria bondade e lealdade.
Por mais de duas décadas Maomé permaneceu fiel a uma mulher bem mais velha que ele. Depois da morte de Cadija ele tomou nove esposas (o Corão permitia que os mulçumanos tomassem até quatro esposas, mas se abriu uma exceção no caso do Profeta). A maioria dos casamentos de Maomé foram determinados essencialmente por motivos de ordem política ou humana. Algumas de suas esposas eram as viúvas de lugares-tenentes seus, mortos em luta pelo Islã, enquanto outras eram filhas de importantes líderes árabes. Uma delas, Aixa, era filha de Abu-Béquer, o amigo mais querido e o conselheiro mais íntimo do Profeta. Quando a desposou ela contava menos de dez anos e ainda brincava com bonecas. As mulheres de Maomé moravam em aposentos separados, em volta do pátio de sua casa, e com elas ele aplicava o sistema de rodízio. O Corão dava aos maridos o direito de açoitarem as mulheres rebeldes, mas Maomé era um marido indulgente. Em certa ocasião, levou Aixa consigo numa expedição e ela se deixou ficar atrás por causa de um colar perdido. Bem mais tarde, ela chegou a Medina acompanhada de um belo e jovem membro da tribo. Alguns partidários de Maomé acusaram-na de infidelidade, mas o Profeta logo teve uma revelação absolvendo a jovem esposa. O Corão ordenou que a partir daí seriam necessárias quatro testemunhas para que alguém acusasse uma mulher de adultério, e a falta de comprovação implicaria no castigo de oitenta açoites.
Em seu 63º aniversário, décimo da nova era do Islã, Maomé caiu doente. Sobreveio-lhe repentina febre, acompanhada de violentas dores de cabeça. Ele falou de morte com Aixa, mas ela se mostrou serena, pensando provavelmente, como muitos mulçumanos, que o Profeta de Deus era imune à morte. Mas os padecimentos aumentaram e Maomé pediu permissão às suas outras mulheres para ficar com Aixa. Dali ele conseguiu alcançar cambaleando a mesquita, onde mais uma vez disse a seus adeptos que os fiéis o acompanhariam ao Paraíso e que os infiéis seriam punidos. Por sua maneira de se expressar, seu amigo Abu-Béquer pôde dizer que ele estava à morte.
Pela última vez, o Profeta regressou à casa de Aixa. Quando lhe sobreveio a agonia da morte, murmurou: “Mais ainda (escolhi) a sublime companhia do céu”. E morreu nos braços de Aixa.
Quando a notícia da morte de Maomé se espalhou por Medina, seus seguidores foram dominados por um choque que chegou às raias do pânico. Em meio à confusão Abu-Béquer manteve a serenidade. “Quem quer que adore Maomé – gritou ele aos aturdidos seguidores do Profeta – saiba que Maomé está morto. Mas quem quer que adore a Deus, saiba que Deus vive e não morre”.
UM MENSAGEIRO DE DEUS é o primeiro capítulo (num total de oito) do livro ANTIGO ISLÃ, da série BIBLIOTECA DE HISTÓRIA UNIVERSAL LIFE.
Early Islam, copyright 1973 de Time Inc.
Edição original em língua inglesa de 1967, Time Inc.
Livraria José Olympio Editora S.A. - Rio de Janeiro
O autor: DESMOND STEWART, escritor inglês, viveu no Oriente Médio, por onde viajou bastante. Em 1948 completou seus estudos em Oxford, diplomando-se Doutor em Letras Clássicas. Nomeado no mesmo ano professor de Literatura pelo Ministério da Educação do Iraque, passou a lecionar no Líbano. Colaborou em publicações inglesas e americanas com artigos sobre assuntos ligados ao Oriente Médio e é autor, além de bom número de romances, de O Mundo Árabe e Turquia.
O editor consultivo: DANIEL KRIEGER, ex-professor de História em Yale, é professor da Universidade de Chicago e autor de The Germam Idea of Freedom e The Politics of Discretion, além de co-autor de Hystory, escrito em colaboração com John Higham e Felix Gilbert.
A tradução para a língua portuguesa é de Iracema Castello Branco.
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