domingo, 11 de setembro de 2011

O PADRE E O CANGACEIRO


A história de Lampião e de Cícero Romão
Texto de Ivan Alves e Nilson Lage
Quando Padre Cícero Romão Batista morreu, os sertões nordestinos foram varridos por maus presságios. Pelas caatingas, povoados e mesmo entre a gente pobre das principais cidades do Nordeste de então, pensou-se que o mundo ia acabar. Associadas de alguma forma a essa catástrofe iminente, corriam de boca em boca as histórias de Virgulino Ferreira da Silva, Lampião, o maior dos cangaceiros.
A medalha do Padre Cícero estava no peito dos homens do cangaço, tão característica deles como os lenços vermelhos amarrados no pescoço, os longos punhais na cintura, os enfeites de guerrilheiro no chapéu de couro – uma extraordinária síntese do fanatismo religioso e do banditismo que corriam caatinga, sertão, seridó, agreste, carrasco e serras, se adotarmos a classificação geográfica de José Guimarães Duque (Solo e Água do Polígono das Secas). No Nordeste dos anos 10, 20 e 30, as complicadas relações sociais que resultam do subdesenvolvimento haviam interligado fervor religioso e criminalidade social de maneira que, em certos momentos, uma sustentava a outra. Desse modo, Padre Cícero e o Capitão Virgulino estavam unidos como duas faces da mesma moeda, ou duas expressões da mesma angústia popular.
Ambos despertaram a fúria do Poder, cada qual em seu âmbito de atuação: Padre Cícero foi suspenso de suas ordens pelo Vaticano, que na época procedia de maneira radical e sectária, indiferente às peculiaridades da tragédia latino-americana; Lampião, morto à covardia durante o sono, teve a cabeça cortada pela polícia, o que iria inspirar uma cena de filme a Glauber de Andrade Rocha (1939-1981) – atormentado e às vezes lúcido cineasta que, nascido à margem dos sertões brasileiros, disse ser a violência “a mais nobre manifestação cultural da fome”.
Podemos, no entanto, tentar. Dizendo, primeiro, que no sertão, tal qual na Idade Média da Europa, as grandes causas têm forma religiosa, e não declaradamente política, ou econômica. Não se contesta votando na Oposição (que ou não existe ou representa uma dissenção eventual no grupo dominante, dos fazendeiros) nem fazendo greve, que seria impossível; a contestação tem aspectos de heresia, e seus líderes, desde Antônio Conselheiro até Cícero Romão, vestem-se pelo figurino dos eremitas que, na Igreja colonial, faziam voto de pobreza e exerciam a pedagogia do exemplo, em oposição à liturgia faustosa do clero oficial.
Peguem uma descrição de Cícero Romão Batista quando iniciou seu apostolado em Juazeiro do Norte, a 18 km (três léguas) do Crato, no Ceará, em meados de 1870, moço de menos de 30 anos: sua batina era amarfanhada, simples; seu ar de beato; caminhava a pé, apoiado em um cajado nas andanças longas – cajado que eventualmente poderia servir como arma contra um pecador atrevido. A figura miúda, recurvada, de hábitos modestos, lembra D. Hélder Câmara, Arcebispo de Olinda e Recife, com a única exceção do cajado, porque as palavras incisivas servem hoje mais propriamente para trazer ao rebanho o devoto extraviado. E muitas vezes tentaram também contra D. Hélder a mesma pecha de herético, de incendiário, de devasso, de demônio, de hipócrita, de revolucionário. Disso o acusaram fazendeiros (hoje chamados líderes das classes produtoras), políticos e até escritores áulicos, como Nélson Rodrigues, que o transformou em personagem de literatura picaresca. Durante anos, a censura proibia sequer mencionar o nome do Arcebispo de Olinda e Recife, a não ser no folhetim calunioso do festejado dramaturgo. E, se o Vaticano não puniu Padre Hélder, resistindo a inúmeras pressões nesse sentido, isto se deve ao despertar da Igreja para a questão social, desde o Concílio Vaticano II até Puebla e Medelin.
Padres políticos, ambos. No entanto, diferentes, Cícero e Hélder. O primeiro fez política partidária, caudilhesca. Mas será que podemos atirar-lhe pedras? Sua própria Igreja não o compreendia nem se dispunha a abrigar a multidão de pobres que o idolatrava. Aliou-se a chefes políticos, negociou, tinha fraca visão do conflito essencial que se tratava. Havia condições para sobreviver sem transações, para ver claro no horizonte estreito de Juazeiro? Cercou-se de beatos interesseiros. Quem saberia evita-los? As perguntas têm certo interesse para os moralistas que estudam história, não para o povo que a faz; este cultua Cícero com a mesma fé com que ouve Hélder.
Padre Cícero reinou sob o signo da tragédia climática. Secas, repetidas com uma freqüência e intensidade incomuns, causaram séria desagregação social, que não tinha válvula de escape: não havia o Sul industrializado que pudesse abrigar imigrantes (como atualmente, sobretudo na construção civil), eram parcos os caminhos e as esperanças no vazio amazônico. À terrível seca de 1877-1879 seguiram-se as de 1888-1889, 1891, 1898, 1900, 1902-1903, 1907, 1915, 1919, 1932. Em vários desses anos, houve êxodo em massa nas fazendas; alguns retirantes conseguiram chegar aos estados sulinos ou às barrancas amazônicas. Em grande número, amontoaram-se nas zonas do litoral ou buscaram as áreas agrícolas menos secas. Estas migrações, temporárias ou permanentes, contribuíram para arranhar o controle que os grandes fazendeiros exerciam sobre os camponeses.
Juazeiro do Norte, no Ceará, era, quando Padim Cícero chegou, em 1872, um povoado humilde, com menos de dez casas de alvenaria, casebres de colonos e uma capela onde se venerava a Virgem Maria, representada por uma imagem tosca, a cujos pés se depositavam ex-votos – quadros ou imagens que se oferecem e se expõem nas igrejas em comemoração a graças recebidas. Quarenta e dois anos depois, em 1914, o lugar se transformara em município próspero de 30 mil habitantes. É que o vale do Cariri, onde fica a cidade, tem terra muito fértil e menos atingida pela seca. Ainda hoje, essa fertilidade espanta o viajante. Na época, o efeito deveria ser ainda mais espetacular sobre o migrante desesperado – a cujo espírito místico se impunha a relação entre a existência daquele oásis e a presença do taumaturgo.
O Cariri ilustra uma peculiaridade do clima nordestino, caracterizado não só pela falta de chuvas como por sua distribuição irregular. Há outros pontos privilegiados na região, descrita em geral como tropical e semi-árida: as serras do interior de Alagoas, por exemplo – um dos lugares preferidos de Lampião – recebem em geral um índice pluviométrico que é o dobro de outras zonas, como a de Juazeiro do Sul (não confundir com Juazeiro do Norte, a cidade de Padim Cícero), na Bahia. No sertão, as chuvas fortes, que têm importância para a agricultura, caem durante cinco ou seis meses, num período que começa entre dezembro e março. Por esses meses, a tensão é enorme, na esperança do temporal que, se não vem, marca um ano de seca; rezar pela chuva é um compromisso anual que alimenta as superstições dos lavradores e projeta suas melhores esperanças. Sinais de chuva são conhecidos por todos: o acasalamento de certos pássaros e insetos, aspectos das nuvens, disposição das plantas.
Nesse quadro de caprichos climáticos, a vegetação varia muito. Nas colinas, encontra-se uma mistura de savana e floresta – como se o deserto se quisesse transformar em mata densa. No plano, a caatinga de vegetação retorcida, nodosa, baixa, onde se destacam exemplares de cactos enormes: o mandacaru chega a atingir seis metros. Nos meses em que não chove, as árvores e arbustos perdem as folhas, os espinhos são ameaças a quem cavalga – daí a roupa do vaqueiro, que não pode ser de algodão forte, como nos Estados Unidos (o jeans primitivo), mas precisa revestir-se de couro.
Mesmo no apogeu da cana-de-açúcar, o sertão foi pobre. A colonização primitiva fez-se no litoral, onde toda a terra tinha de ser aproveitada para a monocultura. Isso mesmo deu lugar à ocupação do interior seco, com o objetivo de subsistência dos escravos e senhores da sociedade canavieira. Grandes extensões de terra sertaneja foram entregues a pessoas influentes, que as reivindicavam do Governo: tal como acontece agora na Amazônia, para desgraça do Brasil de nossos netos, o Estado português preferiu o modelo da grande propriedade e da pecuária extensiva a qualquer outra forma de destinação da terra. Inventou, pois, o latifúndio na região – lá mesmo onde a presença política do Poder Central era menor, quase ausente.
Os fazendeiros tornaram-se, na prática, o único poder, cada qual com sua dose de arbítrio, sua prepotência. Concentrando a riqueza pouca, puderam ostentar alguma opulência. Formaram suas tropas de jagunços e delas nasceram as polícias militares, tão arbitrárias quanto seus amos, representados ao nível de governo provincial ou – depois da República - estadual. Embora o Brasil todo tenha plena consciência da desgraça social nordestina, desde a brilhante reportagem de Euclides da Cunha, em Os Sertões, até o ciclo dos romancistas que, como Graciliano Ramos, o melhor deles, se detiveram na descrição das Vidas Secas, nenhum governo teve coragem de enfrentar esses oligarcas. Com sabedoria, eles souberam articular seus interesses com a nobreza do Império, com os barões do café, com os burgueses paulistas, com o trabalhismo getuliano (até o impasse que se evidenciou com a eleição do Governador Miguel Arraes, de Pernambuco, ao tempo do Presidente João Goulart), com os militares de 1964, com as multinacionais cujos interesses tanto pesam nas decisões de Estado. Nada, portanto, mudou. Nem mesmo a Sudene teve coragem de enfrentar a casta poderosa: preferiu, ou teve que preferir a industrialização subsidiada para consumir a energia da hidrelétrica de Paulo Afonso. Tornou-se uma Superintendência para o desenvolvimento, não do Nordeste, mas da penetração de capitais industriais nas cidades nordestinas, zelosa ainda pela proteção dos usineiros em dificuldades. No entanto, sem afetar a oligarquia, nenhum combate efetivo à seca é possível. “Não faço mais açudes”, desabafou, certa ocasião, o governador João Agripino, da Paraíba. “Quem lucra com eles é meia dúzia de fazendeiros.” A injustiça social permanece, assim, apesar dos focos de modernização, e a situação é estranhamente estável.
O episódio do cangaço registra justamente um momento histórico em que essa estabilidade parecia ameaçada. A atividade econômica principal do sertão era a pecuária, que dá margem ao surgimento de uma figura típica – o vaqueiro, da qual irão derivar jagunços e cangaceiros. A agricultura, florescente no breve ciclo do algodão, que coincidiu com a Guerra Civil nos Estados Unidos (1860-1865), concentrara populações tais no agreste e nas zonas do sertão menos sujeitas à seca, que fizera aparecer outra face da tragédia nordestina: o minifúndio, em que a terra possuída e supertrabalhada não dá para o sustento da família. A borracha amazônica, que mal ou bem atraíra no fim do século XIX contingentes de mão-de-obra do Nordeste, declinava (1910-1930) frente à competição dos seringais asiáticos. No litoral, a cotação do açúcar caía, e os engenhos começavam a ser substituídos pelas usinas, com o rápido empobrecimento de senhores antes poderosos. Por toda parte, a ordem social parecia abalada.
A estrutura do poder refletia esta crise de muitos aspectos. Em cada município, havia uma família, duas ou três, donas da terra – e, portanto, na ordem feudal das coisas, de poder decisório. Famílias que brigavam entre si, jogando com recursos próprios – os jagunços – ou com o prestígio no Governo estadual – a polícia militar. Os conflitos na esfera dominante geravam uma extraordinária violência para a gente simples, uma espécie de banditismo permanente.
Antonio Silvino, o primeiro dos grandes cangaceiros, ilustra esta fábula. Nasceu em 1875, de uma família de fazendeiros do sertão, e se tornou bandido em 1897, ao assassinar dois homens, suspeitos da morte de seu pai. Durante 17 anos (até 1914, quando foi ferido e preso pela polícia de Pernambuco), percorreu quatro estados construindo fama de bandido e de cavalheiro, que distribuía justiça – castigo e prêmios – por onde passava. Caso semelhante foi o de Sebastião Pereira, ou Sinhô Pereira, de Vila Bela, no São Francisco, região onde Lampião nasceu e se fez homem. “As lutas da família Pereira fazem parte importante do cenário social em que Lampião se tornou cangaceiro”, escreve Billy Jaynes Chandler. E passa a resumi-las, tomando por base relatos de Abelardo Pereira e Luís Wilson:
As desavenças entre as famílias Pereira e Carvalho começaram devido à rivalidade política, no final da década de 1840, mas foi década e meia depois de 1905 que o litígio entrou em sua fase mais violenta. Esta violência parece ter ajudado a gerar uma tal explosão de barbárie que se alastrou por toda a zona do Rio Pajeú, no centro de Pernambuco, e por todas as áreas da vizinhança. A reabertura do conflito, em 1905, originou-se numa questão muito comum nos sertões, isto é, a tentativa feita por dois membros da família Pereira, numa estrada, para desarmar dois membros da família Carvalho. (...) Quando os Carvalho souberam do incidente, começaram as brigas entre os membros das duas famílias. Numa destas, Né Pereira, que tinha sido chefe de polícia, foi morto num dia de feira, em Vila Bela. Quando os acusados pelo delito foram absolvidos pelo júri, os Pereira ficaram muito ofendidos. Seguiram-se outros atos de violência, culminando, em 1907, com a emboscada em que morreu Manuel Pereira (também conhecido como padre Pereira, porque tinha estudado num seminário), o chefe da família Pereira, que contava 72 anos. Três dias depois, Né Dadú, um dos sobrinhos do morto, matou dois membros da família Carvalho – ato este que, segundo dizem, foi feito a pedido da viúva. (...) Num episódio bem conhecido, os Carvalho, à frente de 300 homens armados, atacaram o reduto dos Pereira, em São Francisco, em 1908. Só se retiraram depois de 24 horas, quando souberam que um reforço dos Pereira estava a caminho para ajudar os assediados. (...) A população estava sendo arrastada para a luta, isto é, quando não estava ocupada com suas próprias brigas, menores e menos conhecidas. Uma destas colocou Casimiro Honório, um fazendeiro, chefe de uma grande família, contra Zé de Souza, mulato valente, que tinha fugido com uma das filhas de Casimiro. Depois de longa e cruel luta, Zé foi morto por Casimiro, que era aliado dos Carvalho. Casimiro era o tio do homem com quem Lampião e seus irmãos tiveram sua primeira grande briga. Outro conflito envolveu Casimiro e um tio (por casamento) de Lampião. Poderiam ser citados uma infinidade de outros exemplos (...). Em vista do caos social proveniente dessas condições, não era fato surpreendente o número sempre crescente de bandos armados – cangaceiros – trabalhando ora para si, ora de aluguel. Um destes bandos foi formado por Sebastião Pereira, em 1916. Quando Né Dudu, um de seus irmãos mais velho, foi assassinado (...), Sebastião, com 20 anos, para visitar um parente, voltou com um bando de 18 homens. Acompanhando-o e dividindo com ele a chefia do grupo, estava seu primo, Luís Padre, filho de Manuel Pereira, vulgo Padre Pereira, que fora assassinado em 1907. Foi a própria viúva quem aconselhou seu filho a acompanhar o primo Sebastião na sua missão de vingança. Lampião se juntou ao bando de Sebastião e Luís Padre uns cinco anos mais tarde. Alguns meses depois, achou-se, por força das circunstâncias, à testa do grupo.
A FAMA DE PADRE CÍCERO CRESCEU COM JUAZEIRO
O Padre Cícero Romão Batista viveu 90 anos, de 1844 a 1934. Viu Império, Abolição, República, Revolução de 30, e chegou quase ao estado Novo, que é de 1937. Nasceu no Crato, Sul do Ceará, ordenou-se sacerdote em 1870 e dois anos depois chegou ao povoado de Juazeiro que, sob sua liderança, se transformou na Meca dos romeiros e místicos nordestinos.
Em 1914, quando explodia na Europa a Primeira Guerra Mundial, opondo inicialmente o Império Austro-húngaro à Sérvia (antigo reino ao sudeste da Europa que em 1918 se incorporou à Iugoslávia), Padre Cícero, plantado no seu Juazeiro de 30 mil almas, também se desentendia com Marco Franco Rabelo, Presidente eleito do Estado, depondo-o ao fim de uma insurreição deflagrada na região do Cariri.
Franco Rabelo, nascido em Fortaleza em 1861, fora professor da Escola Superior de Guerra e da Escola Militar do Ceará, além de deputado federal pelo Estado. Chegara à presidência estadual (os governadores, na República Velha, chamavam-se de presidentes), depondo, em 1912, Antônio Pinto Nogueira Acióli que, então com 52 anos, ostentava um currículo respeitável: fora deputado e senador no Império e senador na República.
Com toda a pompa de militar – tempos diferentes, aqueles – Franco Rabelo foi alijado do poder pelo Padre Cícero que, sem sair do Cariri, deflagrou a rebelião, elegeu-se deputado federal e Vice-presidente do Estado. Na realidade, a luta extrapolava as fronteiras estaduais: Rabelo opunha-se à candidatura de José Gomes Pinheiro Machado (1852-1915) ao Palácio do Catete, muito cogitada então. Cícero Romão apoiava Pinheiro Machado, caudilho que foi eminência parda de muitos governos federais, mas jamais chegaria a presidente. Contra Pinheiro Machado estava Rui Barbosa (1849-1923), formidável tribuno que se referiu à situação cearense numa carta de 3 de março de 1914, publicada no livro A Intervenção Federal no Ceará, de 1919. Eis alguns trechos:
1. A imaginação me vê desdobrar-se a sotaina do Padre Cícero, e a samarra do clérigo ensangüentado, agigantada pelos excessos da sua maldade.
2. O governo central suscita, de improviso, nos sertões do Juazeiro e do Cariri, uma reedição ampliativa do fanatismo de Canudos, em que a loucura de Antônio Conselheiro se substitui pela impostura douta de um caudilho tonsurado.
Rui via longe. Numa hora em que se exaltava a liderança de Cícero Romão e a taumaturgia do Padim Cícero entrava na literatura de cordel, Rui Barbosa investia contra o seu oportunismo político. Continuou a atacá-lo e a seu principal correligionário político, o médico baiano radicado no Ceará Floro Bartolomeu da Costa (1876-1925), de quem Nertan Macedo fez uma admirável biografia (Floro Bartolomeu – O Caudilho dos Beatos e Cangaceiros). As palavras de Rui Barbosa são cáusticas:
3. A devastação da Terra da Luz pelas hordas bárbaras do Padre Cícero e de Floro Bartolomeu ataca a ferro e fogo, na sociedade cearense e na família cearense a família e a sociedade brasileira.
O Marechal Hermes Rodrigues da Fonseca afirmava, no Rio de Janeiro, irritado com a desobediência à sua liderança, que “Franco Rabelo haveria de se arrepender”. Não se sabe se Franco Rabelo, oficial garboso e cheio de medalhas, arrependeu-se ou não. O fato é que perdeu o Governo Estadual. Cumpria-se a profecia de um lavrador: “Ninguém se engane. O Padre Cícero começou como missionário, breve estará milionário e acabará revolucionário”. As rimas falavam a verdade. A batina era mais forte que a farda – ao menos naquele momento.
O Padim Cícero dominava espiritualmente todo o Nordeste, com a sua coorte de beatos, mistificadores e carpideiras que se projetavam à sombra do campanário. Agora também o dominava politicamente, com a preciosa assessoria de Floro Bartolomeu, que, na Câmara Federal, teve, contudo, momentos de brilhantismo, como ocorreu quando da defesa da exploração, por nacionais, do xisto e do carvão.
O xisto betuminoso é uma rocha foliácea, na qual se dissemina um material orgânico chamado querogênio. Quando aquecida a rocha, o xisto desprende um óleo que tem utilidades semelhantes às do petróleo. Assim, após sofrer o tratamento industrial adequado, essa matéria-prima é capaz de produzir gasolina, querosene, óleo diesel, óleo lubrificante e parafina. Já nas primeiras décadas do século XX, Floro Bartolomeu, homem de boa cultura, se interessava pelo assunto. Era, a seu ver, a única forma de “nos libertarmos do tributo de ouro que pagamos ao estrangeiro e que tanta falta nos faz”. Um tributo que, hoje, continuamos a pagar.
Em Apoteose ao Banditismo, Duarte Júnior revela que Floro Bartolomeu, quando jovem, clinicava em Triunfo, no alto sertão pernambucano. Ao ocorrer ali um surto epidêmico de febre amarela, e por não conseguir debelá-lo, foi ameaçado de linchamento. O obituário crescia, as ameaças de agressão física também, e o médico só teve uma alternativa: fugir para o Ceará, radicando-se na cidade de Juazeiro do Norte, onde o Padre Cícero lhe entregou os seus doentes e o fez seu protegido político. Começava aí uma esfuziante carreira política, que só a morte interromperia, em 1925.
Milagreiro, santo e profeta, Cícero Romão Batista se sentia tão prestigiado que, além de enfrentar os chefes políticos do Ceará, entrou em litígio com o próprio Vaticano. Bento XV (Giacomo Della Chiesa, papa entre 1914 e 1922) e Pio XI (Achile Ratti, papa entre 1922 e 1939) não podiam absorver com tranqüilidade as versões que corriam em torno de Cícero Romão Batista, embora este, pessoalmente, fosse um homem inatacável: detestava o jogo, as festas (inclusive as carnavalescas) e a bebida. E sua castidade era notória.
Mas havia histórias espantosas de fanatismo, como aquela de um boi que, por pertencer a Cícero Romão Batista, era adorado, como o boi Apis, da Antiguidade; da atribuição de poderes divinos ao padre, considerado até uma pessoa da Santíssima Trindade. Por fim, as mistificações armadas pelo beato José Lourenço e as beatas Mocinha e Maria de Araújo, culminando com a informação de que as hóstias da igreja do padre estavam tintas com o sangue de Jesus Cristo. Tais escândalos levaram a Santa Sé a intervir. Cícero Romão Batista foi suspenso de ordens e ameaçado de excomunhão.
Nem isso, entretanto, abalou o prestígio do padre, que do Cariri – de onde só se afastou para duas viagens disciplinares a Roma – editava uma mensagem de fé e fanatismo que se estendia da Bahia ao Amazonas. Como diz Antônio Xavier Teles,
A figura lendária do pároco de Juazeiro do Norte polarizou o estro dos poetas sertanejos. É numerosa a literatura popular que surgiu em torno de sua pessoa e de seus milagres, verdadeiro ciclo no folclore nordestino. O fenômeno Padre Cícero é, em grande parte, explicável pelo fato de o Nordeste ter guardado o misticismo da Idade Média de maneira surpreendentemente viva e fiel. O meio rude e semi-árido dos sertões brasileiros manteve muito o ascetismo religioso medieval, que se desintegrou na Europa moderna.
Padre Cícero apoiava o partido marreta, fiel a Nogueira Acióli; Juazeiro do Norte era uma espécie de nova Jerusalém, que os hereges rabelistas (seguidores de Franco Rabelo) sitiaram, mas não venceram. Em apoio a Cícero Romão Batista, surgiram de todos os quadrantes cabras armados, beatos, cangaceiros, romeiros, todos devotos de Cícero Romão Batista. Eles vinham de todo o Nordeste para a guerra santa contra Franco Rabelo; isto levou o Governo Federal a intervir no Estado, temeroso de que se reeditasse uma luta sangrenta como a de Canudos (1896-1897).
Na sua longa presença de líder, o Padre Cícero viu morrerem, em 1919, metade das árvores do sertão por falta de chuva e comandou seu povo nas novenas, tanto quanto na abertura de poços profundos em busca de água. As secas repetidas não afetaram seu prestígio. Todos lhe prestavam obediência, desde os pobres até poderosos coronéis que, no entanto, muitas vezes agiam falsamente, conspirando contra o sacerdote.
Este foi também o mundo que viu surgir Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, mestre de estratégia sertaneja, guerrilheiro e vingador.
A INJUSTIÇA EMPURRA PARA O CANGAÇO O TROPEIRO VIRGULINO
Para vingar a morte do pai, Virgulino Ferreira da Silva e dois irmãos (Antônio e Livino) ingressaram no bando de Sinhô Pereira. Existem duas versões para as origens do seu apelido, ambas anotadas por Paulo Dantas em Estórias e Lendas do Norte e Nordeste:
1. Virgulino, tropeiro do Coronel Delmiro Gouveia, transportava peles para a Vila da Pedra, em Alagoas, quando, ao chegar a Matinha da Água Branca, AL, sua mula esbarrou num dos lampiões públicos do povoado, derrubando-o. Daí, a origem do apelido, que subiu até a manchete do France-Soir, de Paris, quando o célebre bandoleiro foi assassinado e decapitado na Grota dos Angicos pela volante (efetivos da Força Pública) comandada pelo Capitão José Bezerra: “Foi morto no Brasil o rei vesgo do sertão.”
2. Ao iniciar a vida criminosa, apresentou-se a Sinhô Pereira, dizendo-lhe com desembaraço: “O meu rifle, no pega desta noite, não deixou de ter clarão.” Todos riram, ao que um cabra de Pereira observou: “Homem, se é assim, o rifle deste menino (Lampião tinha então apenas 17 anos de idade) é que nem lampião.”
O cearense José Ferreira da Silva, zeloso chefe de família, teve nove filhos – quatro mulheres e cinco homens: Virtuosa, Angélica, Maria, Anália, Antônio, Livino, Virgulino, João e Ezequiel. Da fazendola de Passagem das Pedras, Zé Ferreira tirava o sustento da família, mas, como a prole era numerosa e possuísse alguns muares, acumulava a profissão de almocreve, transportando, pessoalmente ou através dos filhos, mercadorias de Rio Branco (atual Arcoverde), à época cabeça de trilhos da ferrovia Great Western, para as vilas e cidades do alto sertão. José Rodrigues de Carvalho, que conviveu com os Ferreira, relata:
A rude e penosa tarefa de almocrevaria era desempenhada pelos rapazes, filhos de Zé Ferreira, quase sempre revezando-se por viagens. Um deles assumia a direção da recua, a que também denominavam de comboio, secundado por dois ou três auxiliares. Estes são empregados contratados por viagem, cuja duração é indefinida, podendo ser de quinze dias ou de um mês, pois está condicionada ao destino que tiver o frete a conseguir, podendo ser para mais perto ou mais distante. O salário que percebem é o mais miserável: doze ou quinze mil réis para se esfalfar, suspendendo e arriando duas vezes ao dias fardos de 75 a 80 quilos, na laboriosa faina da carga e descarga das azêmolas, durante dez, quinze ou vinte dias! Entre uma vida dessas e entrar para o cangaço e morrer na primeira refrega, não tem muito o que escolher. Enquanto um dos rapazes realizava esse vestuto e precário meio de transporte, os outros permaneciam ao lado do velho cacique e o resto da família, ocupando-se do trato da criação e do cultivo da terra. Quando de regresso o almocreve, era substituído por um dos agropecuaristas e este por aquele.
Essa família Ferreira seria vítima das arbitrariedades que fariam nascer nos sertões brasileiros a figura mais famosa do seu cangaço: o Lampião. Naqueles confins de Pernambuco, o clã dos Ferreiras passou a ser humilhado e perseguido por um vizinho, José Saturnino, ligado por parentesco a famílias de prestígio na zona. Em 1918, ele estendeu as arbitrariedades aos próprios agregados e trabalhadores da fazenda de José Ferreira. O fato é que a família não resistiu às pressões e decidiu abandonar a sua propriedade. Começa aí o prólogo do drama de Virgulino Ferreira da Silva: a mãe faleceu, vitimada por um colapso; pouco depois, o velho José Ferreira da Silva era assassinado por um esbirro da polícia alagoana, Sargento José Lucena. Diz Nertan Macedo em seu livro Capitão Virgulino Ferreira Lampião:
Punirá o bandido, daí por diante, não apenas os seus semelhantes, mas a sua própria terra. Devastará com incêndios e saques centenas de propriedades. Destruirá casas e currais e fuzilará milhares de reses. Enfrentará mais de 200 combates, com soldados e adversários pessoais, revelando-se ora de uma feroz valentia e não raro de uma covardia torpe. Terá gestos de nobreza e até de galanteria, algumas vezes. Noutras ocasiões se comportará como um cão danado, repelente e furioso. Violentará mulheres. Humilhará anciãos. Espancará jovens e donzelas. Imporá castigos físicos os mais sórdidos e brutais. Mandará ferrar mulheres e homens, nas nádegas e no rosto, desfrutando espetáculos cruéis. Promoverá festas ruidosas nos casebres do sertão, onde não permitirá que os seus homens sejam incomodados sequer pela poeira – ordenando para tanto que o chão desses casebres seja aguado com cerveja. Exibirá reações as mais contraditórias e inexplicáveis. Amará perdidamente os irmãos bandoleiros e as irmãs. Com eles e por eles chorará nos momentos mais tristes.
Lampião era um temperamento dúbio: como observa Macedo, era sensível a ponto de confortar a família de um leproso. Mas quando seu irmão Ezequiel, o Ponto Fino, foi ferido, num combate, na Fazenda Arrasta Pé, no sertão baiano, ele próprio, Lampião, lhe deu o tiro de misericórdia, justificando-se:
Quando eu sair de um combate nessas condições (Ezequiel estava ferido gravemente na cabeça e sofria muito), façam o mesmo comigo. Não havendo possibilidade de cura, o melhor é ir logo para o inferno, que é para onde a gente vai mesmo, mais cedo ou mais tarde.
Lampião não tardou a ser alçado à chefia do bando. Em determinado momento, tendo ao lado Maria Bonita, chegou a liderar duzentos homens. Durante vinte anos, espalhou o terror entre a Bahia e o Ceará, superando, em tempo e quilômetros percorridos, o recorde de Antônio Silvino (1875-1944). Ele se tornaria também mais temível do que o cearense Jesuíno Brilhante (1844-1879); do que o baiano Lucas da Feira, enforcado em 1849; do que o pernambucano José Gomes, o Cabeleira, célebre figura do cangaço do século XVII e que inspirou o romance homônimo de João Flanklin da Silveira Távora; do que o piauiense Zé do Vale, que tombou num choque com a polícia no final do século XVIII.
Quem eram exatamente os cangaceiros, hoje uma espécie extinta (para sempre?) no sertão nordestino? Francisco de Assis Barbosa observa que, como os beatos e os penitentes, os cangaceiros são expressões típicas da plebe rural, desassistida e sobretudo desamparada pela Justiça, vivendo sob regime feudal imposto pelos coronéis, que estimulavam, como ainda estimulam, o banditismo, com objetivos pessoais e políticos. Se considerarmos, no particular, a origem de família de homens como Sinhô Pereira e Lampião, teremos que ampliar o conceito de plebe, para incluir todos, até mesmo proprietários de terras poucas, postos à margem e sujeitos ao arbítrio do poder político.
O historiador social britânico Eric Hobsbawn (Bandits) classifica os bandidos, reais ou lendários, segundo suas características e opiniões. Estuda principalmente os bandidos sociais, definindo-os como criminosos que o povo considera heróis e cujos atos encontram justificativa no espírito popular. Nessa categoria existem nobres salteadores, os chefes de guerrilhas primitivos e os vingadores. Do ponto de vista de Hobsbawn, Lampião seria principalmente um vingador, não só pela motivação de sua entrada no cangaço, mas, sobretudo, pelo emprego exagerado da violência. A admiração que desperta no povo não seria devida a seus atos de justiça, mas à circunstância de ter demonstrado o quanto os camponeses podem ser terríveis, alimentando uma espécie de orgulho de classe, ou expectativa de vingança. O autor dá a Lampião o mérito de ter, em geral, defendido os pobres, mas o desloca da categoria de bandido social típico por causa das alianças que fez com proprietários de terras.
O cangaço se fixou entre os rios Parnaíba e São Francisco. Segundo Capistrano de Abreu, os primeiros habitantes dessas regiões – por onde corriam os rios Pajeú, Moxotó, Salgado e Jaguaribe – foram os índios tapuias que, “para não terem medo, nem saudade”, devoravam os seus próprios mortos e trituravam seus ossos, lançando-os aos ventos, “porque só se deve confiar à terra o que pode renascer”.
Por essas regiões andou Lampião, estatura mediana, constituição franzina, crânio dolicocéfalo, ângulo facial aberto, arrematado por queixo pontiagudo, tórax e membros regularmente proporcionados, de cor carregada, aproximando-se mais do negro do que o tipo comum do caboclo nordestino, segundo a descrição do médico e jornalista Otacílio Macedo, que o entrevistou para O Ceará, de Fortaleza, em 17-18 de março de 1926:
Cabeleira farta, preta, luzidia, cortada à americana, cangote raspado, deixando a nuca a descoberto, num misto grotesco e irritante, a impressão que se tem do facínora, neste primeiro balancear de traços humanos, é a do mulato pernóstico do litoral.
Mas esta impressão vai mudar-se depois. Dedos munidos de anéis de preço, engastados de pedras preciosas, verifica-se, facilmente, no indicador e no anular, um topázio, um rubi, três brilhantes de regular tamanho e uma esmeralda, símbolos irônicos das chamadas profissões liberais do Brasil.
Trajava calça de zuarte e paletó de brim escuro, listrado, chapéu de feltro ordinário, alpercata de rabicho e meia; ao pescoço um lenço verde, enxadrezado de preto, seguro por um anel de brilhante, à moda de alfinete de gravata. Lampião usa óculos com vidros enfumaçados, engastados em tartaruga e ouro, com o fim de encobrir um extenso leucoma (bilide) de córnea do olho direito. Durante todo o tempo que conversou conosco – e foi por um espaço de mais de uma hora – não riu uma vez e manteve-se em grave circunspeção, compenetrado das suas responsabilidades e da fama de seu nome (...). Não abandonou um momento o seu mosquetão legendário: sentado em um tamborete, apegado à arma homicida, chapéu na cabeça, cobrindo os cabelos longos, pretos e lisos, óculos e anéis doutorais, respondendo apenas às perguntas que lhe eram feitas, face sisuda, Lampião, nesta atitude, dá assim a impressão de um buda chinês, ou de uma dessas inúmeras cabeças falantes com que os empresários espertos embasbacam a ingenuidade do povo. Foi debaixo dessa atmosfera grotesca, de absoluto respeito dos circunstantes, que solicitamos de Lampião para a Imprensa uma entrevista. Coisa curiosa: o facínora, devido ao peso dos apetrechos bélicos que conduz, caminha um pouco corcunda, o que não impede de irradiar saúde e mocidade.
No peito, medalhas do Padre Cícero, escapulários e saquilhos de rezas fortes. Possuía Lampião uma religiosidade composta de lendas e superstições, em que o padre taumaturgo era um ponto de referência. E não só para ele. Sinhô Pereira freqüentava (como Lampião) a casa senhorial, de muitos quartos e amplas varandas, de Cícero Romão Batista. Ele abandonou a carreira de crimes por exigência do padre. Mas, quando este lhe pediu, pela primeira vez, que deixasse o cangaço, Sinhô Pereira lhe respondeu:
Meu padrinho, que hei de fazer? Se eu cruzar os braços, os macacos me matam. E entre matar e morrer, prefiro não morrer.
Os macacos eram os membros das volantes, na gíria dos cangaceiros.
A INCORPORAÇÃO DE LAMPIÃO CONTRA PRESTES
Uma das passagens mais curiosas da História do Brasil é a incorporação militar de Virgulino Ferreira da Silva para lutar contra a Coluna Prestes, comandada por Luís Carlos Prestes.
Em 1926, sob o Governo Artur Bernardes, organizaram-se em alguns pontos do território nordestino batalhões patrióticos para combater a Coluna. Um desses batalhões foi criado pelo Deputado Floro Bartolomeu da Costa, que deu a Virgulino Ferreira da Silva a patente de capitão, bem como a de tenente a Antônio Ferreira da Silva (irmão de Lampião) e a seu principal ajudante, Sabino Gomes. O batalhão do Dr. Floro se sediou em Campos Sales, CE. Ali se cavaram trincheiras, na expectativa do anunciado ataque da Coluna Prestes a Juazeiro do Norte. De acordo com informações que pareciam fidedignas, Prestes pretendia apoderar-se de armas que se encontravam em poder de Cícero Romão Batista e que haviam sido guardadas por ele após o término da campanha contra Franco Rabelo.
No dia 4 de março de 1926, acompanhado de 49 homens, Virgulino chegou a Juazeiro para conferenciar com “o Padre e o Doutor” (Floro Bartolomeu). Assentada a participação do bando na caçada aos revoltosos, os cangaceiros ganharam fardas de mescla azul e trocaram os rifles 44 por fuzis privativos do Exército – os mesmos fuzis que viriam a ser de extrema valia no ataque a Mossoró, RN, em 1927. Lampião, que passou três dias em Juazeiro, despertando intensa curiosidade popular, deu o seguinte depoimento ao poeta popular João Mendes de Oliveira, depois de ir à luta:
Tive um combate com os revoltosos da Coluna Prestes entre São Miguel e Alto de Areias. Informado de que eles por ali passavam e sendo eu legalista – fui atacá-los, havendo forte tiroteio. Depois da grande luta e estando apenas com 18 companheiros, vi-me forçado a recuar, deixando diversos inimigos feridos. Vim agora ao Cariri porque desejo prestar os meus serviços ao Governo da Nação. Tenho intuito de incorporar-me às forças patrióticas de Juazeiro e com elas oferecer combate aos rebeldes. Tenho observado que geralmente as forças legalistas não têm planos estratégicos e daí o insucesso dos seus combates, que de nada têm valido. Creio que se aceitassem os meus serviços e seguissem os meus planos muito poderiam fazer.
Após deixar Juazeiro do Norte, onde recebera as bênçãos e conselhos do Padre Cícero, Lampião chegou rapidamente à fronteira pernambucana. Ali deparou um soldado, a quem perguntou como seria recebido, uma vez que estava comissionado no posto de capitão para combater os rebeldes de Luís Carlos Preste. A resposta foi incisiva: “À bala!” Lampião não se abalou, segundo nos conta, em seu livro, Nertan Macedo:
Se é assim que querem me receber, então minha espingarda vai cantar na toada antiga!
E ainda de acordo com Macedo, não mais se preocupou com a Coluna, que, segundo boatos insistentes, pretendia invadir o Cariri, embora, ingenuamente, Cícero Romão Batista a intimasse a render-se. O fato é que a Coluna acabou entrando no Ceará, vinda do Piauí, infligindo derrotas sucessivas à jagunçada legalista. Mas não chegou a entrar em Juazeiro do Norte, a terra sagrada do patriarca Romão Batista.
Bem ao largo, já estava então Lampião, acompanhado de seus cabras – Zé dos Santos (seu Chico), Jorge Salú (Maçarico), Raimundo da Silva (Aragão), Manoel Boi, Inácio de Medeiros (Jurema), Severino da Silva (Nevoeiro), Joaquim de Mariano, Antônio França, João José da Silva (Pinica-pau), José de Souza (Tenente), José Lopes da Silva (Mormaço), Nunes, Marcelino, Antônio dos Santos (Cobra-verde), Antônio Batista, Antônio da Silva (Moita Brava), João Mariano (Andorinha), Laurindo Batista Gaia (Açucena), Antônio Mancinho (Cuscuz), José dos Santos (Três Pancadas), Sebastião Raimundo (Três Cocos), Hermínio Xavier da Silva (Chumbinho), Nunes Magalhães (Pensamento), João Soares (Juriti), Vicente Feliciano (Meia-noite), Euclides Bezerra (Criança), Sebastião Ancação, João Cesário (Coqueiro), Antônio Caboclo (Sabiá), Félix Mata Redonda, Damásio, Chá Preto, Barra Nova, Bem-te-ví, Né Vieira da Silva, Lasca Bomba, Azulão Segundo, Manuel Marcelino (Bom de Vera), Josias Vieira (Gato), Antônio José da Silva (Beija-flor).
Satélites do bando de Lampião, atuando articuladamente com ele, havia outros grupos – o de Sabino Gore, o de Horácio Novais, o de Casa Velha e o de Jararaca. A junção desses grupos perfazia um total de 112 homens; em novembro de 1926, eles se reuniram numa espécie de congresso em Pajeú, Pernambuco, protegidos por uma vasta rede de coiteiros e protetores políticos. Lampião era, na época, o chefe inconteste, o rei do cangaço.
Que tipo de humor teria um homem desses? Há o registro de um diálogo, no início da vida de cangaço, quando Virgulino ainda fazia parte do bando de Sebastião Pereira. Mulato, ele um dia confidenciou, à hora da sesta:
- Verdade que não nasci para cangaceiro. E falo com a devida franqueza. Se não houvesse negro na Polícia para dar ordens à gente, eu até que sentava praça.
Sinhô Pereira perguntou:
- Mas, compadre Virgulino, tu também não és preto?
E Antônio Ferreira, irmão de Lampião:
- Preto, não senhor. É moreno cor de canela.
E Lampião, rindo:
- Deixa dessa conversa, Antônio. Eu sou lá cor de canela! Cor de canela é coisa pra mulher.
Sebastião Pereira, a quem cabia, como chefe, dar a última palavra, terminou definindo a cor de Virgulino: moreno lusco-fusco.
O RASTRO DE SANGUE, O AMOR DE MARIA, A MORTE NO SONO
Lampião e seus irmãos jamais conseguiram vingar a morte do pai. Os responsáveis pelo crime sobreviveram aos cangaceiros por muitas décadas. Um deles, José Saturnino, entrou para a Polícia de Pernambuco; Billy J. Chandler o entrevistou, em 1975, numa fazenda próxima da Serra Vermelha. O outro, José Lucena, continuou sua carreira na Polícia de Alagoas e chegou a ser prefeito de Maceió.
A certidão de nascimento de Virgulino Ferreira da Silva pode ser apanhada no Registro Civil de Pauapiranga, Serra Talha (antiga Vila Bela). Nasceu a 7 de julho de 1897, na fazenda de seu pai, Passagem das Pedras, ao pé da Serra Vermelha. Passou a infância na casa dos avós maternos, Manoel e Jaçosa Lopes, do outro lado do riacho. Nunca foi à escola, mas aprendeu a ler, escrever e contar, habilidades raras naquele lugar, na época. Na divisão familiar de tarefas, cabia-lhe, quando menino, cuidar dos carneiros e cabras, enquanto Antônio, irmão mais velho, zelava pelas plantações, e Levino ajudava, com maior freqüência, nas tropas de burros. Adolescente, além de cumprir, indiferentemente, uma ou outra dessas missões, mostrou habilidade notável como artesão de couro, fabricando chapéus, sandálias, rédeas, selas, gibão, bolsas, assentos de cadeiras. Tomava parte nas vaquejadas e se tornou famoso como valeiro. Tocava sanfona, era dançarino disputado nas festas rurais. Um jovem brilhante em seu meio.
A questão com o vizinho José Saturnino começou em 1916, quando Virgulino tinha 19 anos. Os motivos não são muito claros – possivelmente Saturnino pretendia incorporar a suas propriedades a terra do velho Ferreira – mas o pretexto foi um suposto roubo de cabras e chocalhos. Ferreira queixou-se ao chefe de polícia, seu parente, de que algumas cabras estavam sumindo; os couros foram encontrados na casa de um morador da fazenda de Saturnino. Este, em troca, acusou Virgulino e seus irmãos de estupro de cabras – uma ofensa que cobria os rapazes de ridículo. Antonio disse, então, no povoado, que um de seus cavalos estava a fim de cobrir a mulher de Saturnino.
Em dezembro de 1916, jagunços de Saturnino atiraram contra os Ferreira, que passaram a andar armados. No dia seguinte, numa tocaia, Antônio foi ferido na coxa. O velho Ferreira não era homem de brigar, nem tinha meios para isso: o vizinho era sem dúvida mais poderoso. Sua mulher pertencia à família dos Nogueira, da elite local, e seu pai, fazendeiro importante, mantinha tropa de jagunços. Um tio, Casimiro Honório, chefiava a jagunçagem da poderosa família Carvalho, na guerra contra os Pereira (de onde veio o cangaceiro Sinhô Pereira).
A solução foi negociar e, na negociação, perder as terras. A família Ferreira mudou-se para perto da Vila de Nazaré, buscando a paz em nova fazendola, Poço do Negro. O processo da tocaia em que Antônio foi ferido corria, porém, na Justiça local, onde Saturnino era acusado por seu nome de batismo, José Alves de Barros (o documento se encontra no 1º Cartório de Serra Talhada e aponta como data do evento 7 de dezembro de 1916). Por esse motivo ou por outro qualquer, a briga recomeçou: Saturnino rompeu o compromisso que assumira de não ir a Nazaré e, lá, trocou tiros com Virgulino e seu tio materno, Manoel Lopez. Logo depois, quinze homens do grupo de Saturnino tentaram atacar Poço do Negro e um deles ficou ferido.
A pressão política mostrou-se mais eficiente. Os amigos importantes de Saturnino trataram de intrigar os Ferreira com seus vizinhos, apontando-os como aliados do cangaceiro Sinhô Pereira. Antônio, Virgulino e Levino já andavam armados e, num tiroteio, Levino terminou sendo ferido no braço e preso. Novamente a família Ferreira negociou a liberdade do rapaz, comprometendo-se a sair do lugar. Foram para Água Branca, em Alagoas, provavelmente em 1920, buscando a proteção de um tio postiço, Antônio Matildes, amigo de um coronel influente, Ulisses Luna. Arrendaram uma fazenda na localidade de Olho d’Água: as brigas os deixara quase arruinados.
De qualquer forma, a idéia de vingar-se de Saturnino se apossara dos rapazes. Parece que Virgulino e Matildes (cujo protetor, Ulisses Luna, pouco podia fazer, porque estava na oposição por essa época) realizaram uma expedição punitiva, com uns 15 homens, às terras de Saturnino e dos Nogueira, em Pernambuco. O fato é que, no final de 1920, a polícia alagoana, comandada por Amarildo Batista, depredou as casas dos Ferreira e de Matildes. Um neto de José Ferreira ficou doente e João, o único irmão de Virgulino que não estava marcado pelos policiais e que jamais se tornaria cangaceiro, foi à vila comprar remédio. Lá, acusando-o de levar munições para Matildes, a polícia o prendeu. Os Ferreira reagiram, escaparam de uma tocaia que os policiais haviam preparado e, ameaçando pôr fogo na vila de Água Branca, conseguiram soltar o rapaz.
Novamente José Ferreira teve que se mudar em direção a Mata Grande. Ali, num lugar chamado Engenho, na casa de um amigo, Fragoso, morreu Dona Maria, mãe de Virgulino. Este, com Antônio e Levino, estavam fora; com Matildes e sete homens, atacaram Pariconhas, cujo delegado participara da depredação das casas em Água Branca. O saque – em particular da casa do advogado da comarca – rendeu uma pequena fortuna, algo em torno de Cr$ 600 mil em moeda atual.
O ataque a Pariconhas ocorreu a 9 de maio de 1921. Nove dias depois, José Ferreira estava debulhando milho em frente ao alpendre da casa de Fragoso quando a polícia chegou. A tropa, chefiada por Amarildo Batista e pelo Sargento José Lucena, cercou a casa e fuzilou os moradores. Fragoso e o velho Ferreira morreram. João escapou porque estava no campo, juntando os burros. Este espetáculo esperava Virgulino e seus irmãos no retorno do ataque a Pariconhas.
Estava lançada a sorte. Tudo que eles poderiam ser era cangaceiros. A polícia local, composta de assassinos, os procurava. Não havia realmente para onde fugir. E a idéia de vingar o pai tomava conta de Virgulino, cuja liderança os irmãos reconheciam, e que já era chamado Lampião. Numa primeira etapa, ele, Antônio, Levino e um amigo de Alagoas, Antônio Rosa, juntaram-se ao grupo de Antônio Porcino, e ao lado dele tiveram o primeiro confronto com cem homens da Polícia, a 22 de junho de 1921, perto da cidade de Espírito Santo. Quanto a Antônio Matildes, já velho, preferira fugir para a Paraíba, onde viveu em paz seus últimos anos.
Antonio Porcino morreu em outro choque com a polícia, dois meses depois. Mas, a esta altura, já os irmãos Ferreira estavam incorporados ao grupo de Sebastião Pereira. Sucederam-se os encontros com tropas estaduais. Num deles, Lampião e Pereira, acompanhados de nove homens, furaram um cerco de 128 soldados. Em outro, Lampião deixou cair o chapéu e, quando se voltou para apanhá-lo, levou um tiro na virilha e outro no ombro. Socorrido pelo irmão, Levino, e pelo chefe do bando, Sebastião Pereira, recuperou-se em apenas três semanas.
Sinhô Pereira, às instâncias de Padim Cícero, estava para deixar o cangaço: preparava-se para, junto com Luís Padre, ir viver em Goiás. Lampião juntou os remanescentes do bando e assumiu o comando. Sua fama era apenas local até que, a 26 de junho de 1922, assaltou a casa da baronesa de Água Branca, a viúva Joaquim Antônio Siqueira Torres, cujos filhos, influentes na política local, haviam participado da perseguição à família Ferreira. O grupo de 50 homens chegou ao povoado, onde havia apenas dois soldados, invadiu a casa (lá estavam a velha senhora, de 90 anos, e uma ama também idosa) e roubou tudo: dinheiro, ouro, jóias (até o colar que a dona da casa tinha no pescoço), roupas e objetos domésticos. Uns dez dias depois, chegava o reforço policial de 40 soldados, comandados por um tenente. A 8 de julho, essa força, a que se somavam outro tanto de voluntários civis, foi batida em combate, com três mortos e dois feridos. O Diário de Pernambuco de 29 de agosto de 1922, noticiando o fato, destacava a figura de Lampião, “um dos piores facínoras do interior de Alagoas”.
A 15 de agosto de 1922, Lampião e dois de seu bando depararam Manoel Cipriano de Souza numa estrada deserta. Perguntaram pelo seu nome, mandaram-no desmontar e pediram-lhe todo seu dinheiro. Manoel conhecia Virgulino e começou a suplicar por misericórdia. Inutilmente. Então Lampião lhe disse:
Sim. Agora você conhece Lampião. Foi você quem indicou onde meu pai estava para o matarem. Portanto, agora você é quem paga.
Deu-lhe três tiros, convidou os colegas a atirarem no cadáver. Depois, saquearam a casa do falecido, sem tocar em seu filho, que estava lá.
Outro caso parecido aconteceu em outubro. A Polícia do Ceará, a mando de um chefe político muito conhecido de Pernambuco, Coronel Luís Gonzaga de Souza Ferraz, saqueou a fazenda de Ioiô Moroto, amigo de Sebastião Pereira e de Lampião, insultando-o e maltratando as mulheres da família. Em revide, Lampião e Moroto, à frente de 60 homens, atacaram Belmonte, a cidade de Gonzaga em 1922, cercaram a casa do chefe político, sustentaram um tiroteio de quatro a cinco horas e saquearam seu armazém. Gonzaga foi morto. Mais tarde, para livrar-se do processo, Moroto mudou-se para Inhamuns, no Ceará, buscando a proteção da casa dos Feitosa, que tinham tradição no ramo: já em 1905, abrigaram pessoas da família de Antônio Silvino, perseguidas pela polícia.
No começo de 1923, Virgulino e 15 de seus homens assistiam ao casamento de uma prima dele, em Nazaré (a mesma cidade de onde José Ferreira fora expulso, sob pressão de José Saturnino e dos Nogueira) quando chegou uma tropa de polícia. O cangaceiro retirou-se a rogo do Padre José Kehrle, que tratara do ferimento de seu irmão Levino, anos antes. O incidente agravou as desavenças entre Lampião e os grupos dominantes de Nazaré: algumas dezenas de jagunços da cidade dedicariam a vida a persegui-lo e uns 15 morreriam em suas mãos, nos anos subseqüentes.
Nos últimos meses de 1923 e primeiros de 1924, Lampião estabeleceu-se na cidadezinha de Patos, perto de Princesa, quase na divisa entre Paraíba e Pernambuco. Era protegido pelo Coronel Marçal Diniz, que conhecia desde o tempo de Sebastião Pereira e cujo filho, Marcolino Pereira Diniz, era seu amigo. Quando Marcolino, alcoólatra e brigão, matou a tiros um juiz no meio da rua, a 30 de dezembro, Lampião exigiu e obteve sua libertação, à frente de 80 cangaceiros.
Virgulino ganhou outro inimigo de morte no começo de 1924, quando atacou, por motivo desconhecido, a fazenda de Clementino Furtado, em Santa Cruz, na comarca de Triunfo. Em dois combates sucessivos, morreram um sobrinho, dois irmãos e alguns empregados de Clementino que, disposto a vingar-se, viajou para a Paraíba e se alistou na polícia estadual como sargento. Seu apelido era Quelé. Em março, um destacamento policial sob o comando do Major Teófanes Torres, famoso por ter capturado Antônio Silvino em meados da década de 1910, travou combate com o grupo de Lampião em Vila Bela e o deixou muito ferido. A estratégia dos cangaceiros fez que eles se dispersassem quando a luta lhes pareceu desfavorável; com isso, Virgulino ficou sozinho, escondido atrás de um tronco de árvore, com um revólver na mão e um ferimento no pé. Os dias se passaram. O irmão, Antônio, que o procurava, foi também ferido pela Polícia. Ninguém aparecia, não havia comida e o ferimento infeccionara. Só doze dias depois uma mulher passou pelo local e socorreu o ferido. Levado para Patos, junto com Antônio, ele levou meses para se recuperar.
O bando, porém, continuava agindo. Em julho, acompanhados por Sabino Gomes, guarda-costas de Marcolino Diniz, perto de 70 cangaceiros atacaram a cidade de Gomes. Estavam a serviço de Chico Pereira, cujo pai fora assassinado há três anos, e pretendiam, além do saque, matar um certo Otávio Mariz, homem influente na cidade. Dia 26, as linhas telefônicas foram cortadas. Na madrugada de 27, a operação começou, precedida por um acordo com o destacamento policial de dez homens para que não interferisse. Foram atacadas dez casas de moradia e três de comércio. O juiz da comarca, de quem o cangaceiro Paizinho tinha queixas particulares, foi obrigado a desfilar pela cidade de camisola e, afinal, libertado mediante resgate. Nos dias seguintes, mais duas povoações foram atacadas.
A participação dos homens de Lampião nesta ofensiva causou-lhe problemas em Princesa. Virgulino enfrentou a polícia (matou um soldado e feriu outro) e andou desaparecido por alguns meses. Só no começo de 1925 o bando reapareceu na cidade de Custódia, no caminho de Alagoas: esteve lá dois dias, fez compras, pagou e foi embora. Algum tempo depois, em Pariconhas, Alagoas, ele se limitou a exigir dos comerciantes que lhe dessem roupas e dinheiro. Tentou o mesmo em Mata Grande, mas foi repelido pelas armas, com a perda de um homem e a morte de dois outros. Um combate mais sério aconteceria na Fazenda Serrote Preto, na fronteira de Pernambuco, quando forças policiais da Paraíba e de Pernambuco se aliaram para cercar os cangaceiros. Numa primeira parte do cerco, morreram um oficial e alguns soldados; mais tarde, demonstrando seu talento estratégico, Lampião dispôs seus homens de tal forma que a Polícia ficou sob fogo cruzado: oficialmente, houve 12 mortos e muitos feridos graves, entre os militares.
No começo de julho de 1925, Levino morreu em combate com forças comandadas pelo Sargento José Guedes, da polícia da Paraíba. Lampião cortou a cabeça do irmão, para que seus inimigos não o identificassem. A mesma volante de José Guedes cairia numa emboscada armada pelos cangaceiros, em setembro. Logo depois, houve o ataque aos povoados de Caboré e Alagoa de Serrote, com sete mortos entre a população civil: eram todos suspeitos de estarem ajudando a polícia.
Lampião reapareceu em outubro, no Cariri, Ceará. Num dia de feira, em Cariri, chegou com 37 homens a uma vila de comarca de Mauriti e deixou boa impressão, comprando e pagando pelas mercadorias. Prometeu agir certo, ali; afinal, era o território de Padim Cícero e também área de influência de um poderoso aliado, o Coronel Isaías Arruda, ele próprio chefe de terrível grupo de jagunços.
A 23 de fevereiro de 1926, quando já estava em curso a negociação para incorporá-lo às tropas que supostamente enfrentariam a Coluna Prestes, Lampião atacou Serra Vermelha e lá conseguiu matar um dos tradicionais inimigos de sua família, José Nogueira, cunhado de José Saturnino. Depois de avisar à viúva de Nogueira que saísse de casa, os cangaceiros atearam fogo.
OS ANOS MAIS VIOLENTOS DO CANGACEIRO LAMPIÃO
Billy Jaynes Chandler (The bandit king, Lampião of Brazil), a quem se deve o maior número das informações reunidas neste capítulo, é um brazilianist típico. À semelhança de muitos outros pesquisadores norte-americanos recentemente dedicados à história brasileira, esse doutor pela Universidade da Flórida tem o mérito de investigar na fonte e respeitar os fatos; por isso, escolhemos em geral sua versão para os episódios controversos da vida do cangaceiro.
Quanto à interpretação histórica, no entanto, Chandler sofre uma deformação também comum em seus conterrâneos. Seu livro procura negar ao banditismo rural o caráter de protesto social contra a pobreza e a injustiça da sociedade sertaneja. Prefere localizar a questão na inexistência de lei e ordem nos sertões, como se não fosse isso uma face da injustiça social. Na verdade, seu conceito de lei e de ordem se refere, sobretudo, à fragilidade da estrutura policial e à fragmentação do poder, a nível municipal e distrital, nas mãos dos senhores de terra.
O que se pode dizer sobre isso? Certamente, que o protesto numa sociedade encontra as formas possíveis, e o banditismo era, na época, uma forma possível. Central ou local, o arbítrio do poder gerou, senão o banditismo dos sertões, pelo menos a vocação popular de ver nos cangaceiros uma espécie de heróis, coisa que escapa do padrão de análise modesto de Chandler. Ele se preocupa, por exemplo, em mostrar que os cangaceiros cometiam violências e agiam não só por motivos legítimos (a vingança), mas também para roubar e saquear. Acusação estranha para ser feita nesta época de terrorismo e seqüestros, tidos e havidos como forma de luta política.
A consciência de Lampião quanto aos problemas sociais era evidentemente estreita. A revolta, nele, não é um ato de consciência, mas de intuição, submetida aos padrões culturais do homem sertanejo, às noções de lealdade e família próprias da servidão rural. Mas a estratégia do cangaceiro teve lampejos de genialidade: Chandler observa com desprezo que ele freqüentemente fugia ao combate e só ordenava o ataque quando a vitória era muito provável. Por isto mesmo ensinaria a fazer Mao Tse-Tung, em seus clássicos mandamentos para a guerrilha contra os japoneses – sem que ninguém se atreva a chamá-lo de covarde.
Tudo que dissemos sobre os pontos de vista do Professor Chandler, no entanto, valoriza uma análise sua, no livro sobre Lampião. Ele não é imparcial, é contra; ainda assim, admite que Virgulino estava orgulhoso se sua patente e disposto a se regenerar – o que quer que isso signifique no quadro nordestino – após seu encontro com Padre Cícero Romão Batista e sua mobilização para a luta contra a Coluna Prestes. Nos dias em que esteve em Juazeiro do Norte, orgulhoso e satisfeito, Lampião se deixou fotografar ao lado de vários de seus parentes; seus colegas de cangaço exibiam-se pela rua, cantando seus feitos:
As moças de Vila Bela
São pobres, mas tem ação
Passam o dia na janela
Namorando Lampião
As razões de não ter chegado ao fim esse namoro de Lampião com a lei e a ordem são bastante curiosas. Mesmo depois de ter sua patente desrespeitada pela polícia de Pernambuco, Virgulino encaminhou a Juazeiro dois rebeldes da Coluna Prestes que capturara – na verdade, desertores que se haviam juntado ao grupo revolucionário no Piauí e o haviam abandonado perto do Rio São Francisco. Retornou ao Ceará, entrou na cidade de Jardim, perto de Juazeiro, como homem de bem e importância. Queria expor seu problema ao Padre Cícero – mas este não o recebeu.
O primeiro encontro com Lampião havia custado a Cícero Romão Batista, então com 82 anos, uma série de críticas, que se tornaram mais mordazes tão logo se constatou que a Coluna Prestes não iria atacar Juazeiro. Acusavam-no de acoitar cangaceiros e estimular o banditismo – a ele, que fizera Sinhô Pereira deixar o cangaço e conseguira do mesmo Lampião a promessa de “se retirar do Nordeste para ir viver, honestamente, afastado de seus inimigos”, tão logo se encerrasse o episódio da Coluna. Virgulino cumprira a palavra: de 8 de março de 1926, quando falou com o Padim, até 8 de abril, quando este se recusou a recebê-lo pela segunda vez, portou-se como um militar disciplinado e cavalheiresco. O não em resposta ao pedido do cangaceiro terá pesado no passivo das culpas do velho sacerdote perante seu Deus: ao dizê-lo, condenou Virgulino a voltar ao cangaço e abriu novo capítulo de violências e mortes que afetariam milhares de pessoas. E nem por isso Lampião, magoado, perdeu seu respeito e admiração pelo taumaturgo.
O Capitão Virgulino Ferreira da Silva, agora bandido sem remédio, atacou o povoado de Algodões a 20 de abril de 1926 e armou uma emboscada a um comboio de caminhões de soldados, na estrada para Recife. Num povoado próximo, matou um delegado: estava em guerra com a polícia de Pernambuco. A 6 de junho, o bando atacou a fazenda de Caraíbas, incendiando capela, depósitos, casas de moradores. O proprietário, José Vicente – pessoa ligada às famílias poderosas de Água Branca, Alagoas, que tanto haviam perseguido a família Ferreira – foi levado como refém. Os muitos homens reunidos na fazenda (era dia feriado) ficaram de cuecas; tudo lhes foi tomado. Antes de receber o resgate de José Vicente, Lampião fez outro prisioneiro, irmão do Coronel Ulisses Luna (novamente cobrou resgate, sempre na quantia padrão de 18 mil contos, ou Cr$ 600 mil atuais) e atacou uma loja em Inhapú. Pouco depois da libertação de José Vicente, houve o seqüestro de Adolfo Meira, gerente da filial da Standard Oil Company em Maceió. Este afinal terminou sendo solto, já que a burocracia para obter dinheiro da empresa era muito complicada, e o êxito duvidoso.
Tudo isso aconteceu no caminho da localidade natal de Vila Bela, para onde o cangaceiro retornava, frustradas as boas intenções que o haviam levado a Juazeiro. A 29 de julho, matou um soldado. Depois, em Serra Vermelha, conseguiu ferir Raimundo Nogueira (filho de José Nogueira e também seu inimigo jurado), durante um combate de quatro horas. Na luta, restou morta uma jovem de 14 anos.
Em São Francisco, Virgulino deixou-se enganar por um intrigante, Horácio Novaes. A amizade com a família Novaes tinha raízes remotas, mas se reforçara com a atitude de Emílio Novaes que, indignado com a violência de uma volante de polícia contra a população de São Francisco, largara fazenda e negócios para juntar-se ao bando. O próprio Lampião, juntando-se aos parentes, convenceu-o a voltar, mas ficou certamente lisonjeado com a solidariedade demonstrada. Daí ter dado ouvidos a Horácio, um ladrão de cavalos que, pelo prestígio do sobrenome, insinuou-se junto ao chefe dos cangaceiros. Para levar Lampião a atacar a família Gilo, de inimigos seus, Horácio forjou uma carta insultuosa. A 28 de agosto de 1926, Lampião e Horácio, à frente de uns 90 cangaceiros, abriram fogo contra a casa dos Gilo, que resistiram como podiam. Ao fim da luta, restava um homem vivo, exatamente o chefe da família, para quem Lampião leu a carta. O velho negou que a tivesse escrito, explicou que era analfabeto e, antes que pudesse dizer qualquer coisa mais, Horácio prostou-o com um tiro. Neste incidente da Fazenda Tapera haviam morrido 13 pessoas, entre as quais um soldado que apareceu no lugar. Da família Gilo escapou apenas uma mulher e um menino que tinha ido ao Ceará. Lampião expulsou Horácio do bando, mas o crime – injustificável pelo código de honra do sertão – afetou bastante o prestígio de Virgulino Ferreira da Silva junto ao povo dos Estados de Pernambuco e Alagoas.
José Saturnino e Manuel Neto, de Nazaré, ocupavam-se então de perseguir o bando de Lampião. Em meados de setembro, num combate numa fazenda de Floresta, o cangaceiro foi ferido no peito e se recuperou na Fazenda Poço do Ferro, pertencente ao Coronel Ângelo da Gia, que o acoitara. Em 28 de novembro, o mesmo Manuel Neto ficou ferido naquele que foi um dos maiores êxitos de Lampião. Seus cem cangaceiros tiveram que enfrentar, perto da Serra Grande, a 25 quilômetros de Vila Bela, um total de 295 soldados, comandado pelo caçador de bandidos (que também lhes vendia munições) Teófanes Torres. Morreram dez soldados e 12 foram feridos pelas balas dos homens de Lampião, entrincheirados por detrás de irregularidades do terreno pedregoso. Pouco tempo depois, uma espingarda disparou acidentalmente, na Fazenda Poço do Ferro, e matou Antônio, irmão de Virgulino que, a partir de então, deixou crescer os cabelos.
A batalha de Serra Grande foi presenciada por Pedro Paulo Mineiro Dias, empregado da Standard Oil que lampião seqüestrara dias antes. A megalomania de Lampião estava no auge: através de Dias, ele fez chegar ao Presidente de Pernambuco carta propondo a divisão do Estado em dois, ficando o sertão sob o comando dele, Capitão Virgulino.
A resposta foi um encontro de chefes de Polícia do Nordeste, em Recife, do qual resultou um acordo permitindo às volantes de um estado operarem no território do outro – arma de dois gumes, porque a violência policial, exacerbada fora da jurisdição de cada unidade, sempre foi um fator de solidariedade das populações rurais com Lampião. O chefe de Polícia de Pernambuco, Eurico de Souza Leal, prendeu centenas de agricultores pobres (com os ricos ele simplesmente negociava), acusando-os de terem protegido Lampião, de lhe prestarem ajuda com informações ou, simplesmente, de lhe terem dado, certa vez, um copo d’água. Como sempre acontece nesses casos, a repressão resultou na coleta pela Polícia de farto suborno, arrancado da população sob ameaça.
Os parentes de Lampião – seus irmãos, sobrinhos, primos – passaram a ser perseguidos por todo o Nordeste. Alguns, trazidos do Piauí, foram colocados sob regime de trabalhos forçados pelo Major Teófanes. João, o penúltimo dos irmãos Ferreira, passou ano e meio preso e foi várias vezes ameaçado de morte até que o júri de Água Branca o absolveu. Tropeiro como o pai, Ezequiel, revoltado com a perseguição e com a perda de meios de sobrevivência, procurou Virgulino e juntou-se ao cangaço.
Diante da perseguição, Lampião fracionou seu bando em grupos menores, que atacavam simultaneamente em diferentes locais e logo voltavam a se reunir. No começo de 1927, deslocava-se continuamente sob perseguição conjunta de tropas de Pernambuco, Alagoas, Paraíba, Bahia e Sergipe. Em junho, o Major Teófanes distribuiu aos jornais uma lista de cem cangaceiros que teriam sido mortos; Souza Leal espalhava falsas notícias de que o bando se fragmentara e Lampião, faminto, vagava sozinho pedindo comida pelas fazendas. Quase ao mesmo tempo em que essas coisas saíam no , jornal, Virgulino convidava o Chefe de Polícia de Aurora, no Ceará, para visitar seu acampamento, onde a autoridade contou 123 homens.
As declarações bombásticas das autoridades escondiam negócios por debaixo do pano. Ao ser preso (e pouco antes de ser assassinado pela Polícia potiguar, que, para poupar trabalho, levou-o ao cemitério de Mossoró e lá o executou), o cangaceiro Jararaca contou que o Major Teófanes, além de fornecer armas a Lampião, tinha com ele um acordo, pelo qual suas propriedades jamais seriam atacadas. A operação Mossoró, um dos raros fracassos militares de Virgulino, resultou da iniciativa de um chefe político do Cariri, Coronel Isaías Arruda, que forneceu ao cangaceiro contingentes suplementares e toda sorte de recursos, incluindo armas que haviam sido levadas para a região para os batalhões patrióticos, quando da ameaça da Coluna Prestes. A 9 de julho de 1927, Lampião deixou seu acampamento em Aurora, comarca controlada por Isaías Arruda, e, acompanhado de algumas dezenas de homens – algo entre 60 e 150 - atravessou a Paraíba até a divisa com o Rio Grande do Norte. De passagem, seqüestrou uma rica senhora, Maria José Lopes, e um fazendeiro, o Coronel Antônio Gurgel. A cidade de Mossoró, no entanto, avisada a tempo preparou-se para a luta, mobilizando algumas centenas de soldados e moradores.
E, embora tenha perdido poucos homens – constatou-se a morte de três e um deles foi Jararaca -, Lampião não conseguiu o que pretendia, um fabuloso botim de quinhentos contos de réis em dinheiro.
O ataque a Mossoró, cidade relativamente grande, estava de fato além da capacidade do bando de Lampião: ele só poderia ter êxito se agisse de surpresa, e isso não aconteceu, até mesmo porque os cangaceiros, seguindo uma técnica que dava certo em outros lugares, tentaram obter o dinheiro mediante ameaças ao prefeito, que com isso teve tempo de organizar a resistência.
Por essa época, Virgulino fizera um acordo com o Governo do Ceará pelo qual não seria hostilizado em território cearense. Por isso, no dia 15 entrou em Limoeiro do Norte, a uns 70 quilômetros de Mossoró, levando seus reféns: o contingente de polícia se afastou e os chefes políticos mandaram matar um boi. O bando entrou na cidade dando vivas ao Ceará, ao Governador Moreira da Rocha e ao Padre Cícero. Distribuiu lembranças entre os moradores, fez compras nas lojas, recebeu de presente dois mil contos de réis e se deixou fotografar. Uma volante policial que entrou na cidade no dia seguinte, pelo contrário, espancou moradores e causou distúrbios. Ponto para Lampião.
Uma tropa com soldados do Rio Grande do Norte, da Paraíba e alguns cearenses – 500 homens ao todo – conseguiu tocaiar o bando. Não feriu ninguém, mas tomou montarias e provisões dos cangaceiros. Num segundo ataque, dias depois, os policiais, embora enfrentassem um grupo pequeno de homens, quase sem munição, famintos e a pé, conseguiram ser derrotados, com muitas perdas. É que o talentoso Virgulino cessou o fogo em dado momento e atacou maciçamente quando a tropa avançou, deixando suas trincheiras. Assim foi a Batalha de Macambira, segundo o relato insuspeito do fazendeiro Gurgel e de D. Maria, que continuavam prisioneiros do Capitão Virgulino. Ambos foram libertados logo depois, e ainda receberam dinheiro para a viagem de volta. D. Maria contou que os cangaceiros a tratavam com consideração e carinho pelos seus 63 anos, e cuidavam que nada lhe faltasse, apesar das dificuldades sofridas pelo grupo entre o primeiro e o segundo combates com a Polícia.
No início de julho, estavam os cangaceiros de volta a Aurora e aos braços protetores do Coronel Isaías Arruda. Mas o fazendeiro preparara-se para traí-los, negociando com o Major Moisés de Figueiredo, comandante cearense das unidades policiais derrotadas em Macambira (a polícia cearense, pressionada pelos Estados vizinhos, voltara a combater Virgulino). Envenenaram a comida de um almoço a que Lampião e seu bando deveriam comparecer, no dia 7 de julho, e cercaram a casa com 15 soldados e cem jagunços do coronel (estes em maioria porque seriam menos notados pelos olheiros).
Acontece que os cangaceiros, por precaução, não comiam todos ao mesmo tempo, nem ingeriam grandes porções de cada vez. Por precaução, os chefes comiam por último – e isto os salvou. Ao notar os primeiros sinais de intoxicação em alguns de seus homens, o Capitão Virgulino atacou seus anfitriões. Ouvindo os tiros, os jagunços atearam fogo no mato que circundava a casa. Mas, ainda assim, todos os cangaceiros puseram-se a salvo, embora doentes com vômitos e diarréia. No dia seguinte, Isaías Arruda era morto a tiros num trem que, vindo do Crato, ia para Fortaleza.
A Polícia, desmoralizada e corrupta, recorria a comunicados bombásticos para afirmar que Lampião estava desmoralizado, sozinho, fraco, que sua captura era iminente. É difícil medir a pressão policial diante do sistema de compromissos familiares e de acordos de contingência que a todos envolvia – autoridades e cangaceiros. Sabe-se, porém que, no final de janeiro de 1928, o Chefe de Polícia de Pernambuco, Souza Leal, viajou a Vila Bela, onde Lampião estaria cercado. Deveria passar pela localidade de Custódia, mas os próprios policiais aconselharam-no a tomar outro caminho. Pois exatamente nesse dia, Custódia foi assaltada por Lampião e seu bando, que roubaram correspondência de carteiros, saquearam dois comboios de mercadorias (gêneros alimentícios e forragem) e seguiram para a fronteira da Paraíba.
No Cariri, Ceará, em 27 de março, os cangaceiros tiveram um longo combate com a Polícia, no qual morreu Sabino Gomes, homem de confiança de Lampião. Em maio, o bando agia na região de Água Branca. Em junho, na fronteira de Alagoas e Pernambuco. Em julho, assaltou dois caminhões. Em agosto, entrou na vila de Entre Montes, Alagoas, à beira do São Francisco. Os cangaceiros compraram mantimentos e pagaram com generosidade. Ali perto, chegaram a dar alguns tiros contra um barco cheio de policiais e só não deram início a uma matança porque souberam que os militares a bordo eram de Sergipe, estado que jamais os hostilizara; com efeito, lá estava o próprio chefe de polícia sergipano. A 21 de agosto de 1929, Lampião, seu irmão Ezequiel (Ponta Fina), seu cunhado Virgínio (Moderno), Luís Pedro Mariano e Mergulhão atravessaram o São Francisco, entrando em território baiano. A Polícia insistia em sua afirmativa: estariam “sujos, magros, exaustos, mais mortos do que vivos”.
Iriam, pois, renascer.
LAMPIÃO QUERIA PAZ, MAS TUDO QUE HAVIA ERA GUERRA
A versão policial é de que Lampião cruzara o São Francisco fugindo do cerco das volantes de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Ceará. Lampião mesmo disse, em Entre Montes, que iria cruzar o rio em busca de paz: como antigo tropeiro, ele conhecia o sertão baiano, lá mesmo onde o Conselheiro resistira ao Exército na sua cidadela de Canudos, 30 anos antes.
Na verdade, tinha na Bahia amigos, hospedeiros, protetores. Entre os primeiros, o cangaceiro Antônio de Engracia, que logo se juntaria a seu bando; entre os hospedeiros e protetores, os chefes políticos Horácio de Matos, de Lavras Diamantina, e Petronilo Reis, de Santo Antônio da Glória. E a própria polícia pernambucana – Manuel Neto e seus soldados de Nazaré – contribui para dar algum tempo de paz a Lampião quando, depois de entrar na Bahia sem licença, invadiu a fazenda de Petronilo, Várzea de Ema, e seviciou um vaqueiro para obter dele informações. A vítima foi levada a Salvador, entrevistada pela A Tarde, em 8 de setembro de 1928, e, em decorrência do escândalo, as autoridades baianas exigiram de Pernambuco que retirasse os soldados de seu território.
Nos primeiros meses Lampião se comportava na Bahia como pródigo turista. Em setembro, distribuiu dinheiro entre os pobres do Barro Vermelho e Patamuté, passeando de automóvel com motorista e ajudante. Convidado para as festas de casamento, doava às noivas os vestidos. Miguel Feitosa conta que Virgulino bebeu com um contingente de em soldados em Canché e deu um rifle a um deles. A 16 de dezembro, visitou a cidade de Pombal. Recebido pelo prefeito, que o convidou para o almoço, deixou a cidade num automóvel que lhe foi gentilmente cedido e com escolta de um cabo do destacamento local de quatro homens. Por essa mesma época, em Jeremoabo, fez amizade com o latifundiário João Sá, o político mais influente do nordeste baiano.
Tal como acontecera antes no Ceará, o namoro com a população rural baiana cedo terminou, por causa da intervenção das volantes policiais. No final de dezembro e no início de janeiro, a tropa do Capitão Hercílio Rocha tentou por duas vezes cercar e matar os cangaceiros. Perdeu quatro soldados, dois em cada encontro. No segundo deles, em Abóboras, ao norte da cidade de Bonfim, o bando de Lampião foi surpreendido durante uma festa e escapou graças à coragem de Cristino Gomes da Silva, que seria conhecido como Corisco ou Diabo Louro; ele garantiu, atirando, a retirada dos demais. Mergulhão foi ferido e morreu dias depois.
O Capitão Virgulino visitou, então, a cidade de Carira, em Sergipe. Jantou com o chefe de polícia, Dionísio dos Santos, cumprimentou os dois únicos soldados que não haviam fugido, afirmando que eles honravam a profissão, e visitou vários moradores, acompanhado por uma multidão de curiosos. Ao povo, explicou que só se tornara cangaceiro em face da perseguição movida a seu pai. Pela madrugado o bando deixou a cidade, que duas horas depois seria cercada por uma volante baiana, que para isso invadira o território de Sergipe. Na República Velha, em que a autonomia dos estados era muito respeitada, isto significa uma violação grave.
De volta à Bahia, saqueou casas ricas da vila de Pedra Branca, no município de Juazeiro, levando objetos de ouro e prata. De novo em Sergipe, esteve em Canindé e Poço Redondo, onde assistiu à missa. A 4 de julho, na vila de Brejões, quatro soldados e um cabo baianos foram mortos pelo bando: perseguiam alguns fugitivos da cadeia de Bonfim que supostamente pretendiam juntar-se aos cangaceiros. O Capitão Virgulino estava disposto a interromper a construção da estrada entre Juazeiro e Santo Antônio da Glória, através do Raso da Catarina (um deserto cogitado, em 1981, como local de depósito de resíduos nucleares), porque lhe atrapalhava os movimentos: em agosto ele o conseguiu pela primeira vez simplesmente enviando recado ao oficial responsável, Coronel Ademiro Gomes dos Santos; os trabalhadores, cientes da notícia, fugiram. Na visita a Itumirim, em julho, ele pôs fogo na estação da estrada de ferro (mandando o agente, antes, retirar seus pertences do prédio) e visitou a escola, dando tal susto na professora que ela pediu férias e foi para Salvador contar o caso aos jornais. Queixou-se de que Lampião era menos bonito que nas fotografias e precisava tomar banho.
Homem estranho, Lampião. A 17 de setembro, em Riacho Seco, no município de Curaçá, saqueou casas de comércio e distribuiu os gêneros entre os sertanejos. Em outubro, atacou as obras reiniciadas da rodovia Juazeiro – Santo Antônio da Glória, e matou nove trabalhadores. De volta a Sergipe, fez uma visita triunfal ao município de Capela, a 40 quilômetros de Aracajú, a 25 de novembro. Os cangaceiros chegaram em quatro automóveis e, recebidos pelo prefeito (que mandara os policiais não aparecerem em público, para evitar conflitos), ocuparam o posto telefônico, a central telefônica, a estação da estrada de ferro e receberam uma contribuição de seis contos de réis: inicialmente pretendiam o triplo mas, como a região estava em seca há três anos, mostraram-se compreensivos quanto ao abatimento. O telegrafista, que estava no cinema, foi chamado na sala de exibição, o que forçou a interrupção do filme. Depois disso, o bando passou a percorrer as lojas, onde fez compras. Lampião comprou jóias, uma pistola e recebeu de um comerciante, como presente, o livro A vida de Jesus. O vigário local os visitou, deu-lhes a bênção e recomendou que deixassem a vida de crimes. Jantaram no hotel, Virgulino tentou inutilmente uma ligação telefônica com o Chefe da Polícia do Estado e, afinal, partiram todos de automóvel.
Mas a aparente contradição desses atos se esclarece, de certo ponto de vista, ao considerarmos uma declaração que Lampião fez ao sargento Evaristo Carlos da Costa, na cidade de Queimados, a 60 quilômetros de Bonfim, na Bahia, atacada pelo bando em 22 de dezembro de 1920. Afirmou-lhe Virgulino que estava em guerra com a polícia da Bahia desde a morte de Abóboras, seu amigo: a seu ver se matasse todos os soldados baianos, nem assim a conta estaria saldada. Para a lógica sertaneja, em que Lampião nasceu e se criou, isto faz pleno sentido.
Os cangaceiros chegaram a Queimados viajando num bote. Os nove homens do destacamento foram dominados facilmente, presos na cadeia (de onde os invasores libertaram seis detentos) e, ao fim da tarde, fuzilados, um a um, na porta da delegacia. Só o sargento foi poupado: uma mulher fez um apelo a Lampião e ele, considerando alguns aspectos do caso (o militar, protestante, não bebia, não dançava, era um crente, algo misterioso naqueles sertões), decidiu ouvi-la. No mais, a visita seguiu o padrão habitual: os cangaceiros levaram 23 contos de réis como donativo compulsório, fizeram despesas – pagando – na mercearia de Umbelino Santana, jantaram no hotel e festejaram com moças do lugar, todas tratadas com muito respeito. Uma recomendação foi sintomática: Lampião pediu moças modestas. Não gostava de grã-finas.
No Natal de 1929, o bando combateu com os soldados do contingente de Mirandalea, a 70 quilômetros de Queimados; no dia seguinte, ameaçou a cidade de Tucano, mas não chegou a invadi-la. O estado de espírito de Lampião ficou gravado numa parede da sala do hotel de Queimados. Em bilhete ao governador, anunciava que, apesar da perseguição policial, estava mais gordo e pensava em se casar. Assinava: “Seu superior, Capitão Virgulino Ferreira, Lampião”.
O casamento, de fato, veio, sem as pompas da igreja, um ano depois. Em Jeremoabo, Lampião conheceu Maria Neném, esposa de um sapateiro que, por não se dar bem com o marido, vivia na casa dos pais. Amaram-se até a morte. Naquela época, Maria Bonita tinha 20 anos e Lampião 33.
A REPÚBLICA DOS TENENTES CONTRA O REI DO CANGAÇO
No final de março de 1930, os cangaceiros armaram uma emboscada para uma volante de Polícia comandada pelo Tenente Odonel Silva, na fazenda Favelas, perto de Juazeiro. Os soldados foram salvos pela chegada de outro contingente de Polícia, atraído pelo tiroteio. Um militar morreu e outro ficou seriamente ferido.
No final de julho, o bando realizou saques em Pinhão, no Sergipe. Uma semana depois, um grupo, sob o comando de Corisco, ocupou a plantação de cana de Calumby, perto de Capela, e manteve alguns reféns enquanto o dono, Luís Matos, ia à cidade buscar dez contos de réis. Quando Matos voltou, acompanhado de policiais, na manhã seguinte, os cangaceiros se retiraram. Haviam tratado bem os prisioneiros e até aconselhado a dona da casa a retirar as crianças porque havia perigo de Luís Matos trazer a Polícia.
A 31 de julho, outra volante, comandada pelo Tenente Geminiano José dos Santos, foi alertada pela passagem do bando de Lampião pelo balneário de Cipó, na véspera (o lugar estava cheio de hóspedes, mas não foi atacado), e se dispôs a seguir a trilha dos cangaceiros. Em Mandacaru, foi apanhada sob tiro cruzado. O comandante, seu auxiliar imediato e três outros soldados foram mortos, cinco ficaram feridos e o restante debandou. Para vingar-se do que haviam feito com o corpo de Gavião, Lampião decolou e esfaqueou os cadáveres. Gavião, logo após o incidente de Queimados, morrera numa briga com um vaqueiro; os policiais descobriram onde estava enterrado, cortaram a cabeça do corpo em decomposição e a levaram para o Instituto Nina Rodrigues, de Salvador, onde um grupo de pesquisadores aplicava-se no estudo das teorias já velhas de Lombroso, segundo as quais o caráter criminoso de um homem estaria impresso em sua conformação física.
Em outubro-novembro de 1930 estourou a revolução. Uma das primeiras conseqüências foi a retirada das forças policiais para as cidades mais importantes, o que representou uma trégua breve, porém bem aproveitada por Lampião. Atravessou o São Francisco e, operando em Pernambuco e Alagoas, invadiu o município de Floresta, onde matou dois homens, um soldado de Nazaré e um delegado, além de seqüestrar um fazendeiro e receber o resgate de um conto de réis. No município de Águas Belas, seqüestrou o Coronel João Nunes, antigo Chefe de Polícia de Pernambuco pretendendo cobrar por ele 15 contos de réis; simpatizou, porém, com o homem e terminou por libertá-lo.
Uma ordem do Governo Revolucionário para o desarmamento da população civil foi fielmente cumprida no que se refere aos sertanejos em geral, mas não atingiu os coronéis que, por toda parte, negociavam com Lampião. O chefe de Polícia nomeado para o Nordeste, o ex-Tenente Juarez Távora, cuidou de reorganizar as operações contra o cangaço, enfrentando, de início, um grave problema estratégico. Tratava-se de uma luta de guerrilhas, algo muito diferente de uma campanha regular; na sua experiência de combate aos cangaceiros, os volantes haviam adotado não só o modo de vestir do inimigo mas até uma autonomia de ação incompatíveis com o sentimento de Távora, que sempre foi um homem rígido, pouco dado à criatividade.
No Rio de Janeiro, pensou-se em utilizar aviões e policiais cariocas para uma ação contra o rei do cangaço. O Capitão Carlos Chevalier, aviador no estilo dos ases da Primeira Guerra Mundial e que obtinha na época grande êxito mundano, seria o chefe da campanha, que só não se realizou, alegadamente, por falta de verbas. A decisão contrária partiu de Juarez Távora; é possível que ele já tivesse então compreendido que a iniciativa fracassaria inevitavelmente.
Em setembro, tomou posse o interventor da Revolução na Bahia, Juraci Magalhães – o mesmo homem que, décadas depois, se tornaria célebre por uma declaração: “o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”. Na época, suas preocupações quanto ao bem e ao mal se limitavam a fatos mais concretos, e Lampião era um deles. Cuidou o interventor de obter 400 contos de réis do Governo Federal para financiar a operação contra o cangaço. Para isso, contou ao Presidente Vargas, com toda probabilidade de exagero, o que Corisco fizera ao Delegado Herculano Borges, da Vila de Santa Rosa, na região de Bonfim. O delegado era um velho inimigo de Corisco, e o responsável por seu ingresso no cangaço: quando o cangaceiro era apenas um feirante, ele tentou extorquir-lhe impostos excessivos e, repelido, tratou de prendê-lo e humilhá-lo. Pois bem: a 22 de setembro de 1931, aconteceu de Herculano Borges ser capturado pelo mesmo Corisco, que o pendurou pelos pés numa vara e o teria esfolado vivo, arrancando-lhe a pele. Pelo menos foi o que Juraci mandou dizer a Getúlio, que rapidamente soltou o dinheiro.
O Governo baiano tratou de gastar rapidamente o dinheiro federal. O Secretário de Segurança, Capitão João Faço, anunciou uma operação conjunta com as polícias da Paraíba, Pernambuco, Alagoas e Sergipe, baseada na comunicação pelo rádio: a tecnologia contra o cangaço, mais ou menos no estilo da extinta operação aérea de Chevalier. Ao nível da realidade, Lampião via-se às voltas com a traição de Petronilo Reis, que tão bem o recebera na chegada à Bahia. Sem que se saiba bem o motivo, o chefe político de Santo Antônio da Glória passou a cooperar com a polícia e, dessa cooperação, resultou a captura de alguns cangaceiros, afora um incidente grave: a morte de Ezequiel, irmão mais novo de Virgulino, no encontro com uma volante, no dia 24 de abril de 1931.
A vingança de Lampião foi terrível. Várzea da Ema, um dos povoados de Petronilo, foi arrasada a 8 de maio; o ódio se estendia aos empregados, ao gado, aos prédios, a tudo que estivesse ligado ao coronel. Em poucos meses, este perderia quase toda sua influência. Seus campos ficaram quase abandonados, porque não havia quem quisesse trabalhar para ele. Nem a polícia, temerosa (em Várzea da Ema foram mortos dois soldados), se dispôs a protegê-lo.
A vasta operação armada em Salvador, sob o comando do Capitão João Facó e do Coronel João Félix, com a presença de um correspondente de guerra do Diário da Noite, do Rio de Janeiro, conseguiu apenas localizar um dos esconderijos do bando de Virgulino, no Raso da Catarina. As reportagens acrescentaram às lendas sertanejas sobre Lampião outro enfoque que refletia o espírito cosmopolita dos diários cariocas – o que hoje chamaríamos de mitologia da comunicação de massa. O fato de os cangaceiros estarem acompanhados de suas mulheres, vestidas e armadas como eles (embora poupadas, em geral, nos combates), ganhou significação especial na cobertura do Diário da Noite porque coincidia com reportagens internacionais sobre as sufragistas, na Europa e nos Estados Unidos, e com destaque atribuído às estrelas na ficção cinematográfica. Aqui mesmo, no Brasil, as mulheres estavam em vias de obter o direito de voto.
Na época, Maria Bonita estava grávida. A filha do Capitão Virgulino, Expedita Ferreira da Silva, nasceu em 1932 e foi criada por um casal sertanejo. Após o assassinato dos pais, em 1938, a polícia seqüestrou a criança, mas o tio, João Ferreira, conseguiu na justiça sua guarda e a criou em Propriá.
No começo de janeiro, em Maranduba, na divisa de Sergipe e Bahia, um contingente policial comandado pelo Tenente Liberato de Carvalho e do qual participava Manuel Neto manteve combate com os cangaceiros, com superioridade numérica de três por um. Ainda assim, morreram cinco soldados na hora, talvez dez mais tarde, em conseqüência dos ferimentos. Supõe-se que dois cangaceiros tenham morrido; um terceiro, agonizante, teria sido sacrificado por Lampião. Bananeira, a quem Volta Seca recusou-se a ceder o cavalo, também ficou machucado, viajou à procura de um médico e foi preso em Alagoas.
A recusa de Volta Seca em dividir a montaria com o colega ferido custou-lhe a expulsão do bando. Menino pobre que ingressara no cangaço quatro anos antes, quando tinha presumivelmente 12 anos, Volta Seca não demorou a ser preso pela polícia. Submetido a toda sorte de explorações, terminou condenado a 145 anos de prisão (embora fosse menor, ao ser preso). Cumpriu 20 anos e foi perdoado, em 1954, por Getúlio Vargas. Seu nome de batismo era Antônio dos Santos; há várias boas entrevistas dele publicadas em jornais dos últimos 50 anos.
Além da Revolução Constitucionalista, de São Paulo, em julho de 1932, outra circunstância prejudicou o bom curso da campanha contra os cangaceiros: a seca abateu-se sobre o sertão nordestino. Ao lado desse flagelo, agravou-se outro. Com extrema voracidade, a polícia cuidou de perseguir os suspeitos de protegerem Lampião – isto é, todos os sertanejos. As volantes percorriam as vilas prendendo, espancando, incendiando, violentando as mulheres, extorquindo dinheiro de pessoas que mal tinham com que comer, roubando cavalos e jumentos. Um fazendeiro de Sergipe, João de Andrade, resumia a situação, em carta de 1930: “Pode acreditar que hoje, no sertão, já se tem mais a alegria quando Lampião chega à porta do que à simples notícia de que as forças se aproximam”. E esse quadro agravou-se terrivelmente em 32, quando o Governo Juraci Magalhães executou um dos projetos mais brutais da história das violências contra o povo do sertão.
A idéia partiu do Capitão João Miguel, oficial que comandava as operações contra os cangaceiros: constava de expulsar de suas casas todos os sertanejos, reunindo-os nas cidades maiores da região. Milhares de pessoas foram levadas para Bonfim, Juazeiro, Uauá, Jeremoabo e lá concentradas, sem casa, sem meio de subsistência, sem auxílio governamental. Ameaçadas por um aparato repressivo sem precedentes, limitavam-se a pedir esmolas, amontoadas nos adros das igrejas – único lugar de onde não eram retiradas à força. A periferia das cidades era vigiada e o deslocamento de camponeses dependia de salvo-conduto das autoridades, que cobravam por ele. Nas vilas abandonadas – e sujeitas ao saque da polícia – cartazes em que ninguém ousaria crer asseguravam a vida de cangaceiros que se entregassem. O gado morria nos campos, sem vaqueiros que cuidassem dele e sem água nas cacimbas. Quando, em outubro, diante da catástrofe econômica, o plano foi abrandado, permitindo-se a concentração de camponeses nas vilas menores e em algumas fazendas, unidades policiais foram deslocadas para esses pontos. O sertão baiano sob seca era um vazio geográfico pontilhado de campos de concentração.
A solução adotada por Juraci Magalhães não poderia sobreviver num ano de chuvas, como foi o de 1933. Tão logo a seca acabou, a pressão dos sertanejos para retornar a suas terras a tempo do plantio pôs fim ao esvaziamento dos campos, imaginado para isolar Lampião. O Capitão João Miguel foi substituído no comando das operações pelo Tenente-Coronel Liberato de Carvalho, que amargara o desastre de Maranduva. O fracasso dos planos oficiais foi mascarado através de uma intensa campanha de propaganda, apoiada, sobretudo, no episódio da rendição de um cangaceiro chamado Esperança, que se entregou às autoridades dizendo pertencer ao bando de Lampião. Em abril, no Rio de Janeiro, o Chefe de Polícia João Facó declarou, numa entrevista à imprensa (uma das inovações da Revolução de 30 foi o uso, mais freqüente e coordenado, dos jornais e do rádio para a divulgação oficial, mentirosa ou verdadeira), que os homens do Capitão Virgulino eram poucos, estavam sem munição e em breve seriam presos.
Ridículo. Em junho, os cangaceiros invadiram a cidade de Olivares, no São Francisco, saquearam as lojas, recolheram, em dinheiro, 70 contos de réis e, depois, lavaram seus cavalos no rio, perfumando-os com essências apanhadas na farmácia local. Quando a polícia chegou, seis dias depois, foi recebida por uma emboscada, na qual morreram dois soldados. Um mês mais tarde, os policiais tentaram envenenar os cangaceiros misturando estricnina com a farinha de mandioca que eles deveriam consumir na fazenda Pouso Alegre. Ninguém do grupo de Lampião tocou na farinha envenenada e a missão policial que deveria recolher os cadáveres encontrou pela frente a resistência do bando. Um soldado morreu. Em outubro, na fazenda Lagoa do Lino, as tropas do governo mostraram o que gostariam de fazer com Lampião: no ataque a um grupo de cangaceiros comandados por Azulão, na fazenda Lagoa do Lino, em Monte Alegre, os policiais conseguiram matar quatro homens e uma mulher, cujas cabeças foram cortadas e levadas para exibição pública, no Instituto Nina Rodrigues, em Salvador. Milhares de pessoas formavam fila para ver os troféus.
O FIM: EM NOME DA LEI, VIOLAM-SE OS CADÁVERES
A polícia baiana tinha pouco de se orgulhar. Logo no início de 1934, o governo de Sergipe reclamou das violências cometidas no território do estado pela volante baiana comandada pelo sargento Odilon Flor, um dos jagunços de Nazaré que se alistara para participar da caçada a Lampião. Em abril, em Paripiranga, perto da divisa de Sergipe, mais uma vez a polícia tentou envenenar Lampião e novamente falhou. Os cangaceiros, avisados da presença da volante, armaram uma emboscada e um sargento morreu.
Virgulino, por essa época, permanecia quase todo o tempo em Sergipe, onde contava com o amparo das famílias Brito e Carvalho. Com a reconstitucionalização, em 1934, um dos Carvalho, Eronildes, capitão do Exército, médico e que pelo menos uma vez , trocara presentes com Lampião (deu-lhe uma caixa de munição para uma pistola privativa das forças armadas), foi eleito governador do estado. Em 1937, quando se implantou o Estado Novo, Getúlio Vargas o escolheu para interventor.
Grupos de cangaceiros chefiados por Ângelo Roque, Mariano, Corisco, Cirilo de Engracia e Jurema atuavam, porém, em Alagoas e Bahia. Em meados de 1935, depois de uma longa estada em Alagoas, Lampião voltou a Pernambuco e chegou a estar sitiado na cidade de Serrinha. Fugiu, porém, levando duas mulheres feridas: para isso, escalou escarpas íngremes e fez seus homens calçarem as sandálias ao contrário, para iludir os rastreadores. Uma reunião dos chefes de polícia nordestinos colocou novamente as tropas que perseguiam os cangaceiros sob comando unificado do coronel Liberato de Carvalho, chefe de polícia da Bahia, mas o objetivo, ainda dessa vez, parece ter sido obter dinheiro do governo federal. Como o Senado recusou a dotação de 200 contos de réis, a medida não teve conseqüências práticas.
Em luta com sertanejos e não com a polícia, cinco cangaceiros morreram em Mata Grande (Cirilo de Engracia, Suspeita, Medalha, Limoeiro e Fortaleza). Em fevereiro de 1936, enquanto os bandos de Mariano e Corisco agiam na Bahia, Lampião prendeu alguns escoteiros venezuelanos, que faziam longa caminhada a pé. Por causa da roupa cáqui, que lembrava o uniforme da polícia (os policiais eram chamados de macacos ou amarelos por todo o sertão), os venezuelanos tiveram que tomar café com sal, água com pimenta e só a muito custo foram libertados, sem os odiados uniformes. Pouco depois, as operações concentraram-se em Pernambuco e Paraíba, onde, na região de Monteiro, foram mortas nove pessoas. Em junho, os jagunços do alcagüete Antônio de Chiquinha, na comarca de Frei Paulo, Sergipe, mataram quatro cangaceiros, entre eles José Bahiano, num ataque à traição (atacaram de surpresa, durante um encontro amistoso). Antônio de Chiquinha, que logo se engajaria na polícia, roubou dos cangaceiros, entre outras coisas, uma preciosa arca incrustada de ouro e prata, que Lampião dera a Bahiano. Em setembro, num combate também com jagunços na cidade de Piranhas, morreu Gato. Mariano, outro cangaceiro, morreu em Sergipe, perto de Porto da Folha, em combate contra a volante baiana de José Rufino.
No último ano de vida de Lampião, ele esteve menos ativo do que em outras épocas. Em Angicos, onde a volante o surpreendeu dormindo, na madrugada de 28 de julho de 1938, havia até uma máquina de costura, em que Maria Bonita trabalhava. Quarenta cangaceiros escaparam, mas entre os mortos estavam Lampião e Maria Bonita. Um soldado morreu. Os corpos foram mutilados e saqueados. A mão de Luís Pedro foi cortada, para que dela, depois, com calma, um soldado pudesse arrancar os anéis. Policiais abriram as pernas do cadáver de Maria Bonita e enfiaram um pau em sua vagina.
Eram a lei e a ordem finalmente vitoriosas.
VIDAS CERCADAS DE LENDAS, DE CASOS, DE CANTORIAS
Virgulino Ferreira da Silva era um homem destemido, tranqüilo e frio, e de pontaria certeira, embora o defeito numa das vistas – ele usava óculos com vidros esfumaçados, engastados em tartaruga e ouro, com o fim de encobrir um extenso leucoma da córnea do olho direito, segundo a descrição de Otacílio Macedo.
Nos municípios de Triunfo, Flores e Vila Velha, em Pernambuco, e Princesa, na Paraíba, os assaltos eram coisas de rotina. Em Serra Grande, município de Flores, Lampião derrotou, de uma só vez, 300 soldados da polícia pernambucana. – e ele só dispunha de 50 homens armados, que após a batalha cantavam:
“É lampe, é lampe, é lampe,
É Lampião...”
Ou ainda:
“Olé, mulher rendeira,
Olé, mulher renda,
Tu me ensina a fazer renda,
Que eu te ensino a namorar...
Lampião desceu a serra...”
Aos poucos, na terra em transe do Nordeste, compunha-se um imenso repertório de histórias de Lampião e seu bando. Dizia-se por exemplo, que ao chegar certa vez a um povoado no interior de Pernambuco, o bandoleiro procurou um turco, que costumava acoitá-lo, e que era proprietário de uma vendinha. Lampião aproximou-se e perguntou:
- Tem macaco (polícia) por aqui, compadre?
Ao que o turco, um caráter torpe, respondeu, tentando liquidar uma sua concorrente no comércio de secos e molhados:
- Não, Capitão, aqui não tem macaco. Mas tem uma velha ali (e apontou na direção da loja, de onde, pela porta entreaberta, a velha olhava na direção de Lampião) que é amiga dos macacos...
Lampião virou-se na direção da velha, que, atemorizada, fechou a porta. O cangaceiro dirigiu-se para lá, bateu na porta e, quando a velha o atendeu, pediu-lhe um alicate. A mulher entrou e, minutos depois, voltava com a ferramenta. Ao que Lampião ordenou a um dos seus sequazes: “Arranca a língua dessa velha, que ela é muito faladeira!”.
Em 1922, entretanto, o nome de Virgulino passou a ser associado a façanhas que se tornariam famosas. Nesse ano, assaltou a cidade de Belmonte, PE, com a finalidade de assassinar o prefeito Luiz Gonzaga, perseguidor de pessoas humildes, segundo chegara ao conhecimento do bandido. Gonzaga, apavorado, escondeu-se no sótão de sua casa, de onde caiu, fraturando o crânio. Lampião queimou o cadáver que lhe pareceu “um leitão sendo assado na brasa” – e arrancou-lhe um anel de platina, cravejado de brilhantes, com o qual passou a unir as pontas do lenço que trazia sempre ao pescoço. Desse episódio sangrento originou-se mais uma canção folclórica:
A aliança de Gonzaga
Custou contos de réis.
Lampião botou no dedo
Sem custar nenhum de-réis.
É lampe, é lampe, é lampe,
É Virgulino Lampião.
É um dedo amulegando
E rolando pelo chão...
O dedo de Gonzaga rolou pelo chão porque Lampião o cortou para mais facilmente arrancar a aliança.
A ferocidade de Virgulino Ferreira da Silva fascinava os coronéis, que passaram a aliciá-lo através de múltiplas ofertas: dinheiro, jóias, alimentos e principalmente proteção. Em troca, Lampião deveria eliminar pessoas que atrapalhavam os planos desses chefetes políticos do interior. Nessa linha de empreitadas, por exemplo, Lampião fez o famoso ataque à fazenda de Clementino Furtado, no município de Triunfo, PE, sem que a polícia, reunida a uma légua de distância da casa, interviesse.
Coronéis do sertão criavam todas as facilidades para Lampião e seu bando. Após ter passado longas férias a povoação de Patos, no município de Princesa, PB – onde chegou a instalar por longo tempo seu QG, sob a proteção de um filho de influente coronel -, Lampião desfechou o ataque a Souza, onde fez grande pilhagem em dinheiro e jóias. Em seu retorno, não encontrou o mesmo apoio de seus protetores, o que o obrigou a procurar outros coiteiros. Segundo alguns historiadores, Lampião fizera-se ainda mais selvagem após o malogro do ataque à fazenda de Clementino Furtado, o Quelé. O fracasso do bandoleiro chegou a ser glosado em versos:
Lampião banca valente,
É mentira, é corredor...
Ta andando de tamanca,
Seu Quelé foi quem botou.
Tamanca é um instrumento de madeira que os vaqueiros colocam na perna dianteira dos bois velhacos, para impedi-los de correr muito.
Essas piadas enfureciam Lampião, que, um dia, ao amanhecer, invadiu a estação telegráfica de Pedra de Fogo, PE. Ali trabalhava e morava um homem que se gabava de não temer Lampião e que afirmava que, se este lhe aparecesse pela frente, “lhe arrancaria o coração perverso com a ponta da lambedeira”. Ao romper da aurora, o bando de Lampião chegava a Pedra de Fogo para tirar aquela história a limpo. O bando surgiu cantando mulher rendeira e lembrando uma proeza do velho cangaceiro Luís Padre:
O riacho do Cipó
Já encheu e já secou
A mulher de seu Osório
Luís Padre carregou.
Emídio Grande – assim se chamava o fanfarrão – viu logo de quem se tratava e pôs-se em fuga. E com ele todos os soldados do destacamento, deixando a cidade à mercê de Lampião, que a saqueou como quis. Dias depois, a 30 de janeiro de 1925, Lampião deu nova prova de sua audácia. Chegou ao povoado de Custódia, PE, e procurou a estação telegráfica, de onde expediu um telegrama para o governador do estado. E não pagou, dizendo ao telegrafista apavorado: “Moço, esse telegrama é do governo. O telegrama vai para o governo. Assim, fica tudo em casa”. Lampião permaneceu na vila, sem ser molestado. Comeu e bebeu à vontade, com todo o bando, e ainda mandou um alfaiate fazer-lhe um terno para a manhã do dia seguinte, pagando a conta civilizadamente. Ao sair de Custódia, atacou uma fazenda, a cinco léguas da vila, matando o proprietário.
Por essa época, os governos de Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Ceará já haviam organizado suas forças para perseguir Lampião numa estratégia conjunta. Mas Lampião sempre conseguia escapar às volantes, pois conhecia muito bem os sertões e era um estrategista invencível nas guerrilhas. Afora isso, era apoiado por vasta rede de informantes e coiteiros.
Não se deve subestimar a inteligência do bandido, como assinala Rodrigues de Carvalho no livro Serrote Preto:
Mas Lampião – oh, matuto infernal a despeito de quase analfabeto! – era dotado de agudíssima inteligência e de uma agilidade de raciocínio de fazer inveja a muita gente cheia de bordados e gemadas. Foi um gênio militar que se perdeu neste país onde as vocações não têm vez. Em se tratando de estratégias, a polícia sempre ficou lhe restando. Os seus estratagemas, traçados e executados num ápice, eram verdadeiros lances de enxadrista, tinham precisão matemática. E essa precisão com que quase sempre atingia o objetivo, tanto nos ataques como nas fintas, negaças e escapulas empreendidas, tinha qualquer coisa de diabólico. As artimanhas com que muitas vezes conseguia sair-se airosamente de situações deveras embaraçosas eram verdadeiros ovos de Colombo, que decerto deviam deixar muito oficial, que tinha a si próprio na conta de ladino, roído de inveja.
Uma prova dessa habilidade de Lampião vamos encontrar no verão de 1925. Naquele ano, o bandoleiro viu-se cercado na Serra do Saco, na entrada de Vila Bela, pela polícia paraibana, que há quase uma semana seguia os cangaceiros. Acreditavam os oficiais paraibanos que Lampião pretendia assaltar a cidade, pelo que pediram o apoio do major Teófanes Torres, comandante-geral das forças volantes do interior de Pernambuco. Embora com atraso, fechou-se o cerco contra o bando. Lampião parecia encurralado num beco sem saída. Na realidade, havia uma saída: pelo riacho que cortava o centro da cidade. E foi por aí – por onde ninguém poderia supor que ele escapasse – que justamente Lampião logrou fugir. Apurou-se mais tarde que Lampião não queria assaltar a cidade, mas comprar munições – justamente nas mãos do major Teófanes Torres, seu abastecedor habitual. Pois a polícia tinha, à época, reunidos nas volantes, alguns dos seus elementos mais corruptos. A revelação surgiu de forma inesperada, quando do depoimento de Cação, do bando de Lampião. Interrogado na Penitenciária de Recife sobre a procedência das armas usadas por Lampião, Cação perguntou ao tenente que colhia as suas declarações:
- O senhor conhece o Major Teófanes?
- Naturalmente. É o nosso comandante.
- Então – como é que o senhor, conhecendo ele, pode fazer uma pergunta besta dessas?
Fatos dessa natureza levaram muitos pesquisadores a indagar: quem foi pior – Lampião ou os policiais engajados na perseguição ao seu bando? Realmente, a resposta é difícil.
Ivan Alves entrevistou, em 1958, no vigésimo aniversário da chacina de Angicos, o Major José Bezerra, da Força Pública de Alagoas. A impressão que lhe ficou, no curso da entrevista obtida em Maceió, é que Bezerra era, no mínimo, um homem tão duro quanto Lampião. Ele esforçou-se por mostrar Lampião como facínora, mas não soube explicar bem porque autorizara seus soldados a cortar as cabeças de Lampião e seus seguidores na Grota dos Angicos.
O tratamento que as polícias de Pernambuco e Alagoas dispensavam às populações interioranas era inqualificável, segundo o testemunho de Rodrigues de Carvalho, em Serrote Preto. Eram espancamentos e torturas que não raro transformavam as vítimas, ressentidas, em cangaceiros. Em 1919, na cidade alagoana de Mata Grande, havia um destacamento constituído de uns 20 arruaceiros comandado por um certo Tenente Agripino e no qual servia um negro, o Jagunço, que se tornou famoso por suas arbitrariedades. Certo dia, Jagunço provocou Lampião numa feira, chamando-o de saboga de bexifa – saboga é o mesmo que cafajeste. Lampião replicou e Jagunço avançou contra ele com um punhal. Lampião pegou uma tíbia quebrada ao meio, que estava no setor de venda de carnes, e com ela golpeou violentamente o provocador, que caiu desfalecido ao chão. Quanto ao Tenente Agripino, acabou abatido a tiros por um homem a quem infligira graves humilhações.
De fato, o sertanejo comum tinha na polícia e no cangaceiro dois inimigos. Se escapava de um, certamente não escaparia de outro. Por tudo isso, Lampião tornou-se menos odiado do que os policiais que o perseguiam. “Lampião era o povo na sua amarga represália, na sua réplica sangrenta, no seu desafio secular ao poder e exploração desumana”, escreveu Nertan Macedo, numa síntese do pensamento de muitos nordestinos.
Para essa legenda colaboraram muito os cantadores, que foram os maiores biógrafos do bandoleiro. Zambelê, que pertenceu ao bando de Virgulino e cumpriu pena na Casa de Detenção de Pernambuco, cantou o carisma de seu antigo chefe em versos antológicos (ao som da música de Mulher rendeira, que os discos e o cinema iriam popularizar, a partir do filme Os Cangaceiros, de Lima Barreto, em meados da década de 50):
Lampião subiu a serra,
Lampião desceu ladeira.
Procurou mulher bonita,
Cantando mulher rendeira.
Lampião quando desceu
Do sertão para a Matinha,
Foi no chouto americano,
No galope almofadinha.
A polícia de Pernambuco
Fareja como urubú,
Procurando Lampião
Nas águas do Pajeú.
Onde Lampião habita
Os bichos ficam valentes:
Macaco briga de foice,
Carneiro fica insolente.
As moças de Custódia
São feias, mas têm ação:
Botam queijo e rapadura
No embornal de Lampião.
Minha mãe me dê dinheiro
Pra comprar um cinturão,
Pra viver de cartucheira
No grupo de Lampião.
Em 1938, quando Lampião foi exterminado – sua cabeça, como a de Maria Bonita e dos demais bandoleiros, ficou exposta durante longos decênios no Instituto Nina Rodrigues, em Salvador – o jornalista Melquíades da Rocha, autor de Bandoleiros das Caatingas, perguntou a Antônio Silvino, famoso ex-chefe de bando, se, com a morte de Virgulino Ferreira da Silva, o banditismo acabaria no Nordeste. Ele respondeu:
Isto não acaba assim. O rifle não concerta nada. Morreu Lampião, outros Lampiões aparecerão. E o mundo por aqui, pelo Nordeste, continuará girando até que a justiça bata às portas do sertão.
Silvino estava certo: a Cipriano de Queirós, sucedera Adolfo, o Meia-Noite; a este, Silvino Aires; a Silvino, Manuel Batista de Morais, que, por seu turno, cedera lugar a Sinhô Pereira, que passou a Lampião, na Fazenda Preá, no interior de Pernambuco. E a Lampião sucedeu Cristino Gomes da Silva, o Corisco ou Diabo Louro. Seu tema: vingar Lampião, pelo que assumiu a chefia de um dos grupos sobreviventes da tragédia de Angicos.
Todos esses homens se revoltaram contra a sociedade porque dela foram expulsos pelo desemprego, pela barbárie policial e por outras causas sócio-econômicas. Naqueles sertões – onde Lampião era rei absoluto, onde desafiou a Cia. Souza Cruz e a Standard Oil, prendendo dois de seus representantes em Pernambuco -, só os parentes dos coronéis, do coletor federal, do prefeito municipal e do senhor-de-engenho tinham acesso aos padrões e benefícios da civilização. Como ainda hoje ocorre, as grandes massas de sertanejos moravam em casebres miseráveis, comiam no máximo farinha e rapadura e nunca viram abrir-se uma escola para seus filhos atacados pelas verminoses e doenças endêmicas. No dia 26 de março de 1920, Horácio de Matos, famoso chefe sertanejo de Lençóis, BA, escreveu, em carta ao Presidente Epitácio Pessoa:
Desde muito tempo que o povo sofre a luta sem o amparo da Justiça. Toda a vasta zona sertaneja do centro-oeste do Estado apresenta, hoje, um aspecto lúgubre, da mais profunda desolação. As populações vão-se, aos poucos, abandonando as terras, procurando abrigo longe, nos Estados vizinhos. E a miséria e a fome ficam dizimando os que não puderam fugir. Em nome, pois, de milhares de homens que querem trabalhar, eu peço a Vossa Excelência foices, enxadas, machados, auxílios de toda natureza para transformar este deserto de hoje em vastos campos cultivados, fazendo a felicidade de muitas centenas de famílias que atualmente vivem na mais negra miséria.
Apesar de tudo isso, o nordestino resiste – resiste à fome, às doenças, à criminalidade, à terra incultivável, à falta de quaisquer perspectivas sociais, econômicas, financeiras ou educacionais. Enfrenta a seca. Como escreveu Euclides da Cunha em Os Sertões: “Passam-se os meses. Acaba o flagelo. Ei-lo (o nordestino) de volta. Vence a saudade do Sertão. Remigra”.
Hoje, a todos esses fatores negativos soma-se a incursão das multinacionais, como informa a escritora Edyla Mangabeira Unger em O Sertão do Velho Chico:
Há hectares e hectares de terra, no Médio São Francisco, comprados por investidores estrangeiros, que as mandam cercar sem cultivá-las, por vezes, na esperança de que um dia venham a valorizar-se.
Depondo na Comissão Permanente de Inquérito constituída pela Assembléia Legislativa da Bahia para apurar violências contra posseiros, Dom Jairo Rui Matos Silva, Bispo da Diocese de Bonfim, disse, a 1º de setembro de 1977, que ouviu de um colono, cuja casa fora derrubada: “Não vivo de esmola. Só como o que eu ganhar com o suor do meu rosto”. Outro lavrador, ao lhe serem lembrados os sofrimentos de Cristo, respondeu: “É. Mas ele juntou seus amigos para a Última Ceia antes de morrer. E eu não estou a fim de ser crucificado de barriga vazia”.
Há, assim, uma reação latente, desviada, contida, contra o multissecular estado de miséria em que vive o sertanejo – assalariado, peão, diarista, posseiro, minifundiário. Escreve Edyla Unger:
Nas cidades do Sertão não há política. Persiste a politicagem dirigida pelos grupos poderosos ligados aos grandes latifúndios que dominam e controlam os raros eleitores na periferia das áreas urbanas. E assim, como sempre acontece, apóia-se o sistema em suas maiores vítimas, por serem essas as mais desinformadas e incapazes, portanto, de distinguir seus algozes dos que lhes defendem os interesses.
Nertan Macedo – ele próprio, um cearense, que renunciou a uma brilhante carreira jornalística no Rio de Janeiro para voltar aos seus penates (para usar uma clássica expressão antiga) e ali assessorar o Governador Virgílio Fernandes Távora em sua primeira administração no Palácio da Luz – diz que no Nordeste sempre houve padres dedicados à pecuária e à agricultura. Eram senhores de fazenda de criação e de engenhos de fabricação de cachaça e rapadura, funcionando mais como homens da terra do que propriamente como sacerdotes. E eram chefes de famílias numerosas – o Padre José Martiniano de Alencar, por exemplo, era pai do autor de O Guarani e As Minas de PrataJosé Martiniano de Alencar (1829-1879). Mas a sua aguardente nem sempre era apreciada:
Não bebo da aguardente
Do sítio do seu Alencar.
Só bebo da pernambucana
Que passa as ondas do mar.
Muitos se ordenavam para terem uma profissão: ”a do tabelionato dos batismos, casamentos e mortes”. Segundo Nertan Macedo, os arquivos das sacristias esclarecem bastante os anais da História do Brasil, especialmente no Norte e Nordeste.
Em 1930, quando Vargas chegou ao Poder, refundindo padrões da República Velha, muitos coronéis sentiram que definhava o seu poder político. Assim ocorreu, por exemplo, com Franklin de Albuquerque e Horácio de Matos, na Bahia. O fenômeno se estendeu à parte política da Igreja: no Ceará, o todo-poderoso Cícero Romão Batista, já quase nonagenário, viu seu candidato à assembléia Constituinte de 1933 ser derrotado. Já então Cícero Romão Batista não tinha ao seu lado a figura de Floro Bartolomeu, seu conselheiro para assuntos de urnas e sacristias. Mas Padim Cícero era derrotado principalmente na sua condição de coronel da política provinciana. Devia dedicar seus últimos dias de vida à rememoração do seu período de glória política e religiosa, como revelam as pesquisas de Nertan Macedo:
O Padre Cícero seria também um rapadureiro dos mais opulentos da região, possuindo, além de fazendas e propriedades, diversos engenhos moentes e correntes: Santa Rosa e Paul, no município do Crato; Rangel, no município de Santana do Cariri; Porteiras e Brejinhos, no município de Juazeiro; e ainda o Engenho Brito, no município de Barbalha.
Mas não era só o padre que arrumava bem suas finanças. Macedo nos mostra outro resultado de sua pesquisa:
Ao falecer o Padre, a sua velha governanta, uma beata mestiça, de origem humilde, ignorante, mas solerte e viva, era proprietária e uma das maiores acionistas da empresa do Matadouro Modelo e da Companhia de Luz de Juazeiro, e emprestava dinheiro a juros aos que recorriam a sua bolsa.
Essa beata – Joana Tertuliana de Jesus, a Mocinha – não deixava escapar peixe pela rede – e muito menos dinheiro. No seu livro, Mistérios do Juazeiro, Manuel Diniz, biógrafo de Cícero Romão Batista, nos conta este episódio pitoresco, que revela o grau de delinqüência e espertezas na corte do Padre:
Antes de 1924, quando ele (o Padre) ainda enxergava, e fazia práticas dentro de sua casa aos romeiros, de quem recebia cartas com dinheiro, deu-se que uma beata que se achava perto dele, numa sala onde o povo se acotovelava, viu-o receber uma carta com dinheiro, segundo declaração do seu portador. Achou a tal beata que era momento azado para tirar a carta do bolso externo da batina do padre, e enquanto ele falava aos presentes, zás... meteu a mão no aludido bolso. Ele, que estava dizendo que quem matou não mate mais, etc., disse, segurando a mão da beata já no bolso da batina: “quem furtou, não furte mais, porque todo ladrão é filho legítimo de Satanás”. A beata ficou com a cara mexendo, como se diz na gíria sertaneja, e diversos do auditório ficaram escandalizados ou sorriam discretamente. (...) Por um verdadeiro milagre, não houve lutas e até mortes dentro da casa do Patriarca, por causa de dinheiro e cartas com dinheiro que traziam para o Padre. O bom do velhinho, em tais casos, apenas pronunciava algumas palavras que mal serviam para passageiramente pôr termo à vergonheira de tal quilate.
No pique da exploração da borracha, os seringalistas amazonenses saíam de Manaus e davam esmolas de 10 a 20 contos de réis – uma verdadeira fortuna, para a época – para “as caridades do padre”. Dos pobres, Cícero Romão Batista recebia dias de trabalho em suas terras. Cada um dava o que podia – mas tinha que dar.
Um dos erros capitais foi o apoio dado às beatas que o cercavam. Por isso, o bispo o proibiu de ministrar os sacramentos na Freguesia de Juazeiros, exceto em caso de morte. Essa exceção criou uma prática curiosa: tudo passou a ser in extremis em Juazeiro. Os meninos eram batizados porque estavam agonizantes e não podiam morrer pagãos e a Santa Eucaristia era dada pelo mesmo motivo. Nem mesmo a Santa Missa Cícero Romão Batista podia celebrar dentro dos limites do município, pelo que fez construir a igreja do Horto, fora da zona proibida; mas o Bispo Diocesano também a interditou, ante o rumor das feitiçarias atribuídas ao padre. Entre essas feitiçarias, a mais escandalosa foi a das hóstias ensangüentadas. Um dia, uma mulher, ao tomar a comunhão, sentiu que a hóstia se diluía em sua boca e se cobria de vermelho. Imediatamente correu por todo o Cariri e por todo Nordeste a lenda de que, na igreja de Padre Cícero, a hóstia se transformara no próprio sangue de Cristo. Era o ano de 1891. O Bispo do Ceará, Dom Joaquim José Vieira, mandou apurar o estranho fato. Em 1910 encontrou-se um livro, editado em francês, que ensinava a utilização de tinturas, e por aí se chegou ao levantamento da farsa. Em Efemérides do Cariri, Irineu Pinheiro tratou do assunto:
Era Maria de Araújo (a beata preferida de Romão Batista) parda e de condição humílima, paupérrima e iletrada. Mas, não obstante, foi ela, no seu tempo, uma das mais famosas personagens no Nordeste do Brasil, das capitais aos mais recuados sertões. Como se sabe, durante anos, no ato da comunhão, converteu-se em sangue na boca da beata a hóstia consagrada, uma vez tão abundantemente que tingiu de vermelho a murça da comungante, molhou suas vestes e caiu no piso da igreja. Em sua diocese, rendeu Dom Joaquim homenagem às virtudes do Padre, tendo-o na conta de incapaz de qualquer embuste, embora o reputasse iluso e refratário à disciplina da Santa Igreja. Outra era sua opinião sobre Maria de Araújo, numa ocasião em que ostentava ser favorecida de certa graça divina.
Na realidade, Cícero Romão Batista sabia do embuste, como ele próprio confessaria, anos mais tarde, a um amigo, justificando-se, porém: “Se eu contasse a verdade, estaria prejudicando o progresso de Juazeiro do Norte”. Para na prejudicar o avanço econômico da cidade – que, em função dos apregoados milagres, atraía levas crescentes de romeiros e curiosos vindos de todo o Nordeste -, o padre deixou que se propagasse a invencionice. Caso típico de pragmatismo.
Isso é que acabou por prejudicar Cícero Romão Batista em suas relações com o Vaticano. No entanto, à notícia de sua morte, o Nordeste assistiu às cenas mais dramáticas de angústia e inconformismo. “Sem o Padre Cícero, o que seria de Juazeiro do Norte, do Crato, do Cariri, do Ceará, do Nordeste, da Igreja e do Brasil?” – perguntou, aflito, um jornalista de Fortaleza, que vivera a mocidade na região em que o padre desenvolveu a sua carreira política e religiosa.
Aquelas multidões, que afluíam a Juazeiro do Norte em 1934, para assistir os funerais do padre, tinham razão em se considerarem órfãs: Cícero Romão Batista as aconselhava em matéria de fé, de saúde, de casamento, de compra e venda de terras, de criação dos filhos: da botica à sacristia, era ele quem dava as ordens.
Ordens havia também, por aquele tempo, no sentido de fechar o cerco contra um dos mais famosos afilhados do Padim Cícero – Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, que, com sua estratégia de guerrilha, continuava a desafiar os macacos das volantes ao longo das caatingas, serras e povoados do Nordeste. Em 1929, Lampião praticou gesto passional: em Paulo Afonso, nas margens baianas do Rio São Francisco, ele conheceu a mulher de um sapateiro e decidiu leva-la como companheira para as andanças pelos sertões.
NAS TREVAS DO CANGAÇO, O OFÍCIO DE NOSSA SENHORA
O cerco contra Lampião coincidia com o cerco ao Padre Cícero. Em discursos na Câmara Federal, a 13 de setembro de 1923, Floro Bartolomeu protestou contra o fato de alguns analistas compararem seu protetor a Antônio Conselheiro e o classificarem de embusteiro. Assim como, em outra intervenção, justificou o recurso à colaboração de cangaceiros para o êxito de suas campanhas políticas e movimentos de contestação armada: “Nesses momentos de reações armadas, quanto pior é o cidadão, tanto melhor”.
No dia 18 de fevereiro de 1966, num artigo intitulado Padre Cícero e Lampião, em O Povo, de Fortaleza, o Padre Azarias Sobreira deu depoimento elucidativo sobre as relações do patriarca do Cariri com o mais famoso cangaceiros da história do País:
Mesmo depois de criminoso, é certo que o terror dos sertões voltou a Juazeiro em visita aos referidos parentes, despercebido entre os romeiros. Teria sido numa dessas ocasiões que foi conduzido à presença do Padre Cícero, a quem tomava a bênção de joelhos e que fez quanto pôde para induzí-lo a mudar de vida. Que trocasse de nome ou fosse fixar residência na Bolívia, ou mesmo nos confins de Goiás, onde havia toda esperança de poder levar vida feliz, sem que a polícia lhe descobrisse o paradeiro. Tudo em vão. O famoso guerrilheiro alegou que mais de uma vez se deixara fotografar com seus rapazes, e tais retratos, percorrendo o Brasil, em revistas de larga divulgação, o denunciariam onde quer que procurasse viver do suor do seu rosto. O que poderia fazer – e fê-lo de verdade – era não incomodar a ninguém no território cearense, em significativa homenagem ao idolatrado padrinho. Diante de tais alegações, o Patriarca o despediu depois de o ter aconselhado a guardar religioso respeito às famílias, sobretudo aos órfãos e viúvas, e diariamente encomendar-se à proteção da SS. Virgem, derradeira tábua de salvação dos pecadores. Talvez em vista desses conselhos, Lampião não somente ficou poupando, até o fim da vida, o povo do Ceará em suas repetidas incursões neste Estado, mas também se notabilizou por duas facetas de sua atividade de homem fora-da-lei: com o dinheiro roubado fazia esmolas bem avultadas, especialmente a viúvas e donzelas de reconhecida pobreza e às caladas da noite retirava-se a um canto silencioso para, de joelhos, recitar o Ofício de Nossa Senhora, que sabia de cor. Aqui está um trecho o Ofício de devia ajustar-se-lhe perfeitamente à condição de malfeitor, infundindo-lhe na alma a esperança do perdão divino: “Rainha do céu, que a nenhum pecador desamparais, voltai para mim os olhos de vossa misericórdia e alcançai de Jesus Cristo o perdão de todos os meus pecados”.
O santo guerreiro – o Padre Cícero Romão Batista, que pegou em armas para depor Franco Rabelo – e o dragão da maldade – Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião – se davam as mãos, em nome da infinita bondade divina, que tudo perdoa, e da legalidade constitucional, que nada perdoava naquela altura do jogo político.
Pouco antes, Lampião tinha dado provas de seu talento de estrategista. No segundo semestre de 1925, o seu bando vagava pela mata que margeava a rodovia Triunfo-Vila Bela (hoje Serra Talhada, PE), quando se aproximou um automóvel – o chamado Ford de bigodes – conduzindo dois representantes das companhias Souza Cruz (à época ainda uma empresa brasileira) e Stardard Oil. Os cangaceiros surgiram de repente do interior da mata e exigiram o pagamento de uma espécie de pedágio para que pudessem prosseguir viagem. O trânsito livre custaria cinco contos de réis a cada caixeiro-viajante. Um deles possuía a quantia no bolso, mas o outro, não. Assim, um continuou viagem; Pedro Mineiro, da Standard, ficou como refém até que o primeiro viesse pagar seu tributo. O refém teve que andar com os cangaceiros durante uns três dias, ao cabo dos quais seu companheiro chegou com 150 mil réis em dinheiro e um bilhete do Prefeito de Vila Bela, Cornélio Soares, pedindo desculpas a Lampião por não lhe ser possível enviar os cinco contos exigidos para o resgate. Lampião irritou-se:
Volte com essa porcaria (o dinheiro enviado) e diga ao Cornélio que pode ficar com ela. Isso para mim não é dinheiro. E o homem vai continuar preso até eu resolver o que fazer com ele. Matar ou soltar.
Enchendo-se de brios, o Major Teófanes Torres, comandante das volantes no interior de Pernambuco, convocou as forças do Tenente Higino José Belarmino e dos sargentos Manoel Neto, José Olinda e Arlindo Rocha para dar caça aos cangaceiros. Lampião, no entanto, conhecedor profundo da região, embrenhou-se na Serra Grande e aguardou os policiais no ponto mais estratégico da tortuosa garganta da serra. Na batalha de Serra Grande, Lampião usou, talvez pela primeira vez, efeitos psicológicos: ao mesmo tempo em que atiravam, seus homens ironizavam os inimigos. Entre outras manifestações de euforia os cangaceiros armaram um forró para comemorar a vitória. O próprio Pedro Mineiro, que tocava bem violão, participou da festa. Talvez isso tenha colaborado para a simpatia que Lampião passou a lhe dedicar. Um dia, o temível cangaceiro o chamou a um canto e lhe disse:
O senhor esta livre. Pode ir para onde quiser. Não precisa me pagar nada para ir embora. Mesmo porque não troco um amigo por dinheiro nenhum do mundo. E, de agora em diante, eu o considero um amigo. Tenho observado que o senhor é um homem de bem. Eu sou apenas um cangaceiro, mas sei apreciar essas coisas. Pode ir sem medo que ninguém será besta de nem mesmo lhe tirar um cabelo das ventas.
O TRAJE DO CANGACEIRO: VINTE QUILOS DE ROUPA
Até hoje, quarenta e tantos anos depois da morte de Lampião, sua figura é lembrada – o chapéu cheio de moedas, o fuzil, o punhal. Calcula-se que cada cangaceiros carregava vinte quilos, em média, consigo. Rodrigues de Carvalho esclarece:
Os apetrechos com que os cangaceiros se equipam constituem uma carga tão pesada que, ao homem da cidade, talvez pareça duvidoso o que afirma nestas páginas. O fuzil ou rifle; um revolver ou parabelum; duas e mais cartucheiras guarnecidas; um punhal de 75 centímetros de lâmina (este era o tipo padronizado entre os cangaceiros de Lampião), quatro bornais enfeitados de galão ou sutache, contendo de trezentos a quinhentos cartuchos, dois de cada lado para equilibrar o peso. Além de tudo isso, ainda tem a imprescindível munição de boca, carne-de-sol assada, farinha, rapadura e a indefectível cabacinha d’água, para ir molhando a goela quando a sede está tinindo, especialmente nas horas de tiroteio, quando a fumaça provoca muita secura. O exagerado chapéu de couro, guarnecido de moedas de toda espécie, pesando aproximadamente um quilo, e um grande lenço de seda de cor berrante, passado no pescoço, a guisa de gravata, com um anel unindo as duas pontas, em forma de laço, eis a indumentária de um cangaceiro que se preza.
E, além da indumentária exótica e do verdadeiro arsenal ambulante, que os ajudava a destruir ou a sitiar povoações e cidades, o bando de lampião se caracterizava pelas canções – todas tendo como objeto central a própria figura do chefe. Muié rendera, Lua Nova, É lampe, é lampe, é lampe eram cantadas a céu aberto, nas caatingas ou nas serras, ao som de violões ou gaitas de boca, e se vincularam ao folclore nordestino.
A literatura de cordel contemplava abundantemente os feitos de Lampião, para alegria do bandoleiro, sempre interessado em saber o que se dizia dele – em livros artesanais vendidos nas feiras ou nos jornais. Em certo momento, ele admitiu a presença de um cineasta amador em sua intimidade para filmar os costumes do bando. E, no Rio de Janeiro, o que se convencionou chamar de grande imprensa acompanhava com alguma assiduidade os assaltos do bando. Principalmente A Noite, através de reportagens de Melquíades da Rocha, alagoano de nascimento e irmão do futuro Senador Ezequias da Rocha.
A literatura de cordel focalizou sob múltiplas formas o castigo imposto a Zé-Calu, um fazendeiro radicado a uma légua da cidade de Flores, à margem direita do Rio Pajéu. Zé-Calu era acusado de manter relações incestuosas com as filhas. Isso irritou profundamente Lampião. Sob os gritos de sua vítima, o bandoleiro amarrou-a pelos testículos, fazendo-o ficar de cabeça para baixo, até que ele entrasse em estado de coma. Então o abandonou.
Sabe-se que Zé-Calu conseguiu sobreviver pouco tempo à tortura e que chegou a procurar o Padre Cícero, em Juazeiro, para obter sua cura. Mas em vão. O principal mote dos violeiros e repentistas das feiras era porém, o romance de Lampião com Maria Bonita – um mote ainda explorado mesmo depois da morte trágica de ambos, em Angicos.
ELE CHAMOU A ATENÇÃO PARA O SERTÃO ESQUECIDO
Quando terminou a I Guerra Mundial, Lampião entrava na sua guerra particular do cangaço, para a qual era empurrado pelas agruras do meio que o vira nascer e crescer. O sertão, lembrado pelos políticos apenas em função de seus interesses eleitorais, não recebia qualquer benefício do progresso.
O mundo civilizado avançava: em 1915, dois anos após Thomas Alva Édison (1847-1931) ter inventado o refrigerador, o cinema começava a falar. A aviação já existia desde 1903, com os vôos de Alberto Santos Dumont (1873-1933), e já haviam sido inventados, entre outras coisas, o aspirador elétrico (1907), a máquina de lavar elétrica (1911) e o condicionador de ar (1913). Nos anos 20, surgiram a torradeira automática (1923), a locomotiva a motor diesel (1925), o fonógrafo elétrico (1926), o tubo de imagem de televisão (1928), o barbeador elétrico, igualmente em 1928. Mas, no interior do País, 25 anos após a invenção da locomotiva elétrica, era o trem Maria Fumaça o que havia de mais moderno no transporte de passageiros: raras e pobres eram – e são – as ferrovias sertanejas.
A República Velha estertorava, mas nem sempre a opinião pública se dava conta disso. Poucos jornais noticiavam os feitos da Coluna Prestes, contra a qual se mobilizara o potencial guerreiro de Lampião. Na própria região em que explodiam as lutas do cangaço, o quadro econômico se agravava. Estávamos alijados dos mercados externos, enquanto o mercado interno não tinha condições, como acontecera com o açúcar e o algodão, para manter um nível de produção e um nível de preços que salvassem do desastre total o sistema produtor. “Assim”, diz Nélson Werneck Sodré, “as regiões produtoras desses gêneros ou matérias-primas, que não tinham perspectivas no mercado externo, ou entravam em colapso ou se tornavam dependentes de outras, as que recebiam, agora, e ampliavam as relações capitalistas”. No primeiro caso, estava a Amazônia; no segundo, a área açucareira nordestina. Passariam, esta em particular, a fornecer às zonas mais desenvolvidas matérias-primas e, sobretudo, o reforço de trabalhadores de que as áreas em desenvolvimento careciam. “É um processo interno de colonização, incluindo transferência de renda, que se agrava continuadamente, com o correr dos tempos, e chega aos nossos dias com aspectos críticos”, complementa Sodré.
O censo de 1920 anunciava a existência no País de 13.336 estabelecimentos industriais, com 275.512 operários. Na Europa, começava a reconstrução do parque fabril, enquanto os Estados Unidos processavam a reconversão de sua indústria, direcionada, nos anos 10, para as exigências da guerra. O mundo reexaminava os seus padrões industriais, artísticos e éticos. No Brasil, em 1922, instalava-se com escândalo a Semana de Arte Moderna, e Mário Raul de Morais Andrade (1893-1945) iria escandalizar, em breve, os meios literários, com a publicação, em 1926, de Macunaíma, a história de um herói sem nenhum caráter. Dois anos depois, Oswald de Andrade (1890-1953) lançaria novo movimento, a Antropofagia, onde se inscreviam as premissas básicas do Modernismo. O mundo revia posições, e com ele o Brasil.
Mas, nos sertões, o quadro era o mesmo – miséria, fome, moradias precaríssimas, seca, criminalidade social. O Brasil vivia em função de seu litoral ou das zonas industriais de São Paulo e de colonização européias do Sul do País. O Nordeste era outro País, onde o trabuco ainda era a lei e o subdesenvolvimento a regra. Lampião se tornou famoso nesse contexto, assim como o Padre Cícero Romão Batista, com suas rezas, seus falsos milagres, sua fortuna que a batina remendada não permitia supor fosse tão vultosa.
Na Europa, um país de altos índices de miséria e repressão – a Rússia dos Tzares – evoluía de suas instituições arcaicas para um regime que, sob o comando de Vladimir Ilitch Ulianov, o Lênin (1870-1924), prometia, em primeiro lugar, pão, paz e liberdade a seus habitantes. Lloyd George, estadista britânico, teve antenas sensíveis para captar as transformações. Ele disse num memorando a Londres:
A Europa está cheia de idéias revolucionárias. Um sentimento não de desânimo e sim de cólera e revolta reina no seio da classe operária contra as condições que vigoravam antes da Guerra. Todo o sistema existente, político, social e econômico, é encarado com desconfiança por toda a população da Europa.
No Brasil, também se expressavam as primeiras desconfianças da classe operária; 1922, ano da Exposição do Centenário e da Semana de Arte Moderna, via surgir o Partido Comunista, que pretendia incorporar esses descontentamentos na primeira etapa de seu posterior desencadeamento revolucionário. Mas, insista-se, o Nordeste era o mesmo, aparentemente impermeável a esses avanços, paralisado pelo subdesenvolvimento e pela ignorância. E pior: pela insensibilidade de seus quadros dirigentes, que, no passado oitocentista e setecentista, haviam sufocado em repressões sangrentas os seus projetos libertários e de correção das injustiças políticas e sociais.
Quando perguntaram ao Padre Cícero porque não mandava prender Lampião, que transitava livremente em seu município entre 800 homens armados, Romão Batista explicou:
Não, meu amiguinho! Lampião procurou o Juazeiro com intuitos patrióticos; ele pretende se alistar nas forças legais para dar combate aos revoltosos (da Coluna Prestes). Uma vez, vitorioso, espero que o governo lhe perdoe os crimes. Este homem, que veio ao Juazeiro confiar em minha proteção, pretende se regenerar. Se não for possível alistá-lo nas forças legais, eu o encaminharei para Goiás, onde levará vida honesta, como já fiz com o Sinhô Pereira e Luís Padre. Está mais ou menos demonstrado que os governos de Pernambuco e Paraíba não conseguirão prender Lampião, entregando seu bando à Justiça. O povo é sempre prejudicado nessas coisas: é vítima de Lampião e muitas vezes da polícia também... Este estado de coisas pode ser modificado facilmente: - eu consigo que Lampião se vá embora para muito longe e, assim, ficaremos livres dele. Porém, mandar prendê-lo, aqui em Juazeiro, nestas circunstâncias?! – seria um ato de revoltante traição, indigno de qualquer homem, quanto mais de um sacerdote católico.
Quanto a Lampião, na entrevista dada ao jornal O Ceará, mostrou toda a sua ingenuidade, fazendo ao repórter Otacílio Macedo uma apologia do amor a todos os homens, exceto os da polícia:
Gosto geralmente de todas as classes. Aprecio de preferência as classes trabalhadoras – agricultores, fazendeiros, comerciantes, etc., por serem homens de trabalho. Tenho veneração e respeito pelos padres, porque sou católico. Sou amigo dos telegrafistas porque alguns já me têm salvado de grandes perigos. Acato os juízes porque são os homens da lei e não atiram em ninguém. Só uma classe eu detesto, é a dos soldados, que são os meus constantes perseguidores. Reconheço que muitas vezes eles me perseguem porque são sujeitos e é justamente por isso que ainda poupo alguns quando os encontro fora da luta.
No início da entrevista, travou-se o seguinte diálogo entre Lampião e o jornalista cearense:
- Que idade tem?
- Vinte e sete anos.
- Há quanto tempo está nesta vida?
- Há nove anos, desde 1917, quando me ajuntei ao grupo de Sinhô Pereira.
- Não pretende abandonar a profissão?
- Se o senhor estiver em um negócio e for se dando bem com ele, pensará porventura em abandoná-lo?
- Está claro que não!
- Pois é exatamente o meu caso; porque vou me dando bem com este negócio ainda não pensei em abandoná-lo.
- Em todo caso, espera passar a vida toda neste negócio?
- Não sei... Talvez... Preciso, porém, trabalhar ainda uns três anos. Tenho alguns amigos que visitar, o que ainda não fiz esperando uma oportunidade.
- E depois, que profissão adotará?
- Talvez a de negociante.
Como Virgulino conseguiu escapar a tantos cercos? Ele próprio esclareceu, na sua entrevista ao jornal de Fortaleza:
Tenho conseguido escapar à tremenda perseguição que me movem os governos, brigando como louco e correndo como veado quando vejo que não posso resistir ao ataque. Além disso, sou muito vigilante e confio sempre desconfiado, de modo que dificilmente me pegarão de corpo aberto. Ainda é de notar que tenho bons amigos por toda parte. Tenho também um excelente serviço de espionagem, dispendioso embora, mas utilíssimo.
Lampião respeitava o Ceará e revelou o motivo:
Sempre respeitei e continuo a respeitar o Estado do Ceará porque aqui não tenho inimigos, nunca me fizeram mal e ainda porque é o Estado do Padre Cícero. Como deve saber, tenho a maior veneração por este santo sacerdote, porque é o protetor dos humildes e dos infelizes e, sobretudo porque, há muitos anos, protege as minhas irmãs que moram nesta cidade. Tem sido para com elas um verdadeiro pai.
O Padre Cícero Romão Batista projetou Juazeiro, cidade cuja fundação é contemporânea da inauguração da capela de Nossa Senhora das Dores, em 15 de setembro de 1827, pelo Padre Pedro Ribeiro da Silva Monteiro. Antes da chegada de Cícero Romão Batista, o burgo teve cinco capelões. Em Apostolado do Embuste, o Padre Antônio Gomes de Araújo diz que a grande influência junto ao padre era exercida por José Joaquim Teles Marrocos, seu colega de seminário e parente. Segundo Araújo, Floro Bartolomeu teria envenenado Marrocos para mandar sozinho no padre.
Outros autores, reportando-se à amizade de Romão Batista e Marrocos, revelam que o Reitor de Seminário onde ambos estudavam não queria ordená-los porque eram “pirrônicos, teimosos e dados a práticas milagreiras e visionárias”. Mas a intervenção do Coronel Antônio Luís (padrinho de Cícero Romão Batista), poderoso chefe político do Cariri, fez com que o afilhado fosse ordenado – o que Marrocos não conseguiu, pelo que ingressou no jornalismo, onde se destacou pelas suas posições republicanas e abolicionistas.
E, no decorrer do seu sacerdócio, Cícero Romão haveria de confirmar os receios do Reitor quanto às “práticas milagreiras e visionárias”. Mesmo depois de sua morte, manteve-se a fé popular: a areia do túmulo de Romão Batista é usada em pequenos sacos de pano presos ao pescoço – os breves que se acredita tenham atributos medicamentosos.
QUANDO OS PÁSSAROS CANTARAM, LAMPIÃO JÁ ESTAVA MORTO
Ao longo dos caminhos, carcaças de gado morto, vitimado pela seca. O carcará, abutre do sertão, alimenta-se do pouco que resta de carne nessas carcaças. A entrada para o sertão tem como via principal o Rio São Francisco, onde se vêem as carrancas feitas por Mestre Biquiba Dy Lafuente Guarany, nascido em 1884. Carrancas de aspecto chocante, “para espantar os maus espíritos”.
Lampião temia esses maus espíritos, como respeitava as sucuris de vinte metros de comprimento, a terrível onça suçuarana, de pêlo avermelhado, o gato-do-mato. Mas havia o tatu-galinha, de carne saborosa, a ema, o tatu-bola, menos ousados e agressivos. Como o Padre Cícero, que era sempre presenteado com exemplares raros, Lampião gostava de passarinhos: a rola coleirinha, o pica-pau, o sabiá, o bico-de-ouro, a jandaia, o anum-branco e os periquitos.
Na madrugada do dia 28 de julho de 1938 esses pássaros ainda não haviam começado a cantar quando dezenas de homens, vestidos com fardas militares, começavam a se esgueirar entre as árvores, numa elevação de terreno que ficava a cavaleiro de uma espécie de caverna no município de Angicos. Lá embaixo, na grota, dezenas de cangaceiros dormiam – era o bando de Lampião, que a polícia de vários Estados perseguia há cerca de vinte anos. Eles dormiam tranqüilos, confiantes nos sentinelas.
Lampião e Maria Bonita estavam lado a lado. Eram, ao todo, 35 homens – Lampião, Luís Pedro, Cajarana, Diferente, Mergulhão, Caixa de Fósforo, Quinta-Feira e outros. E algumas mulheres – Maria Bonita, Enedina, entre outras. A polícia tinha sido levada até a Fazenda dos Angicos por um vaqueiro, Pedro Cândido, grande rastejador. Ele conseguiu levantar as pegadas do grupo até o local onde, ao raiar do dia, se desenrolaria uma espantosa tragédia.
Tudo indica, e o Capitão José Bezerra o confirmou há anos a Ivan Alves, que o bando de Lampião ainda dormia quando se iniciou o ataque. Os cangaceiros foram colhidos de surpresa e o tiroteio durou poucos minutos, ao fim dos quais os soldados de Bezerra desceram o morro e, com seus enormes facões, cortaram as cabeças dos cadáveres. Contou-nos o Capitão Bezerra:
Recordo-me de um dos meus soldados, um cabra valente, gargalhando, correndo na minha direção com a cabeça ensangüentada de Lampião sustentada pelos cabelos. Ele gritava e gargalhava, apontando para o troféu sinistro: “É o cego, meu capitão, é o cego!”.
Quando lhe foi perguntado por que as cabeças haviam sido cortadas, ele explicou:
Se não levássemos as cabeças, já que não poderíamos levar os cadáveres, o povo não acreditaria que tínhamos liquidado o bando de Lampião. A solução foi a decapitação.
Dias depois veio a resposta macabra: Bezerra recebeu em casa, metida num saco de aniagem, amarrado com uma corda, a cabeça cortada de um parente próximo. Olho por olho, cabeça por cabeça.
Os jornais de todo o país abriram manchetes em suas edições finais, com o acontecimento, enquanto as cabeças, em sacos de juta, eram transportadas para Aracajú.
O Capitão José Bezerra, sob forte proteção de seus companheiros de milícia, pois se temia um atentado, era o herói do dia. Ele conseguira o que Teófanes Torres e José Lucena não haviam conseguido: matar o mais famoso bandoleiro das caatingas do Nordeste. E lá estavam, em sacos ensangüentados, as provas da façanha: as cabeças dos cangaceiros, que já começavam a exalar mau cheiro. Essas cabeças seriam mandadas, a seguir, para o Instituto Nina Rodrigues, em Salvador, BA, onde permaneceriam, durante longos anos, expostas à curiosidade popular. Lá estava a cabeça insepulta do “rei vesgo do sertão”, como o chamou a manchete do France-Soir, de Paris, juntamente com a de alguns de seus asseclas – os que não tinham conseguido fugir, no lusco-fusco da madrugada, aos tiros de fuzil e aos golpes de facão.
Lampião morrera. Mas o cangaço, não. Semanas após a sangueira de Angicos, começaram a se imprimir na crônica dos sertões outros nomes de bandoleiros, a começar por Corisco, o Diabo Louro.
A profecia de Antonio Conselheiro – o mar vai virar sertão e o sertão vai virar mar – só se cumpria retoricamente no seu primeiro estágio. O sertão lá estava: um mar de desalento, em que os jagunços, os coronéis, os macacos continuariam a espalhar o terror e a morte.
O Santo Guerreiro contra o Dragão da Maldade; Deus e o Diabo na Terra do Sol; Terra em Transe; Cabeças Cortadas: Glauber de Andrade Rocha se inspirou certamente no itinerário social e religioso de Lampião e Cícero Romão Batista para criar as epígrafes de seus filmes.
Conta-se, em livros, que a mãe de José Saturnino, o vizinho da família de Lampião em Serra Talhada, lhe afirmou que, enquanto ela vivesse, o bandoleiro viveria. Nem mesmo seria ferido gravemente. Nas lendas que correram após a morte de Lampião, informou-se que, dias antes da chacina de Angicos, Lampião fora cientificado da morte da mãe de seu inimigo, cuja vida ele poupara diante dos apelos da velha. Lampião, que era bastante supersticioso, ficou preocupado. Uma semana depois, era trucidado com seu bando: perdera a proteção do corpo fechado, uma de suas crenças mais arraigadas.
O PADRE E O CANGACEIRO
A história de Lampião e de Cícero Romão
Texto de Ivan Alves e Nilson Lage
Da série OS GRANDES ENIGMAS DA NOSSA HISTÓRIA
OTTO PIERRE, EDITORES, LTDA., 1982

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