PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DO ESCRAVO NO CEARÁ
As comemorações do primeiro centenário da libertação dos escravos no Ceará ensejaram-nos a oportunidade de focalizar a escravatura negra sob ângulo diferente do habitual, ou seja, o da abolição. Este último aspecto tem sido, até agora, exaustivamente explorado por quantos se manifestaram sobre o trabalho servil no Ceará. Até certo ponto isto pode ser justificado porquanto, antecipando-se de quatro anos à Lei Áurea, coube ao Ceará o privilégio de ser, no Brasil, a primeira província a libertar, com exceção de pouco mais de uma centena, quase todos seus escravos. Dois autores, Guarino Alves e Manuel Eduardo Pinheiro Campos, ambos do Instituto de Ceará, realizaram estudos sobre o cativo no Ceará, apreciando-lhe o aspecto antropológico e dando-lhe conotação social desvinculada do abolicionismo.
Decidimos apresentar, nesse despretensioso trabalho, os enfoques antropológico e sanitário do escravo no Ceará, embora cônscios da extraordinária complexidade do problema. Complexidade esta, em parte, devida à multiplicidade de componentes étnicos e culturais do africano trazido a força para o Brasil. Mas também oriunda, em parte, da exigüidade documental. Para esta última contribuiu, de modo definitivo, a destruição de livros e de papéis relacionados ao tráfego negreiro, destruição esta ordenada, em 14 de dezembro de 1890, pelo jurisconsulto Rui Barbosa, então ministro da Fazenda. As complexidades étnicas – quase diríamos raciais – e culturais ressaltam do exame detido das culturas sudanesa, guineano-sudanesa islamizada e banto, às quais estavam ligados por sua origem, os escravos trazidos para o Brasil. Das sudanesas destacamos as etnias ioruba ou nagô, preferidas nos mercados escravistas da Bahia por pertencerem, a elas, indivíduos altos, valentes e trabalhadores e, dentre os negros aqui apontados como escravos, os mais inteligentes de todos. Possuíam, em geral, músculos pelo uso de pequeno cavanhaque, a “barba só no queixo” dos anúncios de fuga. À cultura banto, enfim, pertenceram tribos do grupo angolano-congolês e, da contra-costa, os moçambiques. Nestas etnias figuram os Angolas, Benguelas e Cabindas, da família banto. Hauçás, Mandingas e Fuiás, o grupo sudanês islamizado e, do sudanês, os Iorubas, Daomeianos e Fantiaxânti, gastrocnêmios pouco desenvolvidos, motivo pelo qual figurariam, em anúncios de fugas, como negros de “pernas compridas e finas”. Das culturas guineano-sudanesas islamizadas provinham etnias, a exemplo dos hauçás, caracterizadas pela estatura alta, robustez e amor ao trabalho. Sabiam ler e escrever árabe, tinham vida austera e os homens se distinguiam dos outros das demais etnias.
A importação de escravos para o Ceará era secundária e provinha dos entrepostos de Recife e São Luiz preponderantemente e, em escala quase desprezível, dos de Salvador e Rio de Janeiro. Para o Ceará vinham, em sua quase totalidade, africanos do grupo angolano-congolês. Para se ter idéia, tanto quanto possível aproximada, das condições de vida dos negros escravos no Nordeste brasileiro, há necessidade de recorrer a informes não só de holandeses do século XVII, mas também dos viajantes de comissões científicas perlustrando plagas nordestinas nas centúrias subseqüentes, além dos de diplomatas estrangeiros sediados na Corte ou no além-mar. Porém, o maior contingente de dados foi, nesse particular, extraído de anúncios insertos em jornais cearenses do século XIX e relativos à fuga de escravos. Pesquisa inspirada, portanto, no trabalho pioneiro de Gilberto Freyre.
A origem do elemento servil, no Ceará, é relativamente obscura se tomada em seu sentido amplo. Nos albores da colonização os indígenas eram chamados de “negros” pelos portugueses. Estes, sob vários pretextos, escravizavam tapuias ou tribos tupis inimigas dos potiguares. Este fato atingiu o clímax no século XVIII, quando da “Guerra dos Bárbaros”. Soares Moreno, quando pretendeu “manter fábrica e criações de negros (sic) e fazer um trapiche de açúcar”, possivelmente se referia a africanos. Mas a primeira prova documental inequívoca da existência do negro cativo no Ceará nós a devemos a Matias Beck, holandês cujo escravo Domingos, preto, nascera no Ceará e falava, com desenvoltura, o abanheenga. Segundo inventário do fazendeiro Mendes Lobato no Icó, em 1719, o preço de um escravo africano ou crioulo equivalia ao de 47 bois, isto é, 160$000 rs. Em contrapartida, índios Calabaças e Cariris, reduzidos à escravidão, eram avaliados de 13 a 30 mil réis cada um.
Houve, no ano de 1800, tentativa frustrada de ser estabelecido tráfico negreiro direto da África para o Ceará, pois esta Capitania, por Ordem Régia, deixara, em fins de 1799, de depender administrativamente da de Pernambuco. Mas a Rainha não concedeu o privilégio postulado e o Ceará foi obrigado a continuar importando seus escravos, africanos, crioulos e mestiços, de Pernambuco ou do Maranhão. Com o tempo foram escasseando os primeiros. A conseqüência foi a preponderância de crioulos e híbridos, já na terceira década do século passado. Enquanto os periódicos do Recife anunciavam compras, vendas e fugas de escravos das “nações” Angola, Cabinda, Moçambique e outros, os jornais cearenses da metade do século XIX em diante, até as proximidades da emancipação geral, se referiam a escravos da “nação crioula” ou, absurdo maior, aos de “nação mulata”.
Os anúncios de compra, venda e fugas de escravos, em jornais cearenses, pouco diferiam dos habitualmente encontradiços em periódicos de outras províncias, na época. Eram esses anúncios quase estereotipados e, dentro de sua precisão e crueza descritivas, permitiam, ao leitor, espécie de “retrato falado” do fugitivo.
Os dados mais comumente assinalados em tais anúncios eram: nome ou alcunha, idade, estatura, cor, corpo, cabelos, dentes, barba (se fosse o caso), rosto e olhos (às vezes o olhar também), membros superiores e, principalmente, inferiores. Além disso, o grau de inteligência (“boçais” ou “ladinos”), o temperamento, o andar, as preferências lúdicas, hábitos ou vícios de difícil simulação. Com destaque, eram assinalados aleijões congênitos ou deformações acidentais, intencionais ou decorrentes de tais ou quais modalidades de trabalho. A idade, em geral, variava de 10 a 60 anos, sendo preponderantes as faixas etárias de 15 a 30 anos. A estatura referia indivíduos bastante altos ou simplesmente altos, em número superior aos de estatura abaixo do normal. Mais numerosos, evidentemente, eram os de estatura “regular” ou mediana. A cor era descrita em nuanças variando da preta retinta à fula. Mas a “cor mulata” (sic) ou parda era a mais freqüente. Denota isso a preponderância de híbridos dentre os escravos do Ceará; raríssimos africanos, em geral na terceira e início da quarta década do século XIX, raros crioulos, mas numerosíssimos mestiços. O corpo era descrito como franzino, ou regular, ou “bonita figura” (especialmente quando se tratava de “moleques” ou escravos jovens). Porém, o comum era o “corpo seco” o qual, com a estatura alta e as “pernas finas e compridas”, dão idéia de possível mescla sudanesa-banto de muitos escravos no Ceará. Os cabelos eram, em geral, assinalados como “carapinhados” ou “pixains”. Mas também os havia crespos, cacheados e “corridos”, reforçando por mais esta característica somática a elevada incidência de hibridação. Também havia alguns calvos e a peculiaridade dum escravo, “já pintando”, contar apenas 32 anos de idade. Os dentes representavam importante sinal de identificação. Raros os escravos com dentadura perfeita. Os dentes eram “podres” ou “quebrados”, principalmente os de bateria labial. Mas a ocorrência de dentes limados ou a falta de incisivos indicava, muitas vezes, distinção tribal. Neste último caso é oportuno lembrar a falha de incisivos que caracterizava os Benguelas e, por isso, no linguajar do povo brasileiro, o termo “banguela” designa o indivíduo com falhas dentárias nas arcadas, principalmente superior. Também a barba “apenas no queixo” pode ser indício de característica tribal: se não de origem guineano-sudanesa islamizada, pelo menos sugere imitação quando usada por mestiços. O rosto, as mais das vezes, era assinalado como “comprido”, falando em favor da dolicocefalia inerente às etnias sudaneses. Os olhos eram descritos como grandes, em geral, e num anúncio o olhar duma escrava foi rotulado de “ligeiro e cintilante”. Nos membros superiores havia defeitos ou cicatrizes nos braços, antebraços e mãos. Eram raríssimos os “perfeitos de mãos” e, exatamente por isto, identificados com facilidade. Nos membros inferiores eram comuns as pernas “finas e compridas”, mas também ocorriam com relativa freqüência as “arqueadas” por genu valgum ou, num caso, genu recurvatum por hiperextensão da articulação do joelho. Os pés, ora mereciam o epíteto de “apalhetados ou chatos”, ora “apapagaiados ou cambaios”, enquanto o andar era descrito como cambaleante ou “banzeiro” porque o escravo “mete os joelhos para dentro quando anda”. A inteligência naturalmente variava muito, mas o cativo “pouco ladino” era exceção. Ladino era o escravo falando, com desembaraço, o português, com instrução religiosa e desempenhando satisfatoriamente as tarefas domésticas ou as de campo. O antônimo, “boçal”, qualificava o “negro novo” ou “caramujante”. Os escravos, no Ceará, foram descritos nos anúncios de fuga, em sua quase totalidade, como “bastante ladinos”, ou “espertos e bem falantes”, ou “ladinos manhosos” ou, no caso duma cativa: “muito ladina e disfarçada”. O temperamento ciclóide transparecia nos “prosistas”, “palradores”, “risonhos”, “muito despachados” e o esquizóide tipificava os “de pouca conversa” ou “tristonhos”. As preferências lúdicas se voltavam mais para as áreas da música e dança. “Toca bem gaita”, “Mete-se a cantador”, “é apaixonado por samba e cantador de chulas”, são características correntemente assinaladas. Mais rara a de “gostar de jogar ginásticas” e ser “bastante regrista”. Das deformações intencionais já citamos os dentes limados. Não encontramos citações de tatuagens especiais, em geral praticadas na face, no tórax ou nos braços, e usadas como distinção tribal. Mas havia o “talho que ele mesmo deu na garganta”, em tentativa frustrada de suicídio e a “marca de duas facadas no peito”, lembrança palpável de luta de vida-ou-morte com o rival. Como deformações acidentais podemos citar as “marcas de fogo nos peitos porque se queimou em pequeno” ou “uma cicatriz de queimadura antiga no pescoço”, ou o braço preso parcialmente ao tórax por intermédio de bridas cicatriciais, seqüelas de queimadura. As deformações ocupacionais são, implicitamente, reveladas pelas pernas arqueadas, pés chatos e “defeitos nas mãos”. Mas, também, de maneira explícita como, por exemplo: “marcas de fogo por causa do ofício nos pés e nas mãos”, em escravo ferreiro. Caso curioso: o da perda dum incisivo central “por segurar com os dentes a rédea de árdego cavalo”. Deformações por seqüelas de doenças, o “dedo aleijado por ter tido panarício”, ou uma “perna seca, puxa por ela” (poliomielite?), ou “cicatriz no vazio de cobreira que há pouco sofreu”, ou as cicatrizes, na face, produzidas pela varíola. Não poderíamos deixar de referir, last not least, as deformações oriundas de práticas punitivas: as cicatrizes decorrentes de “chicotadas nas costas”, de “relhadas nas costas e nos peitos”, de chicotadas no “assento”. E a ambígua e velhaca afirmativa, inserta no anúncio: “talvez também algum sinal de açoite, pois que já levou algumas relhadas”. Quanto aos hábitos é referido o alcoólatra, “um tanto amigo de bebidas”, ou o escravo bebedor de aguardente e “muito fácil de embriagar”. São comuns as observações a respeito do cativo mascador de fumo, ou do fumante apreciador também do rapé: “toma tabaco e fuma”. Uma escrava tem o hábito de fumar cachimbo, segundo um anúncio e outro alerta sobre o “vício de jogar a dinheiro” de certo cativo.
O escravo africano trouxe, para o Brasil, várias doenças hoje aqui extintas: o maculo, o ainhum e a dracunculose. Mas também foram importação africana a necatoríase, a esquistossomíase e a filaríase. São assinalados, pelos cronistas e historiadores, a varíola e mais a tuberculose, a febre amarela e a cólera-morbo como fatores os quais, principalmente em caráter epidêmico, abriam enormes claros nas populações escravas das diversas províncias, Ceará inclusive. Aqui, certas doenças infecto-contagiosas eram agravadas por ocasião das estiagens prolongadas como, por exemplo, ocorreu na seca de 1877 a 1879 com a epidemia variólica. Das doenças carenciais merecem destaque o Kwashiorkor em formas clínicas, frustas ou floridas e as devidas a deficiências vitamínicas, como o mal de Luanda (escoburto), hemeralopia, xeroftalmia, raquitismo. No Rio de Janeiro três médicos defenderam teses (em 1845, 1852 e 1865, respectivamente) baseadas em observações pessoais sobre deficiências alimentares de escravos. Um desses facultativos, o Dr. Manuel da Gama Lobo, ocupou-se especialmente da hemeralopia. No Ceará, parece, não havia incidência acentuada de doenças carenciais relativas a nutrientes fora do período das secas, a deduzir por um artigo publicado em Belém do Pará. Segundo o jornal Velho Brado do Amazonas, em sua edição de 08 de maio de 1851, um fazendeiro paraense declarava ser sua escravatura “toda crioula do Ceará”, e acrescentava: “já dois escravos têm sucumbido ao rigor do clima, que os demais estranham também, apesar de serem de trabalho rural na terra natalícia”. Queixava-se o agricultor: “hoje, não despregam (os escravos) a robustez que tinham nos primeiros meses de sua chegada para esta Província”. E concluía: “Alimentados a carne, milho e farinha no Ceará e hoje sustentados a peixe, mantimento usual desta província, os escravos apesar de todos rapazes de 16 a 25 anos, não puderam em dois anos ainda recobrar a sua primeira força e plena saúde”. Ainda hoje, no Ceará, a alimentação popular herdou da cozinha africana o angu, o anguzô, o mungunzá e, ainda, o pé-de-moleque e o aluá, estes últimos imprescindíveis em certas comemorações sociais e datas festivas.
Em 1872 houve recenseamento geral no Império do Brasil e dele extraímos o arrolamento dos acometidos de defeitos físicos (sic) no Ceará, dentre homens e mulheres livres, escravos e escravas. Calculamos as percentagens e verificamos terem sido menores as incidências no elemento servil, de aleijados, dementes, surdos-mudos e alienados dentre os homens, e de dementes, surdas-mudas e alienadas dentre as mulheres. Em contrapartida havia maior percentagem de escravos cegos e, dentre as escravas, eram superiores em percentual as aleijadas e as cegas. Estas últimas, pouco mais em relação às mulheres livres. É de supor se referissem, os qualificativos dementes e alienados, respectivamente, aos oligofrênicos e acometidos de síndrome de deterioração mental para aqueles e aos psicóticos para os últimos.
Os óbitos de escravos de modo geral, e os motivados por doenças, não se distinguiam em suas causas das comuns à população livre. No Brasil, notadamente no Sul, eram raros os escravos longevos: a precariedade de preceitos higiênicos desde o parto, na senzala, as doenças da infância, e as da idade adulta, os maus tratos e deficiente alimentação, tudo isto, eram fatores negativos para os escravos chegarem à idade avançada. Independentemente de doenças, é claro, o escravo morria também de acidentes. O jornal O Araripe, do Crato, registra a morte de dois cativos os quais, com vela acesa, foram furtar pólvora guardada no sótão da casa de seu amo. Também há referências a suicídios, como o do escravo alforriado e “legalmente” preso na cadeia de Caucaia. O infeliz extraviara o documento comprobatório de sua liberdade. Outro suicídio, em condições dramáticas também: o do preto Francisco em 1787, no Aracatí, após ter assassinado várias pessoas (o filho do senhor, inclusive) em crise de ciúmes da mulher. Mergulhou no ventre a lâmina duma faca e, já com os intestinos eventuados, degolou-se. Citemos ainda as mortes por homicídio, como o do Crato em 1861, quando uma escrava foi trucidada, a cacete, por um cativo. No mesmo ano e no mesmo local, houve duelo a facadas entre escravos, no qual pereceram os contendores, ambos com mais de 50 anos de idade. Mortes por execução judiciais houve, dentre livres e escravos, ao todo quarenta e uma no Ceará. Destas, dezesseis foram aplicadas a escravos, todos executados na forca. Dos livres, onze foram fuzilados: no domínio das Ordenações do Reino, ou julgados pela Comissão Matuta, ou pela Comissão Militar, estas duas últimas durante os distúrbios decorrentes da luta pela independência. Para os escravos foi reservada a morte infamante pelo enforcamento, em nove ocasiões, realizada em Fortaleza e uma vez, respectivamente, em Sobral, Quixeramobim, Aracatí, Viçosa, Granja, Ipú e São Bernardo das Russas. Todos no meado do século passado.
O ESCRAVO NO CEARÁ
PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DO ESCRAVO NO CEARÁ
Professor OSWALDO RIEDEL (do Instituto do Ceará)
Prólogo da coletânea DA SENZALA PARA OS SALÕES
Editado pela Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto do Estado do Ceará
Fortaleza, 1988
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