quarta-feira, 14 de setembro de 2011

A TRAJETÓRIA DA EVOLUÇÃO

Há 3,5 milhões de anos, em uma escaldante tarde africana, algo se moveu em meio ao capim alto. Os antílopes pararam de beber na margem do lago e ergueram a cabeça, farejando o ar. Olharam ao redor, primeiro observando a savana, com sua vegetação de cor esmaecida embalada pela brisa, e depois a floresta de um verde mais escuro, que se estendia até o sopé das colinas, antes de dar lugar às encostas nuas e esturricadas. O único movimento perceptível naquele momento era o de uma nuvem branca que cruzava o céu serenamente, projetando no chão a sombra vasta e lenta de sua trajetória.

O que estava para acontecer jamais foi testemunhado por olhos humanos, pois há 3,5 milhões de anos os seres humanos ainda não existiam. Os únicos espectadores dessa cena imaginária eram pequenos grupos de aves e outros animais que haviam se aproximado do lago naquela tarde.

Algo oculto no capim alto voltou a mover-se. Um grupo de gazelas, percebendo o movimento, começou a andar nervosamente pela margem lodosa. Fez-se silêncio por um instante, e então, erguendo-se timidamente acima do capim amarronzado, surgiu uma pequena cabeça, de um castanho escuro, cujo par de olhos se agitava com cautela, de um lado para outro. Os traços que emolduravam os olhos eram os de um símio: o topo da cabeça achatado, a testa curta e saliente, o nariz achatado contra o rosto, e as mandíbulas vastas projetando um queixo quase horizontal. Mas havia algo decididamente diferente nessa criatura, algo estranhamente resoluto e cauteloso na maneira pela qual se deslocava no capim, sem nenhum sinal dos tradicionais braços longos e do andar pendente que tornavam os símios tão aptos a vida sobre as árvores, mas desajeitados e vulneráveis no solo.

Lento, porém decidido, a animal avançava. Quando atingiu os limites do capim alto, deteve-se mais uma vez para perscrutar a paisagem em busca de possíveis predadores. Então, com passo firme, levantou-se do chão e caminhou usando apenas os dois pés, com os braços pendendo em um balanceio suave, sem tocar o solo. Fora da camuflagem da savana, sua estatura diminuta tornou-se imediatamente evidente; embora fosse uma fêmea de cerca de, 20 anos, plenamente desenvolvida, a criatura não media mais do que um metro, do topo da cabeça cabeluda à ponta dos dedos dos pés, longos e delgados.

Para as gazelas e antílopes, essa figura diminuta e solitária nada mereceu além de um breve olhar; imediatamente, os animais pressentiram que não representava grande ameaça, e continuaram a beber.

Mas essa pequena criatura que se aventurava a sair para beber há quase 3,5 milhões de anos, na região de Afar, a leste da Etiópia, representa um ponto crucial e essencial em toda a saga épica da evolução da humanidade, dos símios até os seres humanos, pois pertencia a um grupo de mamíferos conhecido como Australopithecus afarensis, ou “símio do sul de Afar”; foram os primeiros seres totalmente bípedes – isto é, que tinham como regra, e não como exceção, o caminhar sobre os dois pés. Além disso, embora esse australopiteco vivesse e dormisse principalmente ao relento e muitas de suas características físicas ainda fossem as dos gorilas, babuínos e chimpanzés, ele se encontrava na trajetória evolutiva que por fim levaria aos modernos homens e mulheres. E ainda que nossa etíope sedenta possa ter vivido nua e coberta de pêlos, apoiando-se sobre mãos e pés para beber, ela pode ser vista como a ancestral direta de sua contraparte moderna, que hoje se senta ao balcão de um bar e toma um drinque.

Na verdade, aqueles animais na beira do lago não sabiam que estavam olhando para uma criatura cujos descendentes herdariam a Terra. Pois, embora nossa australopiteca não fosse viver mais de dez anos – poucos ultrapassavam os trinta anos -, as gerações que a sucederam iriam desenvolver cérebros ainda maiores e mãos mais hábeis. Essa interação mutuamente enriquecedora entre a habilidade mental e a manual, nos próximos três milhões de anos, iria acelerar a jornada genética dos seres humanos, da condição de símios à do homem anatomicamente moderno, e os capacitaria, nesse processo, a criarem armas, ferramentas e táticas que lhes assegurariam o domínio sobre todas as outras espécies da face da Terra.

O planeta no qual o australopiteco lutava por se firmar já existia há muitos milhões de anos. Segundo as atuais estimativas dos astrofísicos, foi há aproximadamente 15 bilhões de anos que uma bola de fogo cósmica de inconcebível magnitude subitamente explodiu. Milhares de galáxias foram formadas com os fragmentos da explosão e, em uma delas, nuvens de gases se condensaram em uma estrela de tamanho médio, nosso sol. Outras nuvens, girando em torno dessa estrela, também se condensaram, formando certo número de planetas há 4 600 milhões de anos. Um desses planetas era a Terra.

Para a maioria das pessoas, o enorme espaço de tempo que isso envolve, inconcebível para a mente humana, é um obstáculo à compreensão de eventos ocorridos no passado remoto. Era muito mais fácil quando os estudiosos aceitavam os cálculos de James Ussher, um arcebispo irlandês que, em 1650, somou o número de gerações registradas pela Bíblia e concluiu que o mundo fora criado em 4004 a.C. Essa estimativa foi depois aperfeiçoada pelo bispo John Lightfoot, vice-reitor da universidade de Cambridge, que estabeleceu o momento da criação da humanidade – 9 horas da manhã do dia 23 de outubro de 4004 a.C. No entanto, podemos imaginar a história da evolução sob uma perspectiva mais viável, adotando uma escala de tempo que condensa os 4 600 milhões de anos do passado da Terra em um ano de nosso calendário. Com esse estratagema, diríamos que a atmosfera da Terra deve ter sido irrespirável durante os primeiros sete meses; só a partir do décimo mês algo maior que os organismos microscópicos começaram a surgir, quando a interação entre a luz solar e as bactérias começou a liberar oxigênio na atmosfera – o processo conhecido como fotossíntese. Duas semanas depois, vieram os peixes, e sete dias depois as plantas terrestres. Os nove dias seguintes conheceram uma atividade intensa, com a chegada dos insetos, anfíbios, florestas e répteis; e foi apenas nos últimos quinze dias que chegaram os poderosos dinossauros.

Os mamíferos surgiram no dia seguinte e, por alguma razão desconhecida, conseguiram sobreviver quando os dinossauros, possivelmente devido à devastação da Terra por um meteorito, haviam desaparecido subitamente há apenas cinco dias. Se estabelecermos o tempo presente ao meio-dia de uma segunda-feira, então os primeiros símios surgiram na tarde da sexta-feira passada, os australopitecos às seis da manhã de hoje, e o homem anatomicamente moderno, conhecido pelos cientistas como Homo sapiens sapiens, há apenas onze minutos. Mais recentemente, foi apenas há um minuto que nasceu a agricultura, há vinte segundos construiu-se a primeira cidade, e há apenas um segundo e meio foi declarada a independência dos Estados Unidos.

Essa cronologia condensada e breve esboça apenas o esqueleto de uma história evolutiva complexa; mas na constituição química e biológica das criaturas que participaram do processo ocorreram alterações de natureza menos visível, embora não menos significativas. O primeiro desses importantes eventos foi a criação da própria vida, que ocorreu por volta de 3 300 milhões de anos atrás. Quanto a esse fato, nada podemos afirmar com certeza, embora muitas conjeturas sejam feitas a partir da pesquisa das mudanças genéticas sofridas pelas atuais formas de vida. Por exemplo, sabemos que todas as criaturas vivas são compostas por células – pequenas unidades separadas, cada uma com a capacidade de reproduzir-se graças à presença em seu interior de uma substância comumente conhecida como ADN, ou ácido desoxirribonucléico. Toda célula contém, sob a forma de uma hélice dupla, duas cadeias interligadas de moléculas de ADN; a quantidade e a configuração dessas moléculas determinam o padrão de características genéticas da célula individual.

Para que uma célula crie réplica de si mesma, deve reunir um par combinado de cadeias. Se essa junção for exata, a nova célula será uma cópia precisa da original. Assim, as células têm a capacidade de continuarem produzindo cópias de si mesmas ad infinitum. Entretanto, a natureza nunca foi tão benevolente a ponto de permitir uma reprodução indiscriminada e contínua. As coisas vivas podem ter direito ao nascimento, mas a natureza sempre foi mais parcimoniosa quando se trata do direito à sobrevivência. Nos tempos pré-históricos, tal com atualmente, a sobrevivência só podia ser alcançada através de um processo gradual de adaptação às circunstâncias. E o único meio a longo prazo de se chegar a essa adaptação – às circunstâncias, que por sua vez também estavam em constante mudança – era a mutação genética.

Surpreendentemente, essa mutação teve início em muitos casos por mero acidente. Nessa época, como hoje, por vezes acontecia que o processo de cópia do ADN não era inteiramente preciso, e como resultado o novo organismo herdava uma ou mais características radicalmente diferentes daquelas do organismo original. Na maioria das vezes, as mudanças eram para pior, e o novo organismo mutante acabava por perecer. Por vezes, a mudança não provocava diferenças notáveis. Mas muito ocasionalmente uma criatura mutante era capaz de fazer algumas coisas melhor que seus predecessores, ou, em alguns casos, coisas que seus predecessores simplesmente não conseguiam fazer.

Por exemplo, uma criatura nascida com uma nova característica – talvez uma presa mais afiada – que, embora a diferenciasse do restante da espécie, demonstrasse ser uma vantagem, seria melhor sucedida do ponto de vista genético do que seus irmãos: ou seja, vivia mais tempo e produzia mais crias. Com o passar do tempo, e com a repetição desse sucesso de geração em geração, a criatura de presas mais afiada tornava-se norma, até que também fosse substituída por outro ser mutante, talvez com pernas mais curtas e ágeis.

Essa capacidade de aprimoramento genético estava perfeitamente presente em nosso australopiteco etíope. Pois embora sua linhagem se estenda até o homem moderno, com cérebro grande e mãos ágeis, ela também recua até as criaturas desajeitadas de cérebro pequeno que se apoiavam sobre os quatro membros.

Há trinta milhões de anos, na floresta tropical africana, os macacos já viviam como hoje. Passavam o dia nas altas copas das árvores, correndo pelos galhos e usando suas longas caudas para se equilibrarem quando se apoiavam sobre os quatro membros, ou quando saltavam de árvore para árvore em busca de frutos. Entretanto, por essa mesma época, um tipo diferente de macaco, de tamanho maior, tirava vantagem da maior envergadura dos braços e dava início a uma nova forma de recolhimento de alimentos. Sua técnica consistia em balançar-se nos galhos. Segurando o galho com uma das mãos para depois lançar-se na direção correta, conseguia agarrar frutas que antes eram inacessíveis. Gradualmente, os inventores dessa colheita aérea passaram do balanço para o salto, desenvolvendo assim punhos mais móveis e braços ainda mais longos. E como agora já tinham seus próprios meios de equilíbrio, suas caudas não eram apenas redundantes, mas acabaram por desaparecer. Sem elas, não mais podiam ser classificados como macacos de tamanho fora do comum e não convencionais. Eles agora pertenciam a uma categoria totalmente nova. Os símios.

Lentamente, seu novo estilo de vida provocou outras mudanças. Talvez devido a uma dieta diferente, que requeria maior mastigação, os símios desenvolveram molares mais fortes com cinco cúspides, ou pontas, em vez das quatro apresentadas pelos macacos. Também gradualmente, sua postura tornou-se mais ereta do que a dos macacos, e sua capacidade de sentar-se, em vez de agachar-se, deixava as mãos livres para tarefas mais intrincadas, tais como arrancar, empurrar, segurar, bater e examinar. Isso proporcionou-lhes uma clara vantagem em relação aos macacos, que conseguiam segurar uma noz ou um pedaço de fruta nas mãos, mas se tivessem de fazer uma retirada rápida precisavam das quatro patas para correr – e, conseqüentemente, deixavam cair o alimento. Já os símios podiam correr com sua presa em uma das mãos. Como vantagem adicional, quanto mais os símios usavam as mãos, mais inteligentes se tornavam; a maior destreza manual estimulava o crescimento do cérebro, que, por seu lado, equipou-os com a Inteligência necessária para executar tarefas ainda mais complexas.

Assim, eles – e nós – pareciam estar destinados a limitar-se a uma confortável superioridade com relação aos macacos, saltando alegremente de árvore em árvore de uma floresta ilimitada. Mas isso não ocorreu. Por volta de 15 milhões de anos antes de Cristo, o clima do mundo começou a mudar, tornando-se lentamente mais regular e árido. Na grande e luxuriosa floresta tropical, onde o alimento sempre havia sido sazonal, passaram a predominar as árvores decíduas mais esparsas. Em muitos lugares, a floresta cedeu lugar à savana, que não passava de um gramado aberto, com árvores isoladas. Repentinamente, os animais que até então haviam habitado o interior da floresta, tiveram que se adaptar às novas circunstâncias. Os que viviam no chão só precisaram alterar sua dieta; os antílopes e os cavalos, por exemplo, passaram das folhas para a grama. Entretanto, as criaturas que habitavam as árvores foram impelidas a mudanças mais drásticas.

O primeiro símio a adaptar-se com sucesso à vida longe da floresta foi o Ramapithecus, ou “símio Rama”, assim denominado em homenagem a Rama, o deus hindu. Fósseis do Ramapithecus foram encontrados em lugares tão distantes quanto a Espanha e a China, mas são mais abundantes nos contrafortes do Himalaia, no Paquistão, onde 13 milhões de anos de erosão das montanhas deixaram camadas sedimentares de cerca de 3 mil metros de profundidade. Em meio a essas camadas, foram preservadas mandíbulas e crânios de vários exemplares de Ramapithecus, com a idade de 10 a 12 milhões de anos.

O símio Rama apresentava dimensões modestas – não media mais de 1,20 metro de altura – mas o que o distinguia claramente dos outros símios eram os dentes. Os caninos, que nos primatas anteriores eram cortantes como adagas, diminuíram nessa espécie até se tornarem tão longos quanto os incisivos, e as coroas molares desenvolveram camadas de esmalte espessas e resistentes. Com essas novas características, o Ramapithecus conseguia movimentar a mandíbula inferior de um lado para outro, sem o impedimento dos caninos protuberantes e triturava o alimento entre molares agora fortalecidos para essa tarefa. Essas não eram as mandíbulas de uma criatura que se alimentava de frutas tropicais macias e polpudas colhidas dos altos das árvores, mas as de um animal que se alimentava de coisas duras, como sementes e grãos. Parece que pelo menos um símio havia descido das árvores em caráter definitivo.

Infelizmente, existe uma vasta lacuna nos registros fósseis correspondentes ao período em que os ancestrais humanos se afastaram dos símios. Por cinco milhões de anos depois do último Ramapithecus, entre 10 000 000 e 5 000 000 a.C., não há praticamente registros fósseis dos símios. Só sobreviveu o ocasional dente de cinco cúspides para comprovar sua contínua presença na África e Ásia. Quando os registros se tornam novamente legíveis, encontramos evidências de uma estranha e nova criatura, com apenas 1,25 metro de altura e cérebro pouco maior do que o dos chimpanzés. Seus caninos eram pequenos e os molares espessos, mas havia uma característica mais surpreendente do que todas as outras juntas: andava ereta.

Trata-se do Australopithecus, ou “símio do sul”, cujos vestígios foram encontrados tanto no sul quanto no leste da África. Os primeiros australopitecos viveram por volta de 5 000 000 a.C., e o último deles desapareceu por volta de 1 000 000 a.C. Os fósseis desses primeiros bípedes mostram um grande número de mudanças anatômicas com relação a seus ancestrais. O orifício na base do crânio através do qual passa a medula espinhal – conhecido como foramen magnum – localizava-se em posição quase diretamente inferior, enquanto nos símios dava para o exterior, na parte posterior do crânio. Também a espinha não mais formava um arco acentuado, como nos outros primatas da época; em vez disso, mostrava-se como um pilar sinuoso, em forma de S, ereto no centro e curvando-se ligeiramente na altura do pescoço e na parte mais estreita das costas. A pélvis tornou-se mais curta, mais ampla e mais bojuda, sustentando o peso do torso. As juntas das cadeiras modificaram-se, de forma que as pernas se alinharam com a espinha e os joelhos se juntaram, suportando mais eficazmente o peso total do corpo. Os tornozelos ficaram mais fortes e menos flexíveis do que os dos símios, as solas dos pés mais arqueadas que chatas, e o maior artelho alinhou-se com os outros, perdendo assim sua capacidade de agarrar, mas adquirindo a de suportar o peso total do corpo por um instante em cada passada, como hoje acontece conosco. O exame de marcas de pés deixadas pelos australopitecos em Laetoli, na Tanzânia, mostra que suas passadas equivaliam exatamente às dos povos modernos que nunca usaram sapatos.

Os australopitecos variavam sensivelmente em suas dimensões físicas. Os adultos plenamente desenvolvidos das menores espécies só mediam 1,20 metro de altura, e não pesavam mais de 30 quilos, enquanto os maiores membros das maiores espécies atingiam 1,55 metro de altura e 70 quilos. Entretanto, possuíam alguns traços notáveis em comum: todos tinham molares grandes e bem desenvolvidos, além de cérebros muito menores do que os do homem moderno. A capacidade média do crânio de um australopiteco adulto – a parte da cabeça que abriga o cérebro – era de cerca de 450 centímetros cúbicos, 65 a mais do que o de um chimpanzé, mas cerca de mil centímetros cúbicos menor do que o de um homem moderno médio.

Existem poucos indícios do tipo de vida dos australopitecos. Por exemplo, nenhuma ferramenta jamais foi encontrada que possa indicar suas tarefas rotineiras. Raymond Dart, o anatomista australiano que fez as primeiras descobertas do australopiteco em 1924, a princípio supôs que esses primeiros hominídeos vivessem da caça, pois os primeiros ossos foram encontrados em cavernas, em meio a restos de antílopes e outras presas de porte médio. Mais tarde, contudo, os cientistas perceberam que esses australopitecos também eram caçados. Longe de morrerem junto aos ossos dos animais que matavam, eles próprios eram vítimas de algum animal de grande porte – talvez um leopardo – que os devorava e descarnava seus ossos.

A julgar por seus grandes molares, ideais para triturar plantas e vegetais duros, os australopitecos parecem ter sido herbívoros, talvez buscando segurança nas árvores à noite, mas passando o dia nos pastos e margens dos lagos africanos. Compartilhavam o ambiente com os ancestrais de animais que hoje ainda vivem no local e com alguns outros – como o babuíno herbívoro gigante, de mais de 1,80 metro de altura – hoje extintos.

A maioria dos cientistas concorda que houve quatro espécies principais de australopitecos. Uma representante do tipo mais antigo – Australopithecus afarensis – foi a mencionada na cena reconstituída junto ao lago etíope, onde ela e seus companheiros viveram por volta de 3,5 milhões de anos atrás. Don Johanson, um antropólogo americano, descobriu seus restos fossilizados em 1974, quando uma inundação varreu as paredes de uma ravina, revelando um pedaço de osso do braço. Outra espécie da qual temos provas concretas é o Australopithecus africanus, cujos primeiros restos foram descobertos em circunstâncias ainda mais dramáticas – com a ajuda da gelignite.

Certo dia, em 1924, na pedreira calcária de Taung, perto de Johannesburg, as explosões diárias prosseguiam como de costume quando os trabalhadores que inspecionavam o sítio se defrontaram com dois pedaços incomuns de rocha. Incrustada bem no interior de uma delas havia a metade de um crânio que, a julgar pelo tamanho, era o de uma criança pequena, ainda com dentes de leite. Em outro pedaço de rocha estava o molde fóssil do cérebro dessa mesma criança, com todas circunvoluções e estrias claramente visíveis. Percebendo imediatamente a importância da descoberta, os trabalhadores levaram as rochas para o administrador da pedreira, que as enviou a Raymond Dart. O anatomista examinou cuidadosamente o pequeno crânio e declarou que pertencia a um membro de uma espécie desconhecida. Chamou-o de Australopithecus africanus, o “símio do sul da África”.

Descobertas posteriores de restos fósseis similares – também na África do Sul – compuseram um retrato mais claro do Australopithecus africanus. Um pouco mais alto e forte em sua estrutura do que o afarensis, o africanus habitou a Terra entre 3 000 000 e 2 000 000 a.C. Caminhava ereto, embora não fosse muito alto – 1,30 metro no máximo; possuía um físico musculoso e robusto, pesando entre 45 e 50 quilos. Comparado com o que já se sabia a respeito do estilo de vida do afarensis, o africanus parece ter consumido uma dieta vegetal mais específica. Seus molares eram muito maiores, e suas mandíbulas consideravelmente mais fortes, aumentando a eficiência da mastigação. Entretanto, seus caninos e incisivos – os dentes mais desenvolvidos nos carnívoros – haviam diminuído. Esse desenvolvimento indica que o tipo de alimento ingerido pelo Australopithecus africanus requeria pouca dilaceração preliminar, e que era provavelmente constituído por uma variedade de frutas ou sementes protegidas em vagens ou cascas resistentes, que precisavam ser quebradas.

O consumo de plantas prosseguiu nas duas espécies posteriores de australopitecos, o A. robustus e o A. boisei, que parecem ter vivido entre 2 000 000 e 1 000 000 a.C., antes de se extinguirem. Restos do primeiro, descobertos na África do Sul em 1938 demonstram que essa espécie é certamente digna de seu nome: não media mais do que 1,55 metro de altura, mas um macho grande chegava a pesar até 70 quilos. Seu crânio e mandíbulas eram de constituição robusta, com ossos maciços que sustentavam os poderosos músculos indispensáveis à mastigação em seu tipo de dieta. Essa evolução foi ainda maior no A. boisei, cujos vestígios foram descobertos em 1959 no desfiladeiro Olduvai, na moderna Tanzânia, pelos arqueólogos Mary e Louis Leakey. A espécie recebeu esse nome em homenagem a Charles Boisei, o negociante londrino de origem americana que financiara o trabalho executado por Mary e o marido. Tão grandes eram as mandíbulas dessa espécie que ela ficou popularmente conhecida como o “homem quebra-nozes”.

Ninguém discute que a ligação do australopiteco com o homem moderno é a habilidade de andar ereto. Mas ninguém chegou ainda a um acordo quanto ao motivo disso, pois esse modo de caminhar implica desvantagens óbvias. Em termos biológicos e biomecânicos, caminhar sobre os membros inferiores com o corpo na vertical exige um equilíbrio extremamente complicado e difícil. Além disso – se pensarmos apenas em velocidade – é um modo de locomoção ineficiente, já que emprega apenas dois membros, enquanto os símios e os macacos, com suas quatro patas, podem facilmente suplantar a marcha humana. Na maioria dos mamíferos, cada membro dá sua contribuição à força motora, mas no homem os braços são um peso morto. Os únicos bípedes que conseguem se locomover com rapidez são aqueles – como os avestruzes e os cangurus – cujos membros dianteiros se tornaram tão pequenos e fracos que não são empecilho para a corrida.

No entanto, a principal vantagem dos bípedes sobre os quadrúpedes é seu nível de resistência muito mais elevado. Enquanto a maioria dos seres humanos consegue correr uma maratona de 42 quilômetros, uma zebra tombaria exausta depois de uma corrida de apenas 800 metros.

Então, o que teria levado os australopitecos a preferirem a locomoção sobre os dois pés? Outros símios e macacos desceram das árvores, mas continuaram quadrúpedes, erguendo-se sobre as patas traseiras apenas por alguns instantes, para poderem olhar melhor a seu redor ou alcançarem uma fruta mais alta. Por que isso não continuou acontecendo com os australopitecos?

Vários fatores devem ter se combinado para definir o caminhar ereto como solução. Um deles deve ter sido a necessidade de os australopitecos exporem menos seus corpos ao inclemente sol tropical; uma criatura ereta recebe apenas dois terços da quantidade de sol recebida pelos quadrúpedes e ainda menos quando o sol está a pino. Outro fator importante pode ter sido o uso crescente das mãos, talvez necessário por dois motivos. Inicialmente, os primeiros primatas comunicavam-se por meio de um primitivo sistema vocal e, portanto, precisavam carregar alimento e outros objetos sem ocupar a boca. Outra hipótese é que, com as mãos livres, podiam executar tarefas manuais e levar alimento para os companheiros. Enquanto os símios modernos vivem em grupos familiares relativamente desagregados, nos quais cada indivíduo alimenta a si próprio, os australopitecos devem ter desenvolvido um sistema de compartilhar com a família o alimento obtido. Se isso for verdade, poder carregar objetos deve ter sido vital para a sobrevivência, e os australopitecos mais bem-sucedidos foram provavelmente os que combinaram uma eficiente capacidade de carregar alimentos (usando os membros superiores) com uma locomoção rápida (usando os membros inferiores).

Nossa existência comprova que um número significativo deles atingiu esse objetivo. A maioria dos especialistas tende a concordar que o homem moderno descende dos australopitecos, embora variem muito suas opiniões a respeito da natureza dessa descendência, além de discordarem quanto à relação entre as diferentes espécies de australopitecos.

Como, quando e onde ocorreu a transformação do australopiteco em ser humano – membro do gênero Homo – é algo que está longe de ser esclarecido. O que sabemos, contudo, é que o Australopithecus e o Homo existiram lado a lado na África por um considerável período de tempo, talvez por até 800 mil anos. Longe de serem as criaturas ferozes e embrutecidas que amiúde nos são apresentadas, os australopitecos a princípio parecem ter alcançado um sucesso, em termos de reprodução, muito maior que o de suas contrapartes hominídeas: nas escavações realizadas em vários sítios africanos, os arqueólogos encontraram quase duas vezes mais fósseis de australopitecos do que de representantes do gênero Homo.

Assim, contrariamente à crença comum, o homem-símio não desapareceu subitamente com a chegada dos seres humanos, e estes tampouco eliminaram deliberadamente seus antepassados. Os australopitecos que não evoluíram para humanos se extinguiram porque não conseguiram se adaptar à crescente situação competitiva na savana africana, onde se viram suplantados primeiramente por herbívoros – tais como a gazela, o órix e o cavalo – e depois por um número cada vez maior de espécies, inclusive o primitivo Homo, que passou a incluir a carne em sua dieta. Pressionado entre esses herbívoros e onívoros mais eficientes, o último dos australopitecos perdeu a luta pela sobrevivência e desapareceu da Terra por volta de 1 000 000 a.C.

Mas enquanto os australopitecos declinavam na escala evolutiva, surgia na Terra, cerca de 2 300 000 a.C., uma nova criatura que ascendia nessa escala. Tratava-se do homem, que não era símio ou mesmo um homem-símio, mas o primeiro Homo definido, carnívoro e herbívoro; com um cérebro 50 por cento maior do que o de qualquer australopiteco, também era dotado de uma habilidade que lhe permitia marcar sua presença no ambiente, moldando sua vida diária de uma forma que nenhuma outra criatura anterior fora capaz de fazer. Ele podia criar utensílios de pedra.

Esse era o Homo habilis, o “homem hábil”, cujos restos foram descobertos pela primeira vez, como os do Australopithecus boisei, em Olduvai, na África oriental. A julgar por sua altura e peso, ele não era particularmente notável; não media mais do que 1,25 metro de altura e só pesava 50 quilos. Mas possuía um cérebro de 800 centímetros cúbicos e era capaz de fazer o que nenhum australopiteco jamais tentara: quebrava pedras para construir ferramentas cortantes. Provavelmente também fazia isso com a madeira, mas se utilizou esse material não ficaram vestígios, pois a madeira apodrece. Só se pode conjeturar que uma criatura inteligente o bastante para empregar a rocha possivelmente fez o mesmo com as árvores.

A partir das marcas nos ossos de grandes mamíferos encontrados em sítios do Homo habilis, podemos afirmar que um dos primeiros usos dessas ferramentas foi a retalhação de carcaças de animais. Entretanto, isso não quer dizer que ele pudesse contar com uma ração de carne ilimitada. A análise desses ossos mostra que as partes às quais o Homo habilis tinha acesso eram as menos carnudas da carcaça. Também parece que muitas vezes ele ficava apenas com as sobras; numerosas marcas de suas ferramentas se encontram acima de incisões muito maiores feitas por carnívoros de longas presas, que provavelmente já haviam se servido das melhores partes.

Portanto, aparentemente o Homo habilis acrescentou carne a sua dieta motivado de início pela diminuição da vegetação disponível, que ocorria devido às oscilações climáticas ou à competição de outros animais. Também parece que o Homo habilis não obtinha carne por meio do combate direto com animais de grande porte, mas pela cautelosa e oportunista captura de carniça, que ele conseguia entre os restos deixados por predadores maiores, ou utilizando utensílios cortantes para retalhar cadáveres de animais cujo couro era muito espesso para ser perfurado por outros carnívoros. Esse último método pelo menos permitia que os hominídeos atacassem a carcaça antes dos predadores maiores, tais como os leões e as panteras, ou dos animais menores, como as hienas, que agiam em grupo.

A inclusão da carne na dieta trouxe benefícios sociais e nutritivos. Uma carcaça representava uma substancial quantidade de alimento, em geral mais do que suficiente para um indivíduo, e é provável que o Homo habilis tenha adquirido o hábito de dividir seu alimento com os companheiros – talvez esperando favores em troca. Embora isso estivesse longe de constituir um sistema organizado de distribuição de alimentos, essas refeições comunitárias podem ter propiciado aos hominídeos a oportunidade de realizarem uma atividade social e de adquirirem um sentido primitivo de companheirismo em relação aos membros de sua própria espécie.

A procura de carne também expandiu as fronteiras geográficas. Enquanto a maioria das plantas só crescia em um local que oferecesse as condições adequadas – claro ou escuro, quente ou frio, seco ou úmido – os animais em geral eram menos sensíveis às variações de luz e temperatura, conseqüentemente mostrando-se inclinados a se espalharem por distâncias maiores, atraindo seus predadores humanos.

Esse aumento de atividade sob o sol tropical pode ter contribuído para a relativa falta de pêlos no corpo dos seres humanos. É possível que os hominídeos preferissem caçar e recolher carniça durante as horas mais quentes do dia, quando os predadores maiores estivessem descansando; repetindo-se durante milhares de anos, essa prática pode ter levado a uma gradual eliminação dos pêlos e a uma crescente dependência com relação à transpiração para manter a temperatura do corpo rebaixada até mesmo sob o sol do meio-dia. É sabido que os seres humanos transpiram muito mais do que qualquer outro mamífero, embora nossas glândulas sudoríparas sejam proporcionalmente do mesmo tamanho que as deles. Outros carnívoros resfolegam profusamente para se manterem resfriados, mas isso só se mostra eficiente após pequenos períodos de atividade: durante o espaço de tempo em que os hominídeos costumavam perseguir um animal, supostamente até que este caísse de cansaço, o artifício de resfolegar podia levar a uma perigosa hiperventilação.

O suor propiciou aos hominídeos a mais adequada solução evolutiva ao problema da vida em regiões de altas temperaturas. Entretanto, paralelamente às vantagens que produziu, essa solução também impôs um certo número de restrições. A grande perda de líquido do corpo significava que os caçadores tinham de limitar suas operações a áreas onde a água estivesse prontamente disponível. O corpo humano não tolera uma perda de água que ultrapasse dez por cento de seu peso total, e enquanto os camelos, por exemplo, conseguem estocar grandes quantidades de líquido, engolindo 100 litros de água em dez minutos, os seres humanos conseguem ingerir apenas um litro, no mesmo período de tempo. Portanto, a proximidade da água tornou-se essencial para os que se dedicavam à obtenção de carne.

A descoberta de maneiras de enfrentar esses novos desafios ampliou e estimulou a inteligência dos hominídeos. Enquanto o cérebro de um australopiteco médio, pelo menos durante três milhões de anos, permanecera proporcionalmente tão grande quanto o de um chipanzé, o cérebro humano dava agora início a um lento e contínuo processo de expansão, que só terminaria quando atingisse três vezes o tamanho do maior dos australopitecos.

Vários fatores complexos e inter-relacionados produziram esse crescimento. A procura de carniça e a caça exigiam mais da inteligência do que o consumo de ervas, principalmente em uma espécie que não possuía o aparato físico de uma máquina mortífera como, digamos, o leopardo e o leão. E o acesso a um alimento como a carne, que era rica em proteínas, forneceu aos seres humanos a fonte adicional de energias de que necessitavam para o total desenvolvimento de um cérebro maior.

A fabricação de ferramentas exigia um nível de habilidade que também servia para promover um aumento no tamanho do cérebro. Ninguém entende perfeitamente essa correlação, mas já se verificou que os animais que apresentam um certo grau de habilidade manual, tais como os chimpanzés, são normalmente mais inteligentes que os que não dispõem dela. Portanto, podemos concluir que o próprio ato de lascar pedras para transformá-las em ferramentas deve ter literalmente ampliado a mente do Homo habilis, fornecendo-lhe a capacidade intelectual de executar tarefas ainda mais complexas, que, por sua vez, provocariam um efeito estimulador em seu cérebro.

A produção de ferramentas também exigia uma atividade mental que ia muito além do simples conhecimento de como fazer o instrumento. Visualizar a existência de uma ponta afiada dentro de uma pedra arredondada era um ato que exigia um novo nível de imaginação e percepção. Além disso, enquanto o australopiteco precisava saber aonde deveria ir para encontrar alimento, o Homo habilis precisava também saber onde encontrar a matéria-prima para fabricar suas ferramentas. Esse tipo de atividade requeria previsão, memória e planejamento, coisa que a colheita de frutas não exigia.

À medida que aumentava o tamanho do cérebro humano, a cabeça também crescia, para poder acomodá-lo. Aqui, porém, existe um problema. A nova postura ereta no caminhar limitava a expansão da pélvis humana; se ela aumentasse, as pernas ficariam afastadas e ineficientes, provocando a volta à condição de quadrúpedes. Mas isso limitava a largura do canal de parto da fêmea, restringindo a 350 centímetros cúbicos a capacidade craniana máxima do recém-nascido que iria passar através desse canal, ao vir à luz. Uma vez que os cérebros da maioria dos primatas só duplicam seu tamanho entre a infância e a fase adulta, isso significa que o tamanho do cérebro de um adulto plenamente desenvolvido não passaria de 700 ou 800 centímetros cúbicos. Assim, parece que nesse ponto a cadeia evolutiva chegou a um impasse. O que antes fora o inexorável progresso dos seres humanos em direção a um futuro cérebro maior foi bloqueado por um obstáculo aparentemente insuperável: iria prosseguir a condição de bípede, ou o crescimento do cérebro.

Entretanto, as forças da evolução continuavam a agir. Gradual e inconscientemente, os seres humanos começaram a criar um outro padrão de desenvolvimento. As mães começaram a dar à luz crianças cujos cérebros conheceriam a maior parte de seu crescimento fora do ventre materno – um processo que chegou a tal ponto que hoje o cérebro humano médio, no momento do nascimento, possui apenas 25 por cento do tamanho que atingirá na fase adulta; no chipanzé, essa proporção é de 65 por cento. A vantagem dessa nova situação está no fato de os cérebros dos hominídeos poderem quadruplicar de tamanho durante sua existência; há porém uma desvantagem: durante o período de crescimento mais intenso do cérebro – nos primeiros anos de vida – o crescimento do corpo é mais lento.

Portanto, o preço pago pela humanidade por esse aumento da capacidade cerebral nos estágios mais avançados de sua existência foi uma grande inoperância inicial. Enquanto um cavalo recém-nascido poderia levantar e caminhar sozinho duas horas depois de nascer, e um babuíno cuidaria de si aos doze meses, os bebês humanos seriam totalmente dependentes de suas mães pelo menos nos primeiros seis anos de vida. Isso exigia uma estrutura social completamente nova. Anteriormente, as fêmeas dos primatas, depois do acasalamento, tinham seus filhos sozinhas. Então, os dois sexos começaram a cooperar na criação de seus bebês indefesos, num arranjo que, por sua vez, exigia o estabelecimento de relações mais estáveis e complexas entre os indivíduos. Podemos supor que algumas de nossas características humanas tenham resultado dessas interações sociais – sendo ao mesmo tempo respostas a elas. O ciclo reprodutivo da fêmea humana, que mantém as mulheres sexualmente receptivas durante a maior parte do tempo, e não apenas no período de acasalamento, pode ter surgido da necessidade comunitária de ligações estáveis entre os pais, bem como da maior intimidade pessoal entre o macho e a fêmea, provocada por essa estabilidade. O mesmo deve ter acontecido com a capacidade da fêmea humana de chegar sempre ao orgasmo, o que não acontece em outras espécies. Já se disse que a fidelidade sexual entre o homem e a mulher surgiu pelo fato de a postura ereta permitir uma relação frente a frente, e o contato entre os olhos produzir um efeito conectador desconhecido pelos outros animais, obrigados a cobrir a fêmea por trás. Entretanto, essa teoria não é endossada pelo exemplo do orangotango, que copula de frente, mas não é bípede e tampouco fiel.

A julgar pelos locais em que os fósseis foram descobertos, o Homo habilis parece não ter se aventurado para além dos limites da África oriental; restos encontrados na França e no Paquistão, considerados como ferramentas atribuídas a ele, ainda não tiveram sua origem confirmada. Mas embora o Homo habilis possa não ter se mostrado disposto a se aventurar pelo mundo, a evolução não permaneceu inativa; por volta de 1 600 000 a.C., o Homo habilis cedeu lugar a uma raça mais avançada de hominídeos, conhecidos como Homo erectus.

Esses novos hominídeos eram descendentes diretos do Homo habilis, mas possuíam uma constituição física mais avantajada. Seus maiores representantes devem ter tido até 50 centímetros a mais do que seus antecessores, pesando 20 quilos a mais do que o maior dos Homo habilis. Talvez tenham ficado tão grandes como resultado de uma resposta inconsciente à diminuição de alimentos. Quanto maior é o animal, menor é a exigência de energia em relação ao tamanho de seu corpo; por exemplo, um sagüi necessita, proporcionalmente, de três vezes mais energia que um ser humano, e, portanto, precisa de alimentos mais energéticos – tais como nozes ou carne – ou então deve virtualmente passar o dia ingerindo alimentos de baixa energia, tais como capim e folhas. Portanto, diante de um meio ambiente em que eram escassos os alimentos muito energéticos, mas abundavam os de baixa energia, os hominídeos podem ter desenvolvido um físico mais avantajado para compensar esse desequilíbrio.

Não apenas seus físicos tornaram-se maiores. O cérebro médio de um Homo erectus media 950 centímetros cúbicos, em oposição aos 800 centímetros cúbicos do cérebro do Homo habilis. Com esse equipamento físico e mental aprimorado, os novos hominídeos levaram a arte da fabricação de ferramentas para além da simples pedra lascada. A partir de um pedaço de pedra adequado, o Homo erectus podia agora fabricar utensílios simétricos, em forma de pêra, conhecidos como machados de mão, com os quais podiam esquartejar mais facilmente carcaças inteiras de animais. Também aprenderam a confeccionar raspadores de pedra – para tarefas como tirar animais de seus esconderijos -, fazendo saltar pedaços menores de um bloco maior.

A certa altura, também descobriram como usar o fogo. Os primeiros traços desse uso são ambíguos: em Chesowanja, na África oriental, os pesquisadores descobriram pedaços de argila queimada datados de 1 400 000 a.C. Ossos de animais e utensílios de pedra encontrados nas proximidades mostram que os primitivos hominídeos – provavelmente o Homo erectus – estiveram ali, e testes com a argila indicaram que ela foi aquecida a 400 graus Celsius, temperatura típica de uma fogueira. Mas é difícil ter certeza; outros especialistas afirmam que a argila pode ter sido queimada por um incêndio da vegetação.

Não existem evidências definitivas que comprovem o uso controlado do fogo pelos humanos no milhão de anos seguinte. As cavernas de Tsoukoudian, perto de Pequim, revelaram restos humanos datados de aproximadamente 460 mil anos atrás, ao lado de camadas do que a princípio se julgou ser carvão vegetal queimado, mas que agora foi identificado como excrementos queimados de corujas e morcegos. Mais uma vez, não é possível ter certeza se esses excrementos foram deliberadamente queimados por seres humanos, ou consumidos por um incêndio natural.

Portanto, a data exata em que o Homo erectus conheceu o uso do fogo permanece desconhecida. Entretanto, é certo que o Homo erectus – ao contrário do Homo habilis – viveu não apenas nos climas amenos da África, mas também nas regiões mais frias da Europa e da China. Se, como parece provável, ele chegou a esses continentes mais frios a partir de sua África natal, o fogo deve ter sido essencial para seu estabelecimento. Sem o fogo, ele certamente não conseguiria sobreviver a um inverno, exposto aos ventos que varrem as estepes da Europa oriental.

A parte inicial do período Quaternário, de 2 000 000 a 8 000 a.C., tampouco foi particularmente hospitaleira em qualquer parte do mundo. Variações periódicas na órbita terrestre, juntamente com a deriva agindo sobre os continentes, produziram um clima perpetuamente flutuante, com a alternância de aproximadamente 100 mil anos entre as eras glaciais e períodos intermediários mais quentes, conhecidos como interglaciais.

Durante os interglaciais, tais como o que hoje estamos atravessando, as regiões equatoriais conheceram chuvas abundantes, enquanto as partes norte e sul do planeta tiveram climas relativamente temperados. Entretanto, cada interglacial se tornava gradualmente mais frio, e o gelo se espalhava na direção sul, até cobrir grandes partes da Europa e da América do Norte. O norte da Ásia tornou-se extremamente frio, mas a falta de chuvas livrava-o do gelo. Então, depois de alguns milhares de anos, ou por vezes apenas algumas centenas, esse período glacial atingia seu clímax e, repentinamente, era substituído por um novo interglacial.

O Homo erectus sobreviveu obstinadamente a essa alternância de climas, sofrendo poucas mudanças notáveis, físicas ou mentais, durante um período de cerca de 1,5 milhão de anos. Ele aprendeu a fazer ferramentas um pouco melhores e conseguiu construir cabanas de gravetos, mas seu maior progresso foi na caça. Por volta de 300 000 a.C., bandos de caçadores nômades do gênero Homo erectus atacavam – e matavam – animais tão grandes quanto o elefante e usavam o fogo para levar grandes animais a áreas fechadas, onde podiam ser mortos mais facilmente.

Eles andavam em bandos de vinte a trinta indivíduos; a África, a Ásia e a Europa juntas devem ter abrigado 40 mil desses grupos – e havia menos de um milhão deles em todo o globo. Só podemos fazer conjecturas com relação a seu modo de vida. Provavelmente, as complexas articulações vocais dos homens modernos não existiam, mas a coordenação de um bando de caçadores para abater grandes presas pode ser conseguida pela gesticulação ou pela força do exemplo; os lobos fazem isso com muita eficiência.

Assim, o Homo erectus trilhava sem espalhafato o caminho da evolução. Entretanto, logo após 300 000 a.C., parece ter havido um desvio. Sabemos disso a partir de restos encontrados em toda a África, Ásia e Europa, que por essa época começam a exibir uma mistura de características físicas: possuem os cérebros maiores e os crânios mais delgados tal como o Homo moderno, mas conservam os ossos pesados e a fronte achatada de um homem mais primitivo. Esses restos encontrados pertencem a hominídeos que foram classificados como Homo sapiens “arcaico”. Alguns deles parecem ter evoluído naturalmente até o homem anatomicamente moderno, ou Homo sapiens sapiens. Outros – particularmente os que foram encontrados na Europa e no Levante – conheceram um tipo bastante diferente de transição. Por volta de 100 000 a.C., transformaram-se no homem de Neanderthal, uma criatura que se tornou – muito injustamente – sinônimo de irracionalidade primitiva. Os cientistas costumavam classificar esse hominídeo carrancudo como uma espécie totalmente à parte – o Homo neanderthalensis -, mas hoje ele é reconhecido como nosso parente mais próximo, o Homo sapiens neanderthalensis, cujas realizações culturais e técnicas são discutidas no próximo capítulo. (Nota do blog: quando e se futuramente publicado, existirá aqui o link indicativo da publicação)

Comparado com seus predecessores, o neandertalense ocupava um território muito limitado, pois havia desaparecido inteiramente por volta de 30 000 a.C. Enquanto o Homo erectus sobreviveu por mais de um milhão de anos, realizando poucas inovações notáveis, o neandertalense desapareceu depois de apenas 70 mil anos, período em que, entre muitas outras realizações, revolucionou a arte da fabricação de ferramentas a tal ponto que até poderíamos classificá-la como produção em série.

As criaturas que o substituíram tinham uma aparência surpreendentemente diferente. Embora não ultrapassassem a altura do neandertalense em mais de 20 centímetros, eram infinitamente mais esbeltos e ágeis, pesando entre 30 e 45 quilos menos do que ele. Também apresentavam traços diferentes: acima de seus olhos erguia-se uma testa alta e elegante – não interrompida pelos pesados supercílios do neandertalense – que primeiro se elevava para depois se inclinar, assim formando o crânio abobadado que abrigava o cérebro. Essa criatura era o Homo sapiens sapiens, o “homem duplamente sábio”, um ser humano que não se distinguia anatomicamente de nós. Ele surgiu no sul da África por volta de 100 000 a.C., e nos 70 mil anos seguintes substituiu todas as espécies anteriores de hominídeos do globo.

A maneira pela qual ele chegou a isso permanece como um dos maiores mistérios da história humana, e é o tema central do próximo capítulo deste livro. (Nota do blog: como indicado no final do parágrafo anterior ao ante penúltimo parágrafo, idem). É indiscutível que o Homo sapiens sapiens conseguiu dominar o resto do mundo com sua tecnologia e cultura, mas ninguém sabe como ele fez isso em um período de tempo tão pequeno, em termos biológicos.

Possivelmente foi por dispor de uma ferramenta que se comprovou ser mais útil do que qualquer agulha de costura feita de osso, uma arma mais poderosa do que qualquer se suas pontas de lança de pedra – a linguagem.

Com a linguagem, o Homo sapiens sapiens pôde passar para o conhecimento tecnológico. Com a linguagem, pôde lançar-se a complexas aventuras em conjunto, tais como a que parece ter sido uma migração organizada para a Austrália por volta de 50 000 a.C. E com a linguagem ele podia expressar pensamentos e conceitos abstratos que manifestou na grande produção de pinturas, desenhos e entalhes que começaram a aparecer na Europa por volta de 30 000 a.C. Indiscutivelmente, ele possuía o equipamento vocal necessário. Sua faringe havia se tornado proporcionalmente muito mais longa do que a dos primeiros hominídeos e a língua possuía maior flexibilidade, o que lhe permitia formar e emitir maior variedade de sons em rápida sucessão. Mas ele pagou um preço por isso: a faringe mais longa significava que a laringe ficara tão baixa na garganta a ponto de se juntar ao canal por onde descia o alimento, criando assim o risco de que caísse na traquéia e o sufocasse.

A capacidade de falar do Homo sapiens sapiens também deve ter provocado algum efeito em sua aparência externa. Concluímos isso observando os bebês humanos de hoje, que nascem sem a faringe totalmente desenvolvida. Com três meses, à medida que seu aparelho fonador começa a tomar forma, a laringe coloca-se em posição mais baixa; nesse ponto, a base do crânio começa a se arquear, formando uma parede acima da faringe. É possível que ao longo de milhares de anos esse arqueamento da base do crânio tenha tido o efeito de empurrar a face saliente do Homo erectus para dentro. Essa pressão deve ter forçado o cérebro para trás e para cima, dando ao crânio do Homo sapiens sapiens a forma mais arredondada que hoje possui.

Embora ainda não comprovada, essa teoria explicaria a grande velocidade das mudanças biológicas que transformaram o Homo erectus e seus descendentes no homem anatomicamente moderno. As inúmeras vantagens que um falante possuía com relação a um não-falante transformaram-se em mais uma poderosa razão evolutiva para essas rápidas mudanças. Os não-falantes, ou possuidores de uma linguagem muito restrita, acabariam por transformar-se em virtuais cidadãos de segunda classe, relegados aos confins do mundo habitável, condenados a viver apenas onde a população falante não quisesse viver e a comer apenas o que esta última desprezasse. Muito em breve, suas condições inferiores de vida fariam com que seu número começasse a declinar, enquanto aumentava o da população falante. É claro que boa parte disso não passa de especulação, baseada em achados arqueológicos no Oriente Próximo, África e Europa. Praticamente não existem evidências do que acontecia por essa época na Arábia, na Ásia central ou Índia; ninguém pode garantir a possível existência de fósseis à espera de uma inundação, ou da explosão de uma pedreira, para lançar mais luz sobre o mistério: um Neanderthal ainda vivo em 10 000 a.C., ou um Homo sapiens sapiens na Europa antes de 100 000 a.C.

Por ora, entretanto, as evidências existentes apontam para um Homo sapiens sapiens vitorioso, talvez com a ajuda da linguagem, o que implica um golpe de estado evolutivo. Por volta de 30 000 a.C., os seres humanos anatomicamente modernos já haviam alcançado a supremacia sobre todas as outras espécies do planeta. A partir desse momento, o desenvolvimento da história da humanidade deixou de ser o da natureza moldando seres humanos e começou a ser o dos seres humanos moldando a natureza.


A TRAJETÓRIA DA EVOLUÇÃO

Primeiro capítulo do livro A AURORA DA HUMANIDADE

Da série HISTÓRIA EM REVISTA

Editado por TIME-LIFE BOOKS

Publicado por ABRIL LIVROS

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