A exploração do Ceará, embora tenha sido
um dos últimos desdobramentos da expansão lusa na costa do Brasil, reveste-se
duma importância que, à primeira vista, escapa ao olhar do historiador, de vez
que ela completa o vazio existente entre o Nordeste brasileiro já colonizado e
o Extremo Norte em vias de colonização. Demais, somente portugueses a
realizaram sob o domínio espanhol, depois de haverem, vencendo grandes
dificuldades, fundado Natal e chegado mesmo às salinas de Mossoró. Conheciam o
Maranhão até o rio Punaré, crismado em Parnaíba, por onde já andavam os
franceses, enquanto os ingleses montavam fortins bem guarnecidos no estuário do
Amazonas.
Já sob o domínio espanhol se fizera em
1585 a conquista da Paraíba, passo maior de que resultariam a fundação de Natal
e a exploração do Ceará. A predominância dos corsários franceses no seio da
indiada paraibana forçara três governadores-gerais, Luís de Brito e Almeida,
Lourenço da Veiga e Manuel Teles da Silva, apoiados pelo ouvidor-geral Fernão
da Silva e por Francisco Castrejon, a envidarem esforços para dali os
expulsarem. Nesse tentâmen, prestou bons serviços à esquadra espanhola de Diogo
Flores Valdez, que percorreu o litoral brasílico, batendo os ingleses que o frequentavam.
Se os franceses mantivessem a posse da Paraíba e conseguissem, como sempre
desejaram, a do Maranhão, a fronteira da América Portuguesa se deteria aquém do
cabo de São Roque.
Em Pernambuco, onde se encontrava, o
ouvidor-geral Martin Leitão, magistrado e bandeirante, organizou uma expedição
com 500 homens brancos, armados de mosquetes e arcabuzes, servidos por grande
número de auxiliares indígenas, partindo dali por terra a 26 de fevereiro de
1585. Frei Vicente do Salvador descreve com entusiasmo a tropa que marchava
para a guerra: “Com este exército, que foi a mais formosa cousa que Pernambuco
viu, nem sei se verá, foi o ouvidor dormir no campo de Igaraçu. Ao quarto dia,
que foi o 1º de março, foi dormir além do rio Taporemas. Cinco dias depois,
chegou a expedição à campina da Paraíba”.
A 6 de março de 1585, os portugueses
ocupavam definitivamente a Paraíba, assentando nos areais de Cabedelo os
fundamentos da fortaleza de Santa Catarina. Dali avançariam em seguida para o
Potengí, em cuja foz calçada de recifes Manuel de Mascarenhas levantaria o
forte dos Reis Magos. Continuava, no entanto, ignorada e deserta a região
costeira entre os rios Mossoró e Punaré, que raros navegadores por acaso tinham
visitado. Conheciam-se por isso vagamente alguns dos pontos principais: a foz
do Rio das Onças, o Jaguaribe; a enseada do caminho da Mucura, o Mucuripe; o
buraco das Tartarugas ou Jericoacoara; o porto do Pote ou do Camocim. As informações
diziam ser a terra ressequida e povoada de feras e canibais, com dunas de areia
movediça ao longo das praias. Falava-se da existência de âmbar e pérolas, cujo
eco encontraremos ainda no poema “Caramuru”, de Santa Rita Durão:
O Ceará, depois,
província vasta,
Sem portos e comércio,
jaz inculta:
Gentio imenso que em
seus campos pasta,
Mais fero que outros o
estrangeiro insulta.
Com violento curso ao
mar se arrasta
De um lado do sertão,
de que resulta,
Rio, onde pescam nas
profundas minas
As brasílicas pérolas
mais finas.
Afora esse rio, esse
lago e essas pérolas, no mais a descrição do épico se casa, tanto na incultura
do solo quanto na fereza do gentio, com a verdade dos fatos naquela época. A
indiada Tupi, do ramo Tupinambá, os guerreiros por excelência, - Tabajaras,
Potiguaras, Carijós, Parangabas, Chocós, Ipus, Paupinas, Caucaias, Tacarijus,
Caratiús, Camamus, Areriús, Anacés, Jaguaribaras, estacionava pelo litoral e
pelas serras frescas das proximidades, perlongando às vezes os vales dos rios.
Os Cariris, mais ferozes, - Tremembés, Icós, Jucás, Canindés, Quixelôs, Cariús,
Capixabas, Inhamuns, ocupavam os altos sertões.
A fronteira lusa em face desses bárbaros,
em 1599, ao findar o Século XVI, era balizada pelo forte dos Reis Magos e a
vila de Natal; ao Norte, pelo Maranhão. No começo do Século XVII, avançou do
lado meridional para a região do rio Mossoró, do chamado Ceará Pequeno,
Ceará-Mirim. Então, os inimigos políticos e sobretudo, religiosos da Espanha
Imperial, ingleses, franceses e holandeses, corvejaram sobre o Brasil,
pirateando e procurando fixar-se neste ou naquele ponto menos defendido. Foi
quando, em 1603, um bandeirante destemido procurou devassar o ignoto trato da
terra cearense e incorporá-lo de vez ao todo brasileiro, acabando com a solução
de continuidade existente entre o Nordeste e o Extremo Norte da Colônia.
Natural do Açores, chamava-se Pero Coelho de Sousa e era casado com D. Maria
Tomásia Barbosa, irmã de Frutuoso Barbosa, donatário da capitania da Paraíba.
Ali chegara por volta de 1590, depois de deixar o cargo de capitão duma galera
d’El-Rei, tendo aventurado e gasto em tentativas agrícolas todas as suas
economias. A necessidade de ressarcir os prejuízos levou-o à aventura duma nova
conquista. Requereu, pois, como era de praxe, e, obteve a Coroa, por intermédio
do governador-geral Diogo Botelho, a patente de capitão-mor e os necessários
privilégios para desbravar e colonizar a então chamada província do Jaguaribe e
Ceará, o Ceará Grande.
O regimento da expedição de Pero Coelho de
Sousa foi-lhe dado a 21 de janeiro de 1603, mas os preparativos duraram até
meados do ano, de modo que a partida só efetuou em julho. Compunham-na 65
veteranos portugueses sob o comando de Manuel de Miranda, Simão Nunes Correia,
João Cide, João Vaz Tataperica e Martin Soares Moreno, que se imortalizaria na
história da guerra holandesa e na literatura nacional como o guerreiro branco
da Iracema de Alencar. Turgimãos, línguas ou intérpretes eram um francês
apelidado Tuim-mirim, o Periquito, e Pedro Fernandes Congatam, que, mais tarde,
serviu na Casa da Torre de Garcia d’Ávila, na Bahia, e foi indicado por volta
de 1618 para acompanhar Domingos Afonso do Sobrado na sua entrada pelo sertão,
como grande sabedor das falas e usanças do gentio, Aos 65 soldados portugueses
acompanhavam cerca de 200 frecheiros indígenas sob a chefia de seus naturais:
Guaratinguira, Batatan, Caraguatim e Mandioca-puba. Através desses auxiliares
nativos tinham os expedicionários as eternas informações lendárias da
existência de ouro. O metal precioso que desvairava as imaginações se
encontraria nos tombadores e paredões da Ibiapaba, a Serra Grande, bem como no
fundo misterioso dos sertões maranhenses.
Antes de deixar a Paraíba, despachou Pero
Coelho de Sousa para a foz do Jaguaribe três barcos carregados de víveres e
munições, que ali o deviam esperar. Depois, marchou pela costa afora, forçando
as etapas, indo descansar somente na embocadura do rio Ceará, no lugar
denominado Itarema, depois crismado em Matias Pacheco. Foi um repouso
prolongado, pois que só a 18 de janeiro de 1604 a expedição alcançou o Pote ou
Camocim, de onde avistou o azul-escuro da Ibiapaba cortando o horizonte. Dela
se aproximou em seguida pela depressão das quebradas que vêm morrer nas
cercanias da atual cidade de Granja. Ao atingir as faldas da serrania,
receberam-na tiros de mosquete. Eram os franceses dum tal Adolfo Montbille, que
ali já se encontravam de mãos dadas às tribos dos chefes Irapuã, o Mel Redondo,
e de Jurapari-açu, o Diabo Grande. Tinham até trombetas bastardas em que
sopravam as ordens de combate.
Pero Coelho de Sousa e sua gente, embora
cansados e famintos, não recuaram. Na primeira refrega ao pé da cordilheira,
bateram-se bravamente e repeliram os inimigos, perdendo 17 homens. Depois,
assaltaram as cercas ou trincheiras que impediam o acesso ao planalto da
Ibiapaba, tomando-as em ferozes corpo-a-corpo e fartando sua fome nos armazéns
nelas existentes. A mais difícil presa foi o arraial fortificado do Diabo
Grande, que coroava a montanha. Todavia, usando para dele se aproximar a tática
da tortuga romana, Pero Coelho de
Sousa penetrou-o com seus destemidos companheiros, venceu os que o guarneciam,
aprisionou dez mosqueteiros franceses e impôs a paz a Irapuã, Jurupari-açu e
Ubaúna, obrigando Montbille a retirar-se para o Maranhão. Assim, até a Ibiapaba
toda, a terra era do rei de Portugal.
Nada, porém, de ouro para contentar os
vencedores fatigados. Nenhuma recompensa a tantas canseiras. Também nada que
pudesse ali prender os expedicionários. Enfrentava-se um dilema: prosseguir ou
recuar. Regressar seria refazer de mãos vazias a áspera caminhada. Continuar
seria talvez aproximar-se do famoso Eldorado jacente nas florestas tropicais do
Norte. Envaidecido pelos triunfos obtidos, Pero Coelho de Sousa decidiu varar
os araxás do Piauí rumo ao Maranhão. Chegou a atravessar o Parnaíba e a aventurar-se
cerca de 40 léguas além dele; mas os soldados esfaimados, esfarrapados e
doentes o obrigaram a voltar. Alcançaram, assim, em petição de miséria o
primitivo acampamento da barra do Ceará, onde ergueram mísero fortim, dando ao
arraial o nome de Nova Lisboa e à terra circundante o de Nova Lusitânia. Nas
palhoças ali levantadas, filhos dos arcabuzeiros lusos e das índias, nasceram
os primeiros mestiços cearenses.
Completamente arruinado pelos gastos da
expedição, Pero Coelho de Sousa decidiu colonizar a terra conquistada. Deixou
Simão Nunes Correia no comando do fortim de São Tiago que levantara e seguiu
rumo à Paraíba, levando os prisioneiros franceses e grande número de índios
escravizados na Ibiapaba, que ali vendeu por bom preço. Com o que apurou,
adquiriu víveres, armas, munições, sementes e instrumentos agrícolas, voltando
ao Ceará numa caravela, em companhia da mulher e dos cinco filhos, no ano de
1605.
No Ceará, levado pela necessidade de fazer
dinheiro, o capitão-mor entregou-se com seus comandados frutuoso mister de
escravizar e vender índios para os estabelecimentos açucareiros de Pernambuco.
Começou fazendo guerra de corso aos Tapuias Tremembés e acabou peando os
próprios Tabajaras e Potiguaras aliados. Fez-se em conseqüência o vazio em
torno do arraial da Nova Lisboa, onde principiou o medo duma aliança da indiada
contra os intrusos. E, como à foz do Jaguaribe devia chegar breve João
Soromenho com seis barcos carregados de mantimentos, sendo, além disso, aquele
lugar mais próximo das bases lusas de Natal e Cabedelo, para ali se
transferiram os expedicionários, erguendo um fortim de taipa a que puseram o
nome de São Lourenço. João Soromenho lá estivera e não os esperara, cativando
índios e fazendo-se de vela com essas presas e mais a fazenda que devia
entregar, do que resultou ser preso em 1606, tendo morrido nos cárceres do Limoeiro.
Isto desfez as últimas esperanças daquela gente. Todavia, Pero Coelho de Sousa
se aferrou à terra e recusou retirar-se. Simão Nunes Correia e os homens mais
válidos o abandonaram. Ficou com a família e meia dúzia de soldados
estropiados. O gentio cercava de longe o perdido reduto, sem ânimo de atacar o
leão na sua toca. Dera a Pero coelho de Sousa o apelido de Punaré em memória do
seu avanço vitorioso até aquele longínquo rio. Suas vitórias sobre os franceses
e os morubixabas da Serra Grande o aureolavam de tal prestígio que os selvagens
não se atreviam sequer a enfrentar o velho Punaré.
A seca, porém, desabou sobre o Ceará
Grande, a primeira de que se tem notícia, e expulsou os conquistadores, que
atravessaram em balsas o Jaguaribe e rumaram pelas dunas costeiras para o Rio
Grande do Norte. Iniciaram, assim, uma epopeia trágica que Diogo de Campos
Moreno comparou com toda a razão à de Manuel de Sousa de Sepúlveda na terra dos
cafres. Faltou um Camões, para cantá-la. Não era possível um Camões para cada
uma dessas epopeias, numa época em que Portugal as atirava com largueza pelos
litorais desabitados e pelos sertões adustos na Ásia, na África e na América,
dando vida pela dor e pelo heroísmo a mundos novos, com sangue, suor e lágrimas
fecundando os desertos.
Na caminhada, levava Pero Coelho de Sousa
às costas dois filhos pequeninos. D. Maria Tomásia conduzia outro. Os mais
velhos marchavam com os soldados combalidos. O Sol ardente queimava-os como
ferro em brasa. No segundo dia da retirada, morreu de fome, sede e fadiga o
carpinteiro da expedição. No terceiro, descansaram ao pé duma cacimba de índios
pescadores, sentindo-se acompanhados de longe pelos selvagens. Mais adiante, a
água de outras cacimbas era choca, amargosa, impossível de beber. As crianças
choravam de cortar o coração. Pouco a pouco, aquela marcha se ia tornando um
calvário com as torturas de Ugolino e Tântalo. Morreram duas das crianças
menores. Dias depois, o filho mais velho do capitão-mor, um rapaz de 18 anos,
morreu de inanição. O golpe deixou-o tão abatido que não teve voz para mais
nada. Foi de então por diante D. Maria Tomásia quem se tornou o guia enérgico
daquela procissão de espectros que se arrastava sobre as alvas areais das
praias nordestinas. Enfim, meia dúzia de vultos seminus tombaram esvaídos nas
dunas fronteiras a Natal quando o vigário da vila à frente de alguns índios
mansos os apanhou, socorreu e salvou da morte.
Pero Coelho de Sousa não se refez nem se
podia refazer dessa luta titânica. Morreu cristãmente em Lisboa, após ter ido
da Paraíba para o Reino, a requerer paga de seus serviços, mais pobre do que
nunca, sem dinheiro para o lençol da mortalha. Além disso, não faltou quem o
caluniasse, atribuindo-lhe a culpa de tudo o que acontecera no malogro de sua
expedição. A verdade, no entanto, é que escreveu com o suor das angústias, as
lágrimas da dor e o sangue do martírio a primeira página da história do Ceará,
a qual como que foi o anúncio do destino impiedoso duma terra de Sol e de dor. Essa
página gloriosa dos Conquistadores da Ibiapaba demonstra que, sob o poderoso
domínio da Espanha Imperial, a alma de Portugal nunca deixou de palpitar, cheia
de vida, nas terras que seus filhos descobriram e povoaram, devassando-as,
explorando-as, aumentando-as, expulsando delas os intrusos e invasores,
dominando serranias e sertões, varando os rios, palmilhando os litorais,
costurando as soluções de continuidade e prosseguindo sem pausa ou desfalecimento
a obra formidável da dilatação da Fé e do Império.
É pena que nos nossos livros de história
pátria, obedientes a rotinas e ignorâncias, não se dê o necessário lustre a
episódios como este dos Conquistadores da Ibiapaba.
- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição em 2004, de onde foi copiado este capítulo, sob os auspícios da FUNCET-PMF.
Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.
Existe a possibilidade de Maria Tomázia não ser irmã de Frutuoso Barbosa e sim cunhada, pois seria irmã de Felipa Cardiga, esposa de Frutuoso Barbosa, portanto, Pero Coelho seria seu concunhado segundo Casimiro de Abreu
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