segunda-feira, 25 de junho de 2012

OS CONQUISTADORES DA IBIAPABA


     A exploração do Ceará, embora tenha sido um dos últimos desdobramentos da expansão lusa na costa do Brasil, reveste-se duma importância que, à primeira vista, escapa ao olhar do historiador, de vez que ela completa o vazio existente entre o Nordeste brasileiro já colonizado e o Extremo Norte em vias de colonização. Demais, somente portugueses a realizaram sob o domínio espanhol, depois de haverem, vencendo grandes dificuldades, fundado Natal e chegado mesmo às salinas de Mossoró. Conheciam o Maranhão até o rio Punaré, crismado em Parnaíba, por onde já andavam os franceses, enquanto os ingleses montavam fortins bem guarnecidos no estuário do Amazonas.

     Já sob o domínio espanhol se fizera em 1585 a conquista da Paraíba, passo maior de que resultariam a fundação de Natal e a exploração do Ceará. A predominância dos corsários franceses no seio da indiada paraibana forçara três governadores-gerais, Luís de Brito e Almeida, Lourenço da Veiga e Manuel Teles da Silva, apoiados pelo ouvidor-geral Fernão da Silva e por Francisco Castrejon, a envidarem esforços para dali os expulsarem. Nesse tentâmen, prestou bons serviços à esquadra espanhola de Diogo Flores Valdez, que percorreu o litoral brasílico, batendo os ingleses que o frequentavam. Se os franceses mantivessem a posse da Paraíba e conseguissem, como sempre desejaram, a do Maranhão, a fronteira da América Portuguesa se deteria aquém do cabo de São Roque.

     Em Pernambuco, onde se encontrava, o ouvidor-geral Martin Leitão, magistrado e bandeirante, organizou uma expedição com 500 homens brancos, armados de mosquetes e arcabuzes, servidos por grande número de auxiliares indígenas, partindo dali por terra a 26 de fevereiro de 1585. Frei Vicente do Salvador descreve com entusiasmo a tropa que marchava para a guerra: “Com este exército, que foi a mais formosa cousa que Pernambuco viu, nem sei se verá, foi o ouvidor dormir no campo de Igaraçu. Ao quarto dia, que foi o 1º de março, foi dormir além do rio Taporemas. Cinco dias depois, chegou a expedição à campina da Paraíba”.

     A 6 de março de 1585, os portugueses ocupavam definitivamente a Paraíba, assentando nos areais de Cabedelo os fundamentos da fortaleza de Santa Catarina. Dali avançariam em seguida para o Potengí, em cuja foz calçada de recifes Manuel de Mascarenhas levantaria o forte dos Reis Magos. Continuava, no entanto, ignorada e deserta a região costeira entre os rios Mossoró e Punaré, que raros navegadores por acaso tinham visitado. Conheciam-se por isso vagamente alguns dos pontos principais: a foz do Rio das Onças, o Jaguaribe; a enseada do caminho da Mucura, o Mucuripe; o buraco das Tartarugas ou Jericoacoara; o porto do Pote ou do Camocim. As informações diziam ser a terra ressequida e povoada de feras e canibais, com dunas de areia movediça ao longo das praias. Falava-se da existência de âmbar e pérolas, cujo eco encontraremos ainda no poema “Caramuru”, de Santa Rita Durão:

          O Ceará, depois, província vasta,
          Sem portos e comércio, jaz inculta:
          Gentio imenso que em seus campos pasta,
          Mais fero que outros o estrangeiro insulta.
          Com violento curso ao mar se arrasta
          De um lado do sertão, de que resulta,
          Rio, onde pescam nas profundas minas
          As brasílicas pérolas mais finas.

     Afora esse rio, esse lago e essas pérolas, no mais a descrição do épico se casa, tanto na incultura do solo quanto na fereza do gentio, com a verdade dos fatos naquela época. A indiada Tupi, do ramo Tupinambá, os guerreiros por excelência, - Tabajaras, Potiguaras, Carijós, Parangabas, Chocós, Ipus, Paupinas, Caucaias, Tacarijus, Caratiús, Camamus, Areriús, Anacés, Jaguaribaras, estacionava pelo litoral e pelas serras frescas das proximidades, perlongando às vezes os vales dos rios. Os Cariris, mais ferozes, - Tremembés, Icós, Jucás, Canindés, Quixelôs, Cariús, Capixabas, Inhamuns, ocupavam os altos sertões.

     A fronteira lusa em face desses bárbaros, em 1599, ao findar o Século XVI, era balizada pelo forte dos Reis Magos e a vila de Natal; ao Norte, pelo Maranhão. No começo do Século XVII, avançou do lado meridional para a região do rio Mossoró, do chamado Ceará Pequeno, Ceará-Mirim. Então, os inimigos políticos e sobretudo, religiosos da Espanha Imperial, ingleses, franceses e holandeses, corvejaram sobre o Brasil, pirateando e procurando fixar-se neste ou naquele ponto menos defendido. Foi quando, em 1603, um bandeirante destemido procurou devassar o ignoto trato da terra cearense e incorporá-lo de vez ao todo brasileiro, acabando com a solução de continuidade existente entre o Nordeste e o Extremo Norte da Colônia. Natural do Açores, chamava-se Pero Coelho de Sousa e era casado com D. Maria Tomásia Barbosa, irmã de Frutuoso Barbosa, donatário da capitania da Paraíba. Ali chegara por volta de 1590, depois de deixar o cargo de capitão duma galera d’El-Rei, tendo aventurado e gasto em tentativas agrícolas todas as suas economias. A necessidade de ressarcir os prejuízos levou-o à aventura duma nova conquista. Requereu, pois, como era de praxe, e, obteve a Coroa, por intermédio do governador-geral Diogo Botelho, a patente de capitão-mor e os necessários privilégios para desbravar e colonizar a então chamada província do Jaguaribe e Ceará, o Ceará Grande.

     O regimento da expedição de Pero Coelho de Sousa foi-lhe dado a 21 de janeiro de 1603, mas os preparativos duraram até meados do ano, de modo que a partida só efetuou em julho. Compunham-na 65 veteranos portugueses sob o comando de Manuel de Miranda, Simão Nunes Correia, João Cide, João Vaz Tataperica e Martin Soares Moreno, que se imortalizaria na história da guerra holandesa e na literatura nacional como o guerreiro branco da Iracema de Alencar. Turgimãos, línguas ou intérpretes eram um francês apelidado Tuim-mirim, o Periquito, e Pedro Fernandes Congatam, que, mais tarde, serviu na Casa da Torre de Garcia d’Ávila, na Bahia, e foi indicado por volta de 1618 para acompanhar Domingos Afonso do Sobrado na sua entrada pelo sertão, como grande sabedor das falas e usanças do gentio, Aos 65 soldados portugueses acompanhavam cerca de 200 frecheiros indígenas sob a chefia de seus naturais: Guaratinguira, Batatan, Caraguatim e Mandioca-puba. Através desses auxiliares nativos tinham os expedicionários as eternas informações lendárias da existência de ouro. O metal precioso que desvairava as imaginações se encontraria nos tombadores e paredões da Ibiapaba, a Serra Grande, bem como no fundo misterioso dos sertões maranhenses.

    Antes de deixar a Paraíba, despachou Pero Coelho de Sousa para a foz do Jaguaribe três barcos carregados de víveres e munições, que ali o deviam esperar. Depois, marchou pela costa afora, forçando as etapas, indo descansar somente na embocadura do rio Ceará, no lugar denominado Itarema, depois crismado em Matias Pacheco. Foi um repouso prolongado, pois que só a 18 de janeiro de 1604 a expedição alcançou o Pote ou Camocim, de onde avistou o azul-escuro da Ibiapaba cortando o horizonte. Dela se aproximou em seguida pela depressão das quebradas que vêm morrer nas cercanias da atual cidade de Granja. Ao atingir as faldas da serrania, receberam-na tiros de mosquete. Eram os franceses dum tal Adolfo Montbille, que ali já se encontravam de mãos dadas às tribos dos chefes Irapuã, o Mel Redondo, e de Jurapari-açu, o Diabo Grande. Tinham até trombetas bastardas em que sopravam as ordens de combate.

     Pero Coelho de Sousa e sua gente, embora cansados e famintos, não recuaram. Na primeira refrega ao pé da cordilheira, bateram-se bravamente e repeliram os inimigos, perdendo 17 homens. Depois, assaltaram as cercas ou trincheiras que impediam o acesso ao planalto da Ibiapaba, tomando-as em ferozes corpo-a-corpo e fartando sua fome nos armazéns nelas existentes. A mais difícil presa foi o arraial fortificado do Diabo Grande, que coroava a montanha. Todavia, usando para dele se aproximar a tática da tortuga romana, Pero Coelho de Sousa penetrou-o com seus destemidos companheiros, venceu os que o guarneciam, aprisionou dez mosqueteiros franceses e impôs a paz a Irapuã, Jurupari-açu e Ubaúna, obrigando Montbille a retirar-se para o Maranhão. Assim, até a Ibiapaba toda, a terra era do rei de Portugal.

     Nada, porém, de ouro para contentar os vencedores fatigados. Nenhuma recompensa a tantas canseiras. Também nada que pudesse ali prender os expedicionários. Enfrentava-se um dilema: prosseguir ou recuar. Regressar seria refazer de mãos vazias a áspera caminhada. Continuar seria talvez aproximar-se do famoso Eldorado jacente nas florestas tropicais do Norte. Envaidecido pelos triunfos obtidos, Pero Coelho de Sousa decidiu varar os araxás do Piauí rumo ao Maranhão. Chegou a atravessar o Parnaíba e a aventurar-se cerca de 40 léguas além dele; mas os soldados esfaimados, esfarrapados e doentes o obrigaram a voltar. Alcançaram, assim, em petição de miséria o primitivo acampamento da barra do Ceará, onde ergueram mísero fortim, dando ao arraial o nome de Nova Lisboa e à terra circundante o de Nova Lusitânia. Nas palhoças ali levantadas, filhos dos arcabuzeiros lusos e das índias, nasceram os primeiros mestiços cearenses.

     Completamente arruinado pelos gastos da expedição, Pero Coelho de Sousa decidiu colonizar a terra conquistada. Deixou Simão Nunes Correia no comando do fortim de São Tiago que levantara e seguiu rumo à Paraíba, levando os prisioneiros franceses e grande número de índios escravizados na Ibiapaba, que ali vendeu por bom preço. Com o que apurou, adquiriu víveres, armas, munições, sementes e instrumentos agrícolas, voltando ao Ceará numa caravela, em companhia da mulher e dos cinco filhos, no ano de 1605.

     No Ceará, levado pela necessidade de fazer dinheiro, o capitão-mor entregou-se com seus comandados frutuoso mister de escravizar e vender índios para os estabelecimentos açucareiros de Pernambuco. Começou fazendo guerra de corso aos Tapuias Tremembés e acabou peando os próprios Tabajaras e Potiguaras aliados. Fez-se em conseqüência o vazio em torno do arraial da Nova Lisboa, onde principiou o medo duma aliança da indiada contra os intrusos. E, como à foz do Jaguaribe devia chegar breve João Soromenho com seis barcos carregados de mantimentos, sendo, além disso, aquele lugar mais próximo das bases lusas de Natal e Cabedelo, para ali se transferiram os expedicionários, erguendo um fortim de taipa a que puseram o nome de São Lourenço. João Soromenho lá estivera e não os esperara, cativando índios e fazendo-se de vela com essas presas e mais a fazenda que devia entregar, do que resultou ser preso em 1606, tendo morrido nos cárceres do Limoeiro. Isto desfez as últimas esperanças daquela gente. Todavia, Pero Coelho de Sousa se aferrou à terra e recusou retirar-se. Simão Nunes Correia e os homens mais válidos o abandonaram. Ficou com a família e meia dúzia de soldados estropiados. O gentio cercava de longe o perdido reduto, sem ânimo de atacar o leão na sua toca. Dera a Pero coelho de Sousa o apelido de Punaré em memória do seu avanço vitorioso até aquele longínquo rio. Suas vitórias sobre os franceses e os morubixabas da Serra Grande o aureolavam de tal prestígio que os selvagens não se atreviam sequer a enfrentar o velho Punaré.

     A seca, porém, desabou sobre o Ceará Grande, a primeira de que se tem notícia, e expulsou os conquistadores, que atravessaram em balsas o Jaguaribe e rumaram pelas dunas costeiras para o Rio Grande do Norte. Iniciaram, assim, uma epopeia trágica que Diogo de Campos Moreno comparou com toda a razão à de Manuel de Sousa de Sepúlveda na terra dos cafres. Faltou um Camões, para cantá-la. Não era possível um Camões para cada uma dessas epopeias, numa época em que Portugal as atirava com largueza pelos litorais desabitados e pelos sertões adustos na Ásia, na África e na América, dando vida pela dor e pelo heroísmo a mundos novos, com sangue, suor e lágrimas fecundando os desertos.

     Na caminhada, levava Pero Coelho de Sousa às costas dois filhos pequeninos. D. Maria Tomásia conduzia outro. Os mais velhos marchavam com os soldados combalidos. O Sol ardente queimava-os como ferro em brasa. No segundo dia da retirada, morreu de fome, sede e fadiga o carpinteiro da expedição. No terceiro, descansaram ao pé duma cacimba de índios pescadores, sentindo-se acompanhados de longe pelos selvagens. Mais adiante, a água de outras cacimbas era choca, amargosa, impossível de beber. As crianças choravam de cortar o coração. Pouco a pouco, aquela marcha se ia tornando um calvário com as torturas de Ugolino e Tântalo. Morreram duas das crianças menores. Dias depois, o filho mais velho do capitão-mor, um rapaz de 18 anos, morreu de inanição. O golpe deixou-o tão abatido que não teve voz para mais nada. Foi de então por diante D. Maria Tomásia quem se tornou o guia enérgico daquela procissão de espectros que se arrastava sobre as alvas areais das praias nordestinas. Enfim, meia dúzia de vultos seminus tombaram esvaídos nas dunas fronteiras a Natal quando o vigário da vila à frente de alguns índios mansos os apanhou, socorreu e salvou da morte.

     Pero Coelho de Sousa não se refez nem se podia refazer dessa luta titânica. Morreu cristãmente em Lisboa, após ter ido da Paraíba para o Reino, a requerer paga de seus serviços, mais pobre do que nunca, sem dinheiro para o lençol da mortalha. Além disso, não faltou quem o caluniasse, atribuindo-lhe a culpa de tudo o que acontecera no malogro de sua expedição. A verdade, no entanto, é que escreveu com o suor das angústias, as lágrimas da dor e o sangue do martírio a primeira página da história do Ceará, a qual como que foi o anúncio do destino impiedoso duma terra de Sol e de dor. Essa página gloriosa dos Conquistadores da Ibiapaba demonstra que, sob o poderoso domínio da Espanha Imperial, a alma de Portugal nunca deixou de palpitar, cheia de vida, nas terras que seus filhos descobriram e povoaram, devassando-as, explorando-as, aumentando-as, expulsando delas os intrusos e invasores, dominando serranias e sertões, varando os rios, palmilhando os litorais, costurando as soluções de continuidade e prosseguindo sem pausa ou desfalecimento a obra formidável da dilatação da Fé e do Império.

     É pena que nos nossos livros de história pátria, obedientes a rotinas e ignorâncias, não se dê o necessário lustre a episódios como este dos Conquistadores da Ibiapaba.








- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição em 2004, de onde foi copiado este capítulo, sob os auspícios da FUNCET-PMF.

Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.

Um comentário:

  1. Existe a possibilidade de Maria Tomázia não ser irmã de Frutuoso Barbosa e sim cunhada, pois seria irmã de Felipa Cardiga, esposa de Frutuoso Barbosa, portanto, Pero Coelho seria seu concunhado segundo Casimiro de Abreu

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