CAPÍTULO IV
OS PRÓDROMOS
Não era, pois, o Ceará campo favorável
à planta azeviche das Guinés. Desde cedo, mostrou-se o cearense paladino da
luta contra a exploração do homem pelo homem, como besta de carga.
Pedro Pereira Guimarães, Deputado
à Câmara Geral, como já ficou visto, deixara desde 1850, nos Anais do
Parlamento brasileiro, o traço vivo dessa pré-disposição da raça contra toda
sorte de opressão.
Antes, o grande padre Martiniano
de Alencar, governante de olhos de lince, dera os mais decididos passos para que
a sua Província fosse arroteada pelo suor de colonos estrangeiros, em substituição
ao trabalho das senzalas.
As alforrias espontâneas de
cativos ficaram, logo mais, em uso e estimularam-se após a emancipação
norte-americana de 1865.
Em 1868, com a Resolução nº
1.254, sancionada em 28 de dezembro pelo presidente Diogo Velho Cavalcante de
Albuquerque, a Assembleia Provincial autorizava o Executivo a "despender a
quantia de quinze contos de reis (15:000$) com a emancipação de cem escravos
que forem nascendo, de preferência os do sexo feminino, os quais serão libertados
na pia, cem mil reis cada um" (art. 1º). O Governo deveria distribuir
aquela quantia pelas diferentes comarcas da Província, disso encarregada em
cada Termo uma comissão constituída do pároco, do juiz municipal e do
presidente da Câmara do Município (art. 2º). A emancipação seria feita por
termo assinado pelo senhor do escravo e pela comissão, em livros próprios (art.
3º), e no qual se estipulasse ficar o escravo emancipado a cargo do senhor da mãe,
com a obrigação de sustentá-lo e mantê-lo até a idade de 14 anos (art. 4º).
Cabia ao Presidente da Província informar a Assembleia, nos seus Relatórios
anuais, o número dos escravos libertados e a sua localização, para o que lhe
incumbia baixar o necessário regulamento (art. 5º).
A regulamentação, entretanto,
somente saiu em 8 de novembro do ano seguinte, expedida pelo presidente João Antônio
de Araújo Freitas Henriques, que a executou não sem advertir à Assembleia a inconveniência
da fixação rígida do preço do escravinho a libertar e a dar obrigação do seu
batismo.
A comissão nomeada, na Capital,
compôs-se do padre Dr. Tomás Pompeu de Sousa Brasil (Senador Pompeu), Dr.
Domingos José Nogueira Jaguaribe (depois Visconde de Jaguaribe), Joaquim da Cunha
Freire (mais tarde Barão de Ibiapaba), padre Antônio Pereira de Alencar, Jose
Francisco da Silva Albano (depois Barão de Aratanha) e cônego (posteriormente
Monsenhor) Hipólito Gomes Brasil.
Entendendo que a intenção do
"legislador fora tanto libertar as pagãs como as batizadas e certamente
estas por maioria de razão, contanto que a sua indenização não excedesse ao
quantitativo marcado na lei, abriu concurso para todos indistintamente e
aceitou as propostas neste sentido", - tendo, afinal, liberado 33 escravos,
dos quais 20 por conta da cota provincial e 13 por conta da generosidade de
particulares.
Foram distribuídas as cotas às
seguintes comarcas: Capital - 3:000$; Aracati - 1:050$; Sobral - 1:050$; Crato
- 1:050$; Icó - 1:050$; Baturité - 900$; Quixeramobim - 900$; Granja - 900$; Ipueiras
- 300$; Aquirás - 750$; Santana - 750$; S. João do Príncipe (Tauá) - 750$;
Imperatriz (Itapipoca) - 750$; Jardim - 750$; Saboeiro - 750$. (As manumissões
do Crato e Saboeiro não se efetuaram porque as cotas não foram entregues no
devido tempo).
O acontecimento era, de fato,
quase inédito na historia do Brasil, pois só o Piauí praticara ato igual.
O Senador Pompeu, relator da comissão
de Fortaleza, ressaltava-lhe a importância: "Aproxima-se o dia, somente
retardado por circunstancias e falta de oportunidade, em que os altos poderes
do Estado têm de reduzir a decreto o sentimento que se propaga geralmente no
País. Enquanto, porém, não chega o dia dessa grande redenção, a assembleia
provincial do Ceará, traduzindo este sentimento, apressou-se em concorrer com
uma cota proporcional à renda provincial e ao elemento servil da província para
a emancipação gradual, mandando libertar anualmente cem crianças por meio de indenização
módica a seus senhores, contando com a filantropia dos mesmos; e parece que não
se enganou em sua esperança, pois o resultado obtido nesta Comarca prova de
sobejo que não se apelou em vão para os sentimentos caridosos de seus habitantes".
E conclui; "Hoje, portanto, 33 criaturas passam do estado de cousa,
segundo a expressão jurídica, ao de personalidade e entram no gozo de um
direito natural, que um fato social lhes recusava, e vêm em homenagem ao dia de
hoje (2 de dezembro, data do aniversario natalício do lmperador) receber das
mãos do Exmo. Presidente esses diplomas, que os fazem entrar no seio da
sociedade".
Realizou-se a festa no Palácio do
Governo ao meio-dia, "momento solene e festivo, em que a província dera o
seu primeiro passo, tomando um posto de honra na vanguarda da propaganda
emancipadora" - anunciava, vaticinando um dos órgãos da imprensa local.
Nas comarcas do sertão os
resultados se igualaram aos da capital. No Aracati, a comissão composta de
Francisco Bernardo de Carvalho, José Teixeira de Castro, pe. João Francisco de
Sá e Silvestre Ferreira dos Santos Caminha deu cartas de alforria (25 de
dezembro) a 10 escravos, sendo 7 pela cota oficial, 2 por sua generosidade
própria e 1 pelo cidadão Manuel Nogueira da Costa. Em Sobral, a comissão era
formada pelo juiz Silvino Soares de Meio, Presidente da Câmara Joaquim Ribeiro
da Silva, o vigário Vicente Jorge de Sousa, e alforriou 11, com o excesso de
430$ sobre a cota legal (2 de dezembro). A da Comarca de lcó, formada pelo Juiz
interino Manuel Coelho Cintra Júnior, o presidente camarário José Boaventura
Bastos, o juiz municipal Francisco Dias e o vigário Manuel Francisco da Frota,
deu alforria (25 de dezembro) a 6 por conta da Província e a 4 pela
generosidade dos particulares: Ana Rufino do Sacramento, Rosalina Enéias
Rabelo, Ângela Severino Franco e Rita Joaquina do Sacramento. Em Baturité
somaram 6 as emancipações. Em Quixeramobim 10, metade pela cota e metade por
pessoas generosas: Manuel Jacinto de Barros Leal, Antônio Francisco Saraiva,
Justino Ferreira da Silva, Francisco Firmo Feliciano, Maria Matilde da Conceição,
Josefa Maria da Silva e vários outros. A comissão formou-se do juiz municipal
Antônio Pinto de Mendonça, do Juiz de Direito Francisco de Assis Bezerra de
Meneses, do pe. José da Cunha Pereira e do Dr. Cornélio José Fernandes, presidente
da Câmara.
Em Santana do Acaraú constituíram
a comissão o pe. Francisco Xavier Nogueira, Vigário colado, o Dr. Antônio
Borges da Fonseca Júnior, Juiz Municipal, e José Bernardino Ferreira Gomes de
Maria, Presidente da Câmara. Encerrou os respectivos trabalhos com a entrega
(1º de fevereiro de 76) de 7 cartas de liberdade (4 pela cota oficial e 3 pela
boa vontade de Alexandre José de Araújo, Jerônimo Bezerra de Araújo, Francisca
Joana Bezerra). Na Vila de São João do Príncipe alforriaram-se 5 (31 de
dezembro) e na da Imperatriz 5 (2 de dezembro). Em Granja, 6. No lpú foram
indenizados 2 (2 de fevereiro de 70). No Aquirás, 6.
Ao todo 112 os primeiros efeitos
daquela Lei de 28 de dezembro de 1868; porém muito mais teria de sair da
iniciativa extra-oficial em campanha que havia de tomar mais a mais amplitude
dominadora.
Efetivamente, a qualquer
pretexto, nas festas de batizados, casamentos, aniversários, atos religiosos,
reuniões maçônicas, sucediam-se as libertações. Os jornais da Capital
noticiavam-nas com destaque e transcreviam notícias doutras Províncias, pondo
em saliência os gestos de abnegação e solidariedade à ideia da extinção da
escravatura.
Atividades mais ousadas, como
belos exemplos, provocavam a emulação, tais como aquela do casal octogenário
João José de Farias-Bernardina Maria do Amor Divino, residente no lugar Patu,
da vila de Maria Pereira (Mombaça), que, duma vez só, quebrou os grilhões aos
seus 35 negros, bem como aqueloutra, eloquentíssima, dos irmãos Manuel
Francisco e Antônio Duarte de Queirós, fazendeiros na freguesia de Quixadá e
chefes, ali, no partido liberal, que fizeram o mesmo em relação aos 84 de sua co-propriedade.
Valentim Gomes Pimenta, de
Quixeramobim, também fazendeiro, libertou 12, tantos quantos possuía, Maria
Francisca de Jesus, moradora no sítio Volta, em Assaré, libertou, dum turno, os
seus 8.
Pessoas da mais fina posição
social cotizavam-se, para comprar liberdades. Associações de caráter diverso
igualmente concorriam para a quebra das gargalheiras infamantes: a Loja
Maçônica Fraternidade Cearense, a sociedade mútua 17 de Janeiro, fundada por
cearenses no Recife, mediante sua comissão em Fortaleza, outra de semelhante
feição criada em Belém, e muitas mais. Desta última era Presidente o Dr.
Esmerino Gomes Parente; vice, o Dr. Antônio Rufino de Sousa Uchoa; 1º
secretário, Dr. Francisco Mendes Pereira; 2º secretário, M. F. Mendonça; Tesoureiro,
João C. de Albuquerque Torres.
Surge então no Ceará a primeira
sociedade libertadora — a de Baturité, organizada em 25 de maio de 1870 e
instalada em 29 de junho por elementos de legítima expressão intelectual:
Presidente, padre (dep ds cônego) Raimundo Francisco Ribeiro (vigário);
Vice-Presidente, Dr. Antônio Pinto Nogueira Acióli (Juiz Municipal); 1º
secretário, Dr. Pergentino de Castro Lobo; Ajudantes de secretário, advogado
Manuel Rodrigues Martins e Dr. Francisco José de Matos; Orador, Dr. Virgílio de
Morais; Tesoureiro, farmacêutico João Francisco Sampaio (este o iniciador da
agremiação); Adjuntos, prof. Antônio Nogueira de Freitas e João Câmara. O
tabelião Raimundo Antônio de Freitas, Geraldo Correia Lima e Balduíno José de
Oliveira eram colaboradores assíduos e fortemente auxiliaram a sociedade nas
suas atividades benfeitoras.
Ao mesmo tempo funda-se outra em
Sobral — a Sociedade Manumissora Sobralense (25 de junho), reunindo no paço da
Câmara Municipal "grande número de pessoas gradas, com o louvável fim de
instalar-se uma sociedade que tem por fim libertar crianças do sexo
feminino". Os estatutos sociais foram preparados pelos Srs. José Antônio
Moreira da Rocha (depois Comendador) e Dr. Vicente Alves de Paula Pessoa
(depois Senador do Império).
Evidentemente, não se suportava
mais nos climas cearenses a continuação da escravatura. Os contemplativos do
assunto passaram a ser olhados como suspeitos.
Na Assembleia Legislativa agitou
os ânimos o deputado Manuel Ambrósia Portugal com o projeto que tomou o nº 5,
de 9 de setembro (1870) e tinha esta redação: "Artigo único: — Fica em
vigor a Resolução nº 1.254, de 28 de dezembro de 1868, com as seguintes
alterações:
§ 1º - Fica o presidente da
província autorizado a despender anualmente a quantia de 20:000$ com alforrias
de escravos, cuja idade não exceder a sete anos;
§ 2º - Os do sexo feminino serão
alforriados de preferência aos do sexo masculino;
§ 3º - Cada escravo dos que
tratam os parágrafos antecedentes será libertado por preço nunca excedente de
120$”.
Aprovado em primeira discussão na
sessão de 12 e, em segunda, na de 14 sem qualquer discussão, teve a sua
terceira (dia 15) adiada por oito dias e somente na sessão de 30 veio a ser
apreciado, já acrescida de duas emendas: uma do deputado Joaquim Mendes da Cruz
Guimarães filho e outra do próprio autor do projeto. A primeira reduzia, de 20
para 15 contos de réis, o total da autorização, e a segunda elevava para 150$ o
preço da liberdade de cada escravo a remir.
Sofreu a proposição de Torres
Portugal aceso combate dos Srs. Manuel Soares da Silva Bezerra e Gustavo
Gurgulino de Sousa, os quais, aceitando em tese a necessidade da abolição, se
opunham àquele meio de obtê-la por via de indenização com dinheiros públicos.
Sustentava Soares Bezerra que
"podemos modificar a escravidão, mas não destruí-la, porque ela tem a sua
origem no princípio do mundo, e é da natureza humana, para quem tem este mundo
por um mundo de expiação". E ajuntava, ao fogo de constantes apartes:
"Sou amigo da liberdade do escravo, porque tenho coração de homem, porque
não reconheço o direito de um homem sobre outro, e porque o evangelho me diz —
ama o teu próximo como a ti mesmo — mas isso não quer dizer que forriemos já os
escravos todos". Mais ainda: "O que será do Brasil com essa multidão
de homens sem educação, sem sentimentos, sem brios, como são os escravos,
feitos de repente cidadãos e gozando de todos os direitos? Homens acostumados
ao trabalho forçado, porque têm senhor que lhes dá o comer e vestiário; a que
não ficaria exposta a nossa propriedade? Eu creio, senhores, que seria o maior
mal que se poderia fazer ao Brasil".
Falava o deputado opositor,
apesar de fervoroso católico, a linguagem dos que, presos aos interesses
patrimoniais, desejavam
sentimentalmente a liberdade dos negros, porém na realidade não queriam efetivá-la. A tecla dava o
mesmo som: a Província estava em déficit e melhor seria aplicar o dinheiro na
construção de estradas, pois ao Império e não a ela cabia gastar com tal
negócio. Pura vaidade — acrescentava-se — pretender manumitir escravos com as
arcas do tesouro provincial!
O projeto, entretanto, foi
vibrantemente defendido pelo seu inspirador "Feliz para o Brasil será o
dia em que dos ventres das mulheres, que hoje são escravas, não saiam senão
defensores da liberdade e obreiros do progresso". Sensatamente explicava:
"Senhores, o fim do projeto não é libertar de chofre, de uma vez só, todos
os escravos da Província, não; nem o cofre provincial tem força para tanto; é
fazer alguma coisa em bem do elemento servil".
E um aparte ajudou: "A
província do Piauí foi a primeira que votou uma verba para a liberdade de
escravos... cabe-lhe esta glória; e se o Ceará for a primeira província que
extinguir a escravidão; terá também uma grande glória".
A despeito da oposição recebida,
veio o projeto a converter-se, com as emendas, na Lei nº 1.334, de 22 de
outubro, anunciada pelo presidente João Antônio de Araújo Freitas Henriques.
CAPÍTULO V
A PERSEVERANÇA E PORVIR
Em nada se alterava, nos fins de
1879, o quadro de sofrimento da gente cearense. A seca dos três anos anteriores
fora o mais atordoante golpe que jamais recebera, tantas as desgraças
acumuladas — a fome: as pestes, a desordem dos malfeitores, e desorganização em
tudo, trazendo o afrouxamento das energias físicas e das virtudes inerentes ao
povo do sertão.
Não havia limites ao doloroso
flagelo. Dir-se-ia o homem totalmente esquecido de Deus, ou mais que isto, alvo
das iras divinas. E, por cima de tudo, o escárnio dos administradores do sul,
da Corte, onde se duvidava, sem-cerimoniosamente, da hecatombe de que era
teatro o Nordeste. No Parlamento do Império, deputados e senadores negavam a
existência da estiagem maldita ou friamente lhe restringiam a extensão, para
assim se esquivarem à remessa de dinheiros e gêneros alimentícios que
mitigassem a dor enorme de milhões de nordestinos reduzidos à expressão sob o
látego impiedoso do seu destino de provocações.
Obstinadamente, não se aceitava
haverem-se esgotado as derradeiras reservas do corpo e da moral de uma
população de valentes, agora quase toda de luto na alma, porque não podia
vestir-se fisicamente de preto, à falta de qualquer possibilidade econômica.
Dois anos de supremas e irreparáveis
angústias, por isso que termina o "terrível ano de 1878 amaldiçoado por
uma geração inteira, deixando ao povo cearense as mais dolorosas recordações de
sua passagem fatal! Não havia família em toda a Província que, em tão
calamitoso período, não tivesse pranteado a morte de um parente, de um amigo.
Ele principiou com a fome e terminou com a peste! A febre biliosa, o beribéri,
a anasarca, a disenteria, a varíola haviam superlotado os cemitérios. Na cidade
de Fortaleza, em doze meses, sepultaram-se nos cemitérios de S. João Batista e
da Lagoa Funda, 56.791 pessoas, mortandade espantosa para uma população de 124
mil almas" — população adventícia em mais de dois terços, chegada do
interior e abarracada ao léu.
Na data de 10 de dezembro
morreram de varíola, na Capital, 1.012 indivíduos, tantos que os coveiros, de
extenuados, não os puderam sepultar no mesmo dia; ficando à espera da cova,
para a manhã seguinte, 230 cadáveres. A 31, falecia a esposa do Presidente da
Província, D. Manieta Gabaglia de Albuquerque Barros, vítima da doença. "A
saída de um enterro da casa da primeira autoridade incutiu, no espírito da
população e principalmente na classe ignorante, um grande terror!"
Mas os parlamentares do Rio de
Janeiro não sentiam tamanho desconjuntamento na vida da pequena Província e,
sem mais razões, suspendiam os socorros oficiais, que vinham em espécie, as
mais das vezes, criminosamente deteriorados. Resolveram, por fim, na sua
cegueira, acabar por decreto a seca nas províncias do Norte e proibir se
continuasse fazendo despesas, não orçadas, por conta da verba Socorros
Públicos. "De julho em diante não é possível o tesouro continuar a fazer
semelhantes suprimentos" — dizia em ofício o conselheiro Afonso Celso,
Ministro da Fazenda, ao seu colega de Ministério, conselheiro Carlos Leôncio de
Carvalho.
Foi preciso que o Imperador lhes
fizesse ver que "o Brasil não está em condições de deixar morrer de fome
uma província," para que, na realidade, a hecatombe não assumisse
proporções mais arrasadoras. A continuação dos socorros do Governo e a
emigração a granel para outras regiões aliviavam a pressão, como remédio de
paliativo, porém a ferida não sarava.
Nesse ambiente de verdadeira
desagregação econômico-social, a cidade assistia aos embarques de pobres
escravos, vendidos para as senzalas dos cafezais do Paraíba do Sul. Rodolfo
Teófilo, testemunha presencial dos fatos, conta-nos assim aquelas cenas
dilacerantes: "Abriam-se alguns escritórios de compra de escravos para se
aproveitarem torpemente do último recurso que restava ao infeliz matuto. A
mercadoria era comprada no interior por baixo preço; as peças custavam às vezes
duas sacas de farinha ao magarefe italiano, que afrontava os perigos das longas
travessias. Saíram durante o ano de 1877, pelo porto de Fortaleza, 2.909
escravos para o sul do Império. Era um quadro desolador o embarque desses
desgraçados. Todos uniformizados de fazenda azul de algodão, acompanhados pelo
corretor, espécie de hiena domesticada, seguiam para o ponto de embarque. Não
havia nenhuma dessas vítimas da barbaridade humana que, ao pôr o pé na jangada,
não olhasse com os olhos úmidos de pranto para o azul do céu de sua terra.
Todos choravam, mas suas lágrimas corriam despercebidas: eram lágrimas de
escravos. Ninguém tinha dó deles! Quem podia ouvir eram os desgraçados também
agrilhoados nas senzalas dos grandes da terra".
E foi com a
visão confrangente de espetáculos tais, que dez moços de fé se uniram numa
sociedade de fins econômicos, em molde de cooperativa, cujos lucros, em parte,
se destinavam à manumissão de pretos escravizados.
Surgiu para
os fastos do abolicionismo brasileiro a Perseverança e Porvir, instalada no dia
28 de setembro, em homenagem, expressamente declarada, ao oitavo aniversário da
Lei do Ventre Livre. A sessão efetuou-se na casa então nº 100 da Rua Formosa
(hoje e desde 1909, Rua Barão do Rio Branco), presentes os "sócios
instaladores": José Correia do Amaral, José Teodorico de Castro, Joaquim
José de Oliveira Filho, Antônio Dias Martins Júnior, Antônio Cruz Saldanha,
José Barros da Silva, Francisco Florêncio de Araújo, Antônio Soares Teixeira
Júnior, Manuel Albano Filho e Alfredo Salgado.
Pelos
estatutos organizados por Martins Júnior e aprovados, com emendas, na reunião
de 19 de outubro, a sociedade manteria um fundo de emancipação, que ia sendo
alimentado com a contribuição espontânea dos associados e uma percentagem nos
ganhos obtidos em cada operação mercantil. A primeira diretoria de mandato
semestral foi eleita na mesma reunião: Presidente - José do Amaral (7 votos);
Vice-Presidente - José Teodorico (5 votos); Tesoureiro - Joaquim de Oliveira
Filho (7 votos); Secretário - Alfredo Salgado (8 votos); Diretores - Antônio
Cruz (7 votos) e Barros da Silva (5 votos). Já se achava ausente o sócio
Teixeira Júnior, de viagem para Lisboa, em tratamento de saúde.
Continuou a
interessante associação as suas reuniões em lugares diversos, ora na Rua Amélia
(hoje Senador Pompeu) nº 125, ora numa das salas do Hotel de L’Univers, na
citada Rua Formosa, ora na Rua Conde d'Eu, até que, de 11 de julho de 1880 em
diante, passou a funcionar na sua sede do "Castelo da Rocha Negra",
dependência da casa de residência do presidente José do Amaral,
"recentemente edificada", na mesma Rua Formosa, no quarteirão adiante
do prédio onde se instalara. A esse tempo já se havia retirado para Belém do
Pará o sócio Teixeira Júnior, pois, voltando da Europa, "não lhe fora possível
obter um emprego condigno". Em sessão de 27 de junho fizera ele a
declaração de sua retirada do Ceará e a sociedade, por seu presidente, explicou
terem sido improfícuos os trabalhos para a consecução do emprego, "em
vista da calamitosa crise comercial que tanto tem amesquinhado a nossa praça".
A
Perseverança e Porvir promoveu e efetivou, em 28 de setembro, sessão
comemorativa do seu primeiro aniversário de fundação, com alforria de uma
escravinha de 10 anos de idade. Falaram Nabor Albion Chagas, presidente da
sociedade "Liberdade e Heroísmo", em vigoroso discurso; o Dr.
Frederico Borges e Francisco Dias Martins, este recitando versos alusivos ao
ato. Firmam a ata da sessão muitos daqueles, cavalheiros e damas, que vão mais
tarde desenvolver brava ingerência nas desabusadas lutas da libertação. Além dos
9 sócios, acham-se firmemente gravadas as assinaturas de Frederico Augusto
Borges, Francisco Carneiro Monteiro, João Lopes Ferreira Filho, José Antônio de
Castro e Silva, Gonçalo de Lagos Fernandes Bastos, Antônio Rodrigues da Silva
Siqueira, Adolfo Barroso, José Alves Ferreira, Francisco Dias Martins, José
Gomes Barbosa, Joaquim Carneiro da Costa Filho, Alfredo Borges, Bento Leite de
Albuquerque, Catão Pais da Cunha Mamede, Francisco R. Salgado, Nabor Alboin
Chagas, Joaquim José de Oliveira, Arnulfo Pamplona, Eugênio Marçal, Pedro
Augusto Borges, Vitoriano Augusto Borges, Amanho Olinda de Vasconcelos,
Luduvina Borges, Elvira Pinho, Júlia Amaral, Ana Joaquina do Rego, Maria
Teófilo Martins, Francisca Nunes da Cruz, Joana Peres de Farias, Francisca
Borges da Cunha Mamede, Maria Farias de Oliveira, Maria Teófilo Padilha, Maria
Teófilo Morais, Joana Girard de Barros, Maria dos Santos Castro, Raquel Amaral,
Teresa Adelaide Carneiro do Couto, Maria Cruz Saldanha e Adelaide Girard.
Na sessão
de 3 de outubro "tratou-se do projeto de criação de uma sociedade
humanitária, sob os auspícios da Perseverança e Porvir, entre senhoras, cujo
fim é oferecerem, além de módicas joias e mensalidades, trabalhos de sua
manufatura, que serão anual ou semestralmente vendidos em leilão público e os
seus produtos reverterão em partes iguais para benefício da dita projetada sociedade
e da emancipação de escravos". Ficou decidido que se procurasse levar
adiante essa ideia, encarregando-se o senhor Secretário de fazer um plano de estatutos
e de convites a algumas senhoras, particularmente por intermédio da Diretoria,
para instalar-se a sociedade, caso seja aceita a proposta.
Não se tem
notícias da fundação dessa sociedade, mas a ideia iria concretizar-se, mais
adiante, com a das "Cearenses Libertadoras", como se verá depois.
As atas de
8 do aludido mês de outubro e de 1 de novembro seguinte são de iniciação, em
caráter magno, de dois novos irmãos — Raimundo Maciel e Luís Xavier da Silva e
Castro, os quais haviam anteriormente obtido a unanimidade da votação nas
esferas amarelas e prestaram o sacramental juramento do art. 11 dos estatutos:
"Juro perante Deus, a Lei e os sócios presentes guardar, com honra e
religião, os deveres de sócio da sociedade Perseverança e Porvir, para cujo
grêmio entrei livre e voluntariamente, tendo em vista os deveres e o progresso
comum social, como o meu próprio interesse". Maciel morava na vila de Aracoiaba
e por este motivo esteve dispensado da assiduidade estatutária.
É na sessão
de 28 de novembro que se acertam as providências para a "reunião de 8 de
dezembro seguinte, dia aprazado para a inauguração da Sociedade Cearense
Libertadora, ficando combinado que todos os sócios tomariam parte ativa na
promoção da festa, prestando-se de comum acordo para os preparativos de salões
do Palacete d'Assembleia Provincial e mais outras precisões relativas ao dito
fim".
A
Perseverança e Porvir acendia o estopim do barril de pólvora que será a
Libertadora, nas explosões de sua ação destemerosa e afoita, obstinada,
exacerbada ao calor dos entusiasmos, às vezes sem freio, que ardem feridas ou
arrebentam Bastilhas, mas constroem princípios de justiça e gloriosas diretivas
de beleza cívica, profundamente humanas e niveladoras.
Oliveira
Viana divide em três fases a evolução do grande pensamento da libertação
servil. A primeira, que se inicia em
1865 e culmina em 1871, com a lei Rio Branco, estabelecendo a liberdade dos
nascituros, de caráter tipicamente moderado. A segunda, que começa com a aparição de Joaquim Nabuco no cenário
parlamentar, trazendo ideias francamente radicais, e vem encerrar-se em 1885
com o fracasso do conselheiro Dantas, não querendo senão, ainda moderadamente,
completar a lei de libertação dos nascituros com o seu projeto de libertação
dos morituros, ou seja, os escravos sexagenários. E finalmente uma terceira, a da libertação imediata, que
chega ao fim da campanha: "A ideia abolicionista, atingindo o máximo de
expansão, tem todas as características da incoercibilidade, da irresistibilidade,
da fatalidade", e "deixará a abolição de ser uma questão de partidos
para ser uma questão nacional".
A rapaziada
da Libertadora vivia, antecipadamente, a derradeira fase, quando na Corte o movimento
ainda não perdera o tom da emancipação lenta, toda respeitosa dos direitos dos
senhores de cativos. Só muito depois, como se verá, o radicalismo abolicionista
adquiriu o impulso decisivo, já o Ceará podendo oferecer à Nação o exemplo do
seu 25 de março.
"OS
DOZE APÓSTOLOS DA SANTA CAUSA"
A expressão é de um deles — Antônio Martins,
no discurso pronunciado no ato de fundação da Libertadora.
A
iniciação de Raimundo Maciel e Luís Xavier completara a dezena da mocidade
idealista, sem faltar, sequer o menos-um iscariótico, que a tanto as circunstâncias
adversas obrigaram, empurrando um deles para fora.
Eram
todos jovens. José Teodorico de Castro, o mais velho, com 36 anos. Dos outros
mais idosos, José do Amaral e Joaquim de Oliveira Filho contavam 32 anos. O
mais moço, Manuel Albano Filho, 21.
Entre
todos, o mais destacado era José Correia do Amaral. Nasceu em Fortaleza, no dia
23 de agosto de 1847, filho do português João Antônio do Amaral, de quem foi
sócio na sua casa de comércio de ferragens, a primeira deste gênero, na
Capital. A mãe, também lusa, Maria Correia de Melo, viera de Angra do Heroísmo,
na Ilha Terceira, para o Ceará, em 1840, trazida pelos pais, o "patriarca
da Ipioca" (sítio em Maranguape), Antônio José Correia, falecido aos 81
anos, considerado e respeitado, tal como sua mulher, D. Eugênia Rosa Bandeira.
José do Amaral, de temperamento arrebatado e inquebrantável ânimo, impôs-se
desde o começo à estima dos seus consócios da Perseverança, a qual sempre
presidiu, em sucessivas reeleições. Foi o elemento constante na direção da
sociedade e soube conduzi-la com acerto e eficiência. Fez-lhe a sede em sua
própria residência, batizada "Castelo da Rocha Negra", e deu-lhe tudo
quanto estava em suas forças, no seu ardor pela campanha que o empolgava. Deu
muito de si e muito de sua fazenda, gastando talvez mais do que podia, nela
interessando diretamente a irmãos Arão e Isac e as irmãs Eugênia, Júlia, Judite
e Raquel, cujos nomes nunca serão esquecidos, como valiosas coadjutoras da memorável
batalha redencionista. Transmitia o seu entusiasmo à própria filhinha única, do
seu primeiro casamento com Maria Júlia Teles de Menezes Alves, a menina
Abigail, que veio a ser a esposa do des. José Moreira da Rocha, Presidente do
Ceará no período de 1924-1928. Quando da criação da Libertadora, José do Amaral
passou a servi-la com ainda maior disposição, eleito 1º vice-presidente sem,
contudo, deixar a presidência da sua querida Perseverança. Define-o este
conceito de Júlio César da Fonseca: — "Abnegado e intransigente, pode-se
dizer sem errar, constituiu o seu expoente (da Libertadora) máximo. Jamais
consentiu que a causa que abraçou fosse maculada, um só instante sequer, por
qualquer estigma ignominioso. Era um todo inamolgável de renúncias
batalhadoras. O seu pensamento, o seu conceito, o seu sistema, o seu programa,
tudo nele era um conjunto homogêneo de forças. Não sabia o que era a hesitação,
só sabia o que era a decisão. Era a ação e a ação, como se elas fossem audácias
dantônicas”. Faleceu na capital cearense em 26 de junho de 1929, aos 82 anos,
portanto.
Depois de Amaral, o homem de
maior atuação e prestígio na original agremiação é Antônio Cruz Saldanha,
nascido em Canindé, em 24 de abril de 1852, da tradicional estirpe dos Barbosa
Cordeiro. Associado ao irmão Francisco, montou casa de negócios comerciais em
Fortaleza e, como comerciante, largamente desfrutou da mais destacada consideração.
Na Perseverança, a sua experiência da vida mercantil era uma orientação para
todos. Retidão de caráter e coragem, bom senso e inteireza de atitudes foram os
seus grandes traços, na vida privada e na vida pública. Republicano convicto,
nunca faltou ao seu posto nas pugnas da implantação do novo sistema de governo
no País. Político militante, nem uma vez só desertou da linha avançada, na
férrea oposição ao regime oligárquico plantado, com raízes fundas, no Ceará,
pelo comendador Nogueira Acióli. Nos entreveros da abolição ninguém o superou
no esforço e na abnegação, prestando-lhe inestimáveis serviços. Dele, dentro da
Perseverança, é que partiu o pensamento de fundar-se uma sociedade antiescravocrata
de maior amplitude — que seria a Libertadora. Faleceu na sua fazenda de criar,
em Canindé, a 26 de julho de 1908.
José Teodorico de Castro viera do
Aracati, onde nasceu em 8 de outubro de 1843, filho de Raimundo Teodorico de
Castro e Maria Malveira. Ocupou, sempre, cargos na diretoria da Perseverança,
da qual foi solícito animador. Exercia funções comerciais e acabou empregado na
Casa Boris Freres. Falecido em Parangaba no dia 19 de março de 1901.
José Barros da Silva, de quem não
pudemos colher melhores notícias, muito concorreu para a vitória da Abolição. Fez
do seu estabelecimento, denominado "Bolsa do Comércio", quartel
animado das reuniões dos libertadores. Também nunca deixou de figurar na direção
da sociedade, salvo depois que se retirou definitivamente para o Pará, em
começos de 1882.
De Francisco Florêncio de Araújo
sabe-se que nasceu na serra da Meruoca, zona norte do Estado, em 27 de outubro
de 1855 e, vindo para Fortaleza, abriu casa de comércio de tecidos na Praça do
Ferreira, em local ocupado, em parte, pelo antigo Abrigo Central. Depois
liquidou o negócio e empregou-se na Companhia Ferrocarril, da qual saiu para
ingressar como auxiliar da Casa Boris, posto em que faleceu no dia 6 de maio de
1918. Casara-se em 1879 com Maria da Cunha Araújo. Era filho de Florêncio Lopes
de Araújo e Maria Rita de Araújo.
Manuel Albano Filho, o Manezinho
na alcunha carinhosa, o benjamim da plêiade, viera de Pacatuba, onde nasceu na
tarde de 9 de maio de 1858, filho de Manuel Francisco da Silva Albano e Maria
Teófila Albano. O pai era um dos três irmãos Manuel Francisco, José Francisco e
Antônio Francisco, os dois primeiros dos quais se estabeleceram na Capital com
a loja "Libertadora", sob a firma Albano & Irmão, uma das mais
ilustres e importantes casas importadoras em todo o Ceará. Marcado, como o
irmão seu consócio, de forte inclinação filantrópica, recebeu José o título de
Barão de Aratanha. Albano Filho exercia a gerência da casa e, pela distinção de
maneiras e simpatia pessoal, conquistou a popularidade e a afeição dos que o
conheciam. O seu idealismo teve campo fácil nas façanhas libertárias, a começar
pela Perseverança e Porvir. "Foi um dos mais valentes e dedicados
companheiros d'armas na luta incruenta, porém vigorosa e tenaz, da liberdade
dos cativos". Faleceu aos 29 anos de idade, na manhã de 8 de agosto de 1887,
em Parangaba. "Tinha n’alma espartana as virtudes de patriota e de cavalheiro
antigo" — são palavras de Antônio Martins, ao fazer-lhe o necrológio.
"Ao lado dos nossos mais fortes, ele tornou-se distinto e nunca, no seu
entusiasmo juvenil, brilhou mais esplêndida e cívica irradiação de su'alma do
que nos gloriosos tempos em que foi nosso camarada, nessa campanha de heroica
abnegação, de que ainda hoje poucos conhecem o valor patriótico. Ele era o mais
moço nessa legião e, entretanto, foi o primeiro a deixar-nos".
Joaquim José de Oliveira Filho
era livreiro, sócio do pai, o velho e respeitado lisboeta chegado ao Ceará,
mocinho de 19 anos, e o primeiro a montar em Fortaleza casa de venda de livros,
a reputada Livraria Oliveira, na Praça do Ferreira. Nasceu em Fortaleza em 21
de março de 1847. Embora não titulado, conhecia bem diversas línguas, o que
muito o ajudava no seu ramo comercial. Já velho e cego ainda o dirigia
pessoalmente, podendo pelo tato distinguir com precisão os livros que lhe
pediam em compra. Espírito caridoso, a sua "Chácara de Pelotas", na
Rua General Clarindo (entre a Avenida do Imperador e a Rua D. Isabel), passou a
ser um pequeno asilo de pobres. Nessa mesma chácara, algo arredia e conhecida
por "Furna Encantada", reuniam-se repetidamente os conspiradores da
Abolição. Muito o auxiliou nessas conspirações a esposa, D. Maria de Araripe
Faria, irmã do inditoso advogado e professor Xilderico de Faria e senhora de
ânimo varonil. A mãe de Oliveira Filho, D. Angélica Ambrosina de Oliveira, era
cearense. Morreu o denodado abolicionista em 15 de março de 1913, na casa de
residência do seu genro Joaquim Costa Sousa, na Rua Major Facundo.
Depois de José do Amaral e de
Cruz Saldanha, quem mais projeção alcançou no seio da Perseverança foi Antônio
Dias Martins Júnior, nome que jamais deixaria de estar na dianteira, onde
houvesse uma agitação qualquer dos liberteiros.
Nasceu em Fortaleza no dia 16 de
junho de 1852, filho de Antônio Dias Martins e Francisca Xavier de Albuquerque.
Foi caixeiro de escrita e, depois, funcionário da Alfândega. Jornalista de
pulso, dirigiu vários órgãos de imprensa na Capital. Era admirável cronista e
com o pseudônimo Delisle tornou disputados os folhetins do jornal Constituição e, mais tarde, no Libertador, com João Lopes Ferreira
Filho, os sueltos que saíam com o título — "A Semana". Com Antônio Bezerra
e Justiniano de Serpa publicou As Três
Liras, livro de versos da propaganda abolicionista. Usando o criptônimo de
Pery, trazia para os jornais as mais delicadas crônicas.
De todos o que mais viveu foi
Alfredo Salgado, secretário a maior parte da vida da Perseverança. Ao tempo
exercia o emprego de caixa da Casa Inglesa (Singlehurst & Cia., de
Liverpool, com filial em Fortaleza), tendo sido antes guarda-livros da firma
Viúva Salgado, Sousa & Cia., de que era sócia sua genitora, D. Virgínia da
Rocha Salgado. Seu pai chamou-se Francisco Luís Salgado. Nascido em Fortaleza
no dia 1 de setembro de 1855, aos 14 anos de idade Alfredo transportou-se, a
fim de estudar, para a Europa, formando-se em Comércio na Inglaterra. Finamente
educado, cavalheiroso, sempre brumelicamente trajado, mesmo durante a velhice,
gozou de grande relevo social, e no seio das classes comerciais manteve-se como
figura de alto acatamento. Ocupou por longos anos o cargo de intérprete do
comércio para os idiomas inglês, francês e alemão. "Alto, de ombros
largos, compleição atlética, cabeça branca, bigodes fartos e alvíssimos, sempre
vestido com uma roupa ainda mais branca, eis de brusco a figura excepcionalmente
simpática do ilustre morto" — escreveu o cronista Nogueira Lima, ao fazer-lhe
o retrato, com o título sugestivo de "Morre um Jequitibá".
Viveu os últimos anos da
existência (faleceu em 13 de abril de 1947, aos 92 anos de idade) como
"solitário da Itapuca", nome que dera à sua confortável vivenda, no
centro de mimoso jardim, cercado de gradis artísticos, que o guardavam como
representante de um passado de venerações. Casara-se, a primeira vez, em julho
de 1875, com Alexandrina Ribeiro, que ele viu morrer mal começadas as
atividades da Perseverança. De novo se casou, em setembro de 1885, com
Estefânia Nunes, falecida em 7 de março de 1919. Salgado foi um desses raros
que nunca sofrem a doença da tristeza nem se vencem da tristeza cética dos esnobes.
O undécimo do valoroso grêmio,
pelos próprios sócios denominado Escudo da Amizade, foi Raimundo Maciel.
Residia na antiga povoação de Canoa, hoje cidade de Aracoiaba, num sítio
denominado Jitirana. Aí nasceu em 25 de novembro de 1851, filho de Miguel
Ferreira Maciel e Felícia Ferreira, e aí se fez comerciante. Transferindo a
residência para Baturité, levou o seu comércio, a que juntou as atividades
agrícolas do sítio Brejo, atualmente como nome de Bela Vista, ainda no domínio
da família. De pouca instrução, mas de seu natural inclinado às coisas do
espírito, inteligente e ativo, educou todos os filhos, que foram muitos, e
chegou a exercer notável influência na política baturiteense, como um dos
chefes do partido orientado pelo conselheiro Rodrigues Júnior, em oposição ao comendador
Nogueira Acióli. Durante algum tempo negociou em Fortaleza, com armazém de
gêneros, especialmente o café, associado a um irmão, porém com a morte deste
voltou para Baturité e retomou as suas antigas ocupações serranas. Honra-lhe o
nome prole ilustre que formou, dela se destacando os filhos Francisco Maciel,
médico, Godofredo Maciel, reconhecido orador, que governou o Território do Acre
e foi Prefeito de Fortaleza, e Júlio Maciel, magistrado e fino poeta. Faleceu
Raimundo Maciel na capital cearense em 24 de agosto de 1921, aos 70 anos de
idade.
O derradeiro a entrar — Luís
Xavier da Silva e Castro. Nasceu em Fortaleza no dia 1 de julho de 1848, na
casa de seus pais, José Xavier de Castro e Silva e Antônia Josefina de Castro,
na Rua do Quartel, nº 4, hoje Rua General Bezerril. Casou-se em 18 de janeiro
de 1870, tendo sido antes professor em Tucunduba, município de Caucaia, até
1869. No ano seguinte nomearam-no professor primário para Tamboril, onde
permaneceu até 1876. A seca de 77 obrigou-o a emigrar, vindo novamente para
Tucunduba e logo mais para a capital. Conseguiu o cargo de escrevente do
Cartório de Órfãos, ocupado por Antônio Felino Barroso e dele se transferiu
para o do tabelião Joaquim Feijó de Melo, também como escrevente juramentado.
Com a morte de Feijó, foi nomeado tabelião, funções em que o encontrou a morte,
em 17 de dezembro de 1918. A sua casa de residência, na Rua D. Teresa Cristina,
nº 306, foi outro pequeno quartel dos soldados do abolicionismo.
CAPÍTULO VII
A CEARENSE LIBERTADORA
Os sócios da Perseverança e Porvir
souberam engalanar o salão de honra da Assembleia Legislativa para a magna
solenidade de instalação da Cearense Libertadora por eles projetada. Muitas
flores, a beleza da mulher, a vibração das almas, o suspense dos momentos
augustos e fortemente espirituais.
Às 11 horas já se achava tudo
pronto, a casa plena de gente e de corações em ansiedade, na tensão nervosa das
grandes expectativas. O dia 8 de dezembro de 1880 iria, inquestionavelmente, assinalar
"uma data de ouro para o calendário da ideia abolicionista". E,
apesar das escusas, que apresentaram os organizadores, sobre "as
imperfeições que se deram na sessão, faltas que se desculpam atendendo-se a
nosso pequeno número de sócios e à pouca prática nesses assuntos", nada se
omitiu na espontaneidade da bela e inspiradora tertúlia.
Não nos foi possível encontrar o
livro de atas e o das inscrições de sócios da agremiação que naquela hora se
fundava, mas os fatos se recompõem por miúdo em nosso espírito através das
palavras dirigidas no ofício do dia 13 seguinte, pela Diretoria da Perseverança
e Porvir, aos Diretores provisórios da sociedade recém-criada e, notadamente,
pelo Relatório ou Sinopse Histórica do Secretário Antônio Dias Martins a eles oferecida.
No citado ofício se exaltava: —...
"o resultado não poderia ser mais compensador, nem mais auspicioso para
nós e para vós: — a libertação de três adultos, sendo uma mãe com três filhos,
uma mulher e um homem e, mais que tudo, a inscrição de 225 sócios. Se os nossos
pequenos esforços produziram tão imensos resultados, vós que encetais a vida da
Sociedade Cearense Libertadora, tão cheia de adesões sinceras, tão rica de
esperanças e tão santa de aspirações, com o vosso elevado conceito e dedicação
de patriotas provados e cearenses distintos que sois e que estremeceis o
querido torrão natal, vós, como dizíamos, tereis muito maior colheita nesta
seara luxuriante que enriquece de patriotismo o coração do generoso e nobre
povo cearense”...
Convém deixar transpaginada a
descrição da brilhante festividade feita pelo mesmo secretário Martins, com a
linguagem de quem fervorosamente sentia o memorável acontecimento.
"Às 11 horas do dia, quando
estávamos prontos a encetar os trabalhos, veio às mãos uma nota do Exmo. Sr.
Conselheiro André Augusto de Pádua Fleury, honrado Presidente da Província,
anunciando-nos àquela mesma hora uma audiência que no dia anterior lhe havíamos
pedido, por não ter sido possível, em consequência dos fatos eleitorais do
momento que tanto careciam da atenção de S. Exa. fazer-lhe o devido convite
oficial.
"S. Exa. fez-nos ainda
algumas considerações, lembrando-nos o método adotado na Inglaterra por
pequenas associações na criação de pequenos estabelecimentos de instrução
literária ou profissional, tão bem e sabiamente organizadas que a filantropia
de outros os vão progressivamente alargando a produzir resultados vantajosos
para a sociedade. Que tinha boas esperanças de que fosse o Ceará a primeira
província emancipada e que muito era de esperar da associação Cearense
Libertadora”.
“Finalmente expôs-nos os motivos,
que inibiam de assistir e abrir a nossa sessão, motivos que reconhecemos
justos”.
"Às 11 1/2 chegamos à Assembleia,
onde já um crescido número de senhoras e cavalheiros ornava o belo e esplêndido
salão das discussões; ainda, porém lá estavam chegando convidados e era
esperada a distinta corporação representante dos Cavalheiros do Prazer e,
chegada esta, começaram-se os trabalhos justamente ao meio-dia”.
"Lidos o discurso do nosso
Presidente Sr. José Correia do Amaral, e o projeto de Estatutos, tomei a
palavra; mas, incomodado como estava, muito mal desempenhei a leitura do
singelo discurso que ofereci aos sócios da Cearense Libertadora, impresso, como
do exemplar anexo sob nº 1”.
"Fomos imediatamente a
palácio e ali recebidos por S. Exa. que prestou-nos toda atenção,
significando-nos sua simpatia à nossa causa e oferecendo-lhe seus serviços no
que estivesse no seu alcance, discorrendo com sabedoria e profusão sobre tão
elevado assunto, observou-nos que era mister prestar toda a atenção para o
ponto moral da ideia — a proteção e educação dos libertos, especialmente os
infantes e as mulheres, e que estas deviam ser muito mais cuidadas como pontos
preliminares da educação da família”.
“Dissemos-lhe que tínhamos
emitido essa mesma opinião do nosso projeto de estatutos e que era de esperar
todo cuidado na execução dela”.
"Ao terminar o meu discurso,
deu-se carta de liberdade ao escravo Ricardo, em nome de sua senhora, a Exma.
Sra. D. Maria Correia do Amaral, mãe do nosso digno Presidente, que nos quis
assim significar a sua profunda adesão à nossa causa”.
"O ilustrado Sr. Gonçalo de
Almeida Souto tomou a palavra e pronunciou um belo discurso; do seu estilo elegante,
porém, destacou-se a sua doutrina particular, declarando-se católico de crença
firme e abolicionista calmo, espectador dos feitos benéficos da lei de 28 de
setembro de 1871, abolicionista que respeita a propriedade, reconhecida embora
a infame procedência dela. S. Sa. saúda a sociedade Cearense Libertadora,
augura-lhe os merecidos resultados e termina bradando-lhe: Avante!”
"Sucedeu-lhe na tribuna o
ilustre Secretário da Beneficente Portuguesa 2 de Fevereiro que, representando
a sua benemérita associação, traz-nos dela a sincera adesão que tributamos a
todos os acontecimentos em que a liberdade, ao sol benéfico de todas as
sociedades de todas as nações, irradia-se nos horizontes onde assinalam o Progresso
e a Civilização; o orador retira-se da tribuna ao som de palmas”.
“Seguiu-o uma produção poética do
Sr. João Batista Perdigão de Oliveira, distinto representante da sociedade
anônima Democracia e Extermínio que, análoga ao ato e cheia de primorosas
figuras, foi acolhida com merecidas palmas”.
“O Sr. Antônio Papi Júnior, que
se sucedeu ao Sr. Perdigão, elevou-se ainda mais nas inspirações da sua musa
arrebatada e meiga, em belos versos que lhe recomendavam a firmada reputação de
poeta”.
"Tomou em seguida a tribuna
o simpático e ilustrado Dr. Frederico Borges, digno 1º Secretário da sociedade
Libertadora”.
“O jovem tribuno, tão simpatizado
já nos comícios populares, mereceu sinais de atenção e respeito do pomposo
auditório”.
“Seu discurso foi todo cheio de
entusiasmo e patriotismo. Cada frase que proferia era uma lâmina de fogo
cortante, e valente aniquilava os últimos redutos dos escravistas”.
“Muitos aplausos, muitos bravos
lhe entremeavam a palavra”.
"Elevando-se numa peroração
fascinante, S. Sa. anematizou a propriedade do cativeiro e a esse Gabinete
liberal, que protege aos apóstolos da escravidão. S. Sa. lastima, condena o
procedimento ingrato daqueles que tão mal viram apagar-se o astro luminoso da
pátria, o imortal progenitor da lei a 28 de setembro de 1871, o ilustre
Visconde do Rio Branco, que nas últimas palavras pedia-lhes ainda: "não
perturbeis a lei do elemento servil"; e prosseguindo ainda em brilhantes
frases, terminou por entre uma salva de palmas, que juntou aos louros já colhidos
na tribuna”.
“Foram seus sucessores na tribuna
os talentosos estudantes Raimundo Brito e Francisco Dias Martins, lendo aquele
um ardente discurso e este uma mimosa poesia”.
"Subiu à tribuna então o
ilustrado Padre Dr. João Augusto da Frota, digno Diretor da Instrução Pública
(profundo respeito e sensação no auditório). S. Revma., declara que vem à
tribuna obrigado pelas suas ideias: inesperadamente para si, convidam-no a
fazer-se orador e, sem ao menos ter pensado no que deveria dizer, arriscava-se,
por amor da ideia santa da liberdade, a proferir palavras desalinhadas, mas o
faria inspirado pelo coração; S. Revma. em frases eloquentes repassadas de
generoso entusiasmo declara-se abolicionista, não admite demora na
emancipação... (explosão de palmas e bravos: o orador é foçado a interromper-se)..,
que, quanto mais breve for executada a emancipação, tanto mais rápido há de ser
aquisição de seus cidadãos violentados ao ostracismo; que sendo abolicionista
sincero e convicto, não é retardatário, não (aplausos, bravos e palmas); saúda,
portanto, a ideia da emancipação, vê nela um grande bem para o país e para a
humanidade e, nada tendo de si que possa engrandecer a sociedade Libertadora,
nada podendo dispor, senão da sua cabeça que pensa e do seu coração que sente,
põe-nos à disposição da ideia, oferece sinceramente os seus serviços”.
"O orador é freneticamente
aplaudido".
"A Diretoria da sociedade
Perseverança e Porvir saúda-o de pé”.
"Por entre palmas surgiu na
tribuna o simpático Dr. G. Studart, como representante do Gabinete Cearense de
Leitura”.
“De estilo dourado de todas essas
filigranas poéticas de que o ilustrado e jovem médico sabe revestir as suas
produções literárias, devia, como o foi, seu discurso ser uma prece; uma
súplica ao coração sensível da mulher”.
“O ilustre orador primou pela
escolha desse objeto amado, como meio legítimo de realizar um formidável
contingente à cruzada abolicionista”.
"De forma sublime surgiram da
sua prosa brilhante notas dulcíssimas e que, entremeadas de uma mimosa carta de
C. Alves em perfeita analogia com o seu discurso, fê-lo colher merecidas
palmas, entusiásticos bravos”.
"Como representante da
distinta sociedade Cavalheiros do Prazer, surgiu na tribuna o nosso laureado
poeta Antônio Bezerra de Meneses, 2º Secretário da Sociedade Cearense
Libertadora e, em frases concisas e simples, mas ricas de patriotismo,
demonstrou a necessidade da emancipação e, concluindo, saudou a sociedade
Perseverança e Porvir pelo seu belo pensamento, retirando-se coberto de
aplausos”.
"Estava terminando o número
de oradores inscritos quando ilustríssimo Sr. Tenente Filipe de Araújo Sampaio
pediu a palavra como presidente da sociedade Artística Beneficente Conservadora
e seu verbo eloquente, que lhe ditava o entusiasmo, resumiu a sua adesão à
sociedade Cearense Libertadora, dando carta de liberdade à sua escrava Joana,
de 25 anos de idade, que sabe ler e escrever, sendo lida a carta pelo nosso
confrade Sr. Luís Xavier da Silva Castro, que em seguida leu a carta de
liberdade da escrava Filomena, de 23 anos com 3 filhos ingênuos, libertada
pelos membros da Perseverança e Porvir”.
“Com verdadeiro frenesi e tocante
entusiasmo à assembleia fez-se uma verdadeira explosão de palmas, de bravos e
mil aplausos”.
"O ilustre Dr. Picanço
ofereceu em adesão à causa da emancipação o produto de benefício da récita da
opereta Madame Angot na Munguba, de
que é autor, e lhe foi oferecido pelo empresário do Teatro S. José e cujo
produto deverá ser aplicado à libertação de um escravo”.
"O Sr. Pedro Hipólito
Girard, cidadão francês, ofereceu o produto da venda de uma noite no seu
quiosque-botequim do Passeio Público, admitindo a escolha do dia no mês de
janeiro próximo e promovendo uma festa de acordo entre si e a diretoria da
Libertadora”.
"O distinto Venerável da
Loja Maçônica Fraternidade Cearense ofereceu a quantia de 50$000 mil réis
produzido pelo tronco beneficente daquela loja em benefício da sociedade
Cearense Libertadora”.
"O ilustre Sr. César de La
Camp, digno Cônsul d'Alemanha, ofereceu a quantia de 20$000 mil réis que punha
à disposição da sociedade Libertadora em benefício da liberdade dos escravos”.
"Estava concluída a sessão,
quando o nosso Presidente, tomando a palavra, apresentou à ilustre assembleia
os nomes que escolhera a sociedade Perseverança e Porvir para formar a
diretoria da sociedade Cearense Libertadora, sendo:
Presidente, o cidadão João
Cordeiro; Vice-presidente, o cidadão José Correia do Amaral; 1º Secretário, Dr.
Frederico A. Borges; 2º Secretário, cidadão Antônio Bezerra de Meneses;
Advogados, Dr. Manuel A. da S. T. Portugal e capitão Justino Francisco Xavier;
Tesoureiro, capitão João Crisóstomo da Silva Jataí; Procuradores, cidadão José
Caetano da Costa, João Carlos da Silva Jataí, João Batista Perdigão de Oliveira
e Eugênio Marçal”.
"Aplaudida a escolha pela assembleia,
tomou a palavra o Sr. J. J. Teles Marrocos que, significando a sua adesão à
escolha feita e que era ela muito bem inspirada, tanto mais quanto era o
Presidente o Ilmo. Sr. João Cordeiro, extremado democrata e que mais uma vez
tem mostrado a sua adesão à soberania do povo e seu pensamento pela causa da
liberdade”.
“Todos os discursos eram
terminados no meio de aplausos gerais, unidos às harmonias das bandas militares
da Polícia e do 15º Batalhão, que tocavam no salão próximo”.
"Encerrada a sessão às 3
horas da tarde, começou a inscrição de sócios, que elevou-se ao número de 227,
não se elevando a mais porque a sessão durou 3 horas e já se tinham retirado
muitas pessoas”.
"Corre-nos o, grato dever de
pedir-vos um voto de agradecimento ao distinto cidadão João Lopes Ferreira
Filho, digno Secretário da Assembleia Provincial, que com grande satisfação
cedeu os salões do palacete da Assembleia Provincial para a sessão, e outro
tanto aos Ilmos. Srs. Tenentes-Coronéis Comandantes do 15º Batalhão e do Corpo
de Polícia, concedendo-nos de bom grado as bandas de música que tanto
brilhantismo deram ao ato”.
“Em toda a sessão reinou muita
ordem e nem uma voz se ergueu que não fosse para aplaudir”.
"Assim ficou inaugurada a
grande empresa abolicionista, de que patrioticamente aceitastes a direção
provisória e que na minha opinião devereis ser os efetivos e esforçados
diretores até encaminhá-la no verdadeiro e luminoso caminho da realização do
seu sublime desideratum. Possais
colher as coroas que merecem os dedicados cidadãos da santa causa da emancipação
do país, e que não longe esteja a aurora da liberdade em que o sol da nossa
terra vos banhe de luz, e das bênçãos da província que em prantos de gratidão
vos beije os músculos esforçados com que quebrastes as algemas torpes do
cativeiro de nossos irmãos”.
"Nesse belo dia, que não vem
longe, peço-vos que não esqueçais o vosso humilde adepto e sincero amigo
Antônio Martins".
Com efeito, retemperavam-se,
nesses instantes de grande eloquência cívica, as energias dos que batalhavam
numa cruzada tão ingente e gloriosa, qual a de jogar por terra o Adamastor
horrendo do escravismo, sustentado pelas mil forças da inércia acomodatícia de
uns e pelos interesses materiais de muitos.
Mas a glória também divide, e não
iria ser uma, maciça, a marcha contra o inimigo comum a vencer.
Lastimavelmente, não foi possível evitar que se abrisse o ângulo das
divergências de opinião, gerando a divergência das diretrizes e dos métodos de
proceder.
CAPÍTULO VIII
OS DOIS CAMINHOS
Aqui está o testemunho de Antônio
Bezerra: — "Constitui o ato de eleição da nova diretoria (da Libertadora)
uma das páginas mais belas da história cearense, e por isso não nos podemos
furtar ao desejo de a relembrar. Tendo-se por mais de uma vez suspendido as
sessões por tumultuárias, em consequência do desacordo entre uns sócios que
queriam se fizessem estatutos e outros que a eles se opunham, foi pelo
presidente provisório João Cordeiro designado o dia 30 de janeiro de 1881 para
se decidir esse assunto. No domingo mais próximo, ao meio-dia, compareceram uns
vinte sócios na antiga Bolsa do Comércio, à Praça José de Alencar, e logo João
Cordeiro fê-los entrar para uma sala ao lado daquela casa de comércio, adrede
preparada, a que havia ele dado o nome de Sala de Aço. Ali achava-se uma mesa
grande, coberta com um pano preto, duas lanternas nos extremos e vinte cadeiras
em torno. Depois de fechada a porta da entrada e acesas as velas das lanternas,
João Cordeiro, que ocupava o centro da cabeceira, levanta-se e, arrancando da
cava do colete um punhal, atira-o com força no meio da mesa, onde ficou
cravado, oscilando sinistramente ao reflexo das luzes, e disse: — "Meus
amigos, exijo de cada um de nós um juramento sobre este punhal, para matar ou
morrer, se for preciso, em bem da abolição dos escravos. Vamos travar uma luta
horrível com o governo, e por isso está em tempo de se retirar aquele que for
amigo do mesmo governo ou dele for dependente. Quem não tiver coragem para
tanto pode sair, que ainda sai em tempo; e logo se retiraram onze, cujos nomes
por conveniência ocultamos do desprezo público". Acrescenta Bezerra que
juraram, de conformidade com o cargo que cada um exercia provisoriamente, o
presidente João Cordeiro, o vice-presidente José do Amaral, o 1º secretário Dr.
Frederico Borges, o 2º dito Antônio Bezerra, os diretores Antônio Martins, José
Teodorico, José Barros, José Marrocos e Isac do Amaral. E que João Cordeiro lhe
ditou, e ele escreveu, os seguintes desconcertantes estatutos: — "Art. 1º
— Um por todos e todos por um. § Único — A sociedade libertará escravos por
todos os meios ao seu alcance". Datados na Sala de Aço, em 30 de janeiro
de 1881, referidos estatutos foram assinados pelos presentes.
De outras providências tratou
João Cordeiro, principalmente com o fim de poderem agir mais livremente nos
furtos de cativos em que, sem rebuços, iam empenhar-se. Tomaram criptônimos e,
desta forma, Amaral passou a chamar-se Joarez; Frederico Borges, Spartacus;
Bezerril, Risakf; Martins, Peri; Marrocos, O'Connel, etc.; — e adotaram escrita
especial, secreta, de modo que o a
valesse z e o b valesse x, e assim por
diante, recuando-se sempre uma letra.
João Cordeiro, nas memórias que
escreveu, ao correr do lápis, esclarece que foi convidado por alguns sócios da
Perseverança e Porvir para fundarem uma sociedade que se ocupasse da propaganda
e da abolição dos escravizados. Aceitou o convite com grande entusiasmo, e com
os rapazes da Perseverança convocou, para o palacete da Assembléia da
Província, uma reunião dos abolicionistas para a fundação de uma associação que
se instalou com o nome de Cearense Libertadora. Compareceu grande número de
abolicionistas e ele, João Cordeiro, foi aclamado presidente e, tomando posse
do cargo, deu por instalada a sociedade e nomeou uma comissão para organizar os
estatutos. Dias depois, reuniram-se associados para ouvir a leitura destes e
aprová-los; mas houve longa discussão e, para cortá-la, Cordeiro declarou: —
"O projeto de estatutos que acaba de ser lido não convém. Nós queremos uma
sociedade carbonária, sem ligações com o governo, que ocupe-se
revolucionariamente da libertação dos escravos por todos os meios ao alcance
dos nossos recursos pecuniários, da nossa inteligência e da nossa energia. Os
estatutos que nos convém devem ser simplesmente estes: — "Art. 1º —
Libertar escravos, seja por que meio for. Art. 2º — Todos por um e um por
todos". Dissolveu-se a reunião, ficando apenas duas dúzias de
abolicionistas dispostos a luta que deu em resultado a libertação dos escravos
no Ceará.
Outro participe do concerto
libertador, Isac do Amaral, transmite-nos que a fórmula dos revolucionários
estatutos foi proposta por Antônio Bezerra: "A idéia triunfou e se formou
um grupo de resistência que prosseguiu na luta, sendo de justiça destacar os
nomes do punhado desse núcleo: João Cordeiro, Antônio Cruz, Antônio Martins,
Antônio Bezerra, José Teodorico de Castro, Padre Frota, Alfredo Salgado,
Frederico Borges, Pedro Borges, Almino Álvares Afonso, Manuel Albano Filho,
João e José Albano, José Barros, J. W. Ayres, João Carlos Jataí, José Marrocos,
J. Cândido Maia, Justiniano de Serpa, Rodolfo Teófilo, Filipe Sampaio e lsac do
Amaral". E adianta: "Eram estes os
tais dez libertadores, frase de mofa para traduzir a insignificância da
força que pretendia demolir a torre Malakoff do escravismo".
Não parece certo que os nomes
indicados por lsac do Amaral sejam os dos que ficaram na hora decisiva do
juramento pedido por João Cordeiro, mas a verdade é que todos eles não saem do
agitado palco em que se encena o complicado drama do extermínio da escravatura.
"Do lado da Libertadora — é
ainda lsac do Amaral que o diz — ficamos com a maioria do povo, e do lado dos
legalistas, tendo à frente o então Dr. Guilherme Studart (Barão de Studart),
Júlio César da Fonseca Filho, João Lopes Ferreira Filho, Antônio Miranda e
muitos outros filiados, ficou o apoio oficial e grande parte do funcionalismo
público e dos proprietários, que não se queriam aventurar em lutas subversivas,
que atentaram contra a Constituição do Império. Mas todos trabalhavam pela mesma
causa, faça-se justiça". Polarizar-se-iam mais tarde estes legalistas no
Centro Abolicionista, que mais adiante estudaremos.
Os dois caminhos iriam dar na
mesma vila, porém cortavam topografia bem diferente.
0 grupo arrojado da Libertadora
não mais sossegou nem parou. Sem demora fundaram um jornal "destinado à
propaganda e interesses abolicionistas" e cujo primeiro número circulou no
dia 19 de janeiro seguinte ao da fundação da sociedade. Chamaram o jornal de Libertador e adotaram o lema de Jesus —
Ama a teu próximo como a ti mesmo. O Programa um tanto condoreiro: — "Com
o país que se levanta em prol da mais santa das causas, vem hoje o Libertador inscrever-se
na liça de seus combatentes. A sua missão é de amor, mas não vem trazer a paz.
A liberdade só combate com a espada, porque a tirania não cede à razão e nem
conhece o direito. Onde estiver o oprimido, aí estaremos nós. Ficam suspensas
as garantias dos potentados. Constestamo-lhes o direito de serem os únicos que
têm razão. Liberdade, igualdade, fraternidade é a legenda de nosso estandarte.
A consciência humana também não conhece outro princípio. Ao reflexo da nova
aurora, ao clarão da luz que tem iluminado as páginas da história, começamos,
pois, a nossa romagem. No seu apostolado, Libertador
não restringe a sua esfera de ação. Levanta o escravo e coloca o homem ao lado
do homem. Sopeia o algoz e liberta a vítima. Tritura o orgulho do enfatuado e
eleva o mérito real do filho do povo. E no vasto domínio da mentalidade humana,
todo o assunto lhe é próprio. Marcha com o seu século, tem o mesmo movimento, e
na luta faz a sua profissão de fé. Ou vencer ou morrer!..."
Como prometeram, onde esteve o
oprimido estiveram eles de fato, com o seu denodo e a sua composição de jazz band em ritmo barulhento, mas de
qualquer forma harmonioso. "Assemelhava-se — como para lsac do Amaral — a
uma orquestra com um grande coro a acompanhá-la, desde a voz cristalina de
Celicina Rolim ao baixo profundo do vate Juvenal Galeno; e, para aplaudi-la, o
grande público, que era quase Fortaleza em peso, nos primeiros atos, e, no
epílogo, todo o Ceará. Não havia papelório. O Livro Caixa estava sempre em
branco. A bolsa dos sócios e dos amigos faziam de cofres-fortes. Cada um
gastava o que podia e... até o que não podiam!"
Reunidos, em 22 de dezembro, os
diretores da Cearense Libertadora e os da Perseverança e Porvir resolveram
promover um "bazar expositor de prendas," como reforço da festa de
benefício que ao movimento redencionista oferecia o súdito francês Pedro
Hipólito Girard, dono de freqüentado quiosque-botequim no Passeio Público, rico
e aprazível logradouro em que a operosidade de Tito Rocha havia transformado a
ariosa Praça dos Mártires, antigo largo do Paiol. E deliberaram, outrossim, que
os donativos deviam ser angariados por duas comissões de senhoras e duas outras
de cavalheiros, o que, de logo, dava à mulher cearense direta responsabilidade
que lhe ia ser admiravelmente imposta, na extraordinária jornada.
Da primeira comissão fizeram
parte: Virgínia da Rocha Salgado, mãe de Alfredo Salgado; Maria Faria
d'Oliveira e Francisca Borges Mamede, respectivamente esposa de Joaquim José de
Oliveira Filho e de Catão Pais da Cunha Mamede; Isabel Vieira Teófilo, Sabina
Teófilo Padilha, Cecilina de Moura Rolim e Estefânia Nunes de Melo — a última,
futura esposa de Salgado. Da segunda: Francisca Correia da Cunha; Luduvina
Borges, senhora do Dr. Pedro Borges; Maria José Mendes Pacheco, Antônia Vieira
da Cunha, Maria Borges da Cunha. A primeira comissão de cavalheiros
constituía-se de José Caetano da Costa, João Baltazar Lopes Ferreira, João
Tibúrcio Albano, Manuel Rodrigues Santiago e José Joaquim Teles Marrocos. A
outra, do Dr. Pedro Augusto Borges, Benjamim Constâncio de Moura, Confúcio
Pamplona, João Carlos da Silva Jataí e Augusto Xavier de Castro.
Os resultados do bazar, realizado
com o concurso de banda de música do 15º Batalhão de Infantaria e de vários
intelectuais, e terminado com banquete e sarau dançante na residência de
Girard, "o bom do senhor Hipólito," foram de incentivante efeito: 2.961$000,
a que se ajuntariam outras somas decorrentes de novas festividades, inclusive a
renda da representação, no teatro S. José, da opereta Madame Angot na Munguba, de autoria do Dr. Francisco Picanço, e do
concerto, no salão nobre da Assembléia Provincial, da reputada pianista
brasileira Idália França.
Outras dádivas se sucediam. O Libertador de 7 de fevereiro
registrava "com especial agrado:"
Da Sociedade Dramática
Maranguapense 100$
Da Sociedade Fraternidade
Cearense 50$
Do abolicionista Benoit Levy 30$
Do abolicionista Frederico C.
Hull, capitão do lugar "May Monroe"
25$
Do abolicionista César de la
Camp. 20$
Do abolicionista F. J.
Kenwerthy 10$
Do abolicionista anônimo 2$
Num total de 237$
Ao mesmo tempo que despertava nos
espíritos mais humanitários o entusiasmo pelas manumissões (o referido Libertador, de 7, noticiava a conquista
de 16 delas), os libertadores procuravam dar maior intensidade à reação antinegreira,
vencendo ou pelo menos contornando as dificuldades da lei, que permita a
desgraçada mercancia. Necessário, antes de tudo, fechar as portas de saída da nefária
mercadoria, e a mais larga era o desembarcadouro de Fortaleza. Por ele não
devia transitar mais nenhuma, e os vendedores por aí andavam a providenciar
solertemente na remessa de outras levas para o Sul.
Em boletins soltos pela cidade, o
Libertador denunciava-o em linguagem
candente. No que se dizia anexo ao nº 2 do jornal de 15 de janeiro, apontava os
vendedores Raimundo Gomes, Antônio e João Gurgel do Amaral como
"negociantes de carne humana, iguais ao seu modelo primitivo —
Judas"; e pedia ao povo corresse à praia, no ponto dos embarques.
Novos boletins, agora precursores
do nº 3, indicavam, do mesmo modo, à execração, os "matutos Neutel
Pinheiro Bastos e Joaquim Aurélio de Meneses, das bandas de Uruburetama",
bem como José e João da Fonseca Barbosa, Telésforo Caetano de Abreu e Galdino
Francisco Linhares, "homens sem entranhas, uns hokers compradores de criaturas humanas". Contra Manuel Melo
Marinho, de lpu, e Vicente Ferreira & Irmão, "italianos residentes na
Cachoeira do Riacho do Sangue", as objurgatórias não eram menos duras.
Que o povo se levantasse e
protestasse contra semelhante ignominia.
CAPÍTULO IX
"NO PORTO DO CEARÁ NÃO SE
EMBARCA MAIS ESCRAVOS!"
Aparece então o nome de Pedro
Artur de Vasconcelos.
Cearense de Fortaleza, filho de
Manuel José de Vasconcelos e Lina Josefa de Vasconcelos, nasceu em 29 de junho de
1851. Havia estudado no Seminário Diocesano e agora exercia a função no
escritório da Casa Inglesa. Guarda-livros, colega de trabalho de Alfredo
Salgado, contagiou-se do "espírito de liberdade" e várias vezes fez
comícios pela extinção da nódoa ebânica. Num desses, na Praça da Estrada de
Ferro (Praça Castro Carreira), concitou os ouvintes a impedirem os envios de
cativos para fora da Província. Doutra vez — e foi no teatrinho S. Luís, noite
de 26 de janeiro — falou de igual maneira, pois era hábito nos intervalos das
peças teatrais fazerem-se discursos e recitarem-se poesias. Nas suas
concitações lembrou que se poderia conseguir dos jangadeiros não transportarem
para bordo dos navios escravo algum.
José do Amaral achava-se presente
e tomou a deixa.
Também já estava Júlio César da
Fonseca, que testemunhou depois: "Pedro Artur de Vasconcelos, tão
esquecido, foi o iniciador do movimento, José do Amaral foi a alma. O toque de
clarim cabe ao primeiro, o comando das forças ao segundo. O primeiro levantou o
grito, o segundo uniu fileiras. Acudiram logo com o seu apoio e o seu aplauso,
para dar corpo à aspiração, diversas pessoas. No Ceará não embarcará mais
escravo! Era o lema, o moto do novo lábaro; e com ele, somente, seria vencida a
escravidão. Foi no intervalo da representação de um drama, do teatro São Luís,
que Pedro Artur lembrou a necessidade do movimento e que se apelasse para os
jangadeiros. O sonho tornou-se realidade. E das brancas e pandas velas das
jangadas, alcíones da liberada, se fizeram bandeiras de combate".
Certo número de escravos devia
seguir pelo vapor "Espírito Santo", da antiga Companhia Brasileira de
Navegação, a zarpar no dia 27. Pedro Artur e José do Amaral depressa recorreram
ao liberto José Luís Napoleão, chefe de capatazia no porto e detentor das
simpatias dos companheiros de serviços e dos jangadeiros em geral, graças à sua
bondade e prestimosidade, assim como à de sua mulher, a preta tia Simoa,
"de coração angelical e alma pura, que acabou seus dias recebendo os
carinhos da família de Henrique José de Oliveira".
Napoleão comprara a própria
liberdade e, com as economias que chegou a juntar, também a de quatro irmãs,
bem como a de outros co-mártires do cativeiro. Toda a submissa bondade africana
como que se apurava no cadinho do seu coração generoso. E por isso não recusou o
convite, antes aceitou o apelo com ostensivo e sereno gosto e mais satisfação
íntima por ver-se instrumento também do sagrado desígnio de acabar de vez a dor
e a vergonha dos grilhões e do tronco.
A noite de 26 não os deixou
dormir, nem a muitos mais — Antônio Cruz, Antônio Martins, José Teodorico,
Antônio Bezerra, Isac do Amaral, João Carlos Jataí. Aos três últimos coube
aliciar gente, em maior quantidade possível, para achar-se na praia na hora de
embarque. Da greve dos jangadeiros se encarregaram os outros. E, se viesse a
falhar, aos elementos aliciados do povo tocaria promover desordem momentânea,
de modo a poderem fugir os escravos.
Mais de mil e quinhentas pessoas
"de todas as classes e condições" afluíram ao local no dia 27 e foi
com o espanto dos traficantes de negros que se ouviu o clamor — "No porto
do Ceará não se embarca mais escravos!"
"Esta resposta terminante e
decisiva — comenta o Libertador —
partiu ao mesmo tempo de todos os lábios. Não se sabe quem primeiro a
proferisse. Era uma idéia que estava em todas as inteligências, um sentimento
que brotava em todos os corações”.
"É de ver como desapontados
ficaram aqueles indesejados negociantes e, por mais que recorressem a
oferecimentos de toda sorte, até mesmo às ameaças, nada obtiveram”. Repelidos,
vaiados, provocaram a interferência oficial para garantir-lhes o direito de
mandar a sua mercadoria e para tanto
veio à praia um oficial, com praças da polícia, mas sem proveito qualquer.
Apenas, muito cedo, haviam embarcado nove peças, porém dessas os libertadores,
por meios legais, retiraram algumas, entre elas, do vapor "Pará," uma
infeliz mãe 'seminua e quase morta a fome', com quatro filhas, despachadas no
Maranhão para o Rio de Janeiro — todos desembarcados "debaixo da bandeira
brasileira, ao som da música e ao ribombar de foguetes".
No dia 30 havia de levantar ferro
o "Espírito Santo" e — descreve ainda o Libertador — lá acorreram à praia os Srs. Telésforo Caetano de
Abreu, José da Fonseca Barbosa e os italianos Vicente Ferreira e irmão, levando
consigo 38 criaturas humanas para exportá-las ao mercado do Sul. Novamente se
recusaram os marítimos, apesar de pingues promessas de suborno e a cena se
reproduz, com a vinda dos policiais, que nada adiantam. O próprio Inspetor da
Alfândega e o Agente da Polícia Marítima se negam a transportar nas suas
lanchas aqueles infelizes.
Houve a acusação de que os da
Libertadora haviam subornado os jangadeiros mediante dinheiro farto. Porém nada
mais se deu do que natural recompensa de prejuízos ocasionados pela suspensão
dos seus trabalhos lucrativos, do seu pobre ganha-pão. E o dinheiro não foi
abundante, pois lsac do Amaral confessa que, para tal fim, os libertadores se
cotizaram, cabendo a José do Amaral e João Cordeiro quinhentos mil réis, cada
um, e, também a cada um, duzentos mil réis a Pedro Borges, Frederico Borges,
João Jataí, Antônio Bezerra e a ele lsac.
"O povo celebrou a vitória
da liberdade — utilizemos novamente a notícia do mesmo jornal, — percorrendo em
passeata todas as ruas da cidade. A praia, que fora o teatro do acontecimento,
viu ainda uma enorme massa de povo levantando vivas e cantado hosanas aos homens
do mar. Mereciam essas homenagens eles que se elevaram acima de todos os
interesses do dinheiro. Obraram por inspiração de sua própria dignidade e sentiram
mais honra na estopo do jangadeiro do que nos panos finos do negreiro. Mais
tarde, soava meia-noite, o povo repousava; e apenas os vedetas da liberdade rondavam
o mar e velavam pela inviolabilidade do porto. Como ladrão noturno, o subdelegado
da Conceição, Domingos Barbosa, vem à praia espaldeirar algumas pessoas enermes
que ainda lá estavam".
Restava aos negros melhor destino
e os liberteiros o deram. Jataí, Bezerra
e lsac — os três mosqueteiros, como eram apelidados, — souberam-nos guardados
em prédio situado na esquina das atuais avenidas Pessoa Anta e Alberto
Nepomuceno, e, noite avançada, penetram ali, pelos fundos da casa, ocupados por
um capinzal. Comunicando-se, em silêncio, com os escravos, acertaram com eles
encher a casa de capim seco e simular um incêndio, ao mesmo passo que outros da
Libertadora, principalmente José Marrocos, conjuravam tipos populares (José
Basófia, José da Hora e Piau) para, na hora do fogo, provocarem o alarme.
Pela madrugada o incêndio
começou. E, ao repicar dos sinos da Sé e da Igreja da Prainha, e ainda ao som
das cometas da Polícia, o povo se aglomerou em torno. Arrombadas as portas,
verificou-se, com maior decepção dos traficantes, constantemente apupados, que
a mercadoria havia fugido.
O "Espírito Santo" não
os levou, e alguns que não estavam no incêndio foram transportados para
Aracati, em cujo porto pretendiam embarcá-los.
Pedro Artur e José Napoleão
alcançaram aquela vitória, mas a tradição lhes perdeu os nomes, que é preciso
repor no lugar devido. Instado por José do Amaral para dirigir a campanha no
campo praieiro, escusou-se o liberto escondido na sua exagerada modéstia, com
esta resposta: "Seu Zezinho, tem aqui um que serve para o que o senhor
quer: — é o Chico da Matilde".
Chico da Matilde não era outro
que Francisco José do Nascimento, aracatiense, homem de cor, exercendo o mister
de Prático da Barra e encarregado do serviço de lanchas do comendador Luís
Ribeiro da Cunha. Napoleão empurrava-o para a fama desde aquele momento,
porque, consultado sobre a sua solidariedade à cruzada redentora, sem demora
Nascimento a deu, embora com a reserva de que não poderia ir muito adiante,
considerada a natureza do seu emprego. No entretanto, pôs, ali mesmo, à
disposição da causa, as duas jangadas que possuía.
Vale a pena ler este outro
depoimento de lsac do Amaral: — "Nas greves da praia em 1881 tivemos, como
principal mentor dos jangadeiros, o liberto Antônio Napoleão, caráter
adamantino de abolicionista e de altruísmo fora do comum. Com o seu titânico
esforço conseguiu, vintém a vintém, juntados avarentamente, até com o
sacrifício da alimentação, obter carta de alforria. Longe, todavia, de gozar
mais folgadamente os foros da cidadania conquistada, Antônio Napoleão continuou
a quebrar os grilhões de seus irmãos de cativeiro, fazendo de seu pé-de-meia os
fundos necessários para ir indenizando novas alforrias. Mas era de tal modéstia
que ninguém o pôde fazer líder oficial da classe marítima, em cujo meio se tornou
venerado. Dizia-nos sempre "para esse lugar, seus moços, só um homem novo
e forte como Chico da Matilde, que é também jangadeiro muito sério e amigo dos
colegas da praia". Daí nasceu a escolha deste, cujo nome próprio era
Francisco Nascimento, que desde então aceitou o convite da Libertadora, bendizendo
esta o novo concurso, porque Nascimento entregou-se com devotamento ao seu
papel de chefe da grande classe praieira, tornando-se acatadíssimo, graças à
sua força moral".
E o mesmo Isac retrata-o: "O
físico de Nascimento era agradável. Pardo, de pele fresca e reluzente, robusto,
muito musculoso, olhos vivos, dentadura esplêndida, pouco vivaz, entretanto, na
conversação, e fora do mar a sua figura bonacheirona dava-lhe o tipo de bojuto
banqueiro da Holanda. Comparecia às sessões e tomava parte nas cavalgadas que
os libertadores faziam nos arrabaldes de Fortaleza. Vivia em pequeno sítio
plantado e aprazível, abaixo do morro do Seminário. Sua mulher, trabalhadora a
valer, o que cercava o seu lar de relativa abastança e bem educada nutria a
prole. Era gente de princípios arraigados em matéria de religião, havendo,
pelas paredes da casa, muitos quadros com estampas de santos. No lugar de
honra, ao fundo da sala, um oratório enfeitado, com a imagem de N. Senhora de
Nazaré, padroeira dos navegantes, ali misticamente devociada".
Conquanto muito sublimada pela
necessidade mesma de vestir a campanha de roupagens vistosas e impregná-la das
forças espirituais contagiadoras, indispensáveis aos grandes triunfos,
realmente foi de muita eficácia a atuação de Nascimento — o Dragão do Mar,
principalmente por ocasião e depois dos acontecimentos de agosto.
CAPÍTULO X
OS PRIMEIROS FRUTOS
A intensificação do espirito
emancipador na alma da cidade, fortemente exacerbado pelos fatos de 27 a 30 de
janeiro, patenteada nos inteligentes modos como se foram angariando numerários
para o cofre das manumissões e nas alforrias gratuitamente feitas por donos de
escravos, proporcionou aos libertadores a realização da magnífica festa de 25
de março.
Para guardar o sabor original das
impressões, é melhor trazer para aqui, integralmente copiada, a sua descrição
produzida pela pena elegante de Jose Teles Marrocos, um dos redatores do Libertador, sob o título — "No dia
da pátria e da liberdade — A festa da libertação de 35 escravos”.
"Graças a Deus!"
“Esteve pomposa e deslumbrante a
festa que a sociedade Cearense Libertadora realizou no dia 25 de março”.
"Jamais em seus cometimentos
teve o Ceará uma adesão tão solene. Excedeu mesmo toda a expectativa o ato que
num momento chamou a si todas as atenções e cativou todas as simpatias”.
"Esboçamo-lo ao correr da
pena”.
"Às cinco e meia da tarde,
já uma multidão se agitava sob as comoções de uma grande novidade que
preocupava todos os espíritos”.
"Duas mil pessoas,
seguramente, se achavam apinhadas desde as naves da lgreja do Rosário até o
adro da praça”.
"Ao ribombar dos foguetes
que iam repetir aos ares o eco do alvoroço de um povo inteiro, a música da
policia desprendia as vibrações ruidosas de suas harmonias”.
"De repente fez-se silencio,
e como no Sinai a multidão emudece para ouvir o verbo que irrompe dos penetrais
do santuário”.
"Era o Revmo. Dr. Joao
Augusto da Frota que, em nome do Deus da liberdade, lançava a benção à bandeira
que os libertadores tinham de oferecer aos seus libertados”.
"Em número de 35 formaram-se
em semicírculo em derredor do altar e, de joelhos, imploraram aos Céus a confirmação
do que se fazia na terra”.
"Paraninfos do ato, os Srs.
João Cordeiro e Luís Xavier de Castro recebiam do sacerdote e entregavam à
veneração dos libertandos o estandarte abençoado”.
"Saudaram-nos o povo com os
ósculos de sua piedade, a música com a melodia de seus hinos; mais de uma
cearense distinta desprendia do peito o cravo, a rosa, a dália, a sempre-viva
para adornar de flores a bandeira da liberdade”.
***
"No meio da comoção geral,
grave, mas expansivo, assoma à tribuna, na porta principal da Igreja, o Revmo.
Dr. Frota”.
"Ele felicita aos
libertandos pelo grande acontecimento que vai ter lugar, e roborando-lhes a fé
na providência adorável de Deus, mostra-lhes que naquela mesma Igreja, onde
choravam as amarguras do cativeiro e da proscrição, nasciam agora as flores da
redenção e da liberdade. Venciam os
mártires! — disse o orador; e na posse dos direitos políticos que lhes iam
ser outorgados cumpria que cada um dos libertandos se elevasse tanto mais alto
no conceito público quanto menos humano era o juízo que a respeito de escravos
externam os defensores da escravidão”.
"Sempre n'altura do assunto
o orador falou eloquentemente sobre a necessidade do trabalho e da virtude como
complemento característico da liberdade: terminou debaixo de uma chuva de
palmas, ovações e cumprimentos”.
***
"Desfilou então o povo em
direção ao Passeio Publico”.
"Marchavam à frente os 35
libertandos à sombra da bandeira que portava o seu representante, Ponciano
Francisco de Paula”.
"Em seu trajeto pelas ruas
d'Assembleia e Formosa, receberam a mais bela e carinhosa ovação”.
"Ao estampido de tantos
foguetes, as melodias mais sonoras da música se vinham juntar às exclamações de
um povo delirante de entusiasmo”.
"Jovens cearenses, formosas
deidades, sacudiam flores e acenavam com seus lenços brancos, enquanto o
prolongado viva dos mais distintos cavalheiros reboava no espaço”.
"A muitos veio a lágrima nos
olhos denunciar a consolação interna que lhes transbordava n'alma”.
"Ó! Viva a liberdade! E o
eco estendeu-se até a amplidão dos mares”.
"Era o solene momento. Nada
faltou no concerto universal de tantas harmonias”.
"Trovejou o canhão na
fortaleza, saudando, ainda uma vez, o dia da pátria da liberdade. Repicaram
alegremente os sinos: o bronze sagrado também tomava parte da festa popular”.
***
"O Passeio Público trajava
todas as galas da mais pomposa solenidade. Seu pavimento tapetava-se de flores,
suas árvores hasteavam bandeiras de todas as nacionalidades, suas alamedas
adornavam-se de arcadas triunfais. Uma iluminação giorno e a capricho deslumbrava o espetáculo”.
Três mil pessoas ali se apinhavam
e ansiosas esperavam receber os libertandos. Ei-los que chegam acompanhados
desde a igreja do Rosário pela música da polícia e pelo povo. Duas multidões se
encontravam e se desafiavam em seu regozijo, nas expansões tumultuosas de seu
entusiasmo. Tocavam as duas músicas, os vivas se trocavam simultaneamente e os
fogos se revezavam no espaço.
"Era um desafio e uma porfia
— ninguém quer ceder a palma”.
"E por entre o imenso
alarido sobe à tribuna o denodado abolicionista Antônio Bezerra. Seu discurso
de recepção aos libertandos reverberava todo o calor do fogo sagrado da
liberdade”.
"— Entrem, meus amigos,
exclama o orador, aqui é o templo da liberdade; não há senhores nem escravos:
são irmãos que recebem irmãos, que vêem a luz da liberdade depois de longa e
pavorosa noite de escravidão”. Foram frenéticos os aplausos: Antônio Bezerra
descia da tribuna nos braços dos amigos que o cumprimentavam.
"Outra voz se fez ouvir: em
nome de Antônio Martins exclamava o Sr. Frederico Severo:
'Eis-nos aqui irmãos! — Pobres
precitos,
Andastes presos à gleba do
infortúnio,
Como o judeu da lenda...
Passastes quase a nado o Mar
Vermelho!
Ó! Bendito sois vós, pai dos
cativos,
Que nos destes uma tenda!
Entrai, irmãos! Chegai-vos à
lareira:
É nosso todo o teto americano,
Como é nosso este ar e o coração.
Erguei bem alto a fronte — olhai
em frente,
Ei-vos em face da família
inteira;
Este povo também é vosso irmão.
Vós fostes naufragados ao
desterro
Em que o nosso batel vos foi
tomar;
É esta a vossa pátria; o vosso
berço
O Céu sereno, o serro azul e o
mar!
E nós vamos de novo a pedra negra
Do caminho da pátria demolir;
Francos obreiros aos poucos
aluindo,
Temos fé que ela em breve há de
cair’."
"Uma estrepitosa chuva de
palmas saudou Antônio Martins, prolongados aplausos laureavam o poeta e o
abolicionista”.
"O imenso auditório
expandia-se ainda em sua manifestação de apreço, quando a palavra demostênica
do Sr. Júlio César lhe conciliou a atenção”.
"Subindo à tribuna, disse o
orador:
— Que contemplava o mais
grandioso espetáculo! Que de um lado via o espectro da tirania a fugir de
abismo em abismo, diante de um látego sanguinolento, como o condenado do
inferno dantesco; do outro o arcanjo da liberdade, de pé sobre o dragão da
escravidão a derramar a água lustral do batismo social em trinta e cinco
fontes, há pouco cheias de estigmas e horrores, e agora cingidas de auréolas e
visões fulgurantes; e por cima do espectro e do arcanjo, a imagem serena e
altiva da pátria, apontando, aos cânticos e hosanas do progresso, o caminho do
futuro.
— Que o troféu vitorioso de tão
sublime conquista da paz universal, empreendida em cruzada pelos batalhadores
da santa causa da verdade humana, vale mais do que os despojos opimos acumulados
por todas as gerações guerreiras, porque é o lábaro incruento de um povo; que a
nódoa que as lâminas de azorrague imprimiam na face do mísero escravo é hoje a
estrela dos novos Magos, que vão em busca do novo Redentor.
— Que a missão da Libertadora
Cearense é grande, muito grande, porque quebrar grilhões, despedaçar algemas,
arrancar mordaças, demolir bastilhas, é a tarefa da luz, o mandato da geração moderna,
que sai aos ímpetos oceânicos das revoluções, a levantar barricadas quando se
forjam cadeias.
— Que trinta e cinco escravos
livres é uma constelação do progresso, queria dizer, trinta e cinco operários
para a luta gigantesca do século, que vê tiranos para os amaldiçoar com o verbo
flamejante do anátema social.
— Que a obra da Libertadora,
cimentada de dedicações acrisoladas, é uma das estrofes do poema da humanidade,
que será cantada pelos heróis de todos os tempos: pelos Tirteus de todos os
povos.
— Que, se os abolicionistas
cearenses, intrépidos legionários da fraternidade humana, algum dia, por sobre
as ruínas desta maldita instituição de trevas, encontrarem uma figura
majestosa, a derramar dos olhos uma torrente de luz e dos lábios uma torrente
de bênçãos, curvem-se perante ela. Será a pátria, a nova Cornélia, a bendizer
os esforços de seus filhos, Gracos da liberdade, indicando com o gládio da
justiça o céu da história”.
"E concluindo:
Que a Libertadora Cearense
soltasse aos ventos da América sua bandeira, essa bandeira feita de corações,
que é a púrpura da mais esplêndida realeza — a realiza do bem; e batalhasse sem
cessar até que pudesse dizer ao mundo inteiro: — No Brasil não há mais escravos”.
"Ingente ovação felicitava
ao valente tribuno, e já outra cena comovente se desenrolava aos olhos do
espectador enternecido”.
"Disputava-se a honra de dar
o braço aos 35 libertandos e introduzi-los no Passeio Público. E eis o préstito
imponente que desfila por uma alameda alcatifada de flores”.
"Ao charivari harmonioso de
duas músicas que tocavam a desafio e ao estampido atroador de mil fogos, se
acotovelavam e se apinhavam duas multidões. Uma: que se havia concentrado no
Passeio Público, precedia ao préstito. Outra: que estacionara do lado da Rua do
Major Facundo, em frente ao arco triunfal da entrada, vinda após abrindo
passagem entre os dois grupos, que do lado do quartel do 15º e do teatro S.
Luís também demandavam entrada no seio do imenso congresso”.
***
"Chegou-se finalmente ao
cenário que se havia preparado junto ao coreto da música e em frente ao
botequim do Mr. Girard”.
"Sobre o alto estrado que
dominava toda a cena, senta-se o digno presidente da Sociedade Cearense Libertadora,
o Sr. João Cordeiro”.
"Dispostos em semicírculo,
rodeiam-no os membros da diretoria, d'um lado e d'outro, e à sua frente, a
coluna dos libertadores”.
"Abriu-se a sessão: em
frases concisas, mas que tudo diziam, o presidente fez ver que estava no
domínio público o fim da esplêndida reunião”.
"Seguiu-se lhe na tribuna o
Dr. Frederico Borges que falou inspirado. A frase rojou-lhe dos lábios
veementes, impetuosa e arrebatadora. O orador demonstrou os valorosos serviços
da Sociedade Cearense Libertadora, a atitude original e inimitável dos
cearenses em face à questão do dia; e apelando para o — res non verba — condenou a infâmia dos negreiros que por inveja,
despeito e interesses contrariados caluniavam os abolicionistas”.
"Interrompido muitas vezes
por estrondosos aplausos, desceu da tribuna debaixo de uma chuva de flores e de
bouquets que lhe foram sacudidos à
direita e à esquerda”.
***
"Aos arroubos da prosa
seguiram-se os mimosos eflúvios da poesia”.
"O jovem acadêmico Antônio
Olímpio colhia palmas exclamando:
Pátria, Brasil, ergue um brado
Um brado augusto de luz,
Que nesta festa sublime
Vê-se a filha de Jesus!
É a virtude predileta
A redentora dileta
Que se chama — Caridade!
Que com suas asas douradas
Cobre essas frontes magoadas
E lhes dá a liberdade!
Sim! Que esses pobres escravos
Nossos legítimos irmãos,
Que a tanto tempo choravam
São agora cidadãos!
— Têm já a liberdade
Lhes deu ela a caridade
Qu’em vossas almas germina!
— Salve sempre a caridade
Que lhes trouxe a liberdade
— Sublime deusa divina!
Aos detentores mil palmas”.
"E mil palmas rebentaram
frenéticas e estridentes”.
"A multidão delirava de
satisfação quando, à ordem do presidente, o Sr. José Teodorico de Castro,
proclamou que iam ser libertados 35 escravos, cujos nomes omitimos por desnecessário
ao nosso fim”.
"Houve um momento de
silêncio geral: ouviu-se apenas o marulhar das vagas do oceano”.
"Uma surpresa invadira os
ânimos e atacava de momentâneo torpor a tumultuária agitação daquela massa
enorme”.
"— Libertar 35 escravos de
um só vez era um cometimento de sacrifício que só a Libertadora Cearense tinha
realizado!”
"De todas as sociedades
abolicionistas do Império, nenhuma fizera tanto em províncias mais ricas. A
própria corte estava debaixo do Ceará”.
* * *
"Comovido pela grandeza do
acontecimento e penhorado pelo grande benefício, tomou a palavra o libertando
Ponciano Francisco de Paulo”.
"Lágrimas de reconhecimento
cingem-lhe a palavra e orvalham a bandeira que ele, em nome de sua classe,
oferece à Sociedade Cearense Libertadora”.
"Beijando o estandarte da
liberdade, quer entregá-lo de joelhos e oscular a mão do presidente da
Libertadora. Mas não, ele não o consente: levanta-se, recebe o estandarte e
abraça o oferente”.
"Todos os libertandos
inclinaram-se profundamente ante essa cena da igualdade humana — e as senhoras
cearenses, umas acenavam com o branco lenço, outras sacudiam flores”.
"É sob a emoção deste
espetáculo novo que sobe à tribuna o Dr. João Lopes Filho. Confessando-se
maravilhado por ver realizado naquele ato o mais belo e o mais poético de todos
os sonhos — o da igualdade humana —, maravilhou também ao seu auditório o
elegante orador”.
"Não lhe faltaram nem palmas,
nem flores. Justa homenagem. Nunca se disse tão bem sobre as vantagens do
trabalho livre e sobre o mútuo auxílio do homem ao homem sob a inspiração da
liberdade, da igualdade e da fraternidade”.
*
* *
"Prorrompeu então, com toda
a majestade das grandes harmonias, e com a harmonia das grandes orquestras, o
hino da Sociedade Cearense Libertadora:
'Eia! Às armas soldados dos
livres,
Na vanguarda já soa o tambor!
Eis o mote do nosso estandarte:
— Liberdade aos cativos e amor.
CORO
Para sempre se apague da face
Da formosa auriverde bandeira,
Esse negro borrão que nos mancha
E que avilta a nação brasileira.
Todo o mundo que atento nos ouve
Bate palmas aos nossos heróis,
Quando vir que não há mais
senhores
Nem escravos na pátria dos sóis.'
"E um coro harmonioso e
brilhante das melhores vozes repetia com a mais arrebatadora mestria:
‘Para sempre se apague da face
Da formosa auriverde bandeira,
Esse negro borrão que nos mancha
E que avilta a nação brasileira’.
"Alegre, marcial, poética e
arrebatadora, a música do hino fez furor: o entusiasmo tocou ao delírio”.
"Repetição! repetição! — foi
o brado que partiu de todos os lábios. Momento supremo! Consumava-se a grande
obra da redenção. Repete-se o hino”.
"Entraram para o concerto as
aclamações das turbas populares”.
"O presidente vai, ao som da
ruidosa harmonia, entregando uma a uma as 35 cartas da liberdade. Recebendo o precioso
quirógrafo os libertandos lhe imprimiam o ósculo de seu amor, e depunham aos pés
do Sr. João Cordeiro um lindo bouquet
de flores”.
"Vítimas de impetuosa
sensação de alegria e de felicidade, alguns libertandos pareciam desmaiar ao
contato deslumbrante da liberdade. Foi preciso ampará-los: ou duvidavam de sua
felicidade, ou ela matava-os de contentamento inefável”.
"E quando o estandarte da
Sociedade Cearense Libertadora tremulava às brisas do mar, também espraiava-se
no espaço a última estrofe do hino:
'E que a água altaneira que voa
Pelo dorso dos cerros azuis,
Leve aos astros, na garra
gigante,
A bandeira banhada de luz!'
“(A música e poesia desse hino
são uma inspiração de Frederico Severo)”.
"Ouviu-se então um ruído
sonoro, profundo e imenso como a voz do trovão que retumbasse de um polo a
outro”.
"Eram vivas a João Cordeiro,
José Amaral, Antônio Bezerra, aos Albanos, José Barros, aos jangadeiros e a
toda a Sociedade Cearense Libertadora”.
"Seguiu-se a passeata no
quadro do Passeio Público”.
"Cinco mil pessoas, para
marcharem, se dividiram ainda: uns à frente da música do 15º Batalhão
desfilavam à direita, outros com a música da Polícia à esquerda. As duas
multidões encontraram-se, dá-se a fusão e eis um só povo e uma só passeata.
Eram nove horas e meia da noite e o ato havia começado às 5 1/2 da tarde”.
CAPÍTULO XI
O LIBERTADOR
Dificilmente se alui a opinião
pública sem a alavanca da imprensa e bem o compreenderam os da Libertadora.
Trataram de fazer o seu jornal e o lançaram corajosamente no dia 1º de janeiro,
menos de um mês decorrido da fundação da sociedade: "Por entre as brumas
misteriosas da eternidade, o tempo fez sua evolução, e a terra nas expansões do
seu júbilo saúda o Novo Ano. Aos primeiros albores de sua aurora celeste também
surge na imprensa cearense um novo órgão de publicidade. Romeiro da esfera
terrestre, cumprimenta o mensageiro celeste e, como ele, tem seu círculo a
percorrer e sua missão a cumprir. Traça-lhes sua posição o programa que tem
representado o jornalismo brasileiro. Nas suas lutas se debateram todos os
interesses: a política e o comércio, as ciências e as artes, a indústria e a
lavoura continuam a ter seus paladinos. Apenas foi esquecido quem tinha mais
direito à solicitude do coração humano — o proscrito! Conviva infeliz,
sentou-se ao banquete da vida para sofrer e morrer. A fera indomável da cobiça
humana fez dele a sua vítima. Escravizou-o, vendeu-o, torturou-o e matou-o. Um
milhão e quinhentos mil desses infelizes, crismados com o nome de cativos,
ainda hoje não respiram livremente na pátria livre. 1822 negou-lhe o batismo da
liberdade! Mais tarde mistificou-se, em seu detrimento, a lei de 7 de novembro
de 1831 e prosseguiu terrorosa a mesma opressão. A consciência pública revoltou-se
e a liberdade reclamou justiça. Entretanto, a lei de 28 de setembro de 1871
aludia à questão, mas não solvia a dificuldade. Com o país que se levanta em
prol da mais santa das causas, vem hoje o Libertador
inscrever-se na liça de seus combatentes". São estas as primeiras palavras
da sua apresentação.
"De publicação quinzenal,
este jornal é destinado à propaganda e interesses abolicionistas. Órgão da
sociedade Cearense Libertadora, ele aceita qualquer publicação concebida nos
termos do seu programa. Cada número avulso, 40 réis. Impresso na Tipografia
Brasileira até o nº 6, passando à Tipografia Cearense, mesmo local, rua
Formosa, 19. Impressor: Joaquim Lopes Verçosa. Formato: 21,5 x 30 cm., 8
páginas. Secções: Libertador, Gazetilha, Expediente, Folhetim, Literatura e
Página do Povo.
"Redatores: Antônio Martins,
Antônio Bezerra de Menezes e José Teles Marrocos. Colaboradores, entre outros:
Frederico Borges, Justiniano de Serpa, Martinho Rodrigues, Almino Álvares
Afonso, Abel Garcia e João Lopes”.
"Manteve a sua publicação
regular até o número 18, de 26 de agosto. Mais um número, em 28 de setembro,
comemorativo da Lei do Ventre Livre e da fundação da Perseverança e Porvir; e
outro, nº 20, em 8 de dezembro, primeiro aniversário da Cearense Libertadora,
nascida assim sob os auspícios da Imaculada Virgem, "mãe do louro sonhador
da Galiléia".
Esta explicação inicial: —
"Não tem podido sair regularmente, como pretendíamos, o nosso órgão — o Libertador, em conseqüência da afluência
de serviço na tipografia onde se imprime. Na quadra anormal que atravessamos,
em que só se respira o ar mefítico da política, atarefadas que se acham as
outras oficinas, cada qual mais empenhada em encarecer os bons ofícios de seus
candidatos à apresentação nacional. À vista disto tratamos da aquisição de um
prelo para a publicação diária do Libertador,
que se ocupará da propaganda abolicionista, dos interesses do comércio,
indústria e agricultura etc. Não se intrometerá com a política, essa asfixia da
dignidade da nação, porque só curará de bem servir o país. Montada
convenientemente a empresa, como esperamos, não terão mais os nossos assinantes
razão de queixa pela irregularidade da publicação e desde já comprometemo-nos
manter ilesa a integridade do nosso programa. Mais alguns dias e estaremos em
campo ao lado dos grandes batalhadores, pugnando pelos interesses de todos.
Havemos de cumprir a nossa palavra".
Iria suspender fogo, por mais
tempo que o esperado, o canhão abolicionista, porque somente voltou a falar em
novembro de 1882. "O Libertador volta hoje à imprensa — é do seu
primo-editorial do nº 1, segunda fase. Nas mesmas idéias do seu programa de 1
de janeiro de 1881, apresenta suas credenciais ao país e amplia sua esfera de
ação. Com direitos a exercer e deveres a cumprir, abraça todo o assunto próprio
da mentalidade humana. Exibindo, pois, n'arena não dissimula nas flores
iniciadoras da retórica a sinceridade de sua missão e nem confia à sedução do
estilo a exposição do seu pensamento. O Libertador
fala a verdade nua e crua. Não quer enganar a ninguém nem ser enganado. Não
enflora e nem enfeita o seu programa: codifica o mandatum que tem a desempenhar".
E após outras considerações,
termina: — "É esta a nossa bandeira. Depois de longos meses de ausência
retemperamos n'adversidade e na luta a nossa coragem para hasteá-la bem alto.
Mas cumpriremos a nossa missão? E o que nos impedirá? Se o Libertador volta à imprensa, é porque tem todos os meios de
independência na sua empresa tipográfica, na qual está sintetizada a Sociedade
Cearense Libertadora. Seu órgão na imprensa não é instrumento de especulação
alguma, política ou mercantil. Não visa lucros materiais e nem ambiciona o
poder. Empenha-se, sim, com todas as suas forças, por todos os melhoramentos da
sociedade e bem-estar do país que agoniza à míngua de patriotismo. Ajude-nos a
Providência e seja conosco o civismo cearense".
Noutra coluna explicava: —
"Fazendo sua estréia jornalística no 1 de janeiro de 1881, continuou sua
publicação regularmente até 26 de agosto do mesmo ano. Mas o inquilino na casa
de mercenário, comprara muito caro o seu foro de cidadão na imprensa que também
editava o expediente do Governo. Contando assim 18 números apenas, despendido
tinha já de sobra quanto lhe bastava para a aquisição do melhor prelo manual. Todos
os sacrifícios que lhe deviam valer sua independência, não podiam sequer ao
menos garantir-lhe o direito de liberdade de imprensa. E depois os
acontecimentos de 30 de agosto, traçando a linha divisória entre a vontade
soberana do povo e o poder arbitrário do governo, acentuaram profundamente a
necessidade de conferir ao Libertador todos os elementos de vida própria. Ele
devia, pois, ter seu lar e sua tenda. A imprensa política é um oceano em
tempestade. Qualquer jornal, estranho a suas lutas, que aí desfraldar seu
estandarte aos ventos da publicidade, será sempre o ludíbrio do fluxo e refluxo
de alheios interesses. O Libertador suspendendo sua publicação, nada mais fez
que cumprir o seu dever. Bem longa, porém, foi a noite que passou sobre o povo
abolicionista que proscrito, como o israelita, afirmava entretanto sua vitalidade
à opressão de Babilônia..." E, mais para o fim: "O jornal que ontem
não tinha onde reclinar a cabeça, dispõe hoje da mais completa oficina
tipográfica da província. Mais longa também é a base do seu programa: não
exclui a ninguém dos seus comícios e nem olvida o direito do proscrito que
inscreve no número dos seus comitentes. Ressurgindo, pois, à publicidade, o Libertador já tem todas as condições de
vida própria e, para viver, não precisa matar ninguém. Cesse, pois, toda
prevenção. Como o Nthchez, ele acende o calumet
da paz e saúda fraternalmente todos os seus colegas da imprensa".
Reaparecera, com efeito o Libertador em formato grande de
circulação diária e vespertina. Assinatura: 10$000 por ano, na capital ou fora
dela. Número do dia: 40 réis. Número já arquivado: 200 réis.
A sua tipografia, na rua Major
Facundo nº 56, oferecia-se para preparar com prontidão qualquer trabalho
concernente à arte tipográfica, com magnífico prelo a vapor, um prelo manual e
uma máquina Magan, tudo material novo, sob a direção do mesmo Joaquim Lopes
Verçosa. O prelo Standard Double Crown, fabricado por Fréderik Ullmer, viera de
Londres pelo navio "Amazonense" e chegara ao Ceará em 27 de agosto
anterior. Foi o mestre Antônio da Rosa e Oliveira que o montou, com toda a
perfeição e sem querer pagamento, alegando que o fazia por "Estar
prestando um pequeníssimo serviço à redenção dos cativos". A chegada do
mesmo prelo foi anunciada pela Libertadora em boletim, que terminava com estas
quadras:
Na torpe selvageria
Da treva na escuridão
De raiva torcem-se os vis
NEGREIROS desta nação.
Deste povo cearense
Chegou no "Amazonense"
A voz da opinião.
Os ecos digam na serra:
De Alencar sobre a terra
Ressurge a luta em ação.
Os tipos e o prelo novo
Areias pisam de cá.
Viva o povo cearense!
Viva o livre Ceará!
Salve, pois, libertadores,
Punhado altivo de bravos!
Nesta terra das palmeiras
Não pode haver mais escravos.
Esteve o jornal sempre fiel aos
princípios abolicionistas e após a vitória continuou a circular como órgão do
Centro Republicano. Com o advento da República fundiu-se ao Estado do Ceará, órgão da União
Republicana (partido da coligação comendador Acióli — Barão de Aquirás), para
formarem A República, cujo primeiro
número é de 9 de abril de 1892. O Partido Federalista resultou da contração do
Centro e da União aludidos.
Durante o período de 1880-1884,
começo e fim da guerra antiescravocrata, circulavam em Fortaleza, ora em paz,
ora às turras com o Libertador, mas
simpatizantes declarados da causa, os jornais A Constituição, Pedro II,
Gazeta do Norte e também, mas em
terreno contrário, o Cearense.
A Constituição, da ala do Partido Conservador chefiado pelo Barão
de lbiapaba (Joaquim da Cunha Freire) e um quase aliado, era dirigido por
libertadores indúteis como Frederico Borges, Justiniano de Serpa, Martinho
Rodrigues, Almino Alvares Afonso. Tinha como Redator-chefe Paulino Nogueira.
Velha e tradicional folha diária, editava-se desde 24 de setembro de 1863.
Pedro II, o mais antigo, vinha de 12 de setembro de 1840 e nele
escreviam, naquele tempo, Torres Portugal, Gustavo Gurgulino de Sousa, Luís de
Miranda, Gonçalo de Lagos e Paurilo Fernandes Bastos. Era órgão dos conservadores
partidários do Barão de Aquirás (Gonçalo Batista Vieira), alcunhados de miúdos.
A Gazeta do Norte, do Partido Liberal, facção no Ceará chamada Pompeus, porque era dirigida pelo
Senador Tomás Pompeu e depois pelo seu genro Antônio Pinto Nogueira Acióli,
tinha como redatores Tomás Pompeu Filho, João Lopes, Júlio César, João Brígido,
Virgílio Brígido e João Câmara. Viera à publicidade em 8 de julho de 1880 e,
com o triunfo republicano, transformou-se n’O Estado do Ceará, a partir de 21 de julho de 1890.
CAPÍTULO XII
0 30 DE AGOSTO
Os fatos ocorridos em 30 de
agosto consolidaram o trancamento do porto de Fortaleza ao comércio espúrio.
Governava o Ceará o Dr. Pedro Leão Veloso, que não ia muito com as ousadias dos
libertadores, apesar de ter sancionado a resolução da Assembleia Provincial,
sujeitando, nas estações fiscais, a averbação de escravos que entrassem para
Província ou, a qualquer título alienatório, dela saíssem (a averbação custava
1:000$000 no primeiro caso e 50$000 no segundo).
Aconteceu que, tendo vindo a
Fortaleza, o Sr. Camerino de Castro Meneses, filho do Major Facundo e residente
no Pará, adquiriu duas escravas para seu serviço doméstico e pretendeu com elas
voltar para Belém. Mas, sabendo da disposição dos liberteiros em relação ao embarque das negras, contratou o respectivo
envio pelo porto do Acaraú, a fim de recebê-las no Maranhão.
Houvesse o que houvesse, os
abolicionistas, reunidos em sessão, deliberaram que nenhum marítimo iria à
praia no dia da chegada do vapor do Sul, medida — diziam eles — que visava a
ressalvar o Sr. Camerino de qualquer odiosidade ou responsabilidade, em
positiva homenagem aos manes de Facundo, seu pai e mártir da liberdade. José
Luís Napoleão, auxiliado por Francisco Nascimento, fomentava a greve dos
praieiros e arrancava as pedras dos calçamentos, postas em rumas, para
dificultar a ação oficial, na passagem para beira-Mar.
Encontrava-se na capital cearense,
por sua vez, um Sr. Magalhães, do Pará, que se esforçava por mandar para a
mesma cidade de Belém alguns escravos comprados, tendo interessado no caso, por
intermédio de João Brígido, a Chefatura de Polícia, não sem algumas relutâncias
da parte desta.
Entretanto, o Dr. Torquato Mendes
Viana, chefe da repartição, acabou cedendo e tomou a si efetivar o despacho de
todos os negros, com o que afinal Camerino de Castro concordou.
Naquele dia 30, achava-se no
porto o navio "Espírito Santo", coincidentemente o mesmo dos
acontecimentos de 27 e 30 de janeiro, e aos poucos o povo se aglomerou na
praia.
Começaram os protestos contra o
aparato militar do Chefe de Polícia. Se ele havia imposto — "ou os
escravos embarcam ou corre sangue", aí estava a resposta em boletim
espalhado pela cidade: "Pois corra sangue!"
E a questão se colocou no ponto
exato em que esteve nos passados dias de janeiro, quando, menos intransigente,
presidia à Província o conselheiro André Augusto Pádua Fleury e era Cheire de
Polícia o Dr. Gonçalo Paes de Azevedo Faro. A solução só poderia ser a mesma: —
não embarcar.
Duzentas e dez praças (guardas
civis, polícias e soldados do 15º Batalhão) postavam-se para manter o
"princípio da autoridade", mas os libertadores respondiam que 210
era, sem tirar nem por, o número de infelizes negros até aquele instante por
eles declarados livres!
No auge da confusão, presente o
próprio Dr. Torquato, as duas pretas do Sr. Camerino, sub-repticiamente, são
metidas por João Carlos Jataí num carro trazido pelo liberteiro Cândido Maia e fogem todos em desabalada carreira.
O desapontamento da autoridade
sobe ao desespero, quando verificava a fuga insólita, porém nada mais lhe é
possível ordenar, naquela conjuntura. Uma desmoralização, aquele roubo!
Excelente pasto à exploração pelos políticos da situação governista aquele
desrespeito!
Elas por elas, reclamavam. Da
tipografia dos abolicionistas saiu em boletim a "Torquatada", versos
chistosos e desprezativos.
Do lado do governo, a reação
andou célere, zangada agora, também, contra a oficialidade do Batalhão do
Exército, que ostensivamente aderia ao emancipacionismo.
Foi que na noite de 25 se comemorava
o aniversário natalício do Comandante, Coronel Lima e Silva, e os libertadores
receberam atencioso convite para a festa a realizar-se na sua residência (Rua
Major Facundo, esquina com a hoje Rua Pedro Pereira, nº 131). Lá estiveram José
do Amaral, Frederico Borges, Antônio Martins, José Marrocos, Francisco José do
Nascimento e Antônio Bezerra, recebidos, ao entrarem, com um "Viva a
Sociedade Cearense Libertadora!", no qual "prorromperam, num brado
forte e estridente", os oficiais homenageantes.
"Sendo alta noite — narra
Antônio Bezerra — ergueu-se da cadeira o Coronel Lima e Silva, e com a altivez
de porte que lhe é peculiar, transportado ao mais nobre entusiasmo, falou e
disse: — Senhores da Sociedade Libertadora: Adepto das mesmas ideias que sustentais
em prol da liberdade dos escravos, eu empenho minha honra militar,
garantindo-vos que a força sob meu comando não disparará um tiro sobre os
libertadores — Suas palavras foram acolhidas com uma salva de palmas. Os
libertadores não cabiam em si de contentes; estava vencida a maior dificuldade
da situação. Dentro em pouco se despediram levando os corações cheios de
legítimo contentamento".
"Na rua, pouco abaixo
daquela casa, à mesma hora, pararam os libertadores — é Bezerra ainda quem
escreve — e acordaram sobre a posição que se deveria tomar, caso morresse algum
dos companheiros vitimados pelas balas do governo e ficou assentado sob
juramento que Francisco do Nascimento, que não tinha filhos, assassinaria o
Chefe de Polícia; e ele prometeu por sua honra. E na ocasião em que se
pretendia embarcar as escravas ele, convenientemente armado, acompanhou sempre
aquela autoridade em todos os seus passos no trapiche, até que, partindo do
porto o vapor "Espírito Santo" se retira a força, e o chefe dela que,
ainda hoje é opinião nossa, fingiu por medo que não vira as escravas na ocasião
em que passaram do interior do trapiche para o carro. Na praia havia não menos
de seis mil pessoas que até o último instante gritavam desesperadamente: — No
porto do Ceará não embarcam mais escravos! O Coronel Lima e Silva cumpriu a sua
palavra. Não confiando o Dr. Torquato Viana na tropa de polícia às suas ordens
para oferecer frente ao ajuntamento do povo apinhado nos arredores, mandou o
empregado de sua Secretaria, Francisco Martins de Castro, ao Coronel Lima e
Silva, a fim de que lhe enviasse as praças de que precisava, cujo número
ignoramos, encarecendo urgência; mas o Coronel respondeu-lhe que sendo comandante
de um Batalhão não recebia recados, e que tinha direito a que se lhe fizesse
qualquer requisição tendente a serviço público por meio de ofício. Exacerbou-se
o Chefe de Polícia e fez logo a remessa do ofício exigido. O Comandante mandou
tocar reunir, e só depois das quatro horas desceu a força de linha sob as
ordens do Tenente José Joaquim Aires do Nascimento, que nos comunicou levava na
bainha um pedaço de espada. Quando tomou posição na Rua da Praia, em frente ao
mar, as negras já andavam longe, sendo agasalhadas em casa de Francisco
Januário, à Rua de S. Sebastião, com fundos para igreja de S. Benedito, de onde
as tirou ainda Jataí para a casa da preta velha conhecida pelo nome de Tia
Esperança, no corredor da Jacarecanga, entre o sítio do Comendador Luís Ribeiro
e o de D. Virgínia Salgado. A polícia cercou e deu busca em casa de Januário,
mas voltou, como se pode imaginar, de crista caída".
No relatório que apresentou ao
Presidente Leão Veloso justifica-se Torquato Viana: — ... "Tratei logo de
certificar-me do que havia com relação ao embarque do Major Camerino e o encontrei
com a família no trapiche, do lado oposto ao quarto do Guarda-mor e cercado por
muitas pessoas, a maior parte conhecidas e suspeitas de parciais como
pertencentes àquela sociedade ou partilhando suas ideias, segundo vim a saber
depois".
"À frente dessa gente achava-se
o Dr. Promotor Público, 2º Vice-presidente da Libertadora, e foi este quem com
modo insólito se dirigiu a mim para fazer prevalecer esta Chefatura a
desistência que ele e a gente da Libertadora tinham arrancado ao Major
Camerino, por meio de vaias e ameaças que tinham sido postas em prática,
justamente no momento em que tiveram aviso de que eu me aproximava".
"Em seguida, ronda-me o
Guarda-mor da Alfândega, fazendo-me considerações sobre a conveniência de se
aceitar a desistência do Major Camerino, no que o mesmo Guarda-mor se mostrava
sobremodo interessado, alegando ser acertado evitar-se derramamento de sangue,
que haveria infalivelmente se o embarque fosse realizado. Nesse ínterim, e sem
que eu tivesse conhecimento, por um golpe, ao que parece, estratégico de que
fui distraído por aquele aparte, fizeram desaparecer as duas escravas que ali
se achavam sem eu saber e fora do alcance da minha vista, sendo conduzidas em
um carro, sem que os agentes policiais pusessem-lhe qualquer embaraço nem
tampouco me comunicassem isso".
"Convencido depois de que a
concessão feita pelo Major Camerino fora até certo ponto constrangida, mandei
dizer-lhe a bordo para onde já tinha seguido com a família, que efetuasse o
embarque das duas escravas, certificando-me as suas respostas de que ele obrara
sem inteira liberdade, por ter, além de tudo mais, incluído em seu âmbito as
comoções por que passara, antes e depois de minha chegada, a família, a que os
da Libertadora fizeram, como depois vim a saber, recordar a morte trágica do
Major Facundo, pai do Major Camerino".
"A convicção da existência
desse constrangimento ainda se me tornou maior quando, procurando saber onde existiam
as escravas para fazê-las vir à minha presença, fui informado de que ali se
achava com as praças da polícia quando teve lugar a retirada das escravas,
esteve bem longe de corresponder à minha expectativa e a ela principalmente
devo imputar o mau caminho que as cousas levaram, merecendo menos desculpa,
pelo modo por que se houveram, os intendentes Francisco Siqueira Mano e Francisco
Ferreira do Vale"...
O Chefe de Polícia indicava
claramente, no seu ofício-relatório, o nome de alguns que deveriam ser punidos
pelo delito da liberdade.
O Dr. Frederico Borges foi
demitido da Promotoria, mas a causa não perdeu muito com isso porque ele passou
a redator-chefe do jornal A Constituição e aí continuou a auxiliá-la
fervorosamente. Demitidos foram igualmente Siqueira Mano e Ferreira do Vale,
oficiais da guarda cívica. A Francisco do Nascimento cassaram as funções de
prático e prático-mor da barra, bem como ao Dr. Almino Afonso as de Procurador
Fiscal dos Feitos da Fazenda Geral. O Dr. Pedro Borges, que era médico do Corpo
de Saúde do Exército, foi removido para a Colônia Chopin, no Rio Grande do Sul.
Outros sofreram suspensão nos seus cargos e até corte nos vencimentos.
No entanto, o que mais feriu a
sensibilidade cívica do povo foi a acintosa nomeação do Dr. Torquato Viana para
1º Vice-presidente da Província e a transferência do 15º Batalhão para Belém.
A oficialidade desse Batalhão, na
sua maioria contaminada do vírus da libertação, havia organizado o Clube
Militar Abolicionista e o mantinha animadamente. "Será erro supor-se que
viemos colocar espada de Brenus em uma das conchas da balança em que se libra a
opinião pública dividida em duas facções, e dizer com arrogância zambra: vae adversariis nostris — declamava um
seu representante na solenidade da libertação dos escravos de Pacatuba.
"Não, nós fomos envolvidos pela onda irresistível da ideia, contra a qual
as nossas baionetas seriam diques fraquíssimos e a quem não nos era
materialmente possível fuzilar na praça pública com as balas fundidas à custa
do suor do povo que é soberano".
Serviu de pretexto para a remoção
esse entusiasmo, sem qualquer sombra de ilegitimidade, por um pensamento que se
verificava, instante a instante, até na cabeça veneranda do Imperador. O
Batalhão teve que seguir. A imprensa verberou contundentemente o ato do
Ministro da Guerra: o Libertador e A Constituição rebatiam com veemência
as justificações que O Cearense e a Gazeta do Norte ensaiavam em defesa da
decisão ministerial e da atitude complacente do novo Presidente da Província,
Dr. Domingos Antônio Rayol, no fazer embarcar, quanto antes, aquele corpo de
tropa.
Para nada prestou o telegrama que
as Senhoras Libertadoras dirigiram ao Monarca pedindo a revogação do decreto,
nem o gesto do povo colocando-se ao lado dos soldados com a intenção ingênua de
os não deixar retirarem-se.
Na manhã de 6 de março de 1883 o
transporte de guerra "Purus", vindo especialmente para isto,
recebeu-os e levou-os acenando eles os seus lenços de despedida aos cearenses,
à Cearense Libertadora, às Libertadoras Cearenses, ao Clube dos Libertos, todos
na praia testemunhando-lhes as suas homenagens e manifestações de saudade.
CAPÍTULO XIII
NÃO SE ESCOLHERIAM MEIOS
Enquanto não reaparecia o
Libertador, os bravos luzeiros da libertação assanhavam os seus métodos de
conseguir alforrias.
Era dos estatutos que "um
por todos e todos por um" e que não se escolhessem meios para atingir o
fim.
Cada vez mais se angulavam os
dois caminhos — o dos carbonários e
o dos à sombra da legalidade, como
passaram a ser denominados ou outros, os menos assomados. Miranhas, como lhes chamavam, acomodatícios, ou na verdade escravocratas.
A denominação pejorativa popularizou-se, e o velho Piau, um desses curiosos
tipos de rua, "pau para toda obra", era bem o símbolo dessa popularidade
humilhante. Vivia o Piau a vender frutas, em enorme tabuleiro à cabeça, e
"apregoava com muito chiste pelas ruas da Capital, com voz que era ouvida
em todo o quarteirão:
Que pinhas bonitas
Que pinhas tamanhas!
Eu dou aos amigos
E não vendo aos MIRANHAS".
Não dormiam os da Libertadora e
não perdoavam, que a luta era de "matar ou morrer". E também de
roubos e furtos da mercadoria
execrável.
Os Amarais, José e lsac, com a
velha mãe e as irmãs, distinguiam-se nesses "crimes". Transformaram a
sua chácara do Benfica (hoje ocupada pelos dispensários dos pobres) e os sítios
dos Barreiros e Porangabuçu em esconderijo dos "objetos roubados".
Isac dedicava-se ao mister de
construtor e, como tal, mantinha contato com muitos operários e estabelecia
muitas relações de negócios e de amizade. Seria, necessariamente, elemento da
primeira ordem nas investidas e excursões "criminosas", e a sua
atuação devia ser mais subterrânea que frontal, para não por muito a nu a
estratégia do grupo.
Outro de ação destemerosa era
José Marrocos, redator do jornal, jeitoso para os disfarces e manobras de
detetive, tão expedito para certos golpes como Carlos Jataí, Cândido Maia e
Antônio Bezerra.
D. Maria Correia do Amaral patrocinava
os desvios de cativos e ajudava a escondê-los. Nos fundos da Casa-Grande (a
chácara referida) fazia-se a primeira localização dos "roubados", que
dali saiam para a mata dos Barreiros e do Porangabuçu. Quando necessário, eram
retirados para o interior, principalmente para sítios nas serras de Aratanha e
Maranguape. O "São Francisco", de Terto Cabral; o engenho "Rio
Formoso", de José Correia de Melo; o "Ipioca", dos avós maternos
dos Amarais; o "Macapá", de Manuel Antônio de Figueiredo, eram
lugares de depositar as peças desviadas dos seus donos. As comunicações
telegráficas, sempre cifradas.
Escravos roubados na Capital eram
mandados geralmente para aludidos sítios ou outros de confiança. Os do
interior, guardados nos Barreiros e Porangabuçu. Baldeação é como se conhecia esse sistema de despistamento e de
maior segurança. Libambo era a ação
de roubar.
Não davam folga aos senhores os
turbulentos "ladrões", e tanto fizeram estes que se meteram em
processo criminal rumoroso. Intentou-o, já farto de enormes prejuízos, o Cel.
Antônio Pereira de Brito Paiva, norte-rio-grandense de Vila Flor, depois cidade
de Canguaretama, porém já radicado em Fortaleza, aonde chegou a ser vereador,
presidente da Câmara Municipal, deputado provincial e tesoureiro da Secretaria
da Fazenda. Pai do Des. Joaquim Olímpio de Paiva e do General Vicente Osório de
Paiva, cearenses ilustres.
Teles Marrocos, por mais de uma
feita, trajado de guarda urbano, investiu contra a "propriedade" do
Cel. Paiva e dizem que numa dessas sofreu bengaladas do Dr. Joaquim Olímpio, a
esse tempo juiz substituto de Fortaleza. Mas acabou com êxito pleno, numa
Quinta-feira Maior, noite em que, com Isac do Amaral, Carlos Jataí e Cândido
Maia, "lunfaram" 5 escravos, com eles fugindo em cinco cavalos
convenientemente arreados.
Notas deixadas à família por Isac
do Amaral esclarecem que um destes possantes animais se chamava
"Albatroz" e outro "Vapor", e que a comitiva negra partiu
para Maranguape com uma carta de instrução do Cel. Antônio Ribeiro do
Nascimento, para encaminhá-los ao "Ipioca". Não obstante seguidos
pela polícia, chegou a bom termo a jornada perigosa.
Adiantam mencionadas notas que,
dos cinco escravos do Cel. Paiva, um ficou nos Barreiros, porque não pôde
acompanhar a mãe, e seguiu depois num carro de bois, escondido numa barrica de
trigo vazia.
O processo do Cel. Brito Paiva
encheu de comentários e interesse a Capital. Eram réus Marrocos, Francisco José
do Nascimento, Antônio Bezerra, Isac do Amaral e Francisco Perdigão. Deviam
responder pelo delito de furto e por indenização de dano.
Advogava o autor João Brígido dos
Santos, e respondiam pela defesa dos acusados os Drs. Almino Afonso e Frederico
Borges. As audiências, nos baixos do prédio da Intendência (local leste do
antigo Abrigo Central), despertaram o máximo das atenções. Para aumentar o
escândalo, os "delinquentes" apresentaram um rol de mais de dez
testemunhas, instruídas para toda sorte de perguntas e respostas, no intuito de
delongar e desmoralizar o estranho processo, já no espírito do povo considerado
peça mais que burlesca.
Tornaram-se as mesmas audiências
intermináveis e barulhentas, e João Brígido toda espécie de reclamação fazia ao
juiz, que ordenava providências, afinal inócuas. Uma chalaça os depoimentos, tudo
agravado com o expediente engendrado por Isac do Amaral de mandar passar repetidas
vezes pela porta do fórum carroças de sua propriedade cheias de objetos de
flandres, numa barulheira de ensurdecer. A um protesto de Brígido contra
semelhante desrespeito, alegou o juiz não lhe ser dado intervir no tráfico de
veículos fora da sala da justiça. Testemunhas como José Basófia, Zé da Hora e
Piau depunham debaixo da mais desmedida hilaridade, eternizando a ação
intentada, tais as suspensões e os adiamentos.
Até que onerado de despesas e
saturado de dissabores, o Cel. Paiva recorreu aos bons ofícios de José do
Amaral, de quem era amigo particular, e pôs término ao seu libelo, do que
resultou a conquista de largo terreno para a campanha da Libertadora.
E assim aumentavam, hora a hora,
as vitórias sobre o mal negro e foi dessa forma que a Libertadora se
reencontrou com o Libertador em 2 de
novembro de 1882.
As manumissões sucediam-se,
gratuitas ou indenizadas, ampliando-se o movimento pelo interior da Província,
calorosamente aceito.
Por outro lado, procurava-se dar
golpe mais profundo, tornando o escravo economicamente inegociável.
Na Assembleia Provincial (sessão
de 12 de julho), o deputado Raimundo Carlos da Silva Peixoto, representante do
distrito do Aracati, submetia à apreciação da Casa projeto elevando para
1:500$000 a taxa de exportação de cada escravo, fosse o dono domiciliado na
Província ou não. Defendia a sua proposição relembrando que fora o aracatiense
Pedro Pereira Guimarães o primeiro a cogitar, na Câmara Geral, da liberdade do
ventre; que em 1868, na Assembleia Provincial, outro filho do Aracati — o
deputado João Pinto de Mendonça propunha e se adotava a verba de 20:000$000
para ser empregada em manumissões; e que ainda aracatiense era Júlio César da
Fonseca Filho, no ano precedente autor do projeto convertido, afinal, na Lei nº
1.937, de 5 de agosto, obrigando e onerando a averbação de cativos entrados no
Ceará, ou que a qualquer título mudassem de residência, de um para outro
Município da Província.
O Projeto Peixoto entra em
segunda discussão no dia 18, mas esta é adiada. Volta à baila no dia 24, quando
uma proposta do deputado José Mendes Pereira de Vasconcelos o enxerta de emenda
destinada a harmonizá-lo com a Lei nº 1.937, citada.
Somente na sessão de 30 de agosto
volta a Assembleia a apreciá-lo em terceira discussão.
Os Anais da Casa Legislativa não
trazem o discurso do autor, porque ele não o devolveu. Mas incluem o de
Justiniano de Serpa, em defesa da proposição e contrário a uma emenda de
Francisco Marçal de Oliveira Gondim, que introduzia limitações à disposição
primitiva do projeto "abrindo as portas aos abusos e crimes de que tem
vivido a escravidão". Chegava, de logo à conclusão: — O projeto visa a dar
morte ao tráfico e a emenda morte ao projeto, e por isso a combatia.
Fê-lo com segurança de
argumentação e arroubo d'alma, mostrando que às Assembleias Provinciais era
reconhecida, constitucionalmente, competência para decretar impostos como o do
projeto, e demonstrando que a "escravidão não se legitima perante as leis
da natureza, nem tampouco perante a civilização moderna".
"Devemos — afirmou entre
aplausos — empregar todos os meios a nosso alcance para aproximarmo-nos do dia
feliz e desejado em que se possa dizer numa estrofe de amor e de luz solta aos
ventos do Céu: — no Ceará não há mais escravos!".
Relembrou a atitude dos moços da
Libertadora em conjugação com os jangadeiros, enfrentando os arsenais de guerra
do governo transportados para a praia e proclamou "sublime a ilegalidade
do patriotismo cearense", se ilegal fora a reação abolicionista.
Os deputados João Paulino de
Barros Leal, Francisco Marçal, Antônio Gurgel do Amaral Valente não ofereciam
descanso ao jovem aquiraense, porém ao seu lado firmemente discutiam Filipe
Sampaio, Francisco da Mota Sousa Angelim e Martinho Rodrigues de Sousa.
"Quem pode legislar contra a
Constituição pode acabar duma vez com a escravidão" — replicava João
Paulino. "O escravo não é cidadão, não faz parte da comunhão brasileira,
não pode ser votante" — gritava da sua cadeira Marçal. "Se a
Constituição vale alguma coisa, ele não tem cidadania" — era a réplica de
Amaral Valente.
"Se não é — treplicava Serpa
— não demorará em sê-lo. Felizmente a geração que se levanta compreendeu que é
tempo de furtar às justas censuras das nações civilizadas a nossa cara pária.
Já não está muito longe o dia do nosso júbilo — o da igualdade de todos os
cidadãos".
Quando Serpa se referia aos
"nossos irmãos escravos" Marçal respondia que não era parente de
nenhum. João Paulino pretendia com palavras sinuosas convencer que o imposto de
1:500$000 por escravo era um roubo, um furto por meio violento, e Raimundo
Peixoto retrucava que roubo é matar a liberdade.
Martinho Rodrigues doutrinava: —
"O indivíduo que encontra em qualquer lugar aquilo que é seu, aquilo que
lhe roubaram, tem o incontestável direito de reivindicar a sua propriedade.
Pois o que nós queremos fazer é restituir aos cativos a liberdade que lhes foi
tirada violentamente".
Peixoto requereu, no fim, a
votação nominal. O projeto é aprovado, mas com a emenda. A favor desta: —
Arcádio Fortuna, José Mendes, Miguel Soares e Silva, Francisco Barbosa de Paula
Pessoa, João Paulino, Francisco Marçal, Pedro Onofre de Farias, Francisco
Delfino Ribeiro Montesuma, Belisário Cícero Alexandrino, Custódio Ribeiro
Guimarães, Amaral Valente, José Gonçalves da Costa, Róseo de Oliveira Jamacaru
e Antônio Pereira da Cunha Calou.
Contra a emenda: — Serpa,
Martinho Rodrigues, Filipe Sampaio, Sousa Angelim, Luís Lamartine Nogueira,
Pedro Jaime de Alencar Araripe, Antônio Moreira de Sousa, João Carlos Augusto,
Raimundo Peixoto, Sinzenando Marcos de Castro e Silva, João Mendes da Rocha e
José Martiniano Peixoto de Alencar.
Na aludida legislatura de 1882 e
sessão de 18 de julho o mesmo Serpa, avançando a sua audácia, requereu fosse
enviada pela Mesa aos poderes públicos gerais a representação que, nos termos
da indicação apresentada pelo deputado Júlio César da Fonseca, a Assembleia
aprovara no ano anterior (10 de agosto), pedindo a abolição completa da
escravatura no Brasil.
Ficara esquecida aquela
indicação, mas era preciso levar à Corte o eco altamente ressonante da agitação
libertária da pequena província do Norte.
"Indico que se represente
aos poderes gerais sobre a necessidade da abolição imediata, definitiva e
radical da escravatura, como meio de desenvolver o espírito do progresso,
satisfazendo o direito, a justiça e a mais legítima aspiração do país e
conciliando os interesses das raças pelo regime do trabalho livre".
A ideia dilatava-se mais e mais,
e a compressão só mais energia lhe podia imprimir. Na procela já se divisava o
porto franco e alvissareiro dos triunfos delirantes.
A ABOLIÇÃO NO CEARÁ
RAIMUNDO GIRÃO
Capítulos IV a XXI da coletânea DA SENZALA PARA OS SALÕES
Editado pela Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto do Estado do Ceará
3ª Edição - Impressa na IOCE.
Fortaleza, 1988
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