terça-feira, 25 de março de 2014

A ABOLIÇÃO NO CEARÁ

CAPÍTULO IV
OS PRÓDROMOS

Não era, pois, o Ceará campo favorável à planta azeviche das Guinés. Desde cedo, mostrou-se o cearense paladino da luta contra a exploração do homem pelo homem, como besta de carga.
Pedro Pereira Guimarães, Deputado à Câmara Geral, como já ficou visto, deixara desde 1850, nos Anais do Parlamento brasileiro, o traço vivo dessa pré-disposição da raça contra toda sorte de opressão.
Antes, o grande padre Martiniano de Alencar, governante de olhos de lince, dera os mais decididos passos para que a sua Província fosse arroteada pelo suor de colonos estrangeiros, em substituição ao trabalho das senzalas.
As alforrias espontâneas de cativos ficaram, logo mais, em uso e estimularam-se após a emancipação norte-americana de 1865.
Em 1868, com a Resolução nº 1.254, sancionada em 28 de dezembro pelo presidente Diogo Velho Cavalcante de Albuquerque, a Assembleia Provincial autorizava o Executivo a "despender a quantia de quinze contos de reis (15:000$) com a emancipação de cem escravos que forem nascendo, de preferência os do sexo feminino, os quais serão libertados na pia, cem mil reis cada um" (art. 1º). O Governo deveria distribuir aquela quantia pelas diferentes comarcas da Província, disso encarregada em cada Termo uma comissão constituída do pároco, do juiz municipal e do presidente da Câmara do Município (art. 2º). A emancipação seria feita por termo assinado pelo senhor do escravo e pela comissão, em livros próprios (art. 3º), e no qual se estipulasse ficar o escravo emancipado a cargo do senhor da mãe, com a obrigação de sustentá-lo e mantê-lo até a idade de 14 anos (art. 4º). Cabia ao Presidente da Província informar a Assembleia, nos seus Relatórios anuais, o número dos escravos libertados e a sua localização, para o que lhe incumbia baixar o necessário regulamento (art. 5º).
A regulamentação, entretanto, somente saiu em 8 de novembro do ano seguinte, expedida pelo presidente João Antônio de Araújo Freitas Henriques, que a executou não sem advertir à Assembleia a inconveniência da fixação rígida do preço do escravinho a libertar e a dar obrigação do seu batismo.
A comissão nomeada, na Capital, compôs-se do padre Dr. Tomás Pompeu de Sousa Brasil (Senador Pompeu), Dr. Domingos José Nogueira Jaguaribe (depois Visconde de Jaguaribe), Joaquim da Cunha Freire (mais tarde Barão de Ibiapaba), padre Antônio Pereira de Alencar, Jose Francisco da Silva Albano (depois Barão de Aratanha) e cônego (posteriormente Monsenhor) Hipólito Gomes Brasil.
Entendendo que a intenção do "legislador fora tanto libertar as pagãs como as batizadas e certamente estas por maioria de razão, contanto que a sua indenização não excedesse ao quantitativo marcado na lei, abriu concurso para todos indistintamente e aceitou as propostas neste sentido", - tendo, afinal, liberado 33 escravos, dos quais 20 por conta da cota provincial e 13 por conta da generosidade de particulares.
Foram distribuídas as cotas às seguintes comarcas: Capital - 3:000$; Aracati - 1:050$; Sobral - 1:050$; Crato - 1:050$; Icó - 1:050$; Baturité - 900$; Quixeramobim - 900$; Granja - 900$; Ipueiras - 300$; Aquirás - 750$; Santana - 750$; S. João do Príncipe (Tauá) - 750$; Imperatriz (Itapipoca) - 750$; Jardim - 750$; Saboeiro - 750$. (As manumissões do Crato e Saboeiro não se efetuaram porque as cotas não foram entregues no devido tempo).
O acontecimento era, de fato, quase inédito na historia do Brasil, pois só o Piauí praticara ato igual.
O Senador Pompeu, relator da comissão de Fortaleza, ressaltava-lhe a importância: "Aproxima-se o dia, somente retardado por circunstancias e falta de oportunidade, em que os altos poderes do Estado têm de reduzir a decreto o sentimento que se propaga geralmente no País. Enquanto, porém, não chega o dia dessa grande redenção, a assembleia provincial do Ceará, traduzindo este sentimento, apressou-se em concorrer com uma cota proporcional à renda provincial e ao elemento servil da província para a emancipação gradual, mandando libertar anualmente cem crianças por meio de indenização módica a seus senhores, contando com a filantropia dos mesmos; e parece que não se enganou em sua esperança, pois o resultado obtido nesta Comarca prova de sobejo que não se apelou em vão para os sentimentos caridosos de seus habitantes". E conclui; "Hoje, portanto, 33 criaturas passam do estado de cousa, segundo a expressão jurídica, ao de personalidade e entram no gozo de um direito natural, que um fato social lhes recusava, e vêm em homenagem ao dia de hoje (2 de dezembro, data do aniversario natalício do lmperador) receber das mãos do Exmo. Presidente esses diplomas, que os fazem entrar no seio da sociedade".
Realizou-se a festa no Palácio do Governo ao meio-dia, "momento solene e festivo, em que a província dera o seu primeiro passo, tomando um posto de honra na vanguarda da propaganda emancipadora" - anunciava, vaticinando um dos órgãos da imprensa local.
Nas comarcas do sertão os resultados se igualaram aos da capital. No Aracati, a comissão composta de Francisco Bernardo de Carvalho, José Teixeira de Castro, pe. João Francisco de Sá e Silvestre Ferreira dos Santos Caminha deu cartas de alforria (25 de dezembro) a 10 escravos, sendo 7 pela cota oficial, 2 por sua generosidade própria e 1 pelo cidadão Manuel Nogueira da Costa. Em Sobral, a comissão era formada pelo juiz Silvino Soares de Meio, Presidente da Câmara Joaquim Ribeiro da Silva, o vigário Vicente Jorge de Sousa, e alforriou 11, com o excesso de 430$ sobre a cota legal (2 de dezembro). A da Comarca de lcó, formada pelo Juiz interino Manuel Coelho Cintra Júnior, o presidente camarário José Boaventura Bastos, o juiz municipal Francisco Dias e o vigário Manuel Francisco da Frota, deu alforria (25 de dezembro) a 6 por conta da Província e a 4 pela generosidade dos particulares: Ana Rufino do Sacramento, Rosalina Enéias Rabelo, Ângela Severino Franco e Rita Joaquina do Sacramento. Em Baturité somaram 6 as emancipações. Em Quixeramobim 10, metade pela cota e metade por pessoas generosas: Manuel Jacinto de Barros Leal, Antônio Francisco Saraiva, Justino Ferreira da Silva, Francisco Firmo Feliciano, Maria Matilde da Conceição, Josefa Maria da Silva e vários outros. A comissão formou-se do juiz municipal Antônio Pinto de Mendonça, do Juiz de Direito Francisco de Assis Bezerra de Meneses, do pe. José da Cunha Pereira e do Dr. Cornélio José Fernandes, presidente da Câmara.
Em Santana do Acaraú constituíram a comissão o pe. Francisco Xavier Nogueira, Vigário colado, o Dr. Antônio Borges da Fonseca Júnior, Juiz Municipal, e José Bernardino Ferreira Gomes de Maria, Presidente da Câmara. Encerrou os respectivos trabalhos com a entrega (1º de fevereiro de 76) de 7 cartas de liberdade (4 pela cota oficial e 3 pela boa vontade de Alexandre José de Araújo, Jerônimo Bezerra de Araújo, Francisca Joana Bezerra). Na Vila de São João do Príncipe alforriaram-se 5 (31 de dezembro) e na da Imperatriz 5 (2 de dezembro). Em Granja, 6. No lpú foram indenizados 2 (2 de fevereiro de 70). No Aquirás, 6.
Ao todo 112 os primeiros efeitos daquela Lei de 28 de dezembro de 1868; porém muito mais teria de sair da iniciativa extra-oficial em campanha que havia de tomar mais a mais amplitude dominadora.
Efetivamente, a qualquer pretexto, nas festas de batizados, casamentos, aniversários, atos religiosos, reuniões maçônicas, sucediam-se as libertações. Os jornais da Capital noticiavam-nas com destaque e transcreviam notícias doutras Províncias, pondo em saliência os gestos de abnegação e solidariedade à ideia da extinção da escravatura.
Atividades mais ousadas, como belos exemplos, provocavam a emulação, tais como aquela do casal octogenário João José de Farias-Bernardina Maria do Amor Divino, residente no lugar Patu, da vila de Maria Pereira (Mombaça), que, duma vez só, quebrou os grilhões aos seus 35 negros, bem como aqueloutra, eloquentíssima, dos irmãos Manuel Francisco e Antônio Duarte de Queirós, fazendeiros na freguesia de Quixadá e chefes, ali, no partido liberal, que fizeram o mesmo em relação aos 84 de sua co-propriedade.
Valentim Gomes Pimenta, de Quixeramobim, também fazendeiro, libertou 12, tantos quantos possuía, Maria Francisca de Jesus, moradora no sítio Volta, em Assaré, libertou, dum turno, os seus 8.
Pessoas da mais fina posição social cotizavam-se, para comprar liberdades. Associações de caráter diverso igualmente concorriam para a quebra das gargalheiras infamantes: a Loja Maçônica Fraternidade Cearense, a sociedade mútua 17 de Janeiro, fundada por cearenses no Recife, mediante sua comissão em Fortaleza, outra de semelhante feição criada em Belém, e muitas mais. Desta última era Presidente o Dr. Esmerino Gomes Parente; vice, o Dr. Antônio Rufino de Sousa Uchoa; 1º secretário, Dr. Francisco Mendes Pereira; 2º secretário, M. F. Mendonça; Tesoureiro, João C. de Albuquerque Torres.
Surge então no Ceará a primeira sociedade libertadora — a de Baturité, organizada em 25 de maio de 1870 e instalada em 29 de junho por elementos de legítima expressão intelectual: Presidente, padre (dep ds cônego) Raimundo Francisco Ribeiro (vigário); Vice-Presidente, Dr. Antônio Pinto Nogueira Acióli (Juiz Municipal); 1º secretário, Dr. Pergentino de Castro Lobo; Ajudantes de secretário, advogado Manuel Rodrigues Martins e Dr. Francisco José de Matos; Orador, Dr. Virgílio de Morais; Tesoureiro, farmacêutico João Francisco Sampaio (este o iniciador da agremiação); Adjuntos, prof. Antônio Nogueira de Freitas e João Câmara. O tabelião Raimundo Antônio de Freitas, Geraldo Correia Lima e Balduíno José de Oliveira eram colaboradores assíduos e fortemente auxiliaram a sociedade nas suas atividades benfeitoras.
Ao mesmo tempo funda-se outra em Sobral — a Sociedade Manumissora Sobralense (25 de junho), reunindo no paço da Câmara Municipal "grande número de pessoas gradas, com o louvável fim de instalar-se uma sociedade que tem por fim libertar crianças do sexo feminino". Os estatutos sociais foram preparados pelos Srs. José Antônio Moreira da Rocha (depois Comendador) e Dr. Vicente Alves de Paula Pessoa (depois Senador do Império).
Evidentemente, não se suportava mais nos climas cearenses a continuação da escravatura. Os contemplativos do assunto passaram a ser olhados como suspeitos.
Na Assembleia Legislativa agitou os ânimos o deputado Manuel Ambrósia Portugal com o projeto que tomou o nº 5, de 9 de setembro (1870) e tinha esta redação: "Artigo único: — Fica em vigor a Resolução nº 1.254, de 28 de dezembro de 1868, com as seguintes alterações:
§ 1º - Fica o presidente da província autorizado a despender anualmente a quantia de 20:000$ com alforrias de escravos, cuja idade não exceder a sete anos;
§ 2º - Os do sexo feminino serão alforriados de preferência aos do sexo masculino;
§ 3º - Cada escravo dos que tratam os parágrafos antecedentes será libertado por preço nunca excedente de 120$”.
Aprovado em primeira discussão na sessão de 12 e, em segunda, na de 14 sem qualquer discussão, teve a sua terceira (dia 15) adiada por oito dias e somente na sessão de 30 veio a ser apreciado, já acrescida de duas emendas: uma do deputado Joaquim Mendes da Cruz Guimarães filho e outra do próprio autor do projeto. A primeira reduzia, de 20 para 15 contos de réis, o total da autorização, e a segunda elevava para 150$ o preço da liberdade de cada escravo a remir.
Sofreu a proposição de Torres Portugal aceso combate dos Srs. Manuel Soares da Silva Bezerra e Gustavo Gurgulino de Sousa, os quais, aceitando em tese a necessidade da abolição, se opunham àquele meio de obtê-la por via de indenização com dinheiros públicos.
Sustentava Soares Bezerra que "podemos modificar a escravidão, mas não destruí-la, porque ela tem a sua origem no princípio do mundo, e é da natureza humana, para quem tem este mundo por um mundo de expiação". E ajuntava, ao fogo de constantes apartes: "Sou amigo da liberdade do escravo, porque tenho coração de homem, porque não reconheço o direito de um homem sobre outro, e porque o evangelho me diz — ama o teu próximo como a ti mesmo — mas isso não quer dizer que forriemos já os escravos todos". Mais ainda: "O que será do Brasil com essa multidão de homens sem educação, sem sentimentos, sem brios, como são os escravos, feitos de repente cidadãos e gozando de todos os direitos? Homens acostumados ao trabalho forçado, porque têm senhor que lhes dá o comer e vestiário; a que não ficaria exposta a nossa propriedade? Eu creio, senhores, que seria o maior mal que se poderia fazer ao Brasil".
Falava o deputado opositor, apesar de fervoroso católico, a linguagem dos que, presos aos interesses patrimoniais, desejavam sentimentalmente a liberdade dos negros, porém na realidade não queriam efetivá-la. A tecla dava o mesmo som: a Província estava em déficit e melhor seria aplicar o dinheiro na construção de estradas, pois ao Império e não a ela cabia gastar com tal negócio. Pura vaidade — acrescentava-se — pretender manumitir escravos com as arcas do tesouro provincial!
O projeto, entretanto, foi vibrantemente defendido pelo seu inspirador "Feliz para o Brasil será o dia em que dos ventres das mulheres, que hoje são escravas, não saiam senão defensores da liberdade e obreiros do progresso". Sensatamente explicava: "Senhores, o fim do projeto não é libertar de chofre, de uma vez só, todos os escravos da Província, não; nem o cofre provincial tem força para tanto; é fazer alguma coisa em bem do elemento servil".
E um aparte ajudou: "A província do Piauí foi a primeira que votou uma verba para a liberdade de escravos... cabe-lhe esta glória; e se o Ceará for a primeira província que extinguir a escravidão; terá também uma grande glória".
A despeito da oposição recebida, veio o projeto a converter-se, com as emendas, na Lei nº 1.334, de 22 de outubro, anunciada pelo presidente João Antônio de Araújo Freitas Henriques.

CAPÍTULO V
A PERSEVERANÇA E PORVIR

Em nada se alterava, nos fins de 1879, o quadro de sofrimento da gente cearense. A seca dos três anos anteriores fora o mais atordoante golpe que jamais recebera, tantas as desgraças acumuladas — a fome: as pestes, a desordem dos malfeitores, e desorganização em tudo, trazendo o afrouxamento das energias físicas e das virtudes inerentes ao povo do sertão.
Não havia limites ao doloroso flagelo. Dir-se-ia o homem totalmente esquecido de Deus, ou mais que isto, alvo das iras divinas. E, por cima de tudo, o escárnio dos administradores do sul, da Corte, onde se duvidava, sem-cerimoniosamente, da hecatombe de que era teatro o Nordeste. No Parlamento do Império, deputados e senadores negavam a existência da estiagem maldita ou friamente lhe restringiam a extensão, para assim se esquivarem à remessa de dinheiros e gêneros alimentícios que mitigassem a dor enorme de milhões de nordestinos reduzidos à expressão sob o látego impiedoso do seu destino de provocações.
Obstinadamente, não se aceitava haverem-se esgotado as derradeiras reservas do corpo e da moral de uma população de valentes, agora quase toda de luto na alma, porque não podia vestir-se fisicamente de preto, à falta de qualquer possibilidade econômica.
Dois anos de supremas e irreparáveis angústias, por isso que termina o "terrível ano de 1878 amaldiçoado por uma geração inteira, deixando ao povo cearense as mais dolorosas recordações de sua passagem fatal! Não havia família em toda a Província que, em tão calamitoso período, não tivesse pranteado a morte de um parente, de um amigo. Ele principiou com a fome e terminou com a peste! A febre biliosa, o beribéri, a anasarca, a disenteria, a varíola haviam superlotado os cemitérios. Na cidade de Fortaleza, em doze meses, sepultaram-se nos cemitérios de S. João Batista e da Lagoa Funda, 56.791 pessoas, mortandade espantosa para uma população de 124 mil almas" — população adventícia em mais de dois terços, chegada do interior e abarracada ao léu.
Na data de 10 de dezembro morreram de varíola, na Capital, 1.012 indivíduos, tantos que os coveiros, de extenuados, não os puderam sepultar no mesmo dia; ficando à espera da cova, para a manhã seguinte, 230 cadáveres. A 31, falecia a esposa do Presidente da Província, D. Manieta Gabaglia de Albuquerque Barros, vítima da doença. "A saída de um enterro da casa da primeira autoridade incutiu, no espírito da população e principalmente na classe ignorante, um grande terror!"
Mas os parlamentares do Rio de Janeiro não sentiam tamanho desconjuntamento na vida da pequena Província e, sem mais razões, suspendiam os socorros oficiais, que vinham em espécie, as mais das vezes, criminosamente deteriorados. Resolveram, por fim, na sua cegueira, acabar por decreto a seca nas províncias do Norte e proibir se continuasse fazendo despesas, não orçadas, por conta da verba Socorros Públicos. "De julho em diante não é possível o tesouro continuar a fazer semelhantes suprimentos" — dizia em ofício o conselheiro Afonso Celso, Ministro da Fazenda, ao seu colega de Ministério, conselheiro Carlos Leôncio de Carvalho.
Foi preciso que o Imperador lhes fizesse ver que "o Brasil não está em condições de deixar morrer de fome uma província," para que, na realidade, a hecatombe não assumisse proporções mais arrasadoras. A continuação dos socorros do Governo e a emigração a granel para outras regiões aliviavam a pressão, como remédio de paliativo, porém a ferida não sarava.
Nesse ambiente de verdadeira desagregação econômico-social, a cidade assistia aos embarques de pobres escravos, vendidos para as senzalas dos cafezais do Paraíba do Sul. Rodolfo Teófilo, testemunha presencial dos fatos, conta-nos assim aquelas cenas dilacerantes: "Abriam-se alguns escritórios de compra de escravos para se aproveitarem torpemente do último recurso que restava ao infeliz matuto. A mercadoria era comprada no interior por baixo preço; as peças custavam às vezes duas sacas de farinha ao magarefe italiano, que afrontava os perigos das longas travessias. Saíram durante o ano de 1877, pelo porto de Fortaleza, 2.909 escravos para o sul do Império. Era um quadro desolador o embarque desses desgraçados. Todos uniformizados de fazenda azul de algodão, acompanhados pelo corretor, espécie de hiena domesticada, seguiam para o ponto de embarque. Não havia nenhuma dessas vítimas da barbaridade humana que, ao pôr o pé na jangada, não olhasse com os olhos úmidos de pranto para o azul do céu de sua terra. Todos choravam, mas suas lágrimas corriam despercebidas: eram lágrimas de escravos. Ninguém tinha dó deles! Quem podia ouvir eram os desgraçados também agrilhoados nas senzalas dos grandes da terra".
E foi com a visão confrangente de espetáculos tais, que dez moços de fé se uniram numa sociedade de fins econômicos, em molde de cooperativa, cujos lucros, em parte, se destinavam à manumissão de pretos escravizados.
Surgiu para os fastos do abolicionismo brasileiro a Perseverança e Porvir, instalada no dia 28 de setembro, em homenagem, expressamente declarada, ao oitavo aniversário da Lei do Ventre Livre. A sessão efetuou-se na casa então nº 100 da Rua Formosa (hoje e desde 1909, Rua Barão do Rio Branco), presentes os "sócios instaladores": José Correia do Amaral, José Teodorico de Castro, Joaquim José de Oliveira Filho, Antônio Dias Martins Júnior, Antônio Cruz Saldanha, José Barros da Silva, Francisco Florêncio de Araújo, Antônio Soares Teixeira Júnior, Manuel Albano Filho e Alfredo Salgado.
Pelos estatutos organizados por Martins Júnior e aprovados, com emendas, na reunião de 19 de outubro, a sociedade manteria um fundo de emancipação, que ia sendo alimentado com a contribuição espontânea dos associados e uma percentagem nos ganhos obtidos em cada operação mercantil. A primeira diretoria de mandato semestral foi eleita na mesma reunião: Presidente - José do Amaral (7 votos); Vice-Presidente - José Teodorico (5 votos); Tesoureiro - Joaquim de Oliveira Filho (7 votos); Secretário - Alfredo Salgado (8 votos); Diretores - Antônio Cruz (7 votos) e Barros da Silva (5 votos). Já se achava ausente o sócio Teixeira Júnior, de viagem para Lisboa, em tratamento de saúde.
Continuou a interessante associação as suas reuniões em lugares diversos, ora na Rua Amélia (hoje Senador Pompeu) nº 125, ora numa das salas do Hotel de L’Univers, na citada Rua Formosa, ora na Rua Conde d'Eu, até que, de 11 de julho de 1880 em diante, passou a funcionar na sua sede do "Castelo da Rocha Negra", dependência da casa de residência do presidente José do Amaral, "recentemente edificada", na mesma Rua Formosa, no quarteirão adiante do prédio onde se instalara. A esse tempo já se havia retirado para Belém do Pará o sócio Teixeira Júnior, pois, voltando da Europa, "não lhe fora possível obter um emprego condigno". Em sessão de 27 de junho fizera ele a declaração de sua retirada do Ceará e a sociedade, por seu presidente, explicou terem sido improfícuos os trabalhos para a consecução do emprego, "em vista da calamitosa crise comercial que tanto tem amesquinhado a nossa praça".
A Perseverança e Porvir promoveu e efetivou, em 28 de setembro, sessão comemorativa do seu primeiro aniversário de fundação, com alforria de uma escravinha de 10 anos de idade. Falaram Nabor Albion Chagas, presidente da sociedade "Liberdade e Heroísmo", em vigoroso discurso; o Dr. Frederico Borges e Francisco Dias Martins, este recitando versos alusivos ao ato. Firmam a ata da sessão muitos daqueles, cavalheiros e damas, que vão mais tarde desenvolver brava ingerência nas desabusadas lutas da libertação. Além dos 9 sócios, acham-se firmemente gravadas as assinaturas de Frederico Augusto Borges, Francisco Carneiro Monteiro, João Lopes Ferreira Filho, José Antônio de Castro e Silva, Gonçalo de Lagos Fernandes Bastos, Antônio Rodrigues da Silva Siqueira, Adolfo Barroso, José Alves Ferreira, Francisco Dias Martins, José Gomes Barbosa, Joaquim Carneiro da Costa Filho, Alfredo Borges, Bento Leite de Albuquerque, Catão Pais da Cunha Mamede, Francisco R. Salgado, Nabor Alboin Chagas, Joaquim José de Oliveira, Arnulfo Pamplona, Eugênio Marçal, Pedro Augusto Borges, Vitoriano Augusto Borges, Amanho Olinda de Vasconcelos, Luduvina Borges, Elvira Pinho, Júlia Amaral, Ana Joaquina do Rego, Maria Teófilo Martins, Francisca Nunes da Cruz, Joana Peres de Farias, Francisca Borges da Cunha Mamede, Maria Farias de Oliveira, Maria Teófilo Padilha, Maria Teófilo Morais, Joana Girard de Barros, Maria dos Santos Castro, Raquel Amaral, Teresa Adelaide Carneiro do Couto, Maria Cruz Saldanha e Adelaide Girard.
Na sessão de 3 de outubro "tratou-se do projeto de criação de uma sociedade humanitária, sob os auspícios da Perseverança e Porvir, entre senhoras, cujo fim é oferecerem, além de módicas joias e mensalidades, trabalhos de sua manufatura, que serão anual ou semestralmente vendidos em leilão público e os seus produtos reverterão em partes iguais para benefício da dita projetada sociedade e da emancipação de escravos". Ficou decidido que se procurasse levar adiante essa ideia, encarregando-se o senhor Secretário de fazer um plano de estatutos e de convites a algumas senhoras, particularmente por intermédio da Diretoria, para instalar-se a sociedade, caso seja aceita a proposta.
Não se tem notícias da fundação dessa sociedade, mas a ideia iria concretizar-se, mais adiante, com a das "Cearenses Libertadoras", como se verá depois.
As atas de 8 do aludido mês de outubro e de 1 de novembro seguinte são de iniciação, em caráter magno, de dois novos irmãos — Raimundo Maciel e Luís Xavier da Silva e Castro, os quais haviam anteriormente obtido a unanimidade da votação nas esferas amarelas e prestaram o sacramental juramento do art. 11 dos estatutos: "Juro perante Deus, a Lei e os sócios presentes guardar, com honra e religião, os deveres de sócio da sociedade Perseverança e Porvir, para cujo grêmio entrei livre e voluntariamente, tendo em vista os deveres e o progresso comum social, como o meu próprio interesse". Maciel morava na vila de Aracoiaba e por este motivo esteve dispensado da assiduidade estatutária.
É na sessão de 28 de novembro que se acertam as providências para a "reunião de 8 de dezembro seguinte, dia aprazado para a inauguração da Sociedade Cearense Libertadora, ficando combinado que todos os sócios tomariam parte ativa na promoção da festa, prestando-se de comum acordo para os preparativos de salões do Palacete d'Assembleia Provincial e mais outras precisões relativas ao dito fim".
A Perseverança e Porvir acendia o estopim do barril de pólvora que será a Libertadora, nas explosões de sua ação destemerosa e afoita, obstinada, exacerbada ao calor dos entusiasmos, às vezes sem freio, que ardem feridas ou arrebentam Bastilhas, mas constroem princípios de justiça e gloriosas diretivas de beleza cívica, profundamente humanas e niveladoras.
Oliveira Viana divide em três fases a evolução do grande pensamento da libertação servil. A primeira, que se inicia em 1865 e culmina em 1871, com a lei Rio Branco, estabelecendo a liberdade dos nascituros, de caráter tipicamente moderado. A segunda, que começa com a aparição de Joaquim Nabuco no cenário parlamentar, trazendo ideias francamente radicais, e vem encerrar-se em 1885 com o fracasso do conselheiro Dantas, não querendo senão, ainda moderadamente, completar a lei de libertação dos nascituros com o seu projeto de libertação dos morituros, ou seja, os escravos sexagenários. E finalmente uma terceira, a da libertação imediata, que chega ao fim da campanha: "A ideia abolicionista, atingindo o máximo de expansão, tem todas as características da incoercibilidade, da irresistibilidade, da fatalidade", e "deixará a abolição de ser uma questão de partidos para ser uma questão nacional".
A rapaziada da Libertadora vivia, antecipadamente, a derradeira fase, quando na Corte o movimento ainda não perdera o tom da emancipação lenta, toda respeitosa dos direitos dos senhores de cativos. Só muito depois, como se verá, o radicalismo abolicionista adquiriu o impulso decisivo, já o Ceará podendo oferecer à Nação o exemplo do seu 25 de março.


 CAPÍTULO VI
"OS DOZE APÓSTOLOS DA SANTA CAUSA"

A expressão é de um deles — Antônio Martins, no discurso pronunciado no ato de fundação da Libertadora.
A iniciação de Raimundo Maciel e Luís Xavier completara a dezena da mocidade idealista, sem faltar, sequer o menos-um iscariótico, que a tanto as circunstâncias adversas obrigaram, empurrando um deles para fora.
Eram todos jovens. José Teodorico de Castro, o mais velho, com 36 anos. Dos outros mais idosos, José do Amaral e Joaquim de Oliveira Filho contavam 32 anos. O mais moço, Manuel Albano Filho, 21.
Entre todos, o mais destacado era José Correia do Amaral. Nasceu em Fortaleza, no dia 23 de agosto de 1847, filho do português João Antônio do Amaral, de quem foi sócio na sua casa de comércio de ferragens, a primeira deste gênero, na Capital. A mãe, também lusa, Maria Correia de Melo, viera de Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, para o Ceará, em 1840, trazida pelos pais, o "patriarca da Ipioca" (sítio em Maranguape), Antônio José Correia, falecido aos 81 anos, considerado e respeitado, tal como sua mulher, D. Eugênia Rosa Bandeira. José do Amaral, de temperamento arrebatado e inquebrantável ânimo, impôs-se desde o começo à estima dos seus consócios da Perseverança, a qual sempre presidiu, em sucessivas reeleições. Foi o elemento constante na direção da sociedade e soube conduzi-la com acerto e eficiência. Fez-lhe a sede em sua própria residência, batizada "Castelo da Rocha Negra", e deu-lhe tudo quanto estava em suas forças, no seu ardor pela campanha que o empolgava. Deu muito de si e muito de sua fazenda, gastando talvez mais do que podia, nela interessando diretamente a irmãos Arão e Isac e as irmãs Eugênia, Júlia, Judite e Raquel, cujos nomes nunca serão esquecidos, como valiosas coadjutoras da memorável batalha redencionista. Transmitia o seu entusiasmo à própria filhinha única, do seu primeiro casamento com Maria Júlia Teles de Menezes Alves, a menina Abigail, que veio a ser a esposa do des. José Moreira da Rocha, Presidente do Ceará no período de 1924-1928. Quando da criação da Libertadora, José do Amaral passou a servi-la com ainda maior disposição, eleito 1º vice-presidente sem, contudo, deixar a presidência da sua querida Perseverança. Define-o este conceito de Júlio César da Fonseca: — "Abnegado e intransigente, pode-se dizer sem errar, constituiu o seu expoente (da Libertadora) máximo. Jamais consentiu que a causa que abraçou fosse maculada, um só instante sequer, por qualquer estigma ignominioso. Era um todo inamolgável de renúncias batalhadoras. O seu pensamento, o seu conceito, o seu sistema, o seu programa, tudo nele era um conjunto homogêneo de forças. Não sabia o que era a hesitação, só sabia o que era a decisão. Era a ação e a ação, como se elas fossem audácias dantônicas”. Faleceu na capital cearense em 26 de junho de 1929, aos 82 anos, portanto.
Depois de Amaral, o homem de maior atuação e prestígio na original agremiação é Antônio Cruz Saldanha, nascido em Canindé, em 24 de abril de 1852, da tradicional estirpe dos Barbosa Cordeiro. Associado ao irmão Francisco, montou casa de negócios comerciais em Fortaleza e, como comerciante, largamente desfrutou da mais destacada consideração. Na Perseverança, a sua experiência da vida mercantil era uma orientação para todos. Retidão de caráter e coragem, bom senso e inteireza de atitudes foram os seus grandes traços, na vida privada e na vida pública. Republicano convicto, nunca faltou ao seu posto nas pugnas da implantação do novo sistema de governo no País. Político militante, nem uma vez só desertou da linha avançada, na férrea oposição ao regime oligárquico plantado, com raízes fundas, no Ceará, pelo comendador Nogueira Acióli. Nos entreveros da abolição ninguém o superou no esforço e na abnegação, prestando-lhe inestimáveis serviços. Dele, dentro da Perseverança, é que partiu o pensamento de fundar-se uma sociedade antiescravocrata de maior amplitude — que seria a Libertadora. Faleceu na sua fazenda de criar, em Canindé, a 26 de julho de 1908.
José Teodorico de Castro viera do Aracati, onde nasceu em 8 de outubro de 1843, filho de Raimundo Teodorico de Castro e Maria Malveira. Ocupou, sempre, cargos na diretoria da Perseverança, da qual foi solícito animador. Exercia funções comerciais e acabou empregado na Casa Boris Freres. Falecido em Parangaba no dia 19 de março de 1901.
José Barros da Silva, de quem não pudemos colher melhores notícias, muito concorreu para a vitória da Abolição. Fez do seu estabelecimento, denominado "Bolsa do Comércio", quartel animado das reuniões dos libertadores. Também nunca deixou de figurar na direção da sociedade, salvo depois que se retirou definitivamente para o Pará, em começos de 1882.
De Francisco Florêncio de Araújo sabe-se que nasceu na serra da Meruoca, zona norte do Estado, em 27 de outubro de 1855 e, vindo para Fortaleza, abriu casa de comércio de tecidos na Praça do Ferreira, em local ocupado, em parte, pelo antigo Abrigo Central. Depois liquidou o negócio e empregou-se na Companhia Ferrocarril, da qual saiu para ingressar como auxiliar da Casa Boris, posto em que faleceu no dia 6 de maio de 1918. Casara-se em 1879 com Maria da Cunha Araújo. Era filho de Florêncio Lopes de Araújo e Maria Rita de Araújo.
Manuel Albano Filho, o Manezinho na alcunha carinhosa, o benjamim da plêiade, viera de Pacatuba, onde nasceu na tarde de 9 de maio de 1858, filho de Manuel Francisco da Silva Albano e Maria Teófila Albano. O pai era um dos três irmãos Manuel Francisco, José Francisco e Antônio Francisco, os dois primeiros dos quais se estabeleceram na Capital com a loja "Libertadora", sob a firma Albano & Irmão, uma das mais ilustres e importantes casas importadoras em todo o Ceará. Marcado, como o irmão seu consócio, de forte inclinação filantrópica, recebeu José o título de Barão de Aratanha. Albano Filho exercia a gerência da casa e, pela distinção de maneiras e simpatia pessoal, conquistou a popularidade e a afeição dos que o conheciam. O seu idealismo teve campo fácil nas façanhas libertárias, a começar pela Perseverança e Porvir. "Foi um dos mais valentes e dedicados companheiros d'armas na luta incruenta, porém vigorosa e tenaz, da liberdade dos cativos". Faleceu aos 29 anos de idade, na manhã de 8 de agosto de 1887, em Parangaba. "Tinha n’alma espartana as virtudes de patriota e de cavalheiro antigo" — são palavras de Antônio Martins, ao fazer-lhe o necrológio. "Ao lado dos nossos mais fortes, ele tornou-se distinto e nunca, no seu entusiasmo juvenil, brilhou mais esplêndida e cívica irradiação de su'alma do que nos gloriosos tempos em que foi nosso camarada, nessa campanha de heroica abnegação, de que ainda hoje poucos conhecem o valor patriótico. Ele era o mais moço nessa legião e, entretanto, foi o primeiro a deixar-nos".
Joaquim José de Oliveira Filho era livreiro, sócio do pai, o velho e respeitado lisboeta chegado ao Ceará, mocinho de 19 anos, e o primeiro a montar em Fortaleza casa de venda de livros, a reputada Livraria Oliveira, na Praça do Ferreira. Nasceu em Fortaleza em 21 de março de 1847. Embora não titulado, conhecia bem diversas línguas, o que muito o ajudava no seu ramo comercial. Já velho e cego ainda o dirigia pessoalmente, podendo pelo tato distinguir com precisão os livros que lhe pediam em compra. Espírito caridoso, a sua "Chácara de Pelotas", na Rua General Clarindo (entre a Avenida do Imperador e a Rua D. Isabel), passou a ser um pequeno asilo de pobres. Nessa mesma chácara, algo arredia e conhecida por "Furna Encantada", reuniam-se repetidamente os conspiradores da Abolição. Muito o auxiliou nessas conspirações a esposa, D. Maria de Araripe Faria, irmã do inditoso advogado e professor Xilderico de Faria e senhora de ânimo varonil. A mãe de Oliveira Filho, D. Angélica Ambrosina de Oliveira, era cearense. Morreu o denodado abolicionista em 15 de março de 1913, na casa de residência do seu genro Joaquim Costa Sousa, na Rua Major Facundo.
Depois de José do Amaral e de Cruz Saldanha, quem mais projeção alcançou no seio da Perseverança foi Antônio Dias Martins Júnior, nome que jamais deixaria de estar na dianteira, onde houvesse uma agitação qualquer dos liberteiros.
Nasceu em Fortaleza no dia 16 de junho de 1852, filho de Antônio Dias Martins e Francisca Xavier de Albuquerque. Foi caixeiro de escrita e, depois, funcionário da Alfândega. Jornalista de pulso, dirigiu vários órgãos de imprensa na Capital. Era admirável cronista e com o pseudônimo Delisle tornou disputados os folhetins do jornal Constituição e, mais tarde, no Libertador, com João Lopes Ferreira Filho, os sueltos que saíam com o título — "A Semana". Com Antônio Bezerra e Justiniano de Serpa publicou As Três Liras, livro de versos da propaganda abolicionista. Usando o criptônimo de Pery, trazia para os jornais as mais delicadas crônicas.
De todos o que mais viveu foi Alfredo Salgado, secretário a maior parte da vida da Perseverança. Ao tempo exercia o emprego de caixa da Casa Inglesa (Singlehurst & Cia., de Liverpool, com filial em Fortaleza), tendo sido antes guarda-livros da firma Viúva Salgado, Sousa & Cia., de que era sócia sua genitora, D. Virgínia da Rocha Salgado. Seu pai chamou-se Francisco Luís Salgado. Nascido em Fortaleza no dia 1 de setembro de 1855, aos 14 anos de idade Alfredo transportou-se, a fim de estudar, para a Europa, formando-se em Comércio na Inglaterra. Finamente educado, cavalheiroso, sempre brumelicamente trajado, mesmo durante a velhice, gozou de grande relevo social, e no seio das classes comerciais manteve-se como figura de alto acatamento. Ocupou por longos anos o cargo de intérprete do comércio para os idiomas inglês, francês e alemão. "Alto, de ombros largos, compleição atlética, cabeça branca, bigodes fartos e alvíssimos, sempre vestido com uma roupa ainda mais branca, eis de brusco a figura excepcionalmente simpática do ilustre morto" — escreveu o cronista Nogueira Lima, ao fazer-lhe o retrato, com o título sugestivo de "Morre um Jequitibá".
Viveu os últimos anos da existência (faleceu em 13 de abril de 1947, aos 92 anos de idade) como "solitário da Itapuca", nome que dera à sua confortável vivenda, no centro de mimoso jardim, cercado de gradis artísticos, que o guardavam como representante de um passado de venerações. Casara-se, a primeira vez, em julho de 1875, com Alexandrina Ribeiro, que ele viu morrer mal começadas as atividades da Perseverança. De novo se casou, em setembro de 1885, com Estefânia Nunes, falecida em 7 de março de 1919. Salgado foi um desses raros que nunca sofrem a doença da tristeza nem se vencem da tristeza cética dos esnobes.
O undécimo do valoroso grêmio, pelos próprios sócios denominado Escudo da Amizade, foi Raimundo Maciel. Residia na antiga povoação de Canoa, hoje cidade de Aracoiaba, num sítio denominado Jitirana. Aí nasceu em 25 de novembro de 1851, filho de Miguel Ferreira Maciel e Felícia Ferreira, e aí se fez comerciante. Transferindo a residência para Baturité, levou o seu comércio, a que juntou as atividades agrícolas do sítio Brejo, atualmente como nome de Bela Vista, ainda no domínio da família. De pouca instrução, mas de seu natural inclinado às coisas do espírito, inteligente e ativo, educou todos os filhos, que foram muitos, e chegou a exercer notável influência na política baturiteense, como um dos chefes do partido orientado pelo conselheiro Rodrigues Júnior, em oposição ao comendador Nogueira Acióli. Durante algum tempo negociou em Fortaleza, com armazém de gêneros, especialmente o café, associado a um irmão, porém com a morte deste voltou para Baturité e retomou as suas antigas ocupações serranas. Honra-lhe o nome prole ilustre que formou, dela se destacando os filhos Francisco Maciel, médico, Godofredo Maciel, reconhecido orador, que governou o Território do Acre e foi Prefeito de Fortaleza, e Júlio Maciel, magistrado e fino poeta. Faleceu Raimundo Maciel na capital cearense em 24 de agosto de 1921, aos 70 anos de idade.
O derradeiro a entrar — Luís Xavier da Silva e Castro. Nasceu em Fortaleza no dia 1 de julho de 1848, na casa de seus pais, José Xavier de Castro e Silva e Antônia Josefina de Castro, na Rua do Quartel, nº 4, hoje Rua General Bezerril. Casou-se em 18 de janeiro de 1870, tendo sido antes professor em Tucunduba, município de Caucaia, até 1869. No ano seguinte nomearam-no professor primário para Tamboril, onde permaneceu até 1876. A seca de 77 obrigou-o a emigrar, vindo novamente para Tucunduba e logo mais para a capital. Conseguiu o cargo de escrevente do Cartório de Órfãos, ocupado por Antônio Felino Barroso e dele se transferiu para o do tabelião Joaquim Feijó de Melo, também como escrevente juramentado. Com a morte de Feijó, foi nomeado tabelião, funções em que o encontrou a morte, em 17 de dezembro de 1918. A sua casa de residência, na Rua D. Teresa Cristina, nº 306, foi outro pequeno quartel dos soldados do abolicionismo.

CAPÍTULO VII
A CEARENSE LIBERTADORA

Os sócios da Perseverança e Porvir souberam engalanar o salão de honra da Assembleia Legislativa para a magna solenidade de instalação da Cearense Libertadora por eles projetada. Muitas flores, a beleza da mulher, a vibração das almas, o suspense dos momentos augustos e fortemente espirituais.
Às 11 horas já se achava tudo pronto, a casa plena de gente e de corações em ansiedade, na tensão nervosa das grandes expectativas. O dia 8 de dezembro de 1880 iria, inquestionavelmente, assinalar "uma data de ouro para o calendário da ideia abolicionista". E, apesar das escusas, que apresentaram os organizadores, sobre "as imperfeições que se deram na sessão, faltas que se desculpam atendendo-se a nosso pequeno número de sócios e à pouca prática nesses assuntos", nada se omitiu na espontaneidade da bela e inspiradora tertúlia.
Não nos foi possível encontrar o livro de atas e o das inscrições de sócios da agremiação que naquela hora se fundava, mas os fatos se recompõem por miúdo em nosso espírito através das palavras dirigidas no ofício do dia 13 seguinte, pela Diretoria da Perseverança e Porvir, aos Diretores provisórios da sociedade recém-criada e, notadamente, pelo Relatório ou Sinopse Histórica do Secretário Antônio Dias Martins a eles oferecida.
No citado ofício se exaltava: —... "o resultado não poderia ser mais compensador, nem mais auspicioso para nós e para vós: — a libertação de três adultos, sendo uma mãe com três filhos, uma mulher e um homem e, mais que tudo, a inscrição de 225 sócios. Se os nossos pequenos esforços produziram tão imensos resultados, vós que encetais a vida da Sociedade Cearense Libertadora, tão cheia de adesões sinceras, tão rica de esperanças e tão santa de aspirações, com o vosso elevado conceito e dedicação de patriotas provados e cearenses distintos que sois e que estremeceis o querido torrão natal, vós, como dizíamos, tereis muito maior colheita nesta seara luxuriante que enriquece de patriotismo o coração do generoso e nobre povo cearense”...
Convém deixar transpaginada a descrição da brilhante festividade feita pelo mesmo secretário Martins, com a linguagem de quem fervorosamente sentia o memorável acontecimento.
"Às 11 horas do dia, quando estávamos prontos a encetar os trabalhos, veio às mãos uma nota do Exmo. Sr. Conselheiro André Augusto de Pádua Fleury, honrado Presidente da Província, anunciando-nos àquela mesma hora uma audiência que no dia anterior lhe havíamos pedido, por não ter sido possível, em consequência dos fatos eleitorais do momento que tanto careciam da atenção de S. Exa. fazer-lhe o devido convite oficial.
"S. Exa. fez-nos ainda algumas considerações, lembrando-nos o método adotado na Inglaterra por pequenas associações na criação de pequenos estabelecimentos de instrução literária ou profissional, tão bem e sabiamente organizadas que a filantropia de outros os vão progressivamente alargando a produzir resultados vantajosos para a sociedade. Que tinha boas esperanças de que fosse o Ceará a primeira província emancipada e que muito era de esperar da associação Cearense Libertadora”.
“Finalmente expôs-nos os motivos, que inibiam de assistir e abrir a nossa sessão, motivos que reconhecemos justos”.
"Às 11 1/2 chegamos à Assembleia, onde já um crescido número de senhoras e cavalheiros ornava o belo e esplêndido salão das discussões; ainda, porém lá estavam chegando convidados e era esperada a distinta corporação representante dos Cavalheiros do Prazer e, chegada esta, começaram-se os trabalhos justamente ao meio-dia”.
"Lidos o discurso do nosso Presidente Sr. José Correia do Amaral, e o projeto de Estatutos, tomei a palavra; mas, incomodado como estava, muito mal desempenhei a leitura do singelo discurso que ofereci aos sócios da Cearense Libertadora, impresso, como do exemplar anexo sob nº 1”.
"Fomos imediatamente a palácio e ali recebidos por S. Exa. que prestou-nos toda atenção, significando-nos sua simpatia à nossa causa e oferecendo-lhe seus serviços no que estivesse no seu alcance, discorrendo com sabedoria e profusão sobre tão elevado assunto, observou-nos que era mister prestar toda a atenção para o ponto moral da ideia — a proteção e educação dos libertos, especialmente os infantes e as mulheres, e que estas deviam ser muito mais cuidadas como pontos preliminares da educação da família”.
“Dissemos-lhe que tínhamos emitido essa mesma opinião do nosso projeto de estatutos e que era de esperar todo cuidado na execução dela”.
"Ao terminar o meu discurso, deu-se carta de liberdade ao escravo Ricardo, em nome de sua senhora, a Exma. Sra. D. Maria Correia do Amaral, mãe do nosso digno Presidente, que nos quis assim significar a sua profunda adesão à nossa causa”.
"O ilustrado Sr. Gonçalo de Almeida Souto tomou a palavra e pronunciou um belo discurso; do seu estilo elegante, porém, destacou-se a sua doutrina particular, declarando-se católico de crença firme e abolicionista calmo, espectador dos feitos benéficos da lei de 28 de setembro de 1871, abolicionista que respeita a propriedade, reconhecida embora a infame procedência dela. S. Sa. saúda a sociedade Cearense Libertadora, augura-lhe os merecidos resultados e termina bradando-lhe: Avante!”
"Sucedeu-lhe na tribuna o ilustre Secretário da Beneficente Portuguesa 2 de Fevereiro que, representando a sua benemérita associação, traz-nos dela a sincera adesão que tributamos a todos os acontecimentos em que a liberdade, ao sol benéfico de todas as sociedades de todas as nações, irradia-se nos horizontes onde assinalam o Progresso e a Civilização; o orador retira-se da tribuna ao som de palmas”.
“Seguiu-o uma produção poética do Sr. João Batista Perdigão de Oliveira, distinto representante da sociedade anônima Democracia e Extermínio que, análoga ao ato e cheia de primorosas figuras, foi acolhida com merecidas palmas”.
“O Sr. Antônio Papi Júnior, que se sucedeu ao Sr. Perdigão, elevou-se ainda mais nas inspirações da sua musa arrebatada e meiga, em belos versos que lhe recomendavam a firmada reputação de poeta”.
"Tomou em seguida a tribuna o simpático e ilustrado Dr. Frederico Borges, digno 1º Secretário da sociedade Libertadora”.
“O jovem tribuno, tão simpatizado já nos comícios populares, mereceu sinais de atenção e respeito do pomposo auditório”.
“Seu discurso foi todo cheio de entusiasmo e patriotismo. Cada frase que proferia era uma lâmina de fogo cortante, e valente aniquilava os últimos redutos dos escravistas”.
“Muitos aplausos, muitos bravos lhe entremeavam a palavra”.
"Elevando-se numa peroração fascinante, S. Sa. anematizou a propriedade do cativeiro e a esse Gabinete liberal, que protege aos apóstolos da escravidão. S. Sa. lastima, condena o procedimento ingrato daqueles que tão mal viram apagar-se o astro luminoso da pátria, o imortal progenitor da lei a 28 de setembro de 1871, o ilustre Visconde do Rio Branco, que nas últimas palavras pedia-lhes ainda: "não perturbeis a lei do elemento servil"; e prosseguindo ainda em brilhantes frases, terminou por entre uma salva de palmas, que juntou aos louros já colhidos na tribuna”.
“Foram seus sucessores na tribuna os talentosos estudantes Raimundo Brito e Francisco Dias Martins, lendo aquele um ardente discurso e este uma mimosa poesia”.
"Subiu à tribuna então o ilustrado Padre Dr. João Augusto da Frota, digno Diretor da Instrução Pública (profundo respeito e sensação no auditório). S. Revma., declara que vem à tribuna obrigado pelas suas ideias: inesperadamente para si, convidam-no a fazer-se orador e, sem ao menos ter pensado no que deveria dizer, arriscava-se, por amor da ideia santa da liberdade, a proferir palavras desalinhadas, mas o faria inspirado pelo coração; S. Revma. em frases eloquentes repassadas de generoso entusiasmo declara-se abolicionista, não admite demora na emancipação... (explosão de palmas e bravos: o orador é foçado a interromper-se).., que, quanto mais breve for executada a emancipação, tanto mais rápido há de ser aquisição de seus cidadãos violentados ao ostracismo; que sendo abolicionista sincero e convicto, não é retardatário, não (aplausos, bravos e palmas); saúda, portanto, a ideia da emancipação, vê nela um grande bem para o país e para a humanidade e, nada tendo de si que possa engrandecer a sociedade Libertadora, nada podendo dispor, senão da sua cabeça que pensa e do seu coração que sente, põe-nos à disposição da ideia, oferece sinceramente os seus serviços”.
"O orador é freneticamente aplaudido".
"A Diretoria da sociedade Perseverança e Porvir saúda-o de pé”.
"Por entre palmas surgiu na tribuna o simpático Dr. G. Studart, como representante do Gabinete Cearense de Leitura”.
“De estilo dourado de todas essas filigranas poéticas de que o ilustrado e jovem médico sabe revestir as suas produções literárias, devia, como o foi, seu discurso ser uma prece; uma súplica ao coração sensível da mulher”.
“O ilustre orador primou pela escolha desse objeto amado, como meio legítimo de realizar um formidável contingente à cruzada abolicionista”.
"De forma sublime surgiram da sua prosa brilhante notas dulcíssimas e que, entremeadas de uma mimosa carta de C. Alves em perfeita analogia com o seu discurso, fê-lo colher merecidas palmas, entusiásticos bravos”.
"Como representante da distinta sociedade Cavalheiros do Prazer, surgiu na tribuna o nosso laureado poeta Antônio Bezerra de Meneses, 2º Secretário da Sociedade Cearense Libertadora e, em frases concisas e simples, mas ricas de patriotismo, demonstrou a necessidade da emancipação e, concluindo, saudou a sociedade Perseverança e Porvir pelo seu belo pensamento, retirando-se coberto de aplausos”.
"Estava terminando o número de oradores inscritos quando ilustríssimo Sr. Tenente Filipe de Araújo Sampaio pediu a palavra como presidente da sociedade Artística Beneficente Conservadora e seu verbo eloquente, que lhe ditava o entusiasmo, resumiu a sua adesão à sociedade Cearense Libertadora, dando carta de liberdade à sua escrava Joana, de 25 anos de idade, que sabe ler e escrever, sendo lida a carta pelo nosso confrade Sr. Luís Xavier da Silva Castro, que em seguida leu a carta de liberdade da escrava Filomena, de 23 anos com 3 filhos ingênuos, libertada pelos membros da Perseverança e Porvir”.
“Com verdadeiro frenesi e tocante entusiasmo à assembleia fez-se uma verdadeira explosão de palmas, de bravos e mil aplausos”.
"O ilustre Dr. Picanço ofereceu em adesão à causa da emancipação o produto de benefício da récita da opereta Madame Angot na Munguba, de que é autor, e lhe foi oferecido pelo empresário do Teatro S. José e cujo produto deverá ser aplicado à libertação de um escravo”.
"O Sr. Pedro Hipólito Girard, cidadão francês, ofereceu o produto da venda de uma noite no seu quiosque-botequim do Passeio Público, admitindo a escolha do dia no mês de janeiro próximo e promovendo uma festa de acordo entre si e a diretoria da Libertadora”.
"O distinto Venerável da Loja Maçônica Fraternidade Cearense ofereceu a quantia de 50$000 mil réis produzido pelo tronco beneficente daquela loja em benefício da sociedade Cearense Libertadora”.
"O ilustre Sr. César de La Camp, digno Cônsul d'Alemanha, ofereceu a quantia de 20$000 mil réis que punha à disposição da sociedade Libertadora em benefício da liberdade dos escravos”.
"Estava concluída a sessão, quando o nosso Presidente, tomando a palavra, apresentou à ilustre assembleia os nomes que escolhera a sociedade Perseverança e Porvir para formar a diretoria da sociedade Cearense Libertadora, sendo:
Presidente, o cidadão João Cordeiro; Vice-presidente, o cidadão José Correia do Amaral; 1º Secretário, Dr. Frederico A. Borges; 2º Secretário, cidadão Antônio Bezerra de Meneses; Advogados, Dr. Manuel A. da S. T. Portugal e capitão Justino Francisco Xavier; Tesoureiro, capitão João Crisóstomo da Silva Jataí; Procuradores, cidadão José Caetano da Costa, João Carlos da Silva Jataí, João Batista Perdigão de Oliveira e Eugênio Marçal”.
"Aplaudida a escolha pela assembleia, tomou a palavra o Sr. J. J. Teles Marrocos que, significando a sua adesão à escolha feita e que era ela muito bem inspirada, tanto mais quanto era o Presidente o Ilmo. Sr. João Cordeiro, extremado democrata e que mais uma vez tem mostrado a sua adesão à soberania do povo e seu pensamento pela causa da liberdade”.
“Todos os discursos eram terminados no meio de aplausos gerais, unidos às harmonias das bandas militares da Polícia e do 15º Batalhão, que tocavam no salão próximo”.
"Encerrada a sessão às 3 horas da tarde, começou a inscrição de sócios, que elevou-se ao número de 227, não se elevando a mais porque a sessão durou 3 horas e já se tinham retirado muitas pessoas”.
"Corre-nos o, grato dever de pedir-vos um voto de agradecimento ao distinto cidadão João Lopes Ferreira Filho, digno Secretário da Assembleia Provincial, que com grande satisfação cedeu os salões do palacete da Assembleia Provincial para a sessão, e outro tanto aos Ilmos. Srs. Tenentes-Coronéis Comandantes do 15º Batalhão e do Corpo de Polícia, concedendo-nos de bom grado as bandas de música que tanto brilhantismo deram ao ato”.
“Em toda a sessão reinou muita ordem e nem uma voz se ergueu que não fosse para aplaudir”.
"Assim ficou inaugurada a grande empresa abolicionista, de que patrioticamente aceitastes a direção provisória e que na minha opinião devereis ser os efetivos e esforçados diretores até encaminhá-la no verdadeiro e luminoso caminho da realização do seu sublime desideratum. Possais colher as coroas que merecem os dedicados cidadãos da santa causa da emancipação do país, e que não longe esteja a aurora da liberdade em que o sol da nossa terra vos banhe de luz, e das bênçãos da província que em prantos de gratidão vos beije os músculos esforçados com que quebrastes as algemas torpes do cativeiro de nossos irmãos”.
"Nesse belo dia, que não vem longe, peço-vos que não esqueçais o vosso humilde adepto e sincero amigo
 Antônio Martins".
Com efeito, retemperavam-se, nesses instantes de grande eloquência cívica, as energias dos que batalhavam numa cruzada tão ingente e gloriosa, qual a de jogar por terra o Adamastor horrendo do escravismo, sustentado pelas mil forças da inércia acomodatícia de uns e pelos interesses materiais de muitos.
Mas a glória também divide, e não iria ser uma, maciça, a marcha contra o inimigo comum a vencer. Lastimavelmente, não foi possível evitar que se abrisse o ângulo das divergências de opinião, gerando a divergência das diretrizes e dos métodos de proceder.


CAPÍTULO VIII
OS DOIS CAMINHOS

Aqui está o testemunho de Antônio Bezerra: — "Constitui o ato de eleição da nova diretoria (da Libertadora) uma das páginas mais belas da história cearense, e por isso não nos podemos furtar ao desejo de a relembrar. Tendo-se por mais de uma vez suspendido as sessões por tumultuárias, em consequência do desacordo entre uns sócios que queriam se fizessem estatutos e outros que a eles se opunham, foi pelo presidente provisório João Cordeiro designado o dia 30 de janeiro de 1881 para se decidir esse assunto. No domingo mais próximo, ao meio-dia, compareceram uns vinte sócios na antiga Bolsa do Comércio, à Praça José de Alencar, e logo João Cordeiro fê-los entrar para uma sala ao lado daquela casa de comércio, adrede preparada, a que havia ele dado o nome de Sala de Aço. Ali achava-se uma mesa grande, coberta com um pano preto, duas lanternas nos extremos e vinte cadeiras em torno. Depois de fechada a porta da entrada e acesas as velas das lanternas, João Cordeiro, que ocupava o centro da cabeceira, levanta-se e, arrancando da cava do colete um punhal, atira-o com força no meio da mesa, onde ficou cravado, oscilando sinistramente ao reflexo das luzes, e disse: — "Meus amigos, exijo de cada um de nós um juramento sobre este punhal, para matar ou morrer, se for preciso, em bem da abolição dos escravos. Vamos travar uma luta horrível com o governo, e por isso está em tempo de se retirar aquele que for amigo do mesmo governo ou dele for dependente. Quem não tiver coragem para tanto pode sair, que ainda sai em tempo; e logo se retiraram onze, cujos nomes por conveniência ocultamos do desprezo público". Acrescenta Bezerra que juraram, de conformidade com o cargo que cada um exercia provisoriamente, o presidente João Cordeiro, o vice-presidente José do Amaral, o 1º secretário Dr. Frederico Borges, o 2º dito Antônio Bezerra, os diretores Antônio Martins, José Teodorico, José Barros, José Marrocos e Isac do Amaral. E que João Cordeiro lhe ditou, e ele escreveu, os seguintes desconcertantes estatutos: — "Art. 1º — Um por todos e todos por um. § Único — A sociedade libertará escravos por todos os meios ao seu alcance". Datados na Sala de Aço, em 30 de janeiro de 1881, referidos estatutos foram assinados pelos presentes.
De outras providências tratou João Cordeiro, principalmente com o fim de poderem agir mais livremente nos furtos de cativos em que, sem rebuços, iam empenhar-se. Tomaram criptônimos e, desta forma, Amaral passou a chamar-se Joarez; Frederico Borges, Spartacus; Bezerril, Risakf; Martins, Peri; Marrocos, O'Connel, etc.; — e adotaram escrita especial, secreta, de modo que o a valesse z e o b valesse x, e assim por diante, recuando-se sempre uma letra.
João Cordeiro, nas memórias que escreveu, ao correr do lápis, esclarece que foi convidado por alguns sócios da Perseverança e Porvir para fundarem uma sociedade que se ocupasse da propaganda e da abolição dos escravizados. Aceitou o convite com grande entusiasmo, e com os rapazes da Perseverança convocou, para o palacete da Assembléia da Província, uma reunião dos abolicionistas para a fundação de uma associação que se instalou com o nome de Cearense Libertadora. Compareceu grande número de abolicionistas e ele, João Cordeiro, foi aclamado presidente e, tomando posse do cargo, deu por instalada a sociedade e nomeou uma comissão para organizar os estatutos. Dias depois, reuniram-se associados para ouvir a leitura destes e aprová-los; mas houve longa discussão e, para cortá-la, Cordeiro declarou: — "O projeto de estatutos que acaba de ser lido não convém. Nós queremos uma sociedade carbonária, sem ligações com o governo, que ocupe-se revolucionariamente da libertação dos escravos por todos os meios ao alcance dos nossos recursos pecuniários, da nossa inteligência e da nossa energia. Os estatutos que nos convém devem ser simplesmente estes: — "Art. 1º — Libertar escravos, seja por que meio for. Art. 2º — Todos por um e um por todos". Dissolveu-se a reunião, ficando apenas duas dúzias de abolicionistas dispostos a luta que deu em resultado a libertação dos escravos no Ceará.
Outro participe do concerto libertador, Isac do Amaral, transmite-nos que a fórmula dos revolucionários estatutos foi proposta por Antônio Bezerra: "A idéia triunfou e se formou um grupo de resistência que prosseguiu na luta, sendo de justiça destacar os nomes do punhado desse núcleo: João Cordeiro, Antônio Cruz, Antônio Martins, Antônio Bezerra, José Teodorico de Castro, Padre Frota, Alfredo Salgado, Frederico Borges, Pedro Borges, Almino Álvares Afonso, Manuel Albano Filho, João e José Albano, José Barros, J. W. Ayres, João Carlos Jataí, José Marrocos, J. Cândido Maia, Justiniano de Serpa, Rodolfo Teófilo, Filipe Sampaio e lsac do Amaral". E adianta: "Eram estes os tais dez libertadores, frase de mofa para traduzir a insignificância da força que pretendia demolir a torre Malakoff do escravismo".
Não parece certo que os nomes indicados por lsac do Amaral sejam os dos que ficaram na hora decisiva do juramento pedido por João Cordeiro, mas a verdade é que todos eles não saem do agitado palco em que se encena o complicado drama do extermínio da escravatura.
"Do lado da Libertadora — é ainda lsac do Amaral que o diz — ficamos com a maioria do povo, e do lado dos legalistas, tendo à frente o então Dr. Guilherme Studart (Barão de Studart), Júlio César da Fonseca Filho, João Lopes Ferreira Filho, Antônio Miranda e muitos outros filiados, ficou o apoio oficial e grande parte do funcionalismo público e dos proprietários, que não se queriam aventurar em lutas subversivas, que atentaram contra a Constituição do Império. Mas todos trabalhavam pela mesma causa, faça-se justiça". Polarizar-se-iam mais tarde estes legalistas no Centro Abolicionista, que mais adiante estudaremos.
Os dois caminhos iriam dar na mesma vila, porém cortavam topografia bem diferente.
0 grupo arrojado da Libertadora não mais sossegou nem parou. Sem demora fundaram um jornal "destinado à propaganda e interesses abolicionistas" e cujo primeiro número circulou no dia 19 de janeiro seguinte ao da fundação da sociedade. Chamaram o jornal de Libertador e adotaram o lema de Jesus — Ama a teu próximo como a ti mesmo. O Programa um tanto condoreiro: — "Com o país que se levanta em prol da mais santa das causas, vem hoje o Libertador inscrever-se na liça de seus combatentes. A sua missão é de amor, mas não vem trazer a paz. A liberdade só combate com a espada, porque a tirania não cede à razão e nem conhece o direito. Onde estiver o oprimido, aí estaremos nós. Ficam suspensas as garantias dos potentados. Constestamo-lhes o direito de serem os únicos que têm razão. Liberdade, igualdade, fraternidade é a legenda de nosso estandarte. A consciência humana também não conhece outro princípio. Ao reflexo da nova aurora, ao clarão da luz que tem iluminado as páginas da história, começamos, pois, a nossa romagem. No seu apostolado, Libertador não restringe a sua esfera de ação. Levanta o escravo e coloca o homem ao lado do homem. Sopeia o algoz e liberta a vítima. Tritura o orgulho do enfatuado e eleva o mérito real do filho do povo. E no vasto domínio da mentalidade humana, todo o assunto lhe é próprio. Marcha com o seu século, tem o mesmo movimento, e na luta faz a sua profissão de fé. Ou vencer ou morrer!..."
Como prometeram, onde esteve o oprimido estiveram eles de fato, com o seu denodo e a sua composição de jazz band em ritmo barulhento, mas de qualquer forma harmonioso. "Assemelhava-se — como para lsac do Amaral — a uma orquestra com um grande coro a acompanhá-la, desde a voz cristalina de Celicina Rolim ao baixo profundo do vate Juvenal Galeno; e, para aplaudi-la, o grande público, que era quase Fortaleza em peso, nos primeiros atos, e, no epílogo, todo o Ceará. Não havia papelório. O Livro Caixa estava sempre em branco. A bolsa dos sócios e dos amigos faziam de cofres-fortes. Cada um gastava o que podia e... até o que não podiam!"
Reunidos, em 22 de dezembro, os diretores da Cearense Libertadora e os da Perseverança e Porvir resolveram promover um "bazar expositor de prendas," como reforço da festa de benefício que ao movimento redencionista oferecia o súdito francês Pedro Hipólito Girard, dono de freqüentado quiosque-botequim no Passeio Público, rico e aprazível logradouro em que a operosidade de Tito Rocha havia transformado a ariosa Praça dos Mártires, antigo largo do Paiol. E deliberaram, outrossim, que os donativos deviam ser angariados por duas comissões de senhoras e duas outras de cavalheiros, o que, de logo, dava à mulher cearense direta responsabilidade que lhe ia ser admiravelmente imposta, na extraordinária jornada.
Da primeira comissão fizeram parte: Virgínia da Rocha Salgado, mãe de Alfredo Salgado; Maria Faria d'Oliveira e Francisca Borges Mamede, respectivamente esposa de Joaquim José de Oliveira Filho e de Catão Pais da Cunha Mamede; Isabel Vieira Teófilo, Sabina Teófilo Padilha, Cecilina de Moura Rolim e Estefânia Nunes de Melo — a última, futura esposa de Salgado. Da segunda: Francisca Correia da Cunha; Luduvina Borges, senhora do Dr. Pedro Borges; Maria José Mendes Pacheco, Antônia Vieira da Cunha, Maria Borges da Cunha. A primeira comissão de cavalheiros constituía-se de José Caetano da Costa, João Baltazar Lopes Ferreira, João Tibúrcio Albano, Manuel Rodrigues Santiago e José Joaquim Teles Marrocos. A outra, do Dr. Pedro Augusto Borges, Benjamim Constâncio de Moura, Confúcio Pamplona, João Carlos da Silva Jataí e Augusto Xavier de Castro.
Os resultados do bazar, realizado com o concurso de banda de música do 15º Batalhão de Infantaria e de vários intelectuais, e terminado com banquete e sarau dançante na residência de Girard, "o bom do senhor Hipólito," foram de incentivante efeito: 2.961$000, a que se ajuntariam outras somas decorrentes de novas festividades, inclusive a renda da representação, no teatro S. José, da opereta Madame Angot na Munguba, de autoria do Dr. Francisco Picanço, e do concerto, no salão nobre da Assembléia Provincial, da reputada pianista brasileira Idália França.
Outras dádivas se sucediam. O Libertador de 7 de fevereiro registrava "com especial agrado:"
Da Sociedade Dramática Maranguapense   100$
Da Sociedade Fraternidade Cearense  50$
Do abolicionista Benoit Levy   30$
Do abolicionista Frederico C. Hull, capitão do lugar "May Monroe"    25$
Do abolicionista César de la Camp.    20$
Do abolicionista F. J. Kenwerthy   10$
Do abolicionista anônimo   2$
Num total de 237$
Ao mesmo tempo que despertava nos espíritos mais humanitários o entusiasmo pelas manumissões (o referido Libertador, de 7, noticiava a conquista de 16 delas), os libertadores procuravam dar maior intensidade à reação antinegreira, vencendo ou pelo menos contornando as dificuldades da lei, que permita a desgraçada mercancia. Necessário, antes de tudo, fechar as portas de saída da nefária mercadoria, e a mais larga era o desembarcadouro de Fortaleza. Por ele não devia transitar mais nenhuma, e os vendedores por aí andavam a providenciar solertemente na remessa de outras levas para o Sul.
Em boletins soltos pela cidade, o Libertador denunciava-o em linguagem candente. No que se dizia anexo ao nº 2 do jornal de 15 de janeiro, apontava os vendedores Raimundo Gomes, Antônio e João Gurgel do Amaral como "negociantes de carne humana, iguais ao seu modelo primitivo — Judas"; e pedia ao povo corresse à praia, no ponto dos embarques.
Novos boletins, agora precursores do nº 3, indicavam, do mesmo modo, à execração, os "matutos Neutel Pinheiro Bastos e Joaquim Aurélio de Meneses, das bandas de Uruburetama", bem como José e João da Fonseca Barbosa, Telésforo Caetano de Abreu e Galdino Francisco Linhares, "homens sem entranhas, uns hokers compradores de criaturas humanas". Contra Manuel Melo Marinho, de lpu, e Vicente Ferreira & Irmão, "italianos residentes na Cachoeira do Riacho do Sangue", as objurgatórias não eram menos duras.
Que o povo se levantasse e protestasse contra semelhante ignominia.

CAPÍTULO IX
"NO PORTO DO CEARÁ NÃO SE EMBARCA MAIS ESCRAVOS!"

Aparece então o nome de Pedro Artur de Vasconcelos.
Cearense de Fortaleza, filho de Manuel José de Vasconcelos e Lina Josefa de Vasconcelos, nasceu em 29 de junho de 1851. Havia estudado no Seminário Diocesano e agora exercia a função no escritório da Casa Inglesa. Guarda-livros, colega de trabalho de Alfredo Salgado, contagiou-se do "espírito de liberdade" e várias vezes fez comícios pela extinção da nódoa ebânica. Num desses, na Praça da Estrada de Ferro (Praça Castro Carreira), concitou os ouvintes a impedirem os envios de cativos para fora da Província. Doutra vez — e foi no teatrinho S. Luís, noite de 26 de janeiro — falou de igual maneira, pois era hábito nos intervalos das peças teatrais fazerem-se discursos e recitarem-se poesias. Nas suas concitações lembrou que se poderia conseguir dos jangadeiros não transportarem para bordo dos navios escravo algum.
José do Amaral achava-se presente e tomou a deixa.
Também já estava Júlio César da Fonseca, que testemunhou depois: "Pedro Artur de Vasconcelos, tão esquecido, foi o iniciador do movimento, José do Amaral foi a alma. O toque de clarim cabe ao primeiro, o comando das forças ao segundo. O primeiro levantou o grito, o segundo uniu fileiras. Acudiram logo com o seu apoio e o seu aplauso, para dar corpo à aspiração, diversas pessoas. No Ceará não embarcará mais escravo! Era o lema, o moto do novo lábaro; e com ele, somente, seria vencida a escravidão. Foi no intervalo da representação de um drama, do teatro São Luís, que Pedro Artur lembrou a necessidade do movimento e que se apelasse para os jangadeiros. O sonho tornou-se realidade. E das brancas e pandas velas das jangadas, alcíones da liberada, se fizeram bandeiras de combate".
Certo número de escravos devia seguir pelo vapor "Espírito Santo", da antiga Companhia Brasileira de Navegação, a zarpar no dia 27. Pedro Artur e José do Amaral depressa recorreram ao liberto José Luís Napoleão, chefe de capatazia no porto e detentor das simpatias dos companheiros de serviços e dos jangadeiros em geral, graças à sua bondade e prestimosidade, assim como à de sua mulher, a preta tia Simoa, "de coração angelical e alma pura, que acabou seus dias recebendo os carinhos da família de Henrique José de Oliveira".
Napoleão comprara a própria liberdade e, com as economias que chegou a juntar, também a de quatro irmãs, bem como a de outros co-mártires do cativeiro. Toda a submissa bondade africana como que se apurava no cadinho do seu coração generoso. E por isso não recusou o convite, antes aceitou o apelo com ostensivo e sereno gosto e mais satisfação íntima por ver-se instrumento também do sagrado desígnio de acabar de vez a dor e a vergonha dos grilhões e do tronco.
A noite de 26 não os deixou dormir, nem a muitos mais — Antônio Cruz, Antônio Martins, José Teodorico, Antônio Bezerra, Isac do Amaral, João Carlos Jataí. Aos três últimos coube aliciar gente, em maior quantidade possível, para achar-se na praia na hora de embarque. Da greve dos jangadeiros se encarregaram os outros. E, se viesse a falhar, aos elementos aliciados do povo tocaria promover desordem momentânea, de modo a poderem fugir os escravos.
Mais de mil e quinhentas pessoas "de todas as classes e condições" afluíram ao local no dia 27 e foi com o espanto dos traficantes de negros que se ouviu o clamor — "No porto do Ceará não se embarca mais escravos!"
"Esta resposta terminante e decisiva — comenta o Libertador — partiu ao mesmo tempo de todos os lábios. Não se sabe quem primeiro a proferisse. Era uma idéia que estava em todas as inteligências, um sentimento que brotava em todos os corações”.
"É de ver como desapontados ficaram aqueles indesejados negociantes e, por mais que recorressem a oferecimentos de toda sorte, até mesmo às ameaças, nada obtiveram”. Repelidos, vaiados, provocaram a interferência oficial para garantir-lhes o direito de mandar a sua mercadoria e para tanto veio à praia um oficial, com praças da polícia, mas sem proveito qualquer. Apenas, muito cedo, haviam embarcado nove peças, porém dessas os libertadores, por meios legais, retiraram algumas, entre elas, do vapor "Pará," uma infeliz mãe 'seminua e quase morta a fome', com quatro filhas, despachadas no Maranhão para o Rio de Janeiro — todos desembarcados "debaixo da bandeira brasileira, ao som da música e ao ribombar de foguetes".
No dia 30 havia de levantar ferro o "Espírito Santo" e — descreve ainda o Libertador — lá acorreram à praia os Srs. Telésforo Caetano de Abreu, José da Fonseca Barbosa e os italianos Vicente Ferreira e irmão, levando consigo 38 criaturas humanas para exportá-las ao mercado do Sul. Novamente se recusaram os marítimos, apesar de pingues promessas de suborno e a cena se reproduz, com a vinda dos policiais, que nada adiantam. O próprio Inspetor da Alfândega e o Agente da Polícia Marítima se negam a transportar nas suas lanchas aqueles infelizes.
Houve a acusação de que os da Libertadora haviam subornado os jangadeiros mediante dinheiro farto. Porém nada mais se deu do que natural recompensa de prejuízos ocasionados pela suspensão dos seus trabalhos lucrativos, do seu pobre ganha-pão. E o dinheiro não foi abundante, pois lsac do Amaral confessa que, para tal fim, os libertadores se cotizaram, cabendo a José do Amaral e João Cordeiro quinhentos mil réis, cada um, e, também a cada um, duzentos mil réis a Pedro Borges, Frederico Borges, João Jataí, Antônio Bezerra e a ele lsac.
"O povo celebrou a vitória da liberdade — utilizemos novamente a notícia do mesmo jornal, — percorrendo em passeata todas as ruas da cidade. A praia, que fora o teatro do acontecimento, viu ainda uma enorme massa de povo levantando vivas e cantado hosanas aos homens do mar. Mereciam essas homenagens eles que se elevaram acima de todos os interesses do dinheiro. Obraram por inspiração de sua própria dignidade e sentiram mais honra na estopo do jangadeiro do que nos panos finos do negreiro. Mais tarde, soava meia-noite, o povo repousava; e apenas os vedetas da liberdade rondavam o mar e velavam pela inviolabilidade do porto. Como ladrão noturno, o subdelegado da Conceição, Domingos Barbosa, vem à praia espaldeirar algumas pessoas enermes que ainda lá estavam".
Restava aos negros melhor destino e os liberteiros o deram. Jataí, Bezerra e lsac — os três mosqueteiros, como eram apelidados, — souberam-nos guardados em prédio situado na esquina das atuais avenidas Pessoa Anta e Alberto Nepomuceno, e, noite avançada, penetram ali, pelos fundos da casa, ocupados por um capinzal. Comunicando-se, em silêncio, com os escravos, acertaram com eles encher a casa de capim seco e simular um incêndio, ao mesmo passo que outros da Libertadora, principalmente José Marrocos, conjuravam tipos populares (José Basófia, José da Hora e Piau) para, na hora do fogo, provocarem o alarme.
Pela madrugada o incêndio começou. E, ao repicar dos sinos da Sé e da Igreja da Prainha, e ainda ao som das cometas da Polícia, o povo se aglomerou em torno. Arrombadas as portas, verificou-se, com maior decepção dos traficantes, constantemente apupados, que a mercadoria havia fugido.
O "Espírito Santo" não os levou, e alguns que não estavam no incêndio foram transportados para Aracati, em cujo porto pretendiam embarcá-los.
Pedro Artur e José Napoleão alcançaram aquela vitória, mas a tradição lhes perdeu os nomes, que é preciso repor no lugar devido. Instado por José do Amaral para dirigir a campanha no campo praieiro, escusou-se o liberto escondido na sua exagerada modéstia, com esta resposta: "Seu Zezinho, tem aqui um que serve para o que o senhor quer: — é o Chico da Matilde".
Chico da Matilde não era outro que Francisco José do Nascimento, aracatiense, homem de cor, exercendo o mister de Prático da Barra e encarregado do serviço de lanchas do comendador Luís Ribeiro da Cunha. Napoleão empurrava-o para a fama desde aquele momento, porque, consultado sobre a sua solidariedade à cruzada redentora, sem demora Nascimento a deu, embora com a reserva de que não poderia ir muito adiante, considerada a natureza do seu emprego. No entretanto, pôs, ali mesmo, à disposição da causa, as duas jangadas que possuía.
Vale a pena ler este outro depoimento de lsac do Amaral: — "Nas greves da praia em 1881 tivemos, como principal mentor dos jangadeiros, o liberto Antônio Napoleão, caráter adamantino de abolicionista e de altruísmo fora do comum. Com o seu titânico esforço conseguiu, vintém a vintém, juntados avarentamente, até com o sacrifício da alimentação, obter carta de alforria. Longe, todavia, de gozar mais folgadamente os foros da cidadania conquistada, Antônio Napoleão continuou a quebrar os grilhões de seus irmãos de cativeiro, fazendo de seu pé-de-meia os fundos necessários para ir indenizando novas alforrias. Mas era de tal modéstia que ninguém o pôde fazer líder oficial da classe marítima, em cujo meio se tornou venerado. Dizia-nos sempre "para esse lugar, seus moços, só um homem novo e forte como Chico da Matilde, que é também jangadeiro muito sério e amigo dos colegas da praia". Daí nasceu a escolha deste, cujo nome próprio era Francisco Nascimento, que desde então aceitou o convite da Libertadora, bendizendo esta o novo concurso, porque Nascimento entregou-se com devotamento ao seu papel de chefe da grande classe praieira, tornando-se acatadíssimo, graças à sua força moral".  
E o mesmo Isac retrata-o: "O físico de Nascimento era agradável. Pardo, de pele fresca e reluzente, robusto, muito musculoso, olhos vivos, dentadura esplêndida, pouco vivaz, entretanto, na conversação, e fora do mar a sua figura bonacheirona dava-lhe o tipo de bojuto banqueiro da Holanda. Comparecia às sessões e tomava parte nas cavalgadas que os libertadores faziam nos arrabaldes de Fortaleza. Vivia em pequeno sítio plantado e aprazível, abaixo do morro do Seminário. Sua mulher, trabalhadora a valer, o que cercava o seu lar de relativa abastança e bem educada nutria a prole. Era gente de princípios arraigados em matéria de religião, havendo, pelas paredes da casa, muitos quadros com estampas de santos. No lugar de honra, ao fundo da sala, um oratório enfeitado, com a imagem de N. Senhora de Nazaré, padroeira dos navegantes, ali misticamente devociada".
Conquanto muito sublimada pela necessidade mesma de vestir a campanha de roupagens vistosas e impregná-la das forças espirituais contagiadoras, indispensáveis aos grandes triunfos, realmente foi de muita eficácia a atuação de Nascimento — o Dragão do Mar, principalmente por ocasião e depois dos acontecimentos de agosto.

CAPÍTULO X
OS PRIMEIROS FRUTOS

A intensificação do espirito emancipador na alma da cidade, fortemente exacerbado pelos fatos de 27 a 30 de janeiro, patenteada nos inteligentes modos como se foram angariando numerários para o cofre das manumissões e nas alforrias gratuitamente feitas por donos de escravos, proporcionou aos libertadores a realização da magnífica festa de 25 de março.
Para guardar o sabor original das impressões, é melhor trazer para aqui, integralmente copiada, a sua descrição produzida pela pena elegante de Jose Teles Marrocos, um dos redatores do Libertador, sob o título — "No dia da pátria e da liberdade — A festa da libertação de 35 escravos”.  
"Graças a Deus!"
“Esteve pomposa e deslumbrante a festa que a sociedade Cearense Libertadora realizou no dia 25 de março”.
"Jamais em seus cometimentos teve o Ceará uma adesão tão solene. Excedeu mesmo toda a expectativa o ato que num momento chamou a si todas as atenções e cativou todas as simpatias”.
"Esboçamo-lo ao correr da pena”.
"Às cinco e meia da tarde, já uma multidão se agitava sob as comoções de uma grande novidade que preocupava todos os espíritos”.
"Duas mil pessoas, seguramente, se achavam apinhadas desde as naves da lgreja do Rosário até o adro da praça”.
"Ao ribombar dos foguetes que iam repetir aos ares o eco do alvoroço de um povo inteiro, a música da policia desprendia as vibrações ruidosas de suas harmonias”.
"De repente fez-se silencio, e como no Sinai a multidão emudece para ouvir o verbo que irrompe dos penetrais do santuário”.
"Era o Revmo. Dr. Joao Augusto da Frota que, em nome do Deus da liberdade, lançava a benção à bandeira que os libertadores tinham de oferecer aos seus libertados”.
"Em número de 35 formaram-se em semicírculo em derredor do altar e, de joelhos, imploraram aos Céus a confirmação do que se fazia na terra”.
"Paraninfos do ato, os Srs. João Cordeiro e Luís Xavier de Castro recebiam do sacerdote e entregavam à veneração dos libertandos o estandarte abençoado”.
"Saudaram-nos o povo com os ósculos de sua piedade, a música com a melodia de seus hinos; mais de uma cearense distinta desprendia do peito o cravo, a rosa, a dália, a sempre-viva para adornar de flores a bandeira da liberdade”.

                                                                          ***

"No meio da comoção geral, grave, mas expansivo, assoma à tribuna, na porta principal da Igreja, o Revmo. Dr. Frota”.
"Ele felicita aos libertandos pelo grande acontecimento que vai ter lugar, e roborando-lhes a fé na providência adorável de Deus, mostra-lhes que naquela mesma Igreja, onde choravam as amarguras do cativeiro e da proscrição, nasciam agora as flores da redenção e da liberdade. Venciam os mártires! — disse o orador; e na posse dos direitos políticos que lhes iam ser outorgados cumpria que cada um dos libertandos se elevasse tanto mais alto no conceito público quanto menos humano era o juízo que a respeito de escravos externam os defensores da escravidão”.
"Sempre n'altura do assunto o orador falou eloquentemente sobre a necessidade do trabalho e da virtude como complemento característico da liberdade: terminou debaixo de uma chuva de palmas, ovações e cumprimentos”.

                                                                          ***

"Desfilou então o povo em direção ao Passeio Publico”.
"Marchavam à frente os 35 libertandos à sombra da bandeira que portava o seu representante, Ponciano Francisco de Paula”.
"Em seu trajeto pelas ruas d'Assembleia e Formosa, receberam a mais bela e carinhosa ovação”.
"Ao estampido de tantos foguetes, as melodias mais sonoras da música se vinham juntar às exclamações de um povo delirante de entusiasmo”.
"Jovens cearenses, formosas deidades, sacudiam flores e acenavam com seus lenços brancos, enquanto o prolongado viva dos mais distintos cavalheiros reboava no espaço”.
"A muitos veio a lágrima nos olhos denunciar a consolação interna que lhes transbordava n'alma”.
"Ó! Viva a liberdade! E o eco estendeu-se até a amplidão dos mares”.
"Era o solene momento. Nada faltou no concerto universal de tantas harmonias”.
"Trovejou o canhão na fortaleza, saudando, ainda uma vez, o dia da pátria da liberdade. Repicaram alegremente os sinos: o bronze sagrado também tomava parte da festa popular”.

                                                                          ***

"O Passeio Público trajava todas as galas da mais pomposa solenidade. Seu pavimento tapetava-se de flores, suas árvores hasteavam bandeiras de todas as nacionalidades, suas alamedas adornavam-se de arcadas triunfais. Uma iluminação giorno e a capricho deslumbrava o espetáculo”.
Três mil pessoas ali se apinhavam e ansiosas esperavam receber os libertandos. Ei-los que chegam acompanhados desde a igreja do Rosário pela música da polícia e pelo povo. Duas multidões se encontravam e se desafiavam em seu regozijo, nas expansões tumultuosas de seu entusiasmo. Tocavam as duas músicas, os vivas se trocavam simultaneamente e os fogos se revezavam no espaço.
"Era um desafio e uma porfia — ninguém quer ceder a palma”.
"E por entre o imenso alarido sobe à tribuna o denodado abolicionista Antônio Bezerra. Seu discurso de recepção aos libertandos reverberava todo o calor do fogo sagrado da liberdade”.
"— Entrem, meus amigos, exclama o orador, aqui é o templo da liberdade; não há senhores nem escravos: são irmãos que recebem irmãos, que vêem a luz da liberdade depois de longa e pavorosa noite de escravidão”. Foram frenéticos os aplausos: Antônio Bezerra descia da tribuna nos braços dos amigos que o cumprimentavam.
"Outra voz se fez ouvir: em nome de Antônio Martins exclamava o Sr. Frederico Severo:

'Eis-nos aqui irmãos! — Pobres precitos,
Andastes presos à gleba do infortúnio,
Como o judeu da lenda...
Passastes quase a nado o Mar Vermelho!
Ó! Bendito sois vós, pai dos cativos,
Que nos destes uma tenda!

Entrai, irmãos! Chegai-vos à lareira:
É nosso todo o teto americano,
Como é nosso este ar e o coração.
Erguei bem alto a fronte — olhai em frente,
Ei-vos em face da família inteira;
Este povo também é vosso irmão.

Vós fostes naufragados ao desterro
Em que o nosso batel vos foi tomar;
É esta a vossa pátria; o vosso berço
O Céu sereno, o serro azul e o mar!

E nós vamos de novo a pedra negra
Do caminho da pátria demolir;
Francos obreiros aos poucos aluindo,
Temos fé que ela em breve há de cair’."

"Uma estrepitosa chuva de palmas saudou Antônio Martins, prolongados aplausos laureavam o poeta e o abolicionista”.
"O imenso auditório expandia-se ainda em sua manifestação de apreço, quando a palavra demostênica do Sr. Júlio César lhe conciliou a atenção”.
"Subindo à tribuna, disse o orador:
— Que contemplava o mais grandioso espetáculo! Que de um lado via o espectro da tirania a fugir de abismo em abismo, diante de um látego sanguinolento, como o condenado do inferno dantesco; do outro o arcanjo da liberdade, de pé sobre o dragão da escravidão a derramar a água lustral do batismo social em trinta e cinco fontes, há pouco cheias de estigmas e horrores, e agora cingidas de auréolas e visões fulgurantes; e por cima do espectro e do arcanjo, a imagem serena e altiva da pátria, apontando, aos cânticos e hosanas do progresso, o caminho do futuro.
— Que o troféu vitorioso de tão sublime conquista da paz universal, empreendida em cruzada pelos batalhadores da santa causa da verdade humana, vale mais do que os despojos opimos acumulados por todas as gerações guerreiras, porque é o lábaro incruento de um povo; que a nódoa que as lâminas de azorrague imprimiam na face do mísero escravo é hoje a estrela dos novos Magos, que vão em busca do novo Redentor.
— Que a missão da Libertadora Cearense é grande, muito grande, porque quebrar grilhões, despedaçar algemas, arrancar mordaças, demolir bastilhas, é a tarefa da luz, o mandato da geração moderna, que sai aos ímpetos oceânicos das revoluções, a levantar barricadas quando se forjam cadeias.
— Que trinta e cinco escravos livres é uma constelação do progresso, queria dizer, trinta e cinco operários para a luta gigantesca do século, que vê tiranos para os amaldiçoar com o verbo flamejante do anátema social.
— Que a obra da Libertadora, cimentada de dedicações acrisoladas, é uma das estrofes do poema da humanidade, que será cantada pelos heróis de todos os tempos: pelos Tirteus de todos os povos.
— Que, se os abolicionistas cearenses, intrépidos legionários da fraternidade humana, algum dia, por sobre as ruínas desta maldita instituição de trevas, encontrarem uma figura majestosa, a derramar dos olhos uma torrente de luz e dos lábios uma torrente de bênçãos, curvem-se perante ela. Será a pátria, a nova Cornélia, a bendizer os esforços de seus filhos, Gracos da liberdade, indicando com o gládio da justiça o céu da história”.
"E concluindo:
Que a Libertadora Cearense soltasse aos ventos da América sua bandeira, essa bandeira feita de corações, que é a púrpura da mais esplêndida realeza — a realiza do bem; e batalhasse sem cessar até que pudesse dizer ao mundo inteiro: — No Brasil não há mais escravos”.
"Ingente ovação felicitava ao valente tribuno, e já outra cena comovente se desenrolava aos olhos do espectador enternecido”.
"Disputava-se a honra de dar o braço aos 35 libertandos e introduzi-los no Passeio Público. E eis o préstito imponente que desfila por uma alameda alcatifada de flores”.
"Ao charivari harmonioso de duas músicas que tocavam a desafio e ao estampido atroador de mil fogos, se acotovelavam e se apinhavam duas multidões. Uma: que se havia concentrado no Passeio Público, precedia ao préstito. Outra: que estacionara do lado da Rua do Major Facundo, em frente ao arco triunfal da entrada, vinda após abrindo passagem entre os dois grupos, que do lado do quartel do 15º e do teatro S. Luís também demandavam entrada no seio do imenso congresso”.

                                                                         ***

"Chegou-se finalmente ao cenário que se havia preparado junto ao coreto da música e em frente ao botequim do Mr. Girard”.
"Sobre o alto estrado que dominava toda a cena, senta-se o digno presidente da Sociedade Cearense Libertadora, o Sr. João Cordeiro”.
"Dispostos em semicírculo, rodeiam-no os membros da diretoria, d'um lado e d'outro, e à sua frente, a coluna dos libertadores”.
"Abriu-se a sessão: em frases concisas, mas que tudo diziam, o presidente fez ver que estava no domínio público o fim da esplêndida reunião”.
"Seguiu-se lhe na tribuna o Dr. Frederico Borges que falou inspirado. A frase rojou-lhe dos lábios veementes, impetuosa e arrebatadora. O orador demonstrou os valorosos serviços da Sociedade Cearense Libertadora, a atitude original e inimitável dos cearenses em face à questão do dia; e apelando para o — res non verba — condenou a infâmia dos negreiros que por inveja, despeito e interesses contrariados caluniavam os abolicionistas”.
"Interrompido muitas vezes por estrondosos aplausos, desceu da tribuna debaixo de uma chuva de flores e de bouquets que lhe foram sacudidos à direita e à esquerda”.

                                                                         ***

"Aos arroubos da prosa seguiram-se os mimosos eflúvios da poesia”.
"O jovem acadêmico Antônio Olímpio colhia palmas exclamando:

Pátria, Brasil, ergue um brado
Um brado augusto de luz,
Que nesta festa sublime
Vê-se a filha de Jesus!
É a virtude predileta
A redentora dileta
Que se chama — Caridade!
Que com suas asas douradas
Cobre essas frontes magoadas
E lhes dá a liberdade!
Sim! Que esses pobres escravos
Nossos legítimos irmãos,
Que a tanto tempo choravam
São agora cidadãos!
— Têm já a liberdade
Lhes deu ela a caridade
Qu’em vossas almas germina!
— Salve sempre a caridade
Que lhes trouxe a liberdade
— Sublime deusa divina!

Aos detentores mil palmas”.

"E mil palmas rebentaram frenéticas e estridentes”.
"A multidão delirava de satisfação quando, à ordem do presidente, o Sr. José Teodorico de Castro, proclamou que iam ser libertados 35 escravos, cujos nomes omitimos por desnecessário ao nosso fim”.
"Houve um momento de silêncio geral: ouviu-se apenas o marulhar das vagas do oceano”.
"Uma surpresa invadira os ânimos e atacava de momentâneo torpor a tumultuária agitação daquela massa enorme”.
"— Libertar 35 escravos de um só vez era um cometimento de sacrifício que só a Libertadora Cearense tinha realizado!”
"De todas as sociedades abolicionistas do Império, nenhuma fizera tanto em províncias mais ricas. A própria corte estava debaixo do Ceará”.

                                                                         * * *

"Comovido pela grandeza do acontecimento e penhorado pelo grande benefício, tomou a palavra o libertando Ponciano Francisco de Paulo”.
"Lágrimas de reconhecimento cingem-lhe a palavra e orvalham a bandeira que ele, em nome de sua classe, oferece à Sociedade Cearense Libertadora”.
"Beijando o estandarte da liberdade, quer entregá-lo de joelhos e oscular a mão do presidente da Libertadora. Mas não, ele não o consente: levanta-se, recebe o estandarte e abraça o oferente”.
"Todos os libertandos inclinaram-se profundamente ante essa cena da igualdade humana — e as senhoras cearenses, umas acenavam com o branco lenço, outras sacudiam flores”.
"É sob a emoção deste espetáculo novo que sobe à tribuna o Dr. João Lopes Filho. Confessando-se maravilhado por ver realizado naquele ato o mais belo e o mais poético de todos os sonhos — o da igualdade humana —, maravilhou também ao seu auditório o elegante orador”.
"Não lhe faltaram nem palmas, nem flores. Justa homenagem. Nunca se disse tão bem sobre as vantagens do trabalho livre e sobre o mútuo auxílio do homem ao homem sob a inspiração da liberdade, da igualdade e da fraternidade”.

                                                                         * * *

"Prorrompeu então, com toda a majestade das grandes harmonias, e com a harmonia das grandes orquestras, o hino da Sociedade Cearense Libertadora:

'Eia! Às armas soldados dos livres,
Na vanguarda já soa o tambor!
Eis o mote do nosso estandarte:
— Liberdade aos cativos e amor.

CORO

Para sempre se apague da face
Da formosa auriverde bandeira,
Esse negro borrão que nos mancha
E que avilta a nação brasileira.

Todo o mundo que atento nos ouve
Bate palmas aos nossos heróis,
Quando vir que não há mais senhores
Nem escravos na pátria dos sóis.'

"E um coro harmonioso e brilhante das melhores vozes repetia com a mais arrebatadora mestria:

‘Para sempre se apague da face
Da formosa auriverde bandeira,
Esse negro borrão que nos mancha
E que avilta a nação brasileira’.

"Alegre, marcial, poética e arrebatadora, a música do hino fez furor: o entusiasmo tocou ao delírio”.
"Repetição! repetição! — foi o brado que partiu de todos os lábios. Momento supremo! Consumava-se a grande obra da redenção. Repete-se o hino”.
"Entraram para o concerto as aclamações das turbas populares”.
"O presidente vai, ao som da ruidosa harmonia, entregando uma a uma as 35 cartas da liberdade. Recebendo o precioso quirógrafo os libertandos lhe imprimiam o ósculo de seu amor, e depunham aos pés do Sr. João Cordeiro um lindo bouquet de flores”.
"Vítimas de impetuosa sensação de alegria e de felicidade, alguns libertandos pareciam desmaiar ao contato deslumbrante da liberdade. Foi preciso ampará-los: ou duvidavam de sua felicidade, ou ela matava-os de contentamento inefável”.
"E quando o estandarte da Sociedade Cearense Libertadora tremulava às brisas do mar, também espraiava-se no espaço a última estrofe do hino:

'E que a água altaneira que voa
Pelo dorso dos cerros azuis,
Leve aos astros, na garra gigante,
A bandeira banhada de luz!'

“(A música e poesia desse hino são uma inspiração de Frederico Severo)”.
"Ouviu-se então um ruído sonoro, profundo e imenso como a voz do trovão que retumbasse de um polo a outro”.
"Eram vivas a João Cordeiro, José Amaral, Antônio Bezerra, aos Albanos, José Barros, aos jangadeiros e a toda a Sociedade Cearense Libertadora”.
"Seguiu-se a passeata no quadro do Passeio Público”.
"Cinco mil pessoas, para marcharem, se dividiram ainda: uns à frente da música do 15º Batalhão desfilavam à direita, outros com a música da Polícia à esquerda. As duas multidões encontraram-se, dá-se a fusão e eis um só povo e uma só passeata. Eram nove horas e meia da noite e o ato havia começado às 5 1/2 da tarde”.


CAPÍTULO XI
O LIBERTADOR

Dificilmente se alui a opinião pública sem a alavanca da imprensa e bem o compreenderam os da Libertadora. Trataram de fazer o seu jornal e o lançaram corajosamente no dia 1º de janeiro, menos de um mês decorrido da fundação da sociedade: "Por entre as brumas misteriosas da eternidade, o tempo fez sua evolução, e a terra nas expansões do seu júbilo saúda o Novo Ano. Aos primeiros albores de sua aurora celeste também surge na imprensa cearense um novo órgão de publicidade. Romeiro da esfera terrestre, cumprimenta o mensageiro celeste e, como ele, tem seu círculo a percorrer e sua missão a cumprir. Traça-lhes sua posição o programa que tem representado o jornalismo brasileiro. Nas suas lutas se debateram todos os interesses: a política e o comércio, as ciências e as artes, a indústria e a lavoura continuam a ter seus paladinos. Apenas foi esquecido quem tinha mais direito à solicitude do coração humano — o proscrito! Conviva infeliz, sentou-se ao banquete da vida para sofrer e morrer. A fera indomável da cobiça humana fez dele a sua vítima. Escravizou-o, vendeu-o, torturou-o e matou-o. Um milhão e quinhentos mil desses infelizes, crismados com o nome de cativos, ainda hoje não respiram livremente na pátria livre. 1822 negou-lhe o batismo da liberdade! Mais tarde mistificou-se, em seu detrimento, a lei de 7 de novembro de 1831 e prosseguiu terrorosa a mesma opressão. A consciência pública revoltou-se e a liberdade reclamou justiça. Entretanto, a lei de 28 de setembro de 1871 aludia à questão, mas não solvia a dificuldade. Com o país que se levanta em prol da mais santa das causas, vem hoje o Libertador inscrever-se na liça de seus combatentes". São estas as primeiras palavras da sua apresentação.
"De publicação quinzenal, este jornal é destinado à propaganda e interesses abolicionistas. Órgão da sociedade Cearense Libertadora, ele aceita qualquer publicação concebida nos termos do seu programa. Cada número avulso, 40 réis. Impresso na Tipografia Brasileira até o nº 6, passando à Tipografia Cearense, mesmo local, rua Formosa, 19. Impressor: Joaquim Lopes Verçosa. Formato: 21,5 x 30 cm., 8 páginas. Secções: Libertador, Gazetilha, Expediente, Folhetim, Literatura e Página do Povo.
"Redatores: Antônio Martins, Antônio Bezerra de Menezes e José Teles Marrocos. Colaboradores, entre outros: Frederico Borges, Justiniano de Serpa, Martinho Rodrigues, Almino Álvares Afonso, Abel Garcia e João Lopes”.
"Manteve a sua publicação regular até o número 18, de 26 de agosto. Mais um número, em 28 de setembro, comemorativo da Lei do Ventre Livre e da fundação da Perseverança e Porvir; e outro, nº 20, em 8 de dezembro, primeiro aniversário da Cearense Libertadora, nascida assim sob os auspícios da Imaculada Virgem, "mãe do louro sonhador da Galiléia".
Esta explicação inicial: — "Não tem podido sair regularmente, como pretendíamos, o nosso órgão — o Libertador, em conseqüência da afluência de serviço na tipografia onde se imprime. Na quadra anormal que atravessamos, em que só se respira o ar mefítico da política, atarefadas que se acham as outras oficinas, cada qual mais empenhada em encarecer os bons ofícios de seus candidatos à apresentação nacional. À vista disto tratamos da aquisição de um prelo para a publicação diária do Libertador, que se ocupará da propaganda abolicionista, dos interesses do comércio, indústria e agricultura etc. Não se intrometerá com a política, essa asfixia da dignidade da nação, porque só curará de bem servir o país. Montada convenientemente a empresa, como esperamos, não terão mais os nossos assinantes razão de queixa pela irregularidade da publicação e desde já comprometemo-nos manter ilesa a integridade do nosso programa. Mais alguns dias e estaremos em campo ao lado dos grandes batalhadores, pugnando pelos interesses de todos. Havemos de cumprir a nossa palavra".
Iria suspender fogo, por mais tempo que o esperado, o canhão abolicionista, porque somente voltou a falar em novembro de 1882. "O Libertador volta hoje à imprensa — é do seu primo-editorial do nº 1, segunda fase. Nas mesmas idéias do seu programa de 1 de janeiro de 1881, apresenta suas credenciais ao país e amplia sua esfera de ação. Com direitos a exercer e deveres a cumprir, abraça todo o assunto próprio da mentalidade humana. Exibindo, pois, n'arena não dissimula nas flores iniciadoras da retórica a sinceridade de sua missão e nem confia à sedução do estilo a exposição do seu pensamento. O Libertador fala a verdade nua e crua. Não quer enganar a ninguém nem ser enganado. Não enflora e nem enfeita o seu programa: codifica o mandatum que tem a desempenhar".
E após outras considerações, termina: — "É esta a nossa bandeira. Depois de longos meses de ausência retemperamos n'adversidade e na luta a nossa coragem para hasteá-la bem alto. Mas cumpriremos a nossa missão? E o que nos impedirá? Se o Libertador volta à imprensa, é porque tem todos os meios de independência na sua empresa tipográfica, na qual está sintetizada a Sociedade Cearense Libertadora. Seu órgão na imprensa não é instrumento de especulação alguma, política ou mercantil. Não visa lucros materiais e nem ambiciona o poder. Empenha-se, sim, com todas as suas forças, por todos os melhoramentos da sociedade e bem-estar do país que agoniza à míngua de patriotismo. Ajude-nos a Providência e seja conosco o civismo cearense".
Noutra coluna explicava: — "Fazendo sua estréia jornalística no 1 de janeiro de 1881, continuou sua publicação regularmente até 26 de agosto do mesmo ano. Mas o inquilino na casa de mercenário, comprara muito caro o seu foro de cidadão na imprensa que também editava o expediente do Governo. Contando assim 18 números apenas, despendido tinha já de sobra quanto lhe bastava para a aquisição do melhor prelo manual. Todos os sacrifícios que lhe deviam valer sua independência, não podiam sequer ao menos garantir-lhe o direito de liberdade de imprensa. E depois os acontecimentos de 30 de agosto, traçando a linha divisória entre a vontade soberana do povo e o poder arbitrário do governo, acentuaram profundamente a necessidade de conferir ao Libertador todos os elementos de vida própria. Ele devia, pois, ter seu lar e sua tenda. A imprensa política é um oceano em tempestade. Qualquer jornal, estranho a suas lutas, que aí desfraldar seu estandarte aos ventos da publicidade, será sempre o ludíbrio do fluxo e refluxo de alheios interesses. O Libertador suspendendo sua publicação, nada mais fez que cumprir o seu dever. Bem longa, porém, foi a noite que passou sobre o povo abolicionista que proscrito, como o israelita, afirmava entretanto sua vitalidade à opressão de Babilônia..." E, mais para o fim: "O jornal que ontem não tinha onde reclinar a cabeça, dispõe hoje da mais completa oficina tipográfica da província. Mais longa também é a base do seu programa: não exclui a ninguém dos seus comícios e nem olvida o direito do proscrito que inscreve no número dos seus comitentes. Ressurgindo, pois, à publicidade, o Libertador já tem todas as condições de vida própria e, para viver, não precisa matar ninguém. Cesse, pois, toda prevenção. Como o Nthchez, ele acende o calumet da paz e saúda fraternalmente todos os seus colegas da imprensa".
Reaparecera, com efeito o Libertador em formato grande de circulação diária e vespertina. Assinatura: 10$000 por ano, na capital ou fora dela. Número do dia: 40 réis. Número já arquivado: 200 réis.
A sua tipografia, na rua Major Facundo nº 56, oferecia-se para preparar com prontidão qualquer trabalho concernente à arte tipográfica, com magnífico prelo a vapor, um prelo manual e uma máquina Magan, tudo material novo, sob a direção do mesmo Joaquim Lopes Verçosa. O prelo Standard Double Crown, fabricado por Fréderik Ullmer, viera de Londres pelo navio "Amazonense" e chegara ao Ceará em 27 de agosto anterior. Foi o mestre Antônio da Rosa e Oliveira que o montou, com toda a perfeição e sem querer pagamento, alegando que o fazia por "Estar prestando um pequeníssimo serviço à redenção dos cativos". A chegada do mesmo prelo foi anunciada pela Libertadora em boletim, que terminava com estas quadras:

Na torpe selvageria
Da treva na escuridão
De raiva torcem-se os vis
NEGREIROS desta nação.

Deste povo cearense
Chegou no "Amazonense"
A voz da opinião.
Os ecos digam na serra:
De Alencar sobre a terra
Ressurge a luta em ação.

Os tipos e o prelo novo
Areias pisam de cá.
Viva o povo cearense!
Viva o livre Ceará!

Salve, pois, libertadores,
Punhado altivo de bravos!
Nesta terra das palmeiras
Não pode haver mais escravos.

Esteve o jornal sempre fiel aos princípios abolicionistas e após a vitória continuou a circular como órgão do Centro Republicano. Com o advento da República fundiu-se ao Estado do Ceará, órgão da União Republicana (partido da coligação comendador Acióli — Barão de Aquirás), para formarem A República, cujo primeiro número é de 9 de abril de 1892. O Partido Federalista resultou da contração do Centro e da União aludidos.
Durante o período de 1880-1884, começo e fim da guerra antiescravocrata, circulavam em Fortaleza, ora em paz, ora às turras com o Libertador, mas simpatizantes declarados da causa, os jornais A Constituição, Pedro II, Gazeta do Norte e também, mas em terreno contrário, o Cearense.
A Constituição, da ala do Partido Conservador chefiado pelo Barão de lbiapaba (Joaquim da Cunha Freire) e um quase aliado, era dirigido por libertadores indúteis como Frederico Borges, Justiniano de Serpa, Martinho Rodrigues, Almino Alvares Afonso. Tinha como Redator-chefe Paulino Nogueira. Velha e tradicional folha diária, editava-se desde 24 de setembro de 1863.
Pedro II, o mais antigo, vinha de 12 de setembro de 1840 e nele escreviam, naquele tempo, Torres Portugal, Gustavo Gurgulino de Sousa, Luís de Miranda, Gonçalo de Lagos e Paurilo Fernandes Bastos. Era órgão dos conservadores partidários do Barão de Aquirás (Gonçalo Batista Vieira), alcunhados de miúdos.
A Gazeta do Norte, do Partido Liberal, facção no Ceará chamada Pompeus, porque era dirigida pelo Senador Tomás Pompeu e depois pelo seu genro Antônio Pinto Nogueira Acióli, tinha como redatores Tomás Pompeu Filho, João Lopes, Júlio César, João Brígido, Virgílio Brígido e João Câmara. Viera à publicidade em 8 de julho de 1880 e, com o triunfo republicano, transformou-se n’O Estado do Ceará, a partir de 21 de julho de 1890.
O Cearense, quase tão antigo como o Pedro II, pois começara a circular em 4 de outubro de 1846, era o jornal dos liberais obedientes ao Dr. Paula Pessoa e ao conselheiro Rodrigues Júnior. "Fazia oposição sistemática à campanha, no Ceará".

CAPÍTULO XII
0 30 DE AGOSTO

Os fatos ocorridos em 30 de agosto consolidaram o trancamento do porto de Fortaleza ao comércio espúrio. Governava o Ceará o Dr. Pedro Leão Veloso, que não ia muito com as ousadias dos libertadores, apesar de ter sancionado a resolução da Assembleia Provincial, sujeitando, nas estações fiscais, a averbação de escravos que entrassem para Província ou, a qualquer título alienatório, dela saíssem (a averbação custava 1:000$000 no primeiro caso e 50$000 no segundo).
Aconteceu que, tendo vindo a Fortaleza, o Sr. Camerino de Castro Meneses, filho do Major Facundo e residente no Pará, adquiriu duas escravas para seu serviço doméstico e pretendeu com elas voltar para Belém. Mas, sabendo da disposição dos liberteiros em relação ao embarque das negras, contratou o respectivo envio pelo porto do Acaraú, a fim de recebê-las no Maranhão.
Houvesse o que houvesse, os abolicionistas, reunidos em sessão, deliberaram que nenhum marítimo iria à praia no dia da chegada do vapor do Sul, medida — diziam eles — que visava a ressalvar o Sr. Camerino de qualquer odiosidade ou responsabilidade, em positiva homenagem aos manes de Facundo, seu pai e mártir da liberdade. José Luís Napoleão, auxiliado por Francisco Nascimento, fomentava a greve dos praieiros e arrancava as pedras dos calçamentos, postas em rumas, para dificultar a ação oficial, na passagem para beira-Mar.
Encontrava-se na capital cearense, por sua vez, um Sr. Magalhães, do Pará, que se esforçava por mandar para a mesma cidade de Belém alguns escravos comprados, tendo interessado no caso, por intermédio de João Brígido, a Chefatura de Polícia, não sem algumas relutâncias da parte desta.
Entretanto, o Dr. Torquato Mendes Viana, chefe da repartição, acabou cedendo e tomou a si efetivar o despacho de todos os negros, com o que afinal Camerino de Castro concordou.
Naquele dia 30, achava-se no porto o navio "Espírito Santo", coincidentemente o mesmo dos acontecimentos de 27 e 30 de janeiro, e aos poucos o povo se aglomerou na praia.
Começaram os protestos contra o aparato militar do Chefe de Polícia. Se ele havia imposto — "ou os escravos embarcam ou corre sangue", aí estava a resposta em boletim espalhado pela cidade: "Pois corra sangue!"
E a questão se colocou no ponto exato em que esteve nos passados dias de janeiro, quando, menos intransigente, presidia à Província o conselheiro André Augusto Pádua Fleury e era Cheire de Polícia o Dr. Gonçalo Paes de Azevedo Faro. A solução só poderia ser a mesma: — não embarcar.
Duzentas e dez praças (guardas civis, polícias e soldados do 15º Batalhão) postavam-se para manter o "princípio da autoridade", mas os libertadores respondiam que 210 era, sem tirar nem por, o número de infelizes negros até aquele instante por eles declarados livres!
No auge da confusão, presente o próprio Dr. Torquato, as duas pretas do Sr. Camerino, sub-repticiamente, são metidas por João Carlos Jataí num carro trazido pelo liberteiro Cândido Maia e fogem todos em desabalada carreira.
O desapontamento da autoridade sobe ao desespero, quando verificava a fuga insólita, porém nada mais lhe é possível ordenar, naquela conjuntura. Uma desmoralização, aquele roubo! Excelente pasto à exploração pelos políticos da situação governista aquele desrespeito!
Elas por elas, reclamavam. Da tipografia dos abolicionistas saiu em boletim a "Torquatada", versos chistosos e desprezativos.
Do lado do governo, a reação andou célere, zangada agora, também, contra a oficialidade do Batalhão do Exército, que ostensivamente aderia ao emancipacionismo.
Foi que na noite de 25 se comemorava o aniversário natalício do Comandante, Coronel Lima e Silva, e os libertadores receberam atencioso convite para a festa a realizar-se na sua residência (Rua Major Facundo, esquina com a hoje Rua Pedro Pereira, nº 131). Lá estiveram José do Amaral, Frederico Borges, Antônio Martins, José Marrocos, Francisco José do Nascimento e Antônio Bezerra, recebidos, ao entrarem, com um "Viva a Sociedade Cearense Libertadora!", no qual "prorromperam, num brado forte e estridente", os oficiais homenageantes.
"Sendo alta noite — narra Antônio Bezerra — ergueu-se da cadeira o Coronel Lima e Silva, e com a altivez de porte que lhe é peculiar, transportado ao mais nobre entusiasmo, falou e disse: — Senhores da Sociedade Libertadora: Adepto das mesmas ideias que sustentais em prol da liberdade dos escravos, eu empenho minha honra militar, garantindo-vos que a força sob meu comando não disparará um tiro sobre os libertadores — Suas palavras foram acolhidas com uma salva de palmas. Os libertadores não cabiam em si de contentes; estava vencida a maior dificuldade da situação. Dentro em pouco se despediram levando os corações cheios de legítimo contentamento".
"Na rua, pouco abaixo daquela casa, à mesma hora, pararam os libertadores — é Bezerra ainda quem escreve — e acordaram sobre a posição que se deveria tomar, caso morresse algum dos companheiros vitimados pelas balas do governo e ficou assentado sob juramento que Francisco do Nascimento, que não tinha filhos, assassinaria o Chefe de Polícia; e ele prometeu por sua honra. E na ocasião em que se pretendia embarcar as escravas ele, convenientemente armado, acompanhou sempre aquela autoridade em todos os seus passos no trapiche, até que, partindo do porto o vapor "Espírito Santo" se retira a força, e o chefe dela que, ainda hoje é opinião nossa, fingiu por medo que não vira as escravas na ocasião em que passaram do interior do trapiche para o carro. Na praia havia não menos de seis mil pessoas que até o último instante gritavam desesperadamente: — No porto do Ceará não embarcam mais escravos! O Coronel Lima e Silva cumpriu a sua palavra. Não confiando o Dr. Torquato Viana na tropa de polícia às suas ordens para oferecer frente ao ajuntamento do povo apinhado nos arredores, mandou o empregado de sua Secretaria, Francisco Martins de Castro, ao Coronel Lima e Silva, a fim de que lhe enviasse as praças de que precisava, cujo número ignoramos, encarecendo urgência; mas o Coronel respondeu-lhe que sendo comandante de um Batalhão não recebia recados, e que tinha direito a que se lhe fizesse qualquer requisição tendente a serviço público por meio de ofício. Exacerbou-se o Chefe de Polícia e fez logo a remessa do ofício exigido. O Comandante mandou tocar reunir, e só depois das quatro horas desceu a força de linha sob as ordens do Tenente José Joaquim Aires do Nascimento, que nos comunicou levava na bainha um pedaço de espada. Quando tomou posição na Rua da Praia, em frente ao mar, as negras já andavam longe, sendo agasalhadas em casa de Francisco Januário, à Rua de S. Sebastião, com fundos para igreja de S. Benedito, de onde as tirou ainda Jataí para a casa da preta velha conhecida pelo nome de Tia Esperança, no corredor da Jacarecanga, entre o sítio do Comendador Luís Ribeiro e o de D. Virgínia Salgado. A polícia cercou e deu busca em casa de Januário, mas voltou, como se pode imaginar, de crista caída".
No relatório que apresentou ao Presidente Leão Veloso justifica-se Torquato Viana: — ... "Tratei logo de certificar-me do que havia com relação ao embarque do Major Camerino e o encontrei com a família no trapiche, do lado oposto ao quarto do Guarda-mor e cercado por muitas pessoas, a maior parte conhecidas e suspeitas de parciais como pertencentes àquela sociedade ou partilhando suas ideias, segundo vim a saber depois".
"À frente dessa gente achava-se o Dr. Promotor Público, 2º Vice-presidente da Libertadora, e foi este quem com modo insólito se dirigiu a mim para fazer prevalecer esta Chefatura a desistência que ele e a gente da Libertadora tinham arrancado ao Major Camerino, por meio de vaias e ameaças que tinham sido postas em prática, justamente no momento em que tiveram aviso de que eu me aproximava".
"Em seguida, ronda-me o Guarda-mor da Alfândega, fazendo-me considerações sobre a conveniência de se aceitar a desistência do Major Camerino, no que o mesmo Guarda-mor se mostrava sobremodo interessado, alegando ser acertado evitar-se derramamento de sangue, que haveria infalivelmente se o embarque fosse realizado. Nesse ínterim, e sem que eu tivesse conhecimento, por um golpe, ao que parece, estratégico de que fui distraído por aquele aparte, fizeram desaparecer as duas escravas que ali se achavam sem eu saber e fora do alcance da minha vista, sendo conduzidas em um carro, sem que os agentes policiais pusessem-lhe qualquer embaraço nem tampouco me comunicassem isso".
"Convencido depois de que a concessão feita pelo Major Camerino fora até certo ponto constrangida, mandei dizer-lhe a bordo para onde já tinha seguido com a família, que efetuasse o embarque das duas escravas, certificando-me as suas respostas de que ele obrara sem inteira liberdade, por ter, além de tudo mais, incluído em seu âmbito as comoções por que passara, antes e depois de minha chegada, a família, a que os da Libertadora fizeram, como depois vim a saber, recordar a morte trágica do Major Facundo, pai do Major Camerino".
"A convicção da existência desse constrangimento ainda se me tornou maior quando, procurando saber onde existiam as escravas para fazê-las vir à minha presença, fui informado de que ali se achava com as praças da polícia quando teve lugar a retirada das escravas, esteve bem longe de corresponder à minha expectativa e a ela principalmente devo imputar o mau caminho que as cousas levaram, merecendo menos desculpa, pelo modo por que se houveram, os intendentes Francisco Siqueira Mano e Francisco Ferreira do Vale"...  
O Chefe de Polícia indicava claramente, no seu ofício-relatório, o nome de alguns que deveriam ser punidos pelo delito da liberdade.
O Dr. Frederico Borges foi demitido da Promotoria, mas a causa não perdeu muito com isso porque ele passou a redator-chefe do jornal A Constituição e aí continuou a auxiliá-la fervorosamente. Demitidos foram igualmente Siqueira Mano e Ferreira do Vale, oficiais da guarda cívica. A Francisco do Nascimento cassaram as funções de prático e prático-mor da barra, bem como ao Dr. Almino Afonso as de Procurador Fiscal dos Feitos da Fazenda Geral. O Dr. Pedro Borges, que era médico do Corpo de Saúde do Exército, foi removido para a Colônia Chopin, no Rio Grande do Sul. Outros sofreram suspensão nos seus cargos e até corte nos vencimentos.
No entanto, o que mais feriu a sensibilidade cívica do povo foi a acintosa nomeação do Dr. Torquato Viana para 1º Vice-presidente da Província e a transferência do 15º Batalhão para Belém.
A oficialidade desse Batalhão, na sua maioria contaminada do vírus da libertação, havia organizado o Clube Militar Abolicionista e o mantinha animadamente. "Será erro supor-se que viemos colocar espada de Brenus em uma das conchas da balança em que se libra a opinião pública dividida em duas facções, e dizer com arrogância zambra: vae adversariis nostris — declamava um seu representante na solenidade da libertação dos escravos de Pacatuba. "Não, nós fomos envolvidos pela onda irresistível da ideia, contra a qual as nossas baionetas seriam diques fraquíssimos e a quem não nos era materialmente possível fuzilar na praça pública com as balas fundidas à custa do suor do povo que é soberano".
Serviu de pretexto para a remoção esse entusiasmo, sem qualquer sombra de ilegitimidade, por um pensamento que se verificava, instante a instante, até na cabeça veneranda do Imperador. O Batalhão teve que seguir. A imprensa verberou contundentemente o ato do Ministro da Guerra: o Libertador e A Constituição rebatiam com veemência as justificações que O Cearense e a Gazeta do Norte ensaiavam em defesa da decisão ministerial e da atitude complacente do novo Presidente da Província, Dr. Domingos Antônio Rayol, no fazer embarcar, quanto antes, aquele corpo de tropa.
Para nada prestou o telegrama que as Senhoras Libertadoras dirigiram ao Monarca pedindo a revogação do decreto, nem o gesto do povo colocando-se ao lado dos soldados com a intenção ingênua de os não deixar retirarem-se.
Na manhã de 6 de março de 1883 o transporte de guerra "Purus", vindo especialmente para isto, recebeu-os e levou-os acenando eles os seus lenços de despedida aos cearenses, à Cearense Libertadora, às Libertadoras Cearenses, ao Clube dos Libertos, todos na praia testemunhando-lhes as suas homenagens e manifestações de saudade.
O Pará, pelo seu jornal Diário do Grão-Pará, de 14 daquele mês, saudava-os: — "Os leitores conhecem já os motivos que determinaram a troca desse corpo (o 15º) com o 11º que estacionava nesta Província. O 15º Batalhão vem degredado em virtude da atitude, francamente abolicionista, que tomou no grandioso movimento que glorifica a terra de José de Alencar. Soldados da Nação, defensores das instituições e guardas dos mais elevados interesses, oficiais e praças do batalhão compreenderam perfeitamente o seu posto quando o mais santo entusiasmo proclamava a libertação do Acarape, S. Francisco, Pacatuba e preparava a da Capital. Eis todo o seu crime. Veio por isso degredado para a Amazônia, como se nesta região a ideia abolicionista não precisasse do poderoso concurso dos herói desterrados. Aqui vem o brioso batalhão encontrar a mesma família e nós em nome dos abolicionistas da Amazônia, saudamo-lo com expressão da mais viva simpatia". 

CAPÍTULO XIII
NÃO SE ESCOLHERIAM MEIOS

Enquanto não reaparecia o Libertador, os bravos luzeiros da libertação assanhavam os seus métodos de conseguir alforrias.
Era dos estatutos que "um por todos e todos por um" e que não se escolhessem meios para atingir o fim.
Cada vez mais se angulavam os dois caminhos — o dos carbonários e o dos à sombra da legalidade, como passaram a ser denominados ou outros, os menos assomados. Miranhas, como lhes chamavam, acomodatícios, ou na verdade escravocratas. A denominação pejorativa popularizou-se, e o velho Piau, um desses curiosos tipos de rua, "pau para toda obra", era bem o símbolo dessa popularidade humilhante. Vivia o Piau a vender frutas, em enorme tabuleiro à cabeça, e "apregoava com muito chiste pelas ruas da Capital, com voz que era ouvida em todo o quarteirão:
Que pinhas bonitas
Que pinhas tamanhas!
Eu dou aos amigos
E não vendo aos MIRANHAS".
Não dormiam os da Libertadora e não perdoavam, que a luta era de "matar ou morrer". E também de roubos e furtos da mercadoria execrável.
Os Amarais, José e lsac, com a velha mãe e as irmãs, distinguiam-se nesses "crimes". Transformaram a sua chácara do Benfica (hoje ocupada pelos dispensários dos pobres) e os sítios dos Barreiros e Porangabuçu em esconderijo dos "objetos roubados".
Isac dedicava-se ao mister de construtor e, como tal, mantinha contato com muitos operários e estabelecia muitas relações de negócios e de amizade. Seria, necessariamente, elemento da primeira ordem nas investidas e excursões "criminosas", e a sua atuação devia ser mais subterrânea que frontal, para não por muito a nu a estratégia do grupo.
Outro de ação destemerosa era José Marrocos, redator do jornal, jeitoso para os disfarces e manobras de detetive, tão expedito para certos golpes como Carlos Jataí, Cândido Maia e Antônio Bezerra.
D. Maria Correia do Amaral patrocinava os desvios de cativos e ajudava a escondê-los. Nos fundos da Casa-Grande (a chácara referida) fazia-se a primeira localização dos "roubados", que dali saiam para a mata dos Barreiros e do Porangabuçu. Quando necessário, eram retirados para o interior, principalmente para sítios nas serras de Aratanha e Maranguape. O "São Francisco", de Terto Cabral; o engenho "Rio Formoso", de José Correia de Melo; o "Ipioca", dos avós maternos dos Amarais; o "Macapá", de Manuel Antônio de Figueiredo, eram lugares de depositar as peças desviadas dos seus donos. As comunicações telegráficas, sempre cifradas.
Escravos roubados na Capital eram mandados geralmente para aludidos sítios ou outros de confiança. Os do interior, guardados nos Barreiros e Porangabuçu. Baldeação é como se conhecia esse sistema de despistamento e de maior segurança. Libambo era a ação de roubar.
Não davam folga aos senhores os turbulentos "ladrões", e tanto fizeram estes que se meteram em processo criminal rumoroso. Intentou-o, já farto de enormes prejuízos, o Cel. Antônio Pereira de Brito Paiva, norte-rio-grandense de Vila Flor, depois cidade de Canguaretama, porém já radicado em Fortaleza, aonde chegou a ser vereador, presidente da Câmara Municipal, deputado provincial e tesoureiro da Secretaria da Fazenda. Pai do Des. Joaquim Olímpio de Paiva e do General Vicente Osório de Paiva, cearenses ilustres.
Teles Marrocos, por mais de uma feita, trajado de guarda urbano, investiu contra a "propriedade" do Cel. Paiva e dizem que numa dessas sofreu bengaladas do Dr. Joaquim Olímpio, a esse tempo juiz substituto de Fortaleza. Mas acabou com êxito pleno, numa Quinta-feira Maior, noite em que, com Isac do Amaral, Carlos Jataí e Cândido Maia, "lunfaram" 5 escravos, com eles fugindo em cinco cavalos convenientemente arreados.
Notas deixadas à família por Isac do Amaral esclarecem que um destes possantes animais se chamava "Albatroz" e outro "Vapor", e que a comitiva negra partiu para Maranguape com uma carta de instrução do Cel. Antônio Ribeiro do Nascimento, para encaminhá-los ao "Ipioca". Não obstante seguidos pela polícia, chegou a bom termo a jornada perigosa.
Adiantam mencionadas notas que, dos cinco escravos do Cel. Paiva, um ficou nos Barreiros, porque não pôde acompanhar a mãe, e seguiu depois num carro de bois, escondido numa barrica de trigo vazia.
O processo do Cel. Brito Paiva encheu de comentários e interesse a Capital. Eram réus Marrocos, Francisco José do Nascimento, Antônio Bezerra, Isac do Amaral e Francisco Perdigão. Deviam responder pelo delito de furto e por indenização de dano.
Advogava o autor João Brígido dos Santos, e respondiam pela defesa dos acusados os Drs. Almino Afonso e Frederico Borges. As audiências, nos baixos do prédio da Intendência (local leste do antigo Abrigo Central), despertaram o máximo das atenções. Para aumentar o escândalo, os "delinquentes" apresentaram um rol de mais de dez testemunhas, instruídas para toda sorte de perguntas e respostas, no intuito de delongar e desmoralizar o estranho processo, já no espírito do povo considerado peça mais que burlesca.
Tornaram-se as mesmas audiências intermináveis e barulhentas, e João Brígido toda espécie de reclamação fazia ao juiz, que ordenava providências, afinal inócuas. Uma chalaça os depoimentos, tudo agravado com o expediente engendrado por Isac do Amaral de mandar passar repetidas vezes pela porta do fórum carroças de sua propriedade cheias de objetos de flandres, numa barulheira de ensurdecer. A um protesto de Brígido contra semelhante desrespeito, alegou o juiz não lhe ser dado intervir no tráfico de veículos fora da sala da justiça. Testemunhas como José Basófia, Zé da Hora e Piau depunham debaixo da mais desmedida hilaridade, eternizando a ação intentada, tais as suspensões e os adiamentos.
Até que onerado de despesas e saturado de dissabores, o Cel. Paiva recorreu aos bons ofícios de José do Amaral, de quem era amigo particular, e pôs término ao seu libelo, do que resultou a conquista de largo terreno para a campanha da Libertadora.
E assim aumentavam, hora a hora, as vitórias sobre o mal negro e foi dessa forma que a Libertadora se reencontrou com o Libertador em 2 de novembro de 1882.
As manumissões sucediam-se, gratuitas ou indenizadas, ampliando-se o movimento pelo interior da Província, calorosamente aceito.
Por outro lado, procurava-se dar golpe mais profundo, tornando o escravo economicamente inegociável.
Na Assembleia Provincial (sessão de 12 de julho), o deputado Raimundo Carlos da Silva Peixoto, representante do distrito do Aracati, submetia à apreciação da Casa projeto elevando para 1:500$000 a taxa de exportação de cada escravo, fosse o dono domiciliado na Província ou não. Defendia a sua proposição relembrando que fora o aracatiense Pedro Pereira Guimarães o primeiro a cogitar, na Câmara Geral, da liberdade do ventre; que em 1868, na Assembleia Provincial, outro filho do Aracati — o deputado João Pinto de Mendonça propunha e se adotava a verba de 20:000$000 para ser empregada em manumissões; e que ainda aracatiense era Júlio César da Fonseca Filho, no ano precedente autor do projeto convertido, afinal, na Lei nº 1.937, de 5 de agosto, obrigando e onerando a averbação de cativos entrados no Ceará, ou que a qualquer título mudassem de residência, de um para outro Município da Província.
O Projeto Peixoto entra em segunda discussão no dia 18, mas esta é adiada. Volta à baila no dia 24, quando uma proposta do deputado José Mendes Pereira de Vasconcelos o enxerta de emenda destinada a harmonizá-lo com a Lei nº 1.937, citada.
Somente na sessão de 30 de agosto volta a Assembleia a apreciá-lo em terceira discussão.
Os Anais da Casa Legislativa não trazem o discurso do autor, porque ele não o devolveu. Mas incluem o de Justiniano de Serpa, em defesa da proposição e contrário a uma emenda de Francisco Marçal de Oliveira Gondim, que introduzia limitações à disposição primitiva do projeto "abrindo as portas aos abusos e crimes de que tem vivido a escravidão". Chegava, de logo à conclusão: — O projeto visa a dar morte ao tráfico e a emenda morte ao projeto, e por isso a combatia.
Fê-lo com segurança de argumentação e arroubo d'alma, mostrando que às Assembleias Provinciais era reconhecida, constitucionalmente, competência para decretar impostos como o do projeto, e demonstrando que a "escravidão não se legitima perante as leis da natureza, nem tampouco perante a civilização moderna".
"Devemos — afirmou entre aplausos — empregar todos os meios a nosso alcance para aproximarmo-nos do dia feliz e desejado em que se possa dizer numa estrofe de amor e de luz solta aos ventos do Céu: — no Ceará não há mais escravos!".
Relembrou a atitude dos moços da Libertadora em conjugação com os jangadeiros, enfrentando os arsenais de guerra do governo transportados para a praia e proclamou "sublime a ilegalidade do patriotismo cearense", se ilegal fora a reação abolicionista.
Os deputados João Paulino de Barros Leal, Francisco Marçal, Antônio Gurgel do Amaral Valente não ofereciam descanso ao jovem aquiraense, porém ao seu lado firmemente discutiam Filipe Sampaio, Francisco da Mota Sousa Angelim e Martinho Rodrigues de Sousa.
"Quem pode legislar contra a Constituição pode acabar duma vez com a escravidão" — replicava João Paulino. "O escravo não é cidadão, não faz parte da comunhão brasileira, não pode ser votante" — gritava da sua cadeira Marçal. "Se a Constituição vale alguma coisa, ele não tem cidadania" — era a réplica de Amaral Valente.
"Se não é — treplicava Serpa — não demorará em sê-lo. Felizmente a geração que se levanta compreendeu que é tempo de furtar às justas censuras das nações civilizadas a nossa cara pária. Já não está muito longe o dia do nosso júbilo — o da igualdade de todos os cidadãos".
Quando Serpa se referia aos "nossos irmãos escravos" Marçal respondia que não era parente de nenhum. João Paulino pretendia com palavras sinuosas convencer que o imposto de 1:500$000 por escravo era um roubo, um furto por meio violento, e Raimundo Peixoto retrucava que roubo é matar a liberdade.
Martinho Rodrigues doutrinava: — "O indivíduo que encontra em qualquer lugar aquilo que é seu, aquilo que lhe roubaram, tem o incontestável direito de reivindicar a sua propriedade. Pois o que nós queremos fazer é restituir aos cativos a liberdade que lhes foi tirada violentamente".
Peixoto requereu, no fim, a votação nominal. O projeto é aprovado, mas com a emenda. A favor desta: — Arcádio Fortuna, José Mendes, Miguel Soares e Silva, Francisco Barbosa de Paula Pessoa, João Paulino, Francisco Marçal, Pedro Onofre de Farias, Francisco Delfino Ribeiro Montesuma, Belisário Cícero Alexandrino, Custódio Ribeiro Guimarães, Amaral Valente, José Gonçalves da Costa, Róseo de Oliveira Jamacaru e Antônio Pereira da Cunha Calou.
Contra a emenda: — Serpa, Martinho Rodrigues, Filipe Sampaio, Sousa Angelim, Luís Lamartine Nogueira, Pedro Jaime de Alencar Araripe, Antônio Moreira de Sousa, João Carlos Augusto, Raimundo Peixoto, Sinzenando Marcos de Castro e Silva, João Mendes da Rocha e José Martiniano Peixoto de Alencar.
Na aludida legislatura de 1882 e sessão de 18 de julho o mesmo Serpa, avançando a sua audácia, requereu fosse enviada pela Mesa aos poderes públicos gerais a representação que, nos termos da indicação apresentada pelo deputado Júlio César da Fonseca, a Assembleia aprovara no ano anterior (10 de agosto), pedindo a abolição completa da escravatura no Brasil.
Ficara esquecida aquela indicação, mas era preciso levar à Corte o eco altamente ressonante da agitação libertária da pequena província do Norte.
"Indico que se represente aos poderes gerais sobre a necessidade da abolição imediata, definitiva e radical da escravatura, como meio de desenvolver o espírito do progresso, satisfazendo o direito, a justiça e a mais legítima aspiração do país e conciliando os interesses das raças pelo regime do trabalho livre".
A ideia dilatava-se mais e mais, e a compressão só mais energia lhe podia imprimir. Na procela já se divisava o porto franco e alvissareiro dos triunfos delirantes.
Naqueles fins de 1882 já os libertadeiros ensaiavam consumar a liberdade total da primeira vila — a do Acarape, enquanto os outros, os da sombra da legalidade, se ajustavam na criação do seu núcleo catalítico — o Centro Abolicionista. Como resposta a este, a mulher cearense entrelaçava os corações e as energias nas esperanças e decisões da Sociedade das Libertadoras e, para fermentação maior, já cortava os mares, em busca do Mucuripe, o Tigre da Abolição. 




A ABOLIÇÃO NO CEARÁ
RAIMUNDO GIRÃO
Capítulos IV a XXI da coletânea DA SENZALA PARA OS SALÕES
Editado pela Secretaria de Cultura, Turismo e Desporto do Estado do Ceará
3ª Edição - Impressa na IOCE.
Fortaleza, 1988

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