domingo, 20 de setembro de 2015

UMA HISTÓRIA COMESTÍVEL DA HUMANIDADE - Comida, Energia e Industrialização

PARTE IV

7. Novo Mundo, novos alimentos

“O maior serviço que pode ser prestado a qualquer país é acrescentar uma planta útil à sua [agri]cultura.”
THOMAS JEFFERSON

Um abacaxi para o rei

     O retrato do rei Carlos II da Inglaterra pintado por volta de 1675 não é simples como parece. O rei é mostrado usando um paletó até a altura dos joelhos e calções, de pé nos primorosos jardins de uma grande casa. Dois cães spaniels o acompanham, e perto dele ajoelha-se John Rose, o jardineiro real, que o presenteia com um abacaxi. O simbolismo parece claro. Na época, essa fruta era extremamente rara na Inglaterra, pois tinha de ser importada das Índias Ocidentais, e muito poucas sobreviviam à viagem sem apodrecer. De tão valorizadas, eram conhecidas como a “fruta dos reis”, uma conotação reforçada pela coroa folhosa que a adorna. Na Inglaterra, a associação do abacaxi com riqueza e poder reais remontava a 1661, quando um espécime havia sido enviado a Carlos por um consórcio de agricultores e comerciantes de Barbados que queriam que ele impusesse um preço mínimo ao seu principal produto de exportação, o açúcar. Carlos recebeu mais de 10 mil petições de grupos de interesses diversos durante a década de 1660, e presenteá-lo com um abacaxi, um dos primeiros já vistos na Inglaterra, foi um gesto hábil do consórcio de Barbados, que certamente fez sua solicitação sobressair. A tática funcionou: Carlos concordou com a proposta alguns dias depois da chegada do presente.
     Mas o abacaxi da pintura é mais que simplesmente um símbolo de status; é também um lembrete da ascensão da Inglaterra como uma potência comercial marítima, bem como de sua ascendência nas Índias Ocidentais em particular. Carlos havia aprovado nos anos 1660 as Leis da Navegação, que proibiram navios estrangeiros de comerciar com as colônias inglesas e encorajaram assim uma espetacular expansão da frota mercante nacional. Em 1668, um abacaxi servira de advertência sobre o crescente poderio naval da Inglaterra num banquete oferecido por Carlos em homenagem ao embaixador francês, Charles Colbert. Como na época a Inglaterra e a França disputavam possessões coloniais nas Índias Ocidentais, a presença dessa fruta como item principal da sobremesa enfatizou o compromisso do rei com seus territórios ultramarinos. Um observador ressaltou que Carlos cortou ele mesmo os pedaços e ofereceu-os de seu próprio prato. Isso poderia parecer um gesto de humildade, mas era na realidade uma demonstração de poder: somente um rei podia oferecer abacaxis a seus convidados.

Retrato de Carlos II recebendo um abacaxi de John Rose.


     Emprestava significado adicional à pintura o fato de que o abacaxi mostrado era uma fruta extraordinária: tratava-se, segundo o título da tela, do “primeiro abacaxi cultivado na Inglaterra”. Parece extremamente provável que o abacaxi em questão tivesse sido importado como uma planta jovem, e apenas amadurecido na Inglaterra, não tendo sido cultivado a partir do zero – algo que só se tornaria possível mais tarde, nos anos 1680, com a invenção da estufa aquecida. Mesmo assim, ter amadurecido uma fruta tropical na Inglaterra já era um feito e tanto, e indicava a competência dos horticultores ingleses, numa época em que as nações europeias competiam para descobrir, categorizar, propagar e explorar a abundância de plantas da Ásia e das Américas que haviam se tornado subitamente disponíveis para eles. Nesse campo da “botânica econômica”, a busca pelo conhecimento científico caminhava de mãos dadas com os interesses nacionais, e jardins botânicos estavam sendo criados no mundo todo como laboratórios coloniais.
     Os líderes incontestes no campo da botânica econômica no fim do século XVII eram os holandeses, que, à época, haviam tirado os portugueses do caminho para se tornar a potência europeia dominante no Oriente. Os holandeses queriam conhecer as novas plantas por duas razões: descobrir tratamentos para as doenças tropicais que afligiam seus marinheiros, comerciantes e colonos e encontrar novos e rentáveis produtos agrícolas, além das especiarias conhecidas. Os holandeses fundaram jardins botânicos em seus postos coloniais avançados no Cabo, em Malabar, no Ceilão, em Java e no Brasil, todos os quais trocavam espécimes com estabelecimentos semelhantes na matriz, em Amsterdam e Leiden. Esses jardins botânicos eram muito mais ambiciosos que aqueles estabelecidos na Europa durante o século XVI - sendo o primeiro na Itália, nos anos 1540 -, cujas finalidades eram sobretudo medicinais. Ao apostar corrida para rivalizar com os holandeses e estabelecer postos comerciais próprios, a Inglaterra e a França descobriram também um entusiasmo pela botânica econômica. A história do comércio de especiarias havia mostrado que vastas fortunas aguardavam quem fosse capaz de controlar a oferta e o comércio de gêneros alimentícios valiosos; que outras plantas estariam esperando para ser exploradas?
     Como que para enfatizar o vínculo entre o domínio botânico e o geo-político, alguns jardins botânicos eram planejados para representar o mundo. Em sua maioria, eram quadrados e divididos em quatro partes – uma para a Europa, uma para a África, uma para a Ásia e uma para as Américas.
     Depois, essas áreas eram progressivamente subdividas, até chegar aos canteiros individuais para plantas particulares. Os botânicos que os estabeleciam sonhavam em ser capazes de reunir as plantas do mundo todo num só lugar, como expressa o catálogo do Jardim Botânico de Oxford: “Assim como todas as criaturas foram reunidas na Arca ... assim também temos as plantas do mundo em microcosmo em nosso jardim.” Essa meta ambiciosa, porém, provou-se irremediavelmente irreal à medida que o número de plantas conhecidas multiplicou-se rapidamente. O tratado “Investigação das plantas”, de Teofrasto, um autor grego antigo, relacionava apenas 500 plantas; o “Pinax Theatri Botanici”, uma obra épica publicada pelo botânico suíço Caspar Bauhin em 1596, listava 6 mil; nos anos 1680, a “Historia Generalis Plantarum”, de John Ray, listava mais de 18 mil. Em botânica, como em tantos outros campos, verificava-se que o conhecimento das autoridades antigas era incompleto ou simplesmente errado.
     Assim, os botânicos serviam a dois senhores: por um lado, eram membros de uma comunidade internacional de pesquisa, trabalhando juntos em prol da compreensão da natureza e participando de uma revolução científica em que a observação direta finalmente triunfou sobre a sabedoria herdada. Por outro lado, esperava-se que fizessem o possível para que seu próprio país tirasse o maior proveito das novas plantas. Robert Kyd, um oficial do exército britânico baseado na Índia, fundou os Jardins Botânicos de Calcutá em 1787. Ele sintetizou essa duplicidade quando escreveu que os jardins foram criados “não para reunir plantas raras como objeto de curiosidade ou para fornecer artigos de luxo, mas para estabelecer um sortimento que colabore na disseminação daqueles artigos que possam se provar benéficos para os habitantes, bem como para os nativos da Grã-Bretanha, e que possam finalmente conduzir à extensão do comércio e das riquezas nacionais”. Colonialismo, comércio e ciência caminhavam de mãos dadas; o número de plantas que uma nação tinha ao seu dispor e a capacidade de seus botânicos de cultivá-las fora dos habitats naturais demonstravam a proeza técnica dessa nação. A botânica era considerada a “grande ciência” da época, uma indicação do poderio e da sofisticação de um país, assim como o domínio da ciência nuclear ou da tecnologia espaciais nos nossos dias. Tudo isso significava que o abacaxi oferecido a Carlos II era mais que uma mera fruta, era um símbolo vivo de seu poder.
     À medida que exploradores, colonos, botânicos e comerciantes europeus se empenhavam na procura de novas plantas, aprendiam como cultivá-las e tentavam descobrir onde mais poderiam florescer, eles remodelavam os ecossistemas globais. A “Troca Colombiana” de produtos agrícolas entre o Velho e o Novo Mundo, na qual trigo, açúcar, arroz e bananas deslocaram-se para oeste e milho, batatas, batatas-doces, tomates e chocolate deslocaram-se para leste (para mencionar apenas alguns exemplos em cada direção), representa uma grande parte da história, mas não ela toda. Os europeus também deslocaram produtos agrícolas de um lado para outro dentro do Velho e do Novo Mundo, transplantando café árabe e pimenta indiana para a Indonésia, por exemplo, e batatas sul-americanas para a América do Norte. Evidentemente, as plantas sempre migraram de um lugar para outro, mas nunca com tal velocidade, em tão grande escala ou por distâncias tão grandes. A mistura pós-colombiana do caldeirão global de alimentos correspondeu à mais importante reordenação do ambiente natural pela humanidade desde a adoção da agricultura. Novos alimentos provenientes de terras estrangeiras foram inseridos em nichos ecológicos anteriormente subexplorados, em muitos casos aumentando a oferta de comida. Isso se aplica às batatas e ao milho em partes da Eurásia, aos amendoins na África e na Índia e às bananas no Caribe, por exemplo. Por vezes os novos produtos agrícolas eram mais resistentes que os locais: as batatas-doces vindas das Américas prosperaram no Japão porque podiam sobreviver aos tufões que ocasionalmente destruíam as safras de arroz, e a mandioca, também proveniente das Américas, foi adotada na África depois de se mostrar resistente a gafanhotos, já que suas raízes comestíveis permanecem fora de alcance, debaixo da terra.
     Apesar das ambições nacionalistas dos botânicos, tentativas de monopolizar novas plantas em geral não duravam muito. Para ganhar dinheiro com açúcar, por exemplo, era preciso ter possessões coloniais com o clima adequado, e isso dependia principalmente de poderio militar, não de poderio botânico. Mesmo assim, uma nação europeia sobressaiu como vencedora dessa competição colonial, embora sua vitória tenha tomado uma forma inteiramente inesperada. A troca e a redistribuição de plantas alimentícias refez o mundo, e em particular as áreas em torno do oceano Atlântico, em dois estágios. Primeiro, novos alimentos e novos padrões comerciais redefiniram as características das populações das Américas, da África e da Europa. Tendo feito isso, contribuíram para a emergência da Grã-Bretanha como a primeira nação industrializada. Se Carlos II soubesse disso em 1675, teria sem dúvida se orgulhado, embora talvez tivesse ficado desapontado em saber que o abacaxi não era um dos muitos alimentos que desempenhariam um papel na história. Em vez disso, os dois alimentos centrais seriam o açúcar, que atravessou o Atlântico em direção ao oeste, e a batata, que viajou na direção contrária.

Colombo e sua troca

     A Troca Colombiana, como o historiador Alfred Crosby a denominou, foi assim chamada porque realmente começou com o próprio Cristóvão Colombo. Embora muitas outras pessoas tenham transportado plantas, animais, pessoas, doenças e ideias entre o Velho e o Novo Mundo nos anos seguintes, Colombo foi diretamente responsável por duas das primeiras e mais importantes trocas de produtos agrícolas com as Américas. No dia 2 de novembro de 1492, tendo chegado à ilha de Cuba, ele enviou dois de seus homens – Rodrigo de Jerez e Luis de Torres – ao interior, com dois guias locais. Colombo acreditava que Cuba era parte do continente asiático e esperava que seus homens encontrassem uma cidade grande, onde ele pudesse entrar em contato com o imperador. Torres falava um pouco de árabe, que seria, segundo se supunha, compreendido pelos representantes do monarca. Passados quatro dias, os homens voltaram sem conseguir encontrar nem cidade, nem imperador. Mas tinham encontrado, como Colombo registrou, muitos campos de um “grão parecido com milhete, que os índios chamam de mahiz. Esse grão tem um gosto muito bom quando cozido, seja assado ou moído, transformado num mingau.” Era o primeiro contato dos europeus com o milho, e Colombo provavelmente levou um pouco consigo para a Espanha quando voltou da primeira viagem, em 1493; certamente levou milho na volta de sua segunda expedição, no ano seguinte.
     Embora o milho fosse inicialmente encarado por eruditos europeus como uma curiosidade botânica, logo ficou claro que ele era apropriado para o clima mediterrâneo do sul e que era, na verdade, um produto agrícola extremamente valioso. Na década de 1520, ele já era cultivado em várias partes da Espanha e do norte de Portugal, e pouco depois se espalhou em torno do Mediterrâneo, pela Europa central e pela costa oeste da África. Sua difusão pelo mundo foi tão rápida que suas origens não ficam claras. Na Europa, era conhecido como grão espanhol, grão indiano, grão guineano e milho da Turquia, refletindo a confusão sobre sua procedência. A velocidade com que o milho chegou à China – provavelmente nos anos 1530, embora a primeira referência explícita a ele só apareça em 1555 – levou alguns à conclusão errônea de que devia já estar presente na Europa e na Ásia antes de Colombo. O milho difundiu-se tão rápido por ter propriedades muito desejáveis. Como crescia bem em solo úmido demais para trigo e seco demais para arroz, fornecia um alimento extra vindo de terras em que os alimentos básicos eurasianos não podiam ser cultivados. Também demandava pouco tempo de crescimento e propiciava uma produção maior por unidade de terra e de trabalho que qualquer outro grão. Embora o trigo produzisse normalmente quatro a seis vezes mais grãos que o número de sementes utilizadas, o milho produzia de 100 a 200 vezes mais.
     Se o milho que Colombo levou para o leste foi uma bênção, a cana-de-açúcar que ele levou para o oeste foi uma maldição. Tendo trabalhado na juventude como comprador de açúcar para comerciantes genoveses, Colombo conhecia esse cultivo. Percebeu que as novas terras que tinha descoberto seriam apropriadas para a plantação desse lucrativo produto, e levou-o consigo para Hispaniola em sua segunda viagem às Américas, em 1493. Se não pudesse encontrar ali ouro nem especiarias, poderia, ao menos, produzir açúcar. Como tal cultivo requeria muita mão de obra, teria de encontrar força de trabalho suficiente, é claro. Mas Colombo tinha observado, depois de sua primeira viagem, que “os índios não têm armas e andam completamente nus... precisam apenas que lhes deem ordens para serem levados a trabalhar, a plantar ou a fazer qualquer coisa de útil”. Em outras palavras, ele podia pôr os nativos para trabalhar como escravos.
     Açúcar e escravidão tinham andado juntos por séculos. A cana-de-açúcar, originária das ilhas do Pacífico, foi encontrada na Índia pelos gregos antigos e introduzida na Europa pelos árabes, que começaram a cultivá-la em grande escala no Mediterrâneo, no século XII, usando escravos do leste da África. Os europeus tomaram gosto pelo açúcar durante as Cruzadas e se apropriaram de muitas das plantações de cana dos árabes, explorando-as com escravos sírios e árabes. O sistema de produção baseado em mão de obra escrava foi transplantado para a Ilha da Madeira, no Atlântico, nos anos 1420, depois que ela foi descoberta pelos portugueses. Durante os anos 1440, Portugal aumentou a produção com o uso de grande número de escravos negros trazidos de seus novos postos comerciais na costa oeste da África. A princípio, esses escravos eram sequestrados, mas logo os portugueses concordaram em comprá-los de comerciantes africanos em troca de mercadorias europeias. Em 1460, a Ilha da Madeira tornou-se o maior produtor de açúcar do mundo, e não era de admirar: tinha o clima ideal para a cana-de-açúcar, era próxima do fornecedor de escravos e estava no ponto mais extremo do mundo conhecido, de modo que as realidades brutais da produção do açúcar eram mantidas convenientemente afastadas da vista da crescente multidão de consumidores europeus. Os espanhóis, por sua vez, começaram a produzir açúcar nas ilhas Canárias, perto dali, também usando escravos da África.
     Isso se revelou apenas o aquecimento para o que aconteceria no Novo Mundo. Foi só em 1503 que o primeiro engenho de açúcar foi aberto em Hispaniola. Os portugueses iniciaram a produção no Brasil por volta da mesma época, e os britânicos, franceses e holandeses o fizeram no Caribe durante o século XVII. Depois que as tentativas de escravizar os nativos fracassaram, principalmente porque eles sucumbiam a doenças para as quais não tinham nenhuma imunidade, os colonos começaram a importar escravos diretamente da África. E assim começou o tráfico de escravos. No curso de quatro séculos, cerca de 11 milhões de escravos foram transportados da África para o Novo Mundo. Esse número, na verdade, subestima a real escala do sofrimento, porque nada menos que a metade dos escravos capturados no interior africano morria no caminho para a costa. A vasta maioria dos escravos enviados através do Atlântico – cerca de três quartos deles – era posta para trabalhar na produção de açúcar, que se tornou uma das principais mercadorias no comércio atlântico.
     Esse comércio prosperou nos séculos XVII e XVIII, e acabou consistindo em dois negócios triangulares que se sobrepunham. No primeiro, mercadorias das Américas, principalmente açúcar, eram enviadas para a Europa, enquanto artigos acabados, sobretudo têxteis, eram enviados para a África e usados na compra de escravos; esses escravos eram então enviados para as plantações de cana-de-açúcar no Novo Mundo. O segundo triângulo também dependia do açúcar. O melaço, um espesso xarope remanescente da produção de açúcar, era levado das ilhas produtoras para as colônias americanas da Inglaterra, onde era destilado para a fabricação de rum, que era então enviado para a África. O rum, juntamente com os têxteis, era usado como moeda na compra de escravos, que eram enviados ao Caribe para então produzir mais açúcar. E assim por diante.
     O preço do açúcar, que havia sido um luxo dispendioso no tempo das Cruzadas, caiu à medida que a produção aumentou; no fim do século XVII, ele se tornou um item de consumo diário para muitos europeus. A demanda aumentou quando novas bebidas exóticas como o chá, o café e o chocolate (da China, da Arábia e das Américas, respectivamente) tornaram-se populares na Europa, invariavelmente adoçadas com açúcar. Tendo usado frutas e mel como adoçantes durante séculos, os consumidores europeus tornaram-se subitamente habituados com o açúcar, até viciados nele. A demanda enriqueceu os barões da cana caribenhos, mercadores europeus e colonos norte-americanos. O rum tornou-se o item manufaturado mais lucrativo produzido na Nova Inglaterra, e, no início do século XVIII, era responsável por 80% das exportações. Tentativas do governo britânico de restringir as importações do melaço barato proveniente das ilhas francesas da cana pela Nova Inglaterra, através da Lei do Açúcar e do Melaço, de 1733, e da Lei do Açúcar, de 1764, desagradaram profundamente aos colonos, causando a primeira das muitas divergências e protestos que levaram, finalmente, à Declaração de Independência.
     Além de notável por sua dependência da escravidão e sua importância econômica, a produção de açúcar também cristalizou um novo modelo de organização industrial. Envolvia uma série de processos: cortar a cana, moê-la para extrair o caldo, ferver e tirar a escuma deste e depois esfriá-lo, para permitir a formação dos cristais de açúcar, e destilar o melaço restante para fabricação de rum. O desejo de fazer tudo isso em grande escala da maneira mais rápida e eficiente possível levou ao desenvolvimento de um maquinário cada vez mais complexo e estimulou a divisão dos trabalhadores em equipes especializadas nas diferentes etapas da produção.
     Em particular, a produção do açúcar dependia do uso de moendas para prensar a cana. Estas podiam extrair o caldo de maneira mais eficiente que os métodos antiquados de picar os talos de cana à mão e esmagá-los ou usar uma prensa com rosca. As moendas eram também mais apropriadas para a produção contínua: depois de espremidos, os bagaços podiam ser usados como combustível para as caldeiras, na etapa seguinte do processo. O maquinário desenvolvido para processar açúcar – movido pelo vento, pela água ou por tração animal – era a mais complexa e cara tecnologia industrial da época, e prefigurou o equipamento usado mais tarde nas indústrias têxtil, do aço e do papel.
     Entretanto, operar as moendas, tomar conta dos caldeirões de caldo fervente e operar o equipamento de destilação podia ser perigoso. Um minuto de desatenção ao introduzir a cana na moenda, ou ao lidar com o açúcar fervente, podia levar a ferimentos horríveis e à morte. Como um observador registrou: “Se um caldeireiro encosta no açúcar escaldante, ele gruda como cola, ou visgo, e é difícil salvar seja o membro ou a vida.” Ninguém faria um trabalho tão perigoso e repetitivo pelos baixos salários que os produtores ofereciam, razão por que eles recorriam ao trabalho escravo. Para minimizar o risco de acidentes, era lógico para os trabalhadores especializarem-se em certas tarefas. Mesmo nas funções menos perigosas, como o cultivo da cana, os produtores descobriram que dividir seus escravos em equipes e dar-lhes tarefas predeterminadas facilitava a supervisão do trabalho e a coordenação dos diferentes estágios do processo.
     Iniciar uma plantação de cana-de-açúcar exigia investimento de grande capital para pagar por terra, construções, maquinário e escravos. A produção da cana era o maior negócio privado de seu tempo, deixando os proprietários (que podiam esperar lucros anuais de cerca de 10% do capital investido) entre os homens mais ricos da época. Foi sugerido que os lucros do açúcar e do comércio de escravos geraram a maior parte do capital de giro necessário para a industrialização subsequente da Grã-Bretanha. De fato, há poucas evidências de que isso tenha ocorrido, mas a ideia de organizar a fabricação como um processo contínuo, em linha de produção, com máquinas energizadas poupadoras de mão de obra e trabalhadores especializados em funções exclusivas, tem uma clara dívida para com a indústria açucareira das Índias Ocidentais, onde esse sistema foi implementado pela primeira vez em grande escala.

Gravura mostrando a produção pré-industrial de açúcar nas Índias Ocidentais.


“Que comam batatas”

     Conta-se que, quando Maria Antonieta, a rainha da França, ouviu que os camponeses não tinham pão para comer, ela teria declarado: “Que comam brioches.” Numa versão da história, ela disse isso quando os pobres famintos vociferavam nos portões de seu palácio; em outra, a rainha fez o comentário ao andar por Paris em sua carruagem e notar como as pessoas estavam desnutridas. Ou talvez tenha dito isso quando multidões iradas tomaram de assalto as padarias de Paris, em 1775, e quase causaram o adiamento da coroação de seu marido, Luís XVI. Na verdade, ela provavelmente nunca disse nada parecido. Esse é apenas um dos muitos mitos associados à famigerada rainha, que foi acusada de toda sorte de excessos e devassidão por seus adversários políticos no período em que se preparava a Revolução Francesa, em 1789. A frase sintetiza, no entanto, a percepção de que Maria Antonieta era alguém que dizia se preocupar com os pobres famintos, mas que era inteiramente incapaz de compreender suas aflições. Mesmo que nunca tenha defendido a substituição de pão por brioche, porém, ela endossou publicamente o uso de outro gênero alimentício como um meio de aplacar a fome dos pobres: a batata. Provavelmente, também não disse “que comam batatas”, mas foi isso que ela e muitas outras pessoas pensaram. E não era uma ideia tão má assim. No fim do século XVIII, esses tubérculos estavam sendo tardiamente aclamados como um alimento prodigioso do Novo Mundo.
     Os europeus tiveram o primeiro contato com as batatas nos anos 1530, quando os conquistadores espanhóis se aventuraram na tomada do Império Inca, que se estendia até a costa oeste do continente sul-americano. Elas eram o esteio da dieta inca, ao lado do milho e do feijão. Originalmente domesticadas na região do lago Titicaca, espalharam-se depois pelos Andes e além. Os incas desenvolveram centenas de variedades, cada uma adequada a uma combinação de sol, solo e umidade. Mas os europeus que primeiro as conheceram não perceberam seu valor. O primeiro relato escrito, datado de 1537, descreve-as como “raízes esféricas que são semeadas e produzem um caule com ramos e flores, embora poucas, de uma cor roxa suave; e à raiz dessa mesma planta ... elas estão presas, sob a terra, e são mais ou menos do tamanho de um ovo, algumas redondas e algumas alongadas; são brancas e roxas e amarelas, raízes farinhosas de bom sabor, uma iguaria para os índios e um prato delicioso até para os espanhóis”. Embora algumas batatas tenham sido enviadas para a Espanha e espalhadas, a partir de lá, pelos jardins botânicos da Europa, elas não foram entusiasticamente adotadas como um novo produto agrícola à semelhança do que ocorrera com o milho. Em 1600, elas estavam sendo cultivadas em pequena escala em poucas partes da Europa, porque os espanhóis as haviam introduzido em suas possessões na Itália e nos Países Baixos. Em 1601, Clusius, um botânico de Leiden, descreveu a batata e deu-lhe o nome científico de Solanum tuberosum. Registrou que havia recebido espécimes em 1588, e que a cultivavam na Itália para consumo tanto de seres humanos quanto de animais.
     Por que as batatas não se tornaram mais populares? Afinal, no solo arenoso do norte da Europa, elas acabariam se provando capazes de produzir de duas a quatro vezes mais calorias por hectare do que havia sido possível anteriormente com trigo, centeio ou aveia. Além disso, levam somente três a quatro meses para amadurecer, contra dez para os cereais, e podem ser cultivadas em quase qualquer tipo de solo. Um problema foi que as primeiras batatas levadas das Américas eram adaptadas para crescer nos Andes, onde a duração do dia não varia muito ao longo do ano. Na Europa, onde a quantidade de luz por dia varia muito mais, elas produziram de início uma safra escassa, e os botânicos levaram alguns anos para produzir novas variedades adaptadas ao clima europeu.
     Mesmo assim, os europeus permaneciam desconfiados desse novo produto. Diferentemente do milho, que era percebido como um primo até então desconhecido do trigo e de outros grãos, as batatas eram estranhas e estrangeiras. Não eram mencionadas na Bíblia, o que sugeria que Deus não pretendera que os homens as comessem, diziam alguns clérigos. A aparência inestética, malformada, também repelia as pessoas. Para herbanários que acreditavam que a aparência de uma planta era uma indicação das doenças que ela podia causar ou curar, as batatas se assemelhavam às mãos nodosas de um leproso, e a ideia de que causavam lepra disseminou-se. De acordo com a segunda edição de Herball, de John Gerard, publicada em 1633, “os borgonheses são proibidos de fazer uso desses tubérculos, porque lhes asseguram que comê-los causa lepra”. Botânicos mais inclinados à ciência interessaram-se pelas batatas, os primeiros tubérculos comestíveis conhecidos, e as identificaram como membros da venenosa família da doce-amarga. Isso também não ajudou sua reputação: elas passaram a ser associadas à bruxaria e ao culto do diabo.
     No início do século XVII, as batatas eram vistas em geral como forragem apropriada para animais, mas, para seres humanos, eram tidas apenas como um último recurso, quando nenhuma outra comida estivesse disponível. O tubérculo fez lento progresso nos anos seguintes, sendo consumido apenas pelos muito ricos (era apreciado por alguns jardineiros aristocráticos e servido como uma novidade) e muito pobres (tornou-se um item básico da dieta dos desfavorecidos, primeiro na Irlanda e depois em partes da Inglaterra, da França, dos Países Baixos, da Renânia e da Prússia). Períodos de fome fizeram surgir novos adeptos, pois pessoas que não tinham escolha senão comer batatas logo descobriram que, afinal de contas, elas não eram tão horríveis assim. Um dos primeiros atos da Royal Society, sociedade científica pioneira da Grã-Bretanha, após sua fundação em 1660, foi chamar atenção para seu valor em épocas de fome – argumentando que nos anos em que a safra de trigo fracassava, havia muitas vezes uma boa colheita de batatas. Mas esse conselho foi ignorado, e somente quando a fome assolou, como ocorreu na França em 1709, foi que as virtudes da batata foram completamente evidenciadas e a ameaça de inanição obrigou as pessoas a pôr os preconceitos de lado.
     Uma série de períodos de fome no século XVIII valeu à batata alguns amigos altamente posicionados. Quando as safras fracassaram em 1740, Frederico o Grande, da Prússia, recomendou insistentemente a produção mais ampla do tubérculo entre seus súditos. Seu governo distribuiu um manual que explicava como cultivar o novo produto e distribuiu batatas-sementes gratuitas. Outros governos europeus fizeram o mesmo, fazendo da promoção da batata uma política oficial. Na Rússia, os conselheiros médicos de Catarina a Grande convenceram-na de que o tubérculo podia ser um antídoto para a inanição; governos na Boêmia e na Hungria também defenderam seu cultivo. Por vezes, a defesa da batata era apoiada pela força: os camponeses austríacos foram ameaçados com 40 chicotadas caso se recusassem a aceitá-la. A guerra também ajudou a mudar atitudes. Durante as campanhas no norte da Europa, nos anos 1670 e 1680, os exércitos de Luís XIV encontraram batatas em Flandres e na Renânia, onde nessa época já estavam sendo cultivadas em alguma quantidade. Um observador registrou que “o exército francês encontrou assim grande apoio, alimentando os soldados rasos mais abundantemente; ela é ao mesmo tempo deliciosa e saudável”.
     Soldados austríacos, franceses e russos que lutaram na Prússia durante a Guerra dos Sete Anos (1756-63) viram como as batatas (plantadas por insistência de Frederico o Grande) sustentavam a população local e passaram a defender seu cultivo quando voltaram para casa. Uma vantagem desse alimento durante os tempos de guerra era que ele permanecia escondido, em segurança, debaixo da terra; mesmo que um exército acampasse num campo de batatas, o agricultor ainda poderia colhê-las depois.
     A experiência de um homem em especial com as batatas durante a Guerra dos Sete Anos o inspirou a se tornar o maior defensor desses tubérculos. Antoine-Augustin Parmentier, um cientista francês, serviu como farmacêutico no exército francês. Depois de capturado pelos prussianos, passou três anos na prisão, e durante grande parte desse tempo só lhe deram batatas para comer. Ele concluiu que elas eram um alimento nutritivo e saudável; quando a guerra terminou e ele voltou à França, tornou-se um eloquente defensor da batata. Após outra má colheita em 1770, foi oferecido um prêmio para o melhor ensaio sobre “gêneros alimentícios capazes de reduzir as calamidades da fome”; Parmentier foi o vencedor, com um elogio às batatas. Embora ainda houvesse uma crença generalizada de que elas eram venenosas e podiam causar doenças, em 1771 Parmentier ganhou o respaldo do corpo docente médico da Sorbonne, que decidiu que a batata era realmente apropriada para o consumo humano. Pouco depois, Parmentier publicou uma detalhada análise científica dos méritos daquele alimento. Mas o apoio em meio à comunidade científica era uma coisa; após anos de esforço, Parmentier descobriu que convencer as pessoas a cultivar e a comer batatas era outra muito diferente.
     Diante disso, ele organizou uma série de eventos publicitários. Em 1785, num banquete para celebrar o aniversário de Luís XVI, Parmentier presenteou o rei e a rainha com um buquê de flores de batata; o rei prendeu uma das flores na lapela e Maria Antonieta pôs uma guirlanda delas no cabelo. Quando os convidados se sentaram para comer, vários dos pratos incluíam batatas. Com o endosso do rei e da rainha, comer batatas e usar flores dessa planta logo se tornaram moda na aristocracia. Parmentier também promoveu ele mesmo vários jantares, servindo batatas preparadas numa variedade de maneiras para enfatizar sua versatilidade. (O estadista e cientista americano Benjamin Franklin estava entre as celebridades convidadas para esses eventos.) O melhor truque de Parmentier, contudo, foi postar guardas armados em torno dos campos próximos de Paris, dados a ele pelo rei, em que cultivava batatas. Isso despertou o interesse dos moradores das vizinhanças, que perguntavam a si mesmos que planta valiosa poderia requerer tais medidas de segurança. Quando uma safra ficou madura, Parmentier mandou os guardas se afastarem; a gente do lugar invadiu o campo correndo e roubou as batatas. Quando a hostilidade em relação ao tubérculo finalmente se dissipou, consta que o rei teria dito a Parmentier: “A França lhe agradecerá algum dia por ter encontrado pão para os pobres.” Foi somente alguns anos mais tarde, depois da Revolução Francesa (durante a qual Luís XVI e Maria Antonieta foram guilhotinados), que a previsão do rei se confirmou. Em 1802, Napoleão Bonaparte instituiu a ordem da Légion d’Honneur, e Parmentier foi um dos primeiros a recebê-la. O serviço que prestou à batata é lembrado hoje na forma de vários pratos baseados em batata que levam seu nome.
     A história foi parecida, ainda que menos poética, no resto da Europa: com a combinação de fome, guerra e promoção governamental, por volta de 1800 a batata havia se tornado um novo e importante gênero alimentício. Sir Frederick Eden, um escritor inglês e pesquisador social, escreveu que em Lancashire “ela é um prato sempre presente em todas as refeições, exceto no desjejum, tanto nas mesas dos ricos quanto nas dos pobres ... as batatas são talvez o mais forte exemplo da extensão do prazer humano que pode ser mencionado”. A batata foi saudada como “a maior bênção que a terra produz”, “o milagre da agricultura” e “a mais valiosa das raízes”. Em 1795, depois de más colheitas de trigo em 1793 e 1794, muita gente deixou de lado a rejeição ao novo alimento. Nesse ano, o jornal Times, de Londres, chegou até a imprimir receitas de sopa de batata e de pão de milho e batata. Um fator que contou em favor do tubérculo foi o alto status do pão branco, feito de trigo, em relação ao pão preto, feito de centeio, aveia e cevada. Os trabalhadores ingleses, que haviam prosperado o suficiente para trocar o pão preto pelo branco durante o século XVII, estavam muito relutantes em voltar ao pão preto. Quando os tempos ficavam difíceis, eles preferiam comer batatas.
     Em seu livro A riqueza das nações, publicado em 1776, o filósofo e economista escocês Adam Smith observou que “o alimento produzido por um campo de batatas não é inferior em quantidade ao produzido por um campo de arroz, e muito superior ao que é produzido por um campo de trigo”. Mesmo admitindo o fato de que as batatas continham grande quantidade de água, ele comentou: “Um acre de batatas ainda produzirá 6 mil [pesos] de alimento consistente, três vezes a quantidade de trigo produzida por acre.” Seu elogio à batata continuava com palavras que hoje parecem proféticas: “Caso essa raiz se tornasse um dia, em qualquer parte da Europa, o que é o arroz em algumas regiões arrozeiras, o alimento vegetal comum e favorito do povo, de modo a ocupar a mesma proporção de terras cultivadas que o trigo e outros tipos de grãos para a alimentação humana ocupam hoje, a mesma quantidade de terra sustentaria um número muito maior de pessoas e ... a população aumentaria.”

De Colombo a Malthus

     Três séculos depois da chegada de Colombo às Américas, o intercâmbio de plantas, doenças e pessoas havia transformado a população do mundo e sua distribuição. A varíola, a catapora, a gripe, o tifo, o sarampo e outras doenças do Velho Mundo – muitas delas consequências da proximidade entre seres humanos e animais domesticados, como porcos, vacas e frangos, desconhecidos no Novo Mundo – tinham dizimado os povos nativos das Américas, que não eram imunes a elas, abrindo caminho para a conquista europeia. Estimativas do tamanho da população pré-colombiana variam de 9 a 112 milhões, mas um número mais realista de 50 milhões, reduzido por doenças e guerras a cerca de 8 milhões em 1650, dá uma ideia da dimensão da destruição. Enquanto seus aliados biológicos invisíveis ainda exterminavam os povos indígenas das Américas, os europeus começaram a importar escravos africanos em grande escala para trabalhar em plantações de cana-de-açúcar. As características das populações da África e das Américas foram transformadas, e é certo que a Troca Colombiana também ajudou a alterar as características da população da Eurásia.
     Na China, a chegada do milho e da batata-doce contribuiu para um aumento na população de 140 milhões em 1650 para 400 milhões em 1850. Como podia ser cultivado em áreas secas demais para o arroz e em encostas de morros não irrigáveis, o milho aumentou a oferta de comida e permitiu às pessoas viver em novos lugares. As regiões montanhosas da bacia do Yangtze foram desmatadas para dar lugar à produção de anileiras e juta, por exemplo, e os camponeses que os cultivavam subsistiam à base de milho e batata-doce, que cresciam bem nos morros. Outra prática que permitiu à produção de comida acompanhar a população crescente foi a de múltiplos plantios. Quando cultivado em campos alagados, o arroz absorve a maior parte de seus nutrientes da água, não do solo, de modo que pode ser repetidamente plantado na mesma terra, sem necessidade de deixá-la descansar para permitir a recuperação do solo. Os agricultores no sul da China podiam, por vezes, obter duas ou até três colheitas por ano num único pedaço de terra.
     Na Europa, nesse meio-tempo, foi em parte graças aos novos produtos agrícolas que a população pôde crescer de 103 milhões em 1650 para 274 milhões em 1850. Durante o século XVI, os itens básicos da dieta europeia, trigo e centeio, produziam por hectare cerca da metade da quantidade (medida por peso) que o milho produzia nas Américas, e cerca de um quarto do que o arroz produzia no sul da China. Assim, a chegada do milho e das batatas à Europa proporcionou uma maneira de produzir muito mais alimento com a mesma quantidade de terra. O exemplo mais impressionante foi o da Irlanda, onde a população cresceu de cerca de 500 mil em 1660 para 9 milhões em 1840 – algo que não teria sido possível sem a batata. Sem ela, o país inteiro só poderia ter produzido trigo suficiente para sustentar 5 milhões de pessoas. As batatas garantiram o sustento de quase o dobro desse número, embora o trigo tenha continuado a ser cultivado para exportação. As batatas podiam ser cultivadas em terras europeias impróprias para o trigo, e eram muito mais confiáveis. Melhor alimentadas, as pessoas tornavam-se mais saudáveis e resistentes a doenças, fazendo com que a taxa de mortalidade caísse e a de natalidade aumentasse. E o que as batatas fizeram no norte da Europa, o milho fez no sul: as populações da Espanha e da Itália quase dobraram durante o século XVIII.
     Além de adotar novos produtos agrícolas, os agricultores europeus aumentaram a produção ampliando as terras cultivadas e desenvolvendo novas técnicas agrícolas. Em especial, introduziram as rotações de culturas de trevos e nabos (no caso mais famoso, na Grã-Bretanha, a rotação em quatro etapas de Norfolk, com nabos, cevada, trevo e trigo). Nabos eram plantados em terras que teriam sido deixadas em repouso, e depois dados para os animais, cujo estrume aumentava a produção de cevada no ano seguinte. Alimentar animais com nabo também permitia que aquela área, antes usada como pasto, fosse destinada ao cultivo de produtos para o consumo humano. De maneira semelhante, cultivar trevos ajudava a restaurar a fertilidade do solo, para assegurar uma boa safra de trigo no ano seguinte. Outra inovação foi a adoção do dril, uma máquina puxada a cavalo que inseria sementes dentro de sulcos no solo a uma profundidade precisa. Semear grãos desse modo, em vez de espalhá-los da maneira tradicional, acarretava que as plantas eram devidamente espaçadas em sulcos bem-feitos, tornando a capina mais fácil e assegurando que plantas adjacentes não competissem por nutrientes. Mais uma vez, isso ajudou a aumentar os rendimentos das safras de cereais.
     No fim do século XVIII, porém, houve sinais de que mesmo o aumento repentino da produtividade agrícola não poderia mais acompanhar o crescimento da população. O problema foi mais perceptível na Inglaterra, que tivera maior sucesso que outros países europeus em aumentar a produção de alimentos, e por isso teve mais dificuldade de manter o ritmo que estabelecera para si mesma depois que a população se expandiu. Durante a primeira metade do século, a Inglaterra exportara grãos para a Europa continental; depois de 1750, porém, a população crescente e uma sucessão de más colheitas levaram à escassez e a preços mais altos. A produção agrícola ainda estava crescendo cerca de 0,5% ao ano, mas isso era somente a metade da taxa de crescimento da população, cerca de 1% ao ano, de modo que a quantidade de comida per capita estava caindo. O mesmo acontecia por toda a Europa: a pesquisa antropométrica mostra que os europeus adultos nascidos entre 1770 e 1820 eram, em média, visivelmente mais baixos que as gerações anteriores.
     Na China, a produção de arroz podia ser aumentada pelo incremento da mão de obra e de mais plantios múltiplos. Mas, como essa não era uma opção para produtos agrícolas europeus, a coisa óbvia a fazer era disponibilizar ainda mais terras para o cultivo. O problema era que essa oferta era finita, e a terra era necessária também para outras coisas além de agricultura, como produzir madeira para construção e combustível e acomodar as cidades cada vez maiores da Europa. Novamente, o problema era particularmente agudo na Inglaterra, onde a urbanização havia sido mais rápida. As pessoas começaram a temer que a população logo excedesse a oferta de alimentos. O problema foi elegantemente resumido pelo economista inglês Thomas Malthus, que publicou An Essay on the Principle of Population em 1798. Foi uma obra extraordinariamente influente, e seu principal argumento é o seguinte:

O poder da população é infinitamente maior que o poder da terra de produzir subsistência para o homem. A população, quando não controlada, aumenta numa razão geométrica. A subsistência aumenta apenas numa razão aritmética. Um conhecimento superficial dos números mostrará a imensidão do primeiro poder em comparação com o segundo. Por aquela lei de nossa natureza que torna o alimento necessário à vida do homem, os efeitos desses dois poderes desiguais devem ser mantidos iguais. Isso implica um controle forte e constantemente operante sobre a população, exercido pela dificuldade de subsistência. Essa dificuldade deve recair em algum lugar e ser agudamente sentida por uma grande porção da humanidade.

     Malthus pensava que esse impasse, hoje conhecido como a “armadilha malthusiana”, era inescapável. Se tivesse oportunidade, a população duplicaria a cada 25 anos, aproximadamente, e depois duplicaria de novo após o mesmo intervalo, aumentando numa razão geométrica; apesar do rápido aumento da produtividade agrícola das décadas anteriores, era difícil ver como a produção de alimentos poderia acompanhá-la. Mesmo que a produção de alimentos pudesse, de algum modo, ser duplicada em relação a seu nível dos anos 1790, isso só garantiria mais 25 anos de trégua; era difícil imaginar como ela poderia ser novamente duplicada. “Durante o período seguinte de duplicação, onde será encontrado o alimento para satisfazer às demandas inoportunas dos números crescentes?”, perguntou Malthus. “Onde as novas terras podem ser encontradas?” Rápido crescimento populacional havia sido possível, observou Malthus, nas colônias americanas, mas isso ocorrera porque a população era relativamente pequena em relação à abundante terra disponível.
     “Não vejo nenhuma maneira pela qual o homem possa escapar do peso desta lei que permeia toda a natureza animada”, concluiu ele sombriamente. “Nenhuma igualdade imaginária, nenhuma regulação agrária em sua máxima extensão poderia remover essa pressão, mesmo que por um único século. E ela parece, portanto, decisiva contra a possível existência de uma sociedade cujos membros deveriam todos viver em tranquilidade, felicidade e relativo ócio, e não sentir ansiedade alguma com relação à provisão dos meios de subsistência para si mesmos e suas famílias.” Ele previu um futuro de escassez, fome e miséria. A batata, Malthus acreditava, tinha parte da culpa. Tendo sido defendida como um remédio para a fome, agora parecia estar apressando o início de uma crise inevitável. E, mesmo que fornecesse alimento suficiente, afirmou Malthus, fazia a população crescer muito além das oportunidades de emprego. Em retrospecto, é claro, podemos apreciar a ironia de Malthus estar suscitando limitações biológicas à população e ao crescimento econômico precisamente no momento em que a Grã-Bretanha estava prestes a demonstrar, pela primeira vez na história humana, que elas não mais se aplicavam.

8. A máquina a vapor e a batata

“É moda exaltar as batatas, e comer batatas. Todo mundo participa da exaltação das batatas, e todo mundo gosta de batatas, ou finge que gosta, o que dá no mesmo.”
WILLIAM COBBETT, AGRICULTOR E PANFLETÁRIO INGLÊS, 1818

“O produto da agricultura”

     Desde os primórdios da pré-história até o início do século XIX, quase todas as necessidades da vida haviam sido atendidas por coisas que cresciam da terra. Ela fornecia produtos agrícolas de vários tipos: madeira para combustível e construção; fibras com que fazer roupas, e forragem para os animais, os quais, por sua vez, forneciam mais alimento, juntamente com outros materiais úteis como lã e couro. Açougueiros, padeiros, sapateiros, tecelões, carpinteiros e construtores de navios dependiam de matérias-primas animais ou vegetais, que eram produto, de maneira direta ou indireta, de fotossíntese – a captação da energia do sol por plantas em crescimento. Como todas essas coisas vinham da terra, e como a oferta de terra era limitada, Thomas Malthus concluiu que havia um limite ecológico com que populações e economias crescentes iriam acabar se defrontando. Ele fez essa previsão pela primeira vez às vésperas do século XIX, e refinou sua argumentação nos anos seguintes.
     No entanto, a Grã-Bretanha não se chocou contra o muro ecológico que Malthus antecipara. Em vez disso, saltou sobre ele e libertou-se das limitações do “antigo regime biológico”, no qual tudo era derivado dos frutos da terra. Em vez de cultivar a maior parte de seu próprio alimento, a Grã-Bretanha concentrou-se na fabricação de produtos industrializados, especialmente têxteis de algodão, que podiam depois ser trocados por alimentos estrangeiros. Durante o século XIX, a população mais do que triplicou e a economia cresceu num ritmo ainda mais rápido, de modo que o padrão de vida médio aumentou – um resultado que teria assombrado Malthus. A Grã-Bretanha lidara com a crescente escassez de alimentos reorganizando a economia. Ao mudar da agricultura para a manufatura, tornou-se a primeira nação industrializada do mundo.
     Para sermos justos, Malthus dificilmente poderia ter esperado ver isso acontecer, pois nada semelhante jamais ocorrera antes. E nada disso foi planejado, mas sim o resultado acidental da convergência de várias tendências independentes. Três das mais importantes relacionavam-se com mudanças na produção de alimentos: maior especialização nas artes manuais estimulada pela crescente produtividade agrícola; o uso cada vez maior de combustíveis fósseis, inicialmente como medida para poupar terra; e ênfase crescente em importar alimentos em vez de cultivá-los.
     O primeiro passo no caminho de uma economia agrícola para uma economia industrial foi o crescimento da indústria rural, na forma de manufaturas e artes manuais baseadas no lar. Isso aconteceu por toda a Europa, mas foi particularmente notável na Inglaterra, em razão do crescimento extraordinariamente rápido de sua produtividade agrícola. Em 1800, somente 40% da força de trabalho masculina trabalhava na terra, comparados com 65% a 80% na Europa continental. O número de homens trabalhando na agricultura em 1800 era aproximadamente o mesmo que 200 anos antes, mas a introdução de novas culturas e de técnicas aperfeiçoadas de cultivo significava que cada um estava produzindo o dobro de comida. A alta produtividade liberava cada vez mais trabalhadores da terra e estimulava pessoas a passarem para a manufatura rural, como Adam Smith explicou:

Uma região no interior de um país naturalmente fértil e facilmente cultivável produz grande excedente de víveres além do necessário para manter os agricultores ... A abundância, portanto, torna os víveres baratos e estimula um grande número de trabalhadores a se estabelecer nas vizinhanças, os quais descobrem que sua indústria ali pode lhes proporcionar mais das necessidades e conveniências da vida que em outros lugares. Eles trabalham o material de manufatura que a terra produz, e trocam seu trabalho acabado, ou o preço dele, o que é a mesma coisa, por mais materiais e víveres. Dão um novo valor à parte excedente da produção bruta ... e fornecem aos agricultores em troca dela algo que lhes é ou útil ou agradável. Os agricultores obtêm um preço melhor pela produção excedente, e têm oportunidade de comprar mais barato outras conveniências ... Os manufaturadores abastecem primeiro a vizinhança, e depois, à medida que seu trabalho melhora e se refina, mercados mais distantes ... Desta maneira cresceram naturalmente as manufaturas de Leeds, Halifax, Sheffield, Birmingham e Wolverhampton. Essas manufaturas são o produto da agricultura.

     Depois de se estabelecer na Inglaterra, a manufatura rural intensificou-se na metade norte do país durante o século XVIII, em resposta à adoção de novas técnicas agrícolas no sul. Como o uso de trevo e nabo em rodízio com trigo e cevada para aumentar a produção de cereais era menos eficiente nos solos argilosos pesados do norte e do oeste da Inglaterra, as pessoas dessas regiões concentravam-se na criação de animais e na manufatura, usando o lucro para comprar cereais do sul do país. O resultado, por acaso, foi uma concentração da manufatura exatamente nas regiões da Inglaterra onde havia ricos depósitos de carvão mineral.

Os combustíveis da indústria

     A substituição da madeira pelo carvão mineral como combustível foi uma segunda tendência que contribuiu para a industrialização da Grã-Bretanha. As pessoas gostavam muito mais de queimar madeira que carvão mineral em suas casas, mas à medida que a terra tornou-se mais requisitada para o uso agrícola, áreas que anteriormente forneciam lenha foram limpas para dar lugar ao cultivo. O preço da lenha disparou – aumentou três vezes em cidades da Europa Ocidental entre 1700 e 1800 –, e as pessoas recorreram ao carvão como um combustível mais barato. (Era barato na Inglaterra, pelo menos, pois havia fartos depósitos próximos da superfície.) Uma tonelada de carvão fornece a mesma quantidade de calor que a quantidade de madeira colhida de maneira sustentável de 0,4 hectare de terra. Na Inglaterra e no País de Gales, cerca de 2,8 milhões de hectares de terra que anteriormente forneciam madeira, ou cerca de um quinto da área de superfície total, passaram a ser cultivados entre 1700 e 1800. Isso assegurou que a oferta de comida continuasse a acompanhar o crescimento da população – mas exigiu que todos passassem a queimar carvão.
     E foi o que fizeram: o consumo real de carvão em 1800 era de cerca de 10 milhões de toneladas por ano, gerando uma quantidade de energia que, de outro modo, teria exigido que 4 milhões de hectares fossem reservados para a produção de combustível. Nessa altura, segundo algumas estimativas, a Grã-Bretanha era responsável por 90% da produção mundial de carvão. No que dizia respeito ao combustível, pelo menos, ela já havia escapado das limitações do antigo regime biológico. Em vez de o país depender de plantas vivas para captar a luz solar e produzir combustível, o carvão lhe permitia extrair vastas reservas de luz solar, acumuladas milhões de anos antes e armazenadas sob a terra na forma de plantas mortas.
     Embora o carvão fosse originalmente explorado como uma alternativa à madeira no aquecimento doméstico, sua abundância significou que ele logo passou a ser usado para outros fins. Arthur Young, um agricultor, escritor e observador social inglês, ficou impressionado com a relativa escassez de vidraças nas janelas ao viajar pela França nos anos 1780; elas eram muito mais difundidas na Inglaterra nessa época, porque o carvão fornecia energia barata para a fabricação de vidro. (Nesse meio-tempo, os vidreiros franceses estavam tão desesperados por combustível que recorriam ao expediente de queimar caroços de azeitonas.) O carvão era também intensamente usado pela indústria têxtil, para aquecer os líquidos usados no branqueamento, na tintura e na estampagem e para aquecer as salas de secagem e as prensas. Ele permitiu uma rápida expansão na produção de ferro e aço, anteriormente fundidos com o uso de madeira. E, é claro, era usado para acionar máquinas a vapor, uma tecnologia que nasceu da própria indústria do carvão.
     Depois de esgotados os depósitos superficiais e visíveis de carvão da Inglaterra, foi necessário perfurar poços de minas a profundidades cada vez maiores – quanto mais profundos, porém, maior a probabilidade de que fossem inundados com água. A máquina a vapor inventada por Thomas Newcomen em 1712, baseada no trabalho de inventores anteriores, foi construída especificamente para bombear água de minas inundadas. Os primeiros exemplares eram muito ineficientes, mas isso não importava muito, porque eram movidas a carvão – e numa mina de carvão esse combustível era gratuito. Em 1800, já havia centenas das máquinas de Newcomen instaladas em minas por toda a Inglaterra. O passo seguinte foi dado por James Watt, um inventor escocês que, chamado a consertar uma máquina de Newcomen em 1763, percebeu rapidamente como aquele projeto esbanjador poderia ser aperfeiçoado. O projeto de Watt, concluído em 1775, era muito mais eficiente e também mais apropriado para mover mecanismos.
     Isso significou que a energia a vapor pôde ser utilizada nos vários equipamentos poupadores de mão de obra concebidos na indústria têxtil, permitindo um enorme aumento de produtividade. Em 1790, a primeira versão movida a energia a vapor da “mule” de Samuel Crompton – uma máquina de fiar algodão – aumentou 100 vezes a produção de fios por trabalhador em relação à roda de fiar manual, por exemplo. A quantidade de fios que podiam ser produzidos era tão grande que foi preciso automatizar também os teares para utilizá-los. Ao reunir todas essas máquinas numa única fábrica, de modo que o produto de um estágio de processamento pudesse ser passado para o seguinte, como numa plantação de cana-de-açúcar, foi possível alcançar outros melhoramentos na produtividade. No final do século XVIII, a Grã-Bretanha podia produzir têxteis de modo tão barato e em tal abundância que começou a exportá-los para a Índia, devastando, no processo, o tradicional ofício da tecelagem daquele país.
     A terceira mudança que sustentou a Revolução Industrial foi o aumento da dependência de importações de alimentos. Assim como usava carvão do subsolo para acionar suas novas máquinas a vapor, a Grã-Bretanha usava alimentos provenientes do estrangeiro para fornecer energia para os trabalhadores. De suas possessões nas Índias Ocidentais, trazia vastas quantidades de açúcar, que significavam uma espantosa proporção do consumo calórico da Grã-Bretanha durante o século XIX, aumentado de 4% de todas as calorias consumidas em 1800 para 22% em 1900. O açúcar fluía para o leste através do Atlântico, pagando por bens manufaturados que viajavam no sentido oposto. Como um hectare de açúcar rende a mesma quantidade de calorias que 9 a 12 hectares de trigo, o açúcar importado assegurava o equivalente calórico da produção de trigo em 520 mil hectares de terras cultivadas em 1800, elevando-se para 1 milhão de hectares em 1830 e para cerca de 8 milhões em 1900. A Grã- Bretanha havia claramente escapado das amarras impostas pela limitação de terras produzindo bens industrializados, cuja fabricação não exigia grandes áreas, e trocando-os por alimento.
     O açúcar era usado para adoçar o chá, a bebida favorita dos trabalhadores industriais, que tinha a vantagem de fornecer energia (do açúcar) e de mantê-los alertas durante os longos turnos (pois o chá contém cafeína). O açúcar era também consumido como um gênero alimentício, para avivar uma dieta monótona: podia ser adicionado ao mingau na forma de melado ou comido como geleia (contendo de 50 a 65% de açúcar) em sanduíches. Melado ou geleia espalhados no pão eram muito apreciados por famílias de trabalhadores nas cidades industriais porque eram uma fonte barata de calorias e podiam ser preparados rapidamente, sem a necessidade de cozinhar. Muitas mulheres já estavam trabalhando em fábricas e não tinham mais tempo de preparar sopa. O preço do açúcar caiu e a disponibilidade de geleia aumentou depois de 1874, quando a Grã-Bretanha aboliu as tarifas sobre as importações de açúcar, que remontavam aos velhos tempos de Carlos II e seu abacaxi, em 1661.
     Não apenas o açúcar da geleia que era importado; o mesmo acontecia, cada vez mais, com o trigo usado para fazer pão. Quando a perspectiva de escassez de alimentos aumentou, no final do século XVIII, a Grã-Bretanha começou a importar mais comida da Irlanda. Após o Ato de União de 1801, a Irlanda passou, tecnicamente, a fazer parte do Reino Unido, mas na prática era tratada como uma colônia agrícola pelos ingleses. Leis que proibiam a importação de produtos animais irlandeses pela Inglaterra haviam sido revogadas em 1766, e no final do século XVIII as importações de carne bovina irlandesa haviam aumentado três vezes, as de manteiga seis vezes e as de carne de porco sete vezes. No início dos anos 1840, as importações da Irlanda garantiam um sexto da comida consumida na Inglaterra. Essa comida era produzida por homens que trabalhavam nas melhores terras, mais facilmente cultiváveis, e que, como de hábito, recebiam uma pequena área, de qualidade inferior, em que plantavam batatas para sustentar a si mesmos e às suas famílias. Em suma, os ingleses só podiam continuar comendo pão porque os irlandeses estavam comendo batatas. Ao sustentar os trabalhadores agrícolas irlandeses, a batata ajudou a alimentar as primeiras décadas da industrialização britânica.

A Fome da Batata e suas consequências

     O exemplo da Grã-Bretanha parecia ter provado que Malthus estava errado, mas pelo menos num aspecto ele foi agourentamente presciente. No início do século XIX, Malthus havia discordado da ideia de que a batata solucionava o problema alimentar, como parecia ter feito na Irlanda. Em The Question of Scarcity Plainly Stated and Remedies Considered, publicado em 1800, Arthur Young havia sugerido que o governo britânico devia dar a cada agricultor com três ou mais filhos 0,2 hectare de terra para cultivar batatas e manter uma ou duas vacas. “Se cada um tivesse sua ampla plantação de batatas e uma vaca, o preço do trigo não teria muito mais importância para eles que para seus irmãos na Irlanda”, escreveu ele. A dependência das batatas em que a Irlanda se encontrava, no entanto, não era algo que outros países devessem invejar, declarou Malthus. Pois se todas as pessoas se tornassem dependentes desse alimento, o fracasso de uma safra seria uma catástrofe. “Não é possível”, escreveu ele em resposta à proposta de Young, “que um dia a própria safra de batatas possa fracassar?”
     Essa catástrofe atingiu a Irlanda no outono de 1845. Em retrospecto, foi um desastre anunciado. A safra de batatas malograra em anos anteriores, pelo menos em algumas partes da Irlanda, e houvera anos ruins na década de 1830. Mas a ruína da safra de 1845, causada por uma doença até então desconhecida, se deu numa escala inteiramente diferente e afetou o país inteiro. As plantas de batata começaram a murchar, enquanto os tubérculos sob o solo começaram a apodrecer; numa questão de dias, campos cheios de plantas aparentemente saudáveis foram reduzidos a uma folhagem preta, devastada. Foi a praga da batata, causada por Phytophthora infestans, um fungo originário do Novo Mundo que cruzou o Atlântico pela primeira vez em 1845. Até batatas colhidas antes que a praga se manifestasse estragaram e apodreceram em menos de um mês. O que, segundo todas as expectativas, seria uma safra excelente – 1 milhão de hectares haviam sido plantados, 6% a mais que no ano anterior – foi, ao contrário, um fracasso total.
     A escala da devastação não se pareceu com nada já visto em qualquer parte da Europa desde a Peste Negra. A safra da batata foi um fiasco de novo em 1846, e nos anos subsequentes a fome continuou porque os agricultores desistiram de plantar esses tubérculos. As pessoas enfrentaram não apenas inanição, mas doenças. William Forster, um quacre que visitou a Irlanda em janeiro de 1847, registrou a cena vista em uma aldeia:

O sofrimento excedia de muito meus poderes de descrição. Fui rapidamente cercado por uma multidão de homens e mulheres, mais parecendo cães famintos que criaturas humanas, cujos vultos, fisionomias e gritos mostravam a todos que eles estavam sofrendo a agonia devoradora da fome ... numa [choupana] havia dois homens emaciados, estendidos ao comprido no chão úmido ... fracos demais para se mexer, na verdade reduzidos a pele e osso. Em outra um rapaz morria de disenteria; sua mãe tinha penhorado todas as coisas ... para mantê-lo vivo; e nunca me esquecerei do tom resignado, paciente, com que ela me disse que o único remédio que ele queria era comida.

     Cerca de 1 milhão de pessoas morreram de fome na Irlanda em consequência da falta de comida ou foram levadas pelas doenças que se espalharam na sua esteira. Outro milhão emigrou para fugir da fome, muitos para os Estados Unidos. A praga da batata espalhou-se pela Europa e durante dois anos não se encontrava esse tubérculo em lugar nenhum. Mas a dependência da batata sem paralelo em que a Irlanda se encontrava fez com que ela fosse a que mais sofreu.
     No final de 1845, quando a magnitude do desastre ficou patente, o primeiro-ministro britânico, sir Robert Peel, viu-se numa situação difícil. A resposta óbvia para a escassez era importar cereais do exterior para aliviar a situação na Irlanda. O problema era que tais importações estavam sujeitas na época, por lei, a uma pesada taxa de importação para assegurar que os cereais cultivados internamente custariam menos, ficando os produtores domésticos protegidos contra importações baratas. As Leis do Trigo, como eram conhecidas, estavam no cerne de um antigo debate que havia lançado os proprietários de terras aristocráticos, que queriam sua manutenção, contra uma aliança de opositores liderada por industriais, que pediam sua abolição.
     Os proprietários de terras afirmavam que era melhor depender do trigo plantado no país que de importações estrangeiras inconstantes, e advertiam que agricultores perderiam seus empregos; calavam sua verdadeira preocupação, de que a concorrência de importações baratas os forçasse a reduzir o preço dos arrendamentos cobrados dos agricultores. Os industriais diziam que era injusto manter o preço do trigo (e portanto do pão) artificialmente alto, uma vez que a maioria das pessoas agora comprava comida, em vez de cultivá-la. No fundo, sabiam também que o fim da tributação iria reduzir as demandas por salários mais altos, já que os preços da comida cairiam. Os industriais esperavam ainda que, com a comida mais barata, as pessoas tivessem mais dinheiro para gastar com produtos industrializados. E eram favoráveis à abolição das Leis do Trigo porque isso levantaria a bandeira do “livre comércio”, assegurando fácil acesso a matérias-primas importadas por um lado, e a mercados de exportação para produtos manufaturados por outro. O debate sobre as Leis do Trigo foi, em suma, um microcosmo das lutas muito mais amplas entre a agricultura e a indústria, o protecionismo e o livre comércio. Era a Grã-Bretanha uma nação de agricultores ou de industriais? Como os proprietários de terras controlavam o Parlamento, a discussão durou as décadas de 1820 e 1830 inteiras, praticamente sem nenhum efeito.
     O resultado foi determinado pela batata, quando a fome na Irlanda levou a situação a um ponto crítico. Peel, que se opusera vigorosamente à abolição das Leis do Trigo num debate parlamentar em junho de 1845, percebeu que suspender a tarifa sobre importações para a Irlanda a fim de aliviar a fome, mas mantê-la em vigor nos demais lugares, causaria grande agitação na Inglaterra, onde as pessoas teriam de continuar pagando preços artificialmente altos. Ele se convenceu de que não havia alternativa senão abolir as Leis do Trigo por completo, uma inversão da conduta de seu governo. De início, foi incapaz de persuadir seus colegas políticos, mas alguns deles mudaram de ideia quando as notícias vindas da Irlanda pioraram e ficou claro que a sobrevivência do próprio governo estava em jogo. Finalmente, com uma votação em maio de 1846, as leis foram revogadas. O apoio do duque de Wellington, um herói de guerra aristocrático que havia sido um vigoroso defensor das Leis do Trigo, foi decisivo. Ele convenceu os proprietários de terras com assento na Casa dos Lordes a apoiar a revogação, sob a alegação de que a sobrevivência do governo era mais importante. Em particular, no entanto, admitiu que “aquelas malditas batatas podres” eram as culpadas pela extinção das Leis do Trigo.
     A suspensão da tarifa sobre cereais importados abriu caminho para importações de milho da América, embora, no fim das contas, o governo tenha sido ineficiente na distribuição do alimento e ele tenha feito pouca diferença para a situação da Irlanda. Na segunda metade do século XIX, as importações de trigo pela Grã-Bretanha aumentaram muito, especialmente depois que a construção de estradas de ferro nos Estados Unidos facilitou o transporte de trigo das Grandes Planícies para os portos da Costa Leste. Enquanto isso, dentro da Grã-Bretanha, a mudança da agricultura para a indústria se acelerou. A área de terra sob cultivo e o tamanho da força de trabalho agrícola entraram ambos em declínio nos anos 1870. Em 1900, 80% do trigo, o item alimentar básico da Grã-Bretanha, estava sendo importado, e a parcela da força de trabalho dedicada à agricultura caíra a menos de 10%.
     O carvão não era o único combustível que havia impelido essa revolução industrial. O crescimento da produtividade agrícola, que se iniciara dois séculos antes (suplementado pelo açúcar do Caribe), e o fornecimento de trigo pela Irlanda (possibilitado pela batata) também haviam contribuído para que a Inglaterra transpusesse o limiar da nova idade industrial. Ao remover o obstáculo que impedia uma dependência maior da importação de alimento, a tragédia da Fome da Batata ajudou a completar a transformação.

Alimento e energia revisitados

     Não é nenhum exagero sugerir que a Revolução Industrial marcou o começo de uma nova fase na existência humana, assim como a revolução neolítica associada à adoção da agricultura havia feito cerca de 10 mil anos antes. Ambas foram revoluções energéticas: o cultivo deliberado de plantas domesticadas fez com que uma quantidade maior da radiação solar que chega à Terra ficasse disponível para a humanidade. A Revolução Industrial deu um passo adiante, explorando também a radiação solar do passado. Ambas causaram grandes mudanças sociais: a passagem da caça e da coleta para a agricultura, no primeiro caso, e da agricultura para a indústria, no segundo. Ambas levaram um longo tempo para se concretizar: passaram-se milhares de anos antes que os agricultores suplantassem globalmente em número os caçadores-coletores, e a industrialização só está se processando há 250 anos, de modo que até o momento apenas uma minoria da população do mundo vive em países industrializados – o rápido desenvolvimento da China e da Índia, porém, logo fará a balança pender para o outro lado. E ambas são controversas: assim como é possível afirmar que os caçadores-coletores estavam em melhores condições que os agricultores e que a adoção da agricultura foi um grande erro, é possível defender a ideia de que a industrialização causou mais problemas do que resolveu (embora esse argumento seja mais frequentemente proposto por pessoas desiludidas em países ricos, industrializados). Houve também consequências ambientais impressionantes em ambos os casos: a agricultura levou ao desmatamento generalizado, e a industrialização produziu vastas quantidades de dióxido de carbono e outros gases estufa, que começaram a afetar o clima mundial.
     Nesse sentido, os países industrializados não escaparam da armadilha de Malthus, mas apenas trocaram uma crise em que o fator limitante era a terra cultivável por outra, em que o fator limitante é a capacidade da atmosfera de absorver dióxido de carbono. A possibilidade de que a mudança para combustíveis fósseis fornecesse apenas uma trégua temporária das pressões malthusianas foi aventada mesmo por escritores do século XIX, notadamente William Stanley Jevons, um economista inglês autor de The Coal Question, publicado em 1865. “Por enquanto”, escreveu ele, “nossas provisões baratas de carvão e nossa habilidade em seu emprego, e a liberdade de nosso comércio com outras terras, nos tornam independentes da área agricultável limitada destas ilhas, e aparentemente nos retiram do alcance da doutrina de Malthus.” A palavra “aparentemente” não aparecia na primeira edição do livro, mas Jevons a acrescentou em uma edição posterior, pouco antes de morrer em 1882.
     Ele tinha razão para se inquietar. No início do século XXI, preocupações renovadas com a relação entre provisões de energia e a disponibilidade de terra para a produção de comida foram suscitadas em virtude do crescente entusiasmo com biocombustíveis, como o etanol feito de milho e o biodiesel feito de azeite de dendê. Fazer combustível com essas plantas é atraente por serem uma fonte renovável de energia (podemos cultivar mais no próximo ano) e porque, ao longo de seu ciclo de vida, elas podem produzir menos emissões de carbono que combustíveis fósseis. Ao crescer, as plantas absorvem dióxido de carbono do ar; depois são transformadas em biocombustível e o dióxido de carbono retorna à atmosfera quando o combustível é queimado. Todo o processo seria neutro em emissões de carbono, não fosse por aquelas associadas ao cultivo das plantas (fertilizantes, combustível para tratores e assim por diante), em primeiro lugar, e depois em sua transformação em biocombustível (algo que em geral requer muito calor). Mas a quantidade exata de energia requerida para produzir vários biocombustíveis e o nível de emissões de carbono associadas variam de planta para planta. Por isso alguns biocombustíveis fazem mais sentido que outros.
     O tipo que faz menos sentido é o etanol feito de milho, que é, infelizmente, a forma predominante, representando 40% da produção mundial em 2007, a maior parte nos Estados Unidos. As estimativas mais prováveis sugerem que a queima de um galão de etanol produz apenas 30% mais energia que aquela necessária para produzi-lo e reduz emissões de gases estufa em cerca de 13%, se comparada à queima de combustível fóssil convencional. Isso pode parecer impressionante, mas os números correspondentes para o etanol de cana-de açúcar brasileiro são cerca de 700% e 85%, respectivamente; para o biodiesel produzido na Alemanha, são 150% e 50%. Em outras palavras, fazer um galão de etanol de milho requer quatro quintos de um galão de combustível fóssil (para não mencionar centenas de galões de água), e não reduz muito as emissões de gases estufa. A produção dessa energia faz menos sentido ainda em bases econômicas: para alcançar essas parcas reduções de emissões, o governo dos Estados Unidos subsidia a produção de etanol de milho com cerca de 7 bilhões de dólares por ano e impõe uma tarifa sobre o etanol de cana-de-açúcar do Brasil para desencorajar importações. O etanol de milho parece ser um plano elaborado para justificar subsídios agrícolas, não um esforço sério para reduzir emissões de gases estufa. A Inglaterra aboliu as Leis do Trigo favoráveis aos agricultores em 1846, mas os Estados Unidos acabam de introduzir novas leis nesse sentido.
     O entusiasmo pelo etanol de milho e outros biocombustíveis foi um dos fatores que ajudaram a elevar o preço dos alimentos, à medida que plantações inteiras passaram a ser desviadas para a fabricação de combustível, de modo que a agricultura serve de fato para alimentar carros, não pessoas. Opositores dos biocombustíveis gostam de ressaltar que o milho despendido para encher o tanque de um veículo com 25 galões de etanol seria suficiente para alimentar uma pessoa durante um ano. Como o milho é também usado para alimentar animais, seu preço mais alto torna a carne e o leite mais caros. E, à medida que agricultores deixam de cultivar outros produtos agrícolas para cultivar milho, esses outros produtos (como a soja) tornam-se mais escassos e seu preço também sobe. Alimento e combustível estão, ao que parece, competindo mais uma vez por terra cultivável. O baixo preço do carvão mostrou aos proprietários de terras ingleses, no século XVIII, que sua terra era mais valiosa para cultivar comida do que combustível; a preocupação com o petróleo caro atualmente leva agricultores americanos a fazer a escolha contrária, cultivando plantas para a produção de combustível, não de comida.
     No entanto, nem sempre os biocombustíveis precisam competir com a produção de alimentos. Em alguns casos, pode ser possível cultivar matérias-primas para biocombustíveis em terras marginais, inadequadas para outras formas de agricultura. E essas matérias-primas não precisam ser produtos agrícolas alimentícios. Uma abordagem potencialmente promissora é a do etanol celulósico, feito com arbustos lenhosos e até árvores de crescimento rápido. Na teoria, isso seria várias vezes mais eficiente em termos energéticos até que o etanol de cana-de-açúcar, poderia reduzir as emissões de gases estufa de maneira quase igual (uma redução de cerca de 70% comparada aos combustíveis fósseis) e não invadiria terras cultiváveis. O problema é que o solo ainda está imaturo, e são necessárias enzimas caras para decompor a celulose, dando-lhe uma forma que possa ser transformada em etanol. Outra abordagem envolve a fabricação de biocombustível com algas; mais uma vez, porém, a tecnologia ainda está em seus primórdios.

     O que está claro é que o uso de produtos agrícolas alimentícios para a fabricação de combustível significa um passo atrás. O passo adiante mais lógico, depois das revoluções Neolítica e Industrial, certamente é encontrar novas maneiras de utilizar energia solar além do cultivo de plantas ou da escavação de combustíveis fósseis. Painéis solares e turbinas de vento são os exemplos mais óbvios, mas talvez seja também possível trabalhar de alguma maneira com o mecanismo biológico da fotossíntese para produzir células solares mais eficientes, ou para criar, mediante engenharia genética, micróbios capazes de produzir grandes quantidades de biocombustível. A necessidade de compatibilizar alimentos e combustível ressurgiu no presente, mas pertence ao passado.



Tom Standage

Uma história comestível da humanidade











Tradução:

Maria Luiza X. de A. Borges


Uma edição:

Zahar Editores






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Le Livros



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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."



Sumário


INTRODUÇÃO   Ingredientes do passado

PARTE I   Os fundamentos comestíveis da civilização
     1. A invenção da agricultura
     2. As raízes da modernidade

PARTE II   Comida e estrutura social
     3. Alimento, riqueza e poder
     4. Seguir o alimento

PARTE III   Os caminhos dos alimentos
     5. Estilhaços do paraíso
     6. Sementes de impérios

PARTE IV   Comida, energia e industrialização
     7. Novo Mundo, novos alimentos
     8. A máquina a vapor e a batata

PARTE V   Comida é arma
     9. O combustível da guerra
     10. Luta por comida

PARTE VI   Comida, população e desenvolvimento
     11. Alimentar o mundo
     12. Paradoxos da abundância

EPÍLOGO   Ingredientes do futuro
     
     Notas
     Bibliografia
     Agradecimentos
     Índice remissivo

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