domingo, 14 de fevereiro de 2016

AS AVENTURAS DO CANOA DOIDA

     Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, alcunhado o Canoa Doida, deixou fama imperecível na crônica antiga do Ceará. João Brígido, seu primeiro biógrafo, diz que se não sabe ao certo o local de seu nascimento: Rio do Peixe, na Paraíba, Goiana, em Pernambuco, ou Crato, no Ceará. Inclina-se a considerá-lo pernambucano. Afirma que, desde pequeno, se assinalou pelas travessuras maldosas no gênero das do lendário Pedro Malasartes. Não conheceu o pai. A mãe, D. Feliciana, cavilosa e piedosa, oscilava entre "as asneiras do marido e as diabruras do filho", casada em segundas núpcias com um professor de latim, boêmio e piegas, Joaquim Teotônio Sobreira.

     Em 1824, Verdeixa passou das traquinadas da infância às aventuras da adolescência, alistando-se nas forças republicanas da Revolução de 1824 que, sob o comando de José Pereira Filgueiras e Tristão Gonçalves de Alencar, ocuparam a vila cearense de Jardim, "tomando parte no massacre dos presos e na roda de pau que se lhes aplicou, dando de cacete, com as duas mãos, em muitos pacientes, até caírem inanimados". Após a derrota dos rebeldes, passou-se para os legalistas do coronel Agostinho José Tomás de Aquino.

     Durante seis anos, de 1824 a 1830, cursou o seminário de Olinda, ordenando-se em 1831 e sendo logo nomeado vigário de Lavras, no sul do Ceará. Como e por que se decidiu a seguir a carreira eclesiástica, quando até então não denotara a menor propensão para ela e os pendores naturais do seu espírito o inclinavam a outros rumos, é coisa que jamais se conseguiu saber. Que se poderia esperar dum sacerdote, sem vocação formal e sem preparação adequada, solto num meio agitado como a região do Cariri naquele tempo? Teceu ali uma "enredada diabólica", malquistando o coronel Agostinho com Pinto Madeira, o infeliz rebelde de 1832, satirizou o perverso advogado Simplício José da Rocha, levou à ruína o juiz leigo Antônio da Rocha Moura, desancou em versos o famigerado João André Teixeira Mendes, o Canela Preta, e até nos casamentos que celebrava ofendia os noivos com pilhérias indignas do seu sagrado ministério. Daí o ódio que o cercou e o obrigava a viver sempre de sobreaviso, ocultando-se ou fugindo.

     Teve de deixar o sertão e vir para Fortaleza, onde se tornou logo inimigo do presidente da província, o padre e o senador Martiniano de Alencar. Enganou os pobres índios mansos que ainda viviam na povoação de Arronches ou Parangaba, fazendo-os assinar uma representação em termos tais que levou à cadeia. Blaterava por toda parte contra o presidente Alencar e, caçado pela Polícia, refugiou-se na casa do negociante português Martinho Borges, onde demorou o tempo que quis, obrigando-o a tratá-lo a vela de libra sob a ameaça de denunciar-se às autoridades, o que acarretaria os piores aborrecimentos no seu hospedeiro, verdadeira chantagem. Ia a cavalo insultar Alencar debaixo das janelas do palácio do governo, gritando-lhe a alcunha - Padre Cobra! E fugindo imediatamente a galope.

     Juiz de paz em Baturité, praticou as maiores arbitrariedades. Quando o quiseram prender, escondeu-se num buraco coberto por uma tábua sobre a qual sua mãe placidamente fazia renda, trocando os bilros na almofada. Mal os beleguins, que o não tinham encontrado, se distanciavam, insultava-os duma janela. Voltavam, davam busca na moradia e nada. Ele estava no buraco sob as saias rodadas de D. Feliciana.

     Envolvido numa tentativa de morte contra o presidente brigadeiro José Joaquim Coelho, mais tarde barão da Vitória, defendeu-se pessoalmente no júri a que o submeteram, encalacrando seu companheiro, o velho capitão-mor Barbosa. Quando este lhe perguntou porque lhe fizera tanto mal, respondeu que, se ele fosse solto, passaria fome na cadeia, porquanto até ali vinha comendo do que a família do respeitável ancião mandava. Corria que tinha o dom da presciência, avisando as pessoas dos desastres iminentes que as ameaçavam e adivinhando a chegada das patrulhas que o procuravam. Ia se tornando aos poucos um personagem lendário.

     Tantas fez que se viu forçado a procurar outros ares. Embarcou para o Sul e conseguiu a nomeação de vigário de Carapebus, na província do Rio de Janeiro. Ali "amotinou contra si todos os espíritos", de forma tal que o amarraram às costas dum cavalo e o levaram até fora dos limites da paróquia. Encontrando um conhecido no caminho, disse-lhe que aquela boa gente o amava tanto que o levava daquele jeito para que não fugisse aos seus carinhos...

     Era uma alma feita de violentos contrastes, ora de energúmeno, ora cheia de "doçura angélica". Suas aventuras foram sempre, no fundo, traquinadas ou molecagens. Parece que não deixou de ser criança. Não falam os seus cronistas de eventos amorosos na sua vida agitada e inquieta, em que as paixões políticas do momento predominam. Contudo, sabe-se que deixou dois filhos e duas filhas.

     Em 1848, de novo no Ceará, redige o "Juiz do Povo", panfleto à maneira do "Père Duchêne", de Herbert, na Revolução Francesa, mal escrito e atrevido, que atacava tudo e todos em prosa e verso. Vigário de Soure, a antiga Caucaia, ali lhe imputaram crimes de morte. Preso em Pacatuba por escrever libelos anônimos, foi mandado sob escolta para Fortaleza. No caminho, convenceu aos soldados que o deviam amarrar para não fugir. Assim o fizeram e, ao entrar na cidade, o povo, vendo um sacerdote ajoujado e lacrimoso, encheu-se de indignação, atacou a guarda e o libertou.

     Deputado provincial nas legislaturas de 1848 e 1868, apesar dos 20 anos que as separam, em ambas nada mais fez senão pilhérias, travessuras e meter os colegas em ridículo. De Fortaleza saía para as vilas próximas - Maranguape, Pacatuba e Baturité, onde pintava o sete. Irrequieto e andejo, acabou mudando-se para o Aracati, de onde regressou moribundo à capital da província, embarcando num pequeno veleiro. Morreu, pouco depois de desembarcado, na Santa Casa de Misericórdia, segurando nas mãos hirtas um pacote com 400 mil réis, pelos quais vendera um velho escravo que o servia. Fora, na verdade um canoa doida, levada aos trambolhos pelo rio da vida, figura curiosa do nosso passado a desafiar um estudo psicológico.




- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, em 2004, de onde foi copiado este capítulo, sob os auspícios da FUNCET-PMF.

Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.

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