De uns tempos a esta parte,
convencionou-se chamar ao velho casarão da Praça General Tibúrcio, que serve de
sede ao governo cearense, Palácio da Luz. O nome é bonito, não há dúvida,
inspirando-se no glorioso apelido que o Ceará mereceu por ter sido o arauto da
emancipação dos escravos, - Terra da Luz. Aliás, é moda batizar os paços da
governação pelo Brasil afora com títulos tradicionais ou impressionantes:
Palácio dos Campos Elíseos em S. Paulo, da Liberdade em Belo Horizonte, da
Aclamação da Bahia, dos Leões em S. Luís, do Ingá em Niterói, de Karnak em
Teresina, o que lembra o velho Egito, da Alvorada em Brasília em outros.
A sede do governo do Ceará, que já
suportou um bombardeio de artilharia de 16 para 17 de fevereiro de 1892, quando
foi deposto o general José Clarindo de Queiroz, um assédio de barricadas
populares na deposição do Dr. Antônio Pinto Nogueira Acióli, em 24 de janeiro
de 1912, e um tiroteio violento em 1914, abriga há mais dum século os
representantes do poder público. Começou sendo um casarão particular, fora de portas, diz João Brígido, pois a
cidade se compunha, então, de Praça do Conselho, depois da Sé, de umas quatro
ruas, sendo uma, a Direita dos Mercadores, ao longo do Pajeú até a praia, e da
Praça Carolina, mais tarde do Mercado, do Comércio e José de Alencar, que não
chegava até aquele ponto. Edificou-o para sua residência particular o
capitão-mor "de tijolo de coco e barro extraído das imediações da
fortaleza; os rebocos foram de cal recebida do Aracati, donde primitivamente
também vinha a telha".
Em 1801, quando o referido capitão-mor
faleceu no cargo de tesoureiro da Fazenda Pública, achava-se em débito de
avultada soma para com esta. Por este motivo, a Junta de Fazenda penhorou-lhe o
prédio e o vendeu à Câmara Municipal precisada de sede, pela grande quantia na
época de 800 mil réis, servindo de fiador na transação, porque a referida
Câmara não dispunha no momento de dinheiro em espécie, um dos homens mais ricos
e prestigiosos da capitania, o capitão-mor dos Inhamuns, José Alves Feitosa.
O Senado da Câmara viu-se obrigado a criar
um imposto especial para pagar a sua nova casa. Foi o chamado Subsídio das Águas Ardentes, "que consistia,
refere o historiador já citado, em 4 mil réis sobre pipa importada desse
precioso líquido, que, ainda em 1814, em ata de sua sessão, dizia o Senado, ser
objeto de luxo. Vinha de Pernambuco".
Conseguia-se um palácio à custa da cachaça.
O casarão ocupava a esquina da rua
denominada do Rosário, que corre entre ele e a Igreja dessa invocação, sobre o
terreno em declive para o Vale do Pajeú, tendo como sua dependência toda a área
compreendida entre ele e as ruas do Rosário e antiga do Cajueiro. Em julho de 1803,
o ouvidor Cabral a mandou cercar com altas estacas de pau-ferro, espontadas e
seguras com travessas de madeira pregadas a prego. Nelas se abria um portão de
tábuas, com ferrolho e chave, protegido por um tejadilho. A obra, terminada em
dezembro, custou 90 mil réis e delimitou o perímetro em que hoje se levantam os
corpos da edificação, terraços, pátios, jardim e quintal do Palácio da Luz, uma
quadra inteira na parte central e mais importante da cidade de Fortaleza. No
tempo do futuro marquês do Aracati, João Carlos de Oyenhausen e Grevenburg, os
soldados da guarda, mal pagos e famintos, pulavam a cerca para furtar as
goiabas do governador...
Antes de vir para o solar do capitão-mor
Viana, a Câmara ocupava uma casa da antiga Praça do Conselho, edificada entre
1721 e 1727 por 400 mil réis, tirados do imposto dos açougues ou talho das carnes pelo governador Manuel
Francês. Nela residiram alguns governadores da capitania e foi vendida, depois,
ao mestre régio Ávila por 90 mil réis. Sempre maus os negócios oficiais. Devido
a essa Venda, eles que, antes, assistiam no quartel da fortaleza, passaram a
habitar uma casa de terraço de tijolo e grandes portões, ao lado do Mercado de
Cereais, que foi demolida entre 1928 e 1930, para aumento deste. Deitava para a
Rua Direita dos Mercadores, do Comércio, de Baixo, do Conde d'Eu e Sena
Madureira, que todos estes nomes teve no decurso do tempo. Pertencia a Raimundo
Vieira da Costa Perdigão e rendia de aluguel 40 mil réis por ano. Imagine-se se
tivesse sido congelado por uma lei do inquilinato, que beleza! Ao mesmo foi
mais tarde adquirida.
Em 1809, a Câmara recebeu-a em troca da do
capitão-mor Viana. Para esta vieram os governadores; para aquela foram os edis,
que dali somente sairiam para o sobrado de Francisco José Pacheco de Medeiros,
o famoso Pachecão, após a independência, nele permanecendo até há poucos anos.
Esse último paço municipal foi posto abaixo para o alargamento da Praça do
Ferreira e construção dum abrigo de cimento armado, espécie de Tabuleiro da
Baiana.
Ocuparam o Palácio da Luz desde 1809 todos
os capitães-mores e governadores da capitania do Ceará Grande, presidentes da
província e comandantes das armas, presidentes, interventores e governadores do
Estado. A lista é longa, pontilhada de homens notáveis como Manuel Inácio de
Sampaio, Pedro José da Costa Barros, padre José Martiniano de Alencar, Manuel
Felizardo de Sousa e Melo, brigadeiro José Joaquim Coelho, padre Vicente Pires
da Mota, José Bento da Cunha e Figueiredo, Diogo Velho Cavalcânti de
Albuquerque, Heráclito Graça, o barão de Catuama, o barão de Sobral, Miguel
Calmon du Pin e Almeida, Antônio Caio da Silva Prado e Jerônimo Rodrigues de
Morais Jardim, sem falar nos do período republicano.
Compunha-se o prédio, ao princípio,
somente da parte térrea, na esquina fronteira à Igreja do Rosário, onde durante
muitos anos funcionou a Secretaria do Interior e, depois, se instalou a
Secretaria do Governo, bem como da parte que lhe seguia até a cerca de
pau-a-pique já referida. Fez-lhe obras Barba Alardo em 1811. Em 1839, o
presidente João Antônio de Miranda aumentou a edificação até a Rua de Baixo,
construindo o grande salão central e a parte assobradada que deita para a
mesma. Em 1844, o tenente-coronel Inácio Correia de Vasconcelos levantou o
terraço que se segue ao sobrado, perlongando a referida rua. Em 1854, o padre
Pires da Mota edificou a sala de jantar, unindo-a por alpendradas à ala
primitiva e por um belo terraço ajardinado, com painéis de azulejos e
estatuetas de louça do Porto, ao terraço, de Vasconcelos. Em 1878, José Júlio
de Albuquerque Barros, barão de Sobral, fez o passadiço coberto e com rótulas
que completa a moldura do pátio interno, dando-lhe um ar conventual, tanto que,
visitando-o, em 1913 ou 1914, Paul Adiam julgou, como escreveu, achar-se em um
mosteiro antigo. Eis o que diz no fim do último capítulo de "Les visages
du Brésil": Au palais du Président,
il est un vieux cloitre rose et Mane, dallé de céramiques claires.
Afinal, outras modificações de pouca monta
foram levadas a efeito em algumas das administrações republicanas. Do
mobiliário antigo, estragado em grande parte pela metralha em 1892, havia ainda
até 1929 alguns dunquerques de espelho, com tampo de mármore, jarrões de
porcelana e grandes espelhos de molduras douradas no salão, e toda a guarnição
da sala de jantar em nogueira esculpida. Depois de 1930, tudo isso desapareceu.
Quod non fecerunt barbari fecerunt
Barberini... E os Barberini, sobretudo, das intervenções, não foram
poucos...
Em 1811, quando esteve de passagem pelo
Ceará, o viajante inglês Henry Koster frequentou as reuniões que dava no
casarão do capitão-mor Viana, recentemente trocado com a Câmara Municipal, o
governador Luís Barba Alardo de Menezes. Eram pequenas recepções improvisadas,
com chá, café, conversa e jogos de cartas, que faziam passar o tempo
agradavelmente. Nas datas solenes, ao pé do retrato do príncipe regente de
Portugal, sob um rico dossel, o governador de grande uniforme, recebia num
estrado alto as homenagens das pessoas gradas e, à noite, dava-lhes um jantar
de gala, em que tudo era "excelente e adequado". Acrescenta Koster
que esse administrador construíra a parte central do paço, empregando nessa
obra trabalhadores índios, aos quais pagava a metade do que custavam os braços
livres. Era, então, o palácio o único
edifício assoalhado em toda a vila.
Longe vão esses bons tempos. Em nossos
dias, apesar do nome pomposo e ilustre, o Palácio da Luz não corresponde mais
ao ambiente em que se encontra. A vila antiga é uma cidade moderna, viva e
bela, de mais de 300 mil habitantes, uma das principais e melhores do País. As
edificações de 1808, 1811, 1839, 1854 e 1878 não se integram mais no sentido e
na forma de viver da atualidade. O velho Palácio da Luz, carregado de tradição
e de história, não está mais de acordo com a esplêndida capital onde se
encontra. Isto é uma grave ameaça que pesa sobre ele, porque em nossa terra
ninguém sabe conservar a alma das coisas, há mesmo o desprezo, senão o ódio,
pelo que chamam velharias. E, ao invés de construírem um paço novo, adequado a
seus fins e ao ambiente, destinando o antigo, devidamente restaurado, a
serviços públicos de natureza educativa ou cultural, sem dúvida um dia porão
abaixo as veneráveis paredes que abrigaram tantas figuras ilustres do nosso
passado e resistiram impávidas aos canhões La
Hitte de 1892. Perderia Fortaleza um edifício desgracioso e velho, mas
impregnado, para os que se habituaram a vê-lo desde a mais tenra infância e a
ouvir falar dele, da mais viva e humana simpatia. Ele por si só representa uma
peregrinação ao passado, dessas que somente podem realizar os que aprenderam a
compreender com Maurício Barrés o romantismo sem par das coisas mortas.
- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO CEARÁ, editado em 1962 pela
UFC, tendo sua segunda edição, de onde foi copiado este capítulo, em 2004, sob
os auspícios da FUNCET-PMF.
Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.
Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.
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