O homem que trouxe liberdade - Abraham Lincoln, o décimo sexto presidente dos Estados Unidos da América. |
O homem da caneta de ouro
Sentado à mesa, ao lado de grandes janelas, o homem alto inclinou o
corpo para a frente, estendeu a mão, e puxou uma folha de papel. Com a outra mão
pegou a caneta - uma bela caneta de ouro, própria para a assinatura do documento
que estava a sua frente. Um breve silêncio pairou entre as pessoas que o
observavam.
O presidente assinava papéis todos os dias: cartas, leis, determinações
para o Exército na interminável guerra contra o Sul e perdão para os soldados
que fugiam dela. O homem da caneta de ouro tinha um bom coração - conhecia o
sofrimento e sempre que podia perdoava os desertores.
Mas, nesse primeiro dia de janeiro de l863, seria assinado algo mais
importante que um simples perdão: era a emancipação para todo um povo, um sinal
de que, pela primeira vez em muitas gerações, eles poderiam viver legalmente
como seres humanos.
Quando assinado, o papel proclamaria a liberdade de quase 4 milhões de
escravos negros, de "propriedade e uso" dos fazendeiros rebelados do
Sul.
“Eu ordeno e proclamo que..."
O presidente mergulhou a pena da caneta no tinteiro, suspendeu-a no ar e
parou. Preocupado, olhou atentamente as próprias mãos. Estavam tremendo. Mentalmente,
ordenou que o tremor parasse. Em vão.
Isso nunca ocorrera antes. Cuidadosamente o presidente descansou a
caneta ao lado do tinteiro e flexionou os dedos. Estavam quase insensíveis, e o
braço, pesado como chumbo.
Não era de estranhar, considerando-se como passara a manhã. Era tempo de
guerra, mas o primeiro dia do ano ainda era o primeiro dia do ano.
Durante a manhã, como sempre fazia no primeiro dia do ano, recebera e
retribuíra apertos de mão de todos os visitantes da Casa Branca.
Não era aquela, certamente, a
melhor maneira de preparar o momento que se tornaria histórico. Esse papel
poderia mudar todas as coisas. O presidente não só sabia disso como também o
que havia escrito nele. Milhares de pessoas leriam sua assinatura com o mesmo cuidado que leriam todas as
linhas da página. Como lêem, até hoje, as linhas mais importantes: “Eu ordeno e
proclamo que todas as pessoas mantidas como escravos nos Estados designados
(...) são, daqui para a frente, livres..."
Mais que liberdade
Aquelas poucas palavras traziam
mais que liberdade. Poderiam acarretar medo e destruição, pois significariam a
ruína das propriedades dos donos de escravos. Elas acabariam com uma situação
que os proprietários lutavam para manter. Mas ajudariam a terminar com o
terrível pesadelo da guerra. E lá estava ele para transformá-las em lei, com
uma insignificante e trêmula assinatura.
Nada era mais sólido que sua
resolução. Tremendo ou não, nesse dia sua mão teria que obedecer ao comando da
mente e assinar a Proclamação da Emancipação.
O presidente dos Estados Unidos
pegou a caneta de ouro novamente e, em sua inclinada e cuidadosa caligrafia,
assinou: Abraham Lincoln.
Três acontecimentos grandiosos
Abraham Lincoln foi um dos mais
importantes presidentes que os Estados Unidos já tiveram. Um homem
extraordinário: tão humilde quanto ambicioso, piedoso e firme, perseverante e
profundamente inteligente. Mesmo hoje, mais de cem anos depois de sua morte,
ele faz parecer insignificante a maioria dos outros líderes da história.
Lincoln provavelmente não
precisava de mais nada para ser reconhecido como o grande líder que foi. Mas é
lembrado também por duas realizações não menos relevantes: ele salvou seu país
da autodestruição e libertou os escravos.
Uma cabana de madeira
O presidente que libertou os
escravos nasceu pobre. Lincoln veio ao mundo numa cabana de madeira perto de
Nolin Creek, Estado do Kentucky, no dia 12 de fevereiro de 1809. Não era muito
mais que um abrigo - uma porta, uma janela e a chaminé. A cabana era o lar do
menino “Abe" e sua família: a irmã mais velha, Sarah, com 2 anos de idade,
e os pais, Thomas e Nancy. O pai, homem cordial e comunicativo, era um pequeno
fazendeiro que tirava o sustento da família, a duras penas, do solo do
Kentucky.
A pequena família não ficou muito
tempo em Nolin Creek. A terra era melhor mais adiante, na direção de Knob
Creek, para onde os Lincoln se mudaram. E se mudariam novamente, quando Abraham
tinha 7 anos, para Indiana, o mais novo Estado americano.
A morte de Nancy
Se as antigas casas dos Lincoln,
no Kentucky, ficavam em locais remotos, a nova, em Little Pigeon Creek, ficava
quase dentro da floresta. Eles chegaram no rigor do inverno e não poderiam
construir nenhuma casa até a chegada da primavera. Então, a família suportou os
meses de neve em um abrigo de madeira de três lados. Somente o calor da
fogueira, no lado aberto da cabana, mantinha o frio lá fora.
Em 1818, quando Abraham estava
com 9 anos, a fatalidade abalou a família. Cansada, esgotada, no limite da
resistência, Nancy Lincoln morreu. Apesar de contar apenas 30 anos, seus dentes
já haviam caído e sua pele estava ressecada como uma folha morta.
Eram as mulheres do sertão, com
sua habilidade para comandar a casa e tratar das doenças, que realmente
conduziam suas famílias. Sem Nancy, a vida na cabana logo se tornaria confusa,
sem higiene e infeliz. Algo deveria ser feito. Um ano depois, Thomas casou-se
com a viúva Sarah Bush Johnston. Todos a chamavam de “Sally".
Sally e os livros
Sally Lincoln foi uma boa mãe
para Abraham, tanto quanto Nancy havia sido; talvez até melhor. Afetuosa e expansiva,
ela compreendia as particularidades de seus enteados, aceitava o silêncio e o
mau humor de Abraham, que contrastavam tão estranhamente com as brincadeiras
que fazia quando estava com disposição de ânimo. Sally se esforçava para dar
uma boa educação às crianças.
Thomas Lincoln não concordava com
tanto ler e escrever. Não para o menino que ele estava preparando para ser um
bom lavrador. Sally, apesar de ser quase analfabeta, discordava. Com seu
incentivo, Abraham aprendia como podia, por meio da leitura da Bíblia, de
grandes romances, como Robinson Crusoé,
e outros livros, como a história dos Estados Unidos e da vida de seu primeiro
presidente, George Washington. Depois de haver lido todos eles, Abraham os
leria outra vez e outra vez. Lia até quando estava trabalhando, entre o preparo
de um sulco e outro de terra.
Sua escolaridade era acidental:
um mês aqui, outro lá, em breves espaços, em escolas perdidas no interior do
país, entre um ciclo e outro do plantio e da colheita. No total, não deve ter passado
mais que um ano dentro de uma sala de aula.
Para Abe, era o bastante
Thomas Lincoln achava que isso já
era o suficiente. Além do mais, os fatos importantes de Pígeon Creek não
passavam de nascimentos, mortes e colheitas. E, para o filho, importava o
trabalho: pesado, opressivo, pago a 25 cents por dia, quando os fazendeiros
vizinhos contratavam seus serviços.
Nessa época, Abraham estava a um
passo de odiar Thomas, mas não havia nada que pudesse fazer para mudar a
situação. Todos os seus ganhos iam automaticamente para o pai. Essa era a lei.
Somente quando completasse 21 anos seria capaz de se manter, ser seu próprio
patrão.
Em 1830, seu vigésimo primeiro
aniversário chegou e passou. Nada de novo. No mesmo ano, Thomas estava outra
vez descontente e mudou-se com a família para Illinois. A mudança significava
apenas a repetição da velha fórmula: mais neve, mais terra para ser arada, mais
árvores para derrubar. Para Abe, era o bastante. Quando a neve se foi, na
primavera de 1831, ele foi embora com ela.
New Salem era um lugar mais animado que Pigeon Creek. Apesar disso, ainda era um povoado rude, de construções de madeira. As casas de madeira mostradas aqui eram usadas para armazenar e preparar lã. |
Um desordeiro diferente
Lincoln foi parar em New Salem,
um povoado agreste às margens de um rio, onde se sentiu perfeitamente adaptado,
como sertanejo que era.
Ele estava com mais de 1,80 metro
de altura e espantosamente forte. Abraham brigou com o maior arruaceiro de New
Salem, ganhou a liderança da gangue de valentões da cidade e, nas horas de
trabalho, atraía fregueses para o armazém, com suas extravagantes histórias
cheias de malícia.
Curiosamente, ele não bebia. Não
era apenas isso que não se encaixava na imagem de desordeiro que New Salem
tinha dele. Havia pessoas educadas na cidade: o médico, o diretor da escola e
James Rutledge, dono de uma hospedaria. Admirador deles – e um pouco mais do
que meio apaixonado por Ann, filha de Rutledge -, Lincoln introduziu-se na
polêmica sociedade local.
Os outros membros da sociedade
torceram o nariz ao novo morador, mas levariam o maior susto de suas vidas ao
descobrir que o moço desordeiro do armazém modificara-se e revelava-se um
orador de primeira categoria. Encorajado, Lincoln continuava buscando
conhecimentos, estudando por conta própria, como em Little Pigeon Creek.
Estudou matemática, trabalhou duro seu inglês, aprimorando a base gramatical
que sustentava sua linguagem escrita e falada. E, com 23 anos de idade, entrou
para a política.
Política e lei
Todos discutiam política no
armazém de New Salem quando não estavam falando dos problemas do transporte
pelo rio ou assobiando ruidosamente com alguma história picante de Lincoln, que
deixava o dono do armazém de cabelo em pé. Abraham escapara do trabalho pesado
na longínqua fazenda de seu pai, mas queria ir muito além dos limites de New
Salem e Illinois. A política poderia ajudá-lo? Era possível. Afinal, os homens
que entravam para a política pareciam progredir rapidamente.
Em 1832, Abraham Lincoln
candidatou-se a deputado nas eleições do Estado de Illinois. Não foi eleito,
mas a experiência fez com que almejasse mais. Na segunda vez, em 1834, teve
mais sorte. Quando se instalou a nova legislatura de Illínois no inverno
daquele ano, seu quadro incluía um homem gigantesco, de rosto fino e olhos
firmemente plantados no futuro. Foi então que ele juntou mais uma ambição a sua
Iista: tomar-se advogado.
Um advogado! Era uma meta
extraordinária para um agricultor, um homem da remota fronteira da civilização,
que ainda se expressava com o sotaque de Indiana, acrescentando ou diminuindo
letras em algumas palavras. Mas foi em Indiana que ele sentiu pela primeira vez
o fascínio da lei. Pouco tempo antes de partir, descobrira a sala do tribunal
local e os dramas legais encenados ali. Seduzido, Lincoln estudou cuidadosamente
a Constituição dos Estados Unidos - o código de leis pelas quais o país era
governado.
“Todos nascem iguais”
Ele se interessou também pela
Declaração da Independência: o magnífico documento escrito pelos fundadores do
país ao rei George III, da Inglaterra, quando, em 1776, eles romperam com o
governo britânico. “Nós nos apegamos a essas verdades por ser evidente",
dizia a declaração, “que todos os homens nascem iguais e são dotados pelo
Criador de direitos inalienáveis - entre eles, a vida, a liberdade e a busca da
felicidade..." Palavras que o jovem Lincoln lembraria por toda a vida.
Agora que havia se tornado um legislador Lincoln decidiu continuar o
auto-aprendizado, de forma mais aprofundada. Tomou emprestado todos os livros
que encontrou e começou a estudar sem descanso. Três anos depois, em março de
1837, com 28 anos, ele se sentiu habilitado como advogado. Em abril, deixou New
Salem para sempre. Foi tentar a sorte em Springfield, capital do Estado.
Sorte e amor
Lincoln entrou em Springfield
montando um cavalo emprestado, com seus pertences dentro de uma mochila atada à
sela e os pés pendentes, na altura das patas do animal. Ele tinha um trabalho
pela frente e um escritório, mas nenhum lugar para morar. E pouco dinheiro:
somente 7 dólares. Insuficientes até para comprar uma cama.
Logo no começo, a sorte o ajudou.
O lojista do qual tentou comprar uma cama admirou a estatura e a aparência
sóbria do freguês e ofereceu-lhe um alojamento, no andar superior do
estabelecimento. De graça. Lincoln se instalou. Com inteligência e habilidade
de expressão, logo se firmou como um advogado de renome.
Embora fosse tímido com as
mulheres, sua vida social não demorou a prosperar. Springfield era mais
movimentada e civilizada que New Salem. Como profissional, Lincoln visitava as
melhores famílias da cidade. Em 1839, quando já completara 30 anos, ele se
apaixonou por uma das mais inteligentes e ricas moças de Springfield.
Mary Todd Lincoln é vista aqui em uma foto oficial, na Casa Branca, em 1861. A vistosa filha de um rico banqueiro do Sul e Abraham Lincoln se casaram em 4 de novembro de 1842. |
Mary Ann Todd
Como Lincoln, Mary Ann Todd era
fascinada pelo poder e pela política. Fora isso, ela e seu alto pretendente
eram essencialmente diferentes. Mary era pequena, cheia de vivacidade e
elegante. Palavras nunca lhe faltavam e não tinha qualquer timidez. Sua
família, originária do Kentucky, pertencia à alta sociedade local. Eram muito ricos
e possuíam escravos negros para todos os serviços.
O pai de Lincoln também era do
Kentucky. Longe de possuir escravos, ele passou a maior parte de sua vida
lavrando, ele mesmo, a terra. Embora fosse uma posição incomum para alguém .do
Kentucky, o velho Thomas desaprovava a escravidão. O filho pensava da mesma
forma - já protestara contra os donos de escravos na Assembléia Legislativa de
Illinois.
Para trás, o passado
Os Todd não gostavam de Lincoln,
de sua origem humilde. Apesar das diferenças e dificuldades, Abraham e sua
Molly, de uma forma ou de outra, cuidavam de conservar o amor entre eles. No
dia 4 de novembro de 1842, os dois se casaram, mais ou menos às escondidas, na
grande casa da irmã de Mary, que só foi informada do casamento no mesmo dia, de
manhãzinha. Para a família de Lincoln ninguém também contou nada, durante
meses. A verdade era que Lincoln se sentia amargamente envergonhado por seu
passado de miséria. Tanto nessa época quanto por muitos anos depois, ele fez
tudo o que pôde para esquecer esse fato.
A primeira casa dos recém-casados
não era grande coisa: apenas um quarto no andar de cima de uma hospedaria. Mas,
em pouco tempo, o promissor advogado deixaria para trás os tempos difíceis,
dessa vez para sempre. Por volta do final da década de 1840, eles se mudaram
para uma bela casa de madeira, com persianas e uma delicada sacada de ferro
batido. Um belo cenário para a maior vitória política que Lincoln conquistaria
em porcentagem de votos: em 1846, com dois terços dos votos, os eleitores de
sua região eleitoral escolheram-no para representá-los no Congresso dos Estados
Unidos.
A América de Lincoln
Hoje, os Estados Unidos da
América se estendem do oceano Atlântico, a leste, ao Pacífico, a oeste. Com
mais de 240 milhões de habitantes, é o terceiro maior país do mundo.
No tempo de Abraham Lincoln, era
muito diferente. No início de 1800, pouco antes de Lincoln nascer, a população
não ultrapassava 5 milhões de habitantes. As pessoas que se rebelaram contra os
estatutos da Inglaterra e formaram a própria nação viviam no Leste, em treze
colônias fundadas por europeus.
Gradualmente, a crescente
população dos Estados Unidos expandiu-se em direção a oeste, além da fronteira
do território desses treze Estados. À medida que um novo território recebia
colonizadores em número suficiente para configurar uma comunidade organizada,
era reconhecido como Estado. Os próprios Lincoln tomaram parte dessa corrida
para o Oeste. Saíram da Virgínia para tentar a sorte no "inexplorado e
sangrento chão” do Kentucky, arduamente defendido pelos povos indígenas que lá
viviam. A mudança não trouxe sorte para o avô de Abraham, morto pelos nativos.
O Norte e o Sul
Mesmo quando eram colônias, os
treze Estados tinham características bem diferentes. E, como as fronteiras dos
Estados Unidos deslocaram-se para o Oeste, essas diferenças seguiram na bagagem
dos colonizadores e acabaram estabelecendo seu marco principal: o que dividiria
o país entre Estados do Norte e do Sul.
O Sul, com solo rico e clima
quente e úmido, transformou-se na terra das grandes fazendas
("plantations"). Para os sulistas, o modo de vida ideal era o da
elite inglesa: elegante, refinado, sociável, com todo o tempo do mundo para
caçadas ao ar livre. E, dentro de casa, somente música e leitura.
Os nortistas tinham perspectivas
de vida diferentes. Eram responsáveis, acreditavam no trabalho pesado,
educação, democracia e igualdade. Havia sido a colônia de Massachusetts, ao
norte, que, por volta de 1770, liderara a rebelião contra a Inglaterra.
Mercado, máquinas e algodão
Uma vez independente, o novo país
necessitava muito de mercadorias que pudesse exportar para a Europa. Não
demorou muito para se encontrar esse produto: era o algodão. O algodão cru é o
branco e macio revestimento de uma semente. Uma planta que cresce e produz com
fartura em climas quentes. Os Estados do norte dos EUA eram muito frios e secos
e, portanto, impróprios para essa lavoura. Mas, nos campos do Sul, o algodão
crescia como erva daninha. Do outro lado do Atlântico, o mercado estava
impaciente para comprar o tecido barato e durável que podia ser fabricado a
partir dessa "erva daninha".
A Europa tinha o mercado. E tinha
também os meios de produção: as máquinas recém-inventadas, vibrando nas
fábricas que estavam sendo instaladas em todos os lugares. A Europa, de fato,
promovia uma extraordinária transformação social com o advento da Revolução
Industrial.
Nos Estados Unidos, o Sul era
rápido para descobrir as oportunidades. Já havia, uma vez, ganho muito dinheiro
com tabaco e arroz. Em meados dos anos 1790, os sulistas substituíram essas
culturas pela do algodão. Os negócios explodiram, derramando dinheiro também
nos Estados do Norte.
Como a Inglaterra, berço da
Revolução Industrial, o norte dos Estados Unidos transformava-se num opulento
país industrializado, com fábricas, bancos e firmas comerciais. A produção das
fábricas incluía os tecidos de algodão e as próprias máquinas para produzi-los.
Os bancos emprestavam dinheiro
aos produtores de algodão do Sul. As empresas comerciais controlavam os
negócios entre o Sul e seu vasto mercado estrangeiro. O “reino do algodão"
do Sul trouxe prosperidade e crescimento para todos.
Para todos os que eram livres.
Tratados como animais
Os fundadores dos Estados Unidos
haviam consagrado seu país à idéia de igualdade para todas as pessoas. Mas,
antes de Lincoln entrar para o Congresso, o país se transformara em uma nação
onde 3 milhões de pessoas eram legalmente tratadas como animais.
Eram os escravos negros:
africanos e descendentes de africanos, vendidos para serem atirados à
escravidão no Novo Mundo.
Esse comércio transatlântico de
seres humanos era mais antigo que o “Reino do Algodão". Tão antigo quanto
os Estados Unidos. Nas treze colônias, começou a ser praticado no início de
1600. Por mais de duzentos anos, os mercadores estiveram arrancando os
africanos de suas casas e famílias, atirando-os em um inferno difícil de
descrever e quase impossível de suportar.
Dos milhões de escravos que eram
transportados em navios mercantes, da costa da África para o Oeste, um número
espantoso não sobrevivia nem mesmo à viagem.
O tormento começava logo que
entravam no fétido e sufocante cargueiro.
Se o escravo fosse homem, não
sairia mais ao ar livre nem veria o céu até alcançar a América, três meses
depois. Se ele chegasse à América!
Cada escravo adulto era
comprimido num espaço de 75 centímetros de altura, 38 de largura e menos de 2
metros de comprimento. As crianças tinham bem menos. Às mulheres e crianças
normalmente era permitido subir ao convés durante o dia. Mas os homens, depois
de empilhados, eram obrigados a ficar onde estavam - em espaços delimitados,
apertados como caixões. Lá, eles comiam, vomitavam, evacuavam, contorciam-se
com febre e caminhavam para uma triste morte, se o destino fosse
misericordioso...
Homens e mulheres ansiavam pela
morte. Quando tinham chance, muitas vezes atiravam-se desesperadamente ao mar.
Mas a maioria deles acabava por encontrar a morte na infecta escuridão,
deitados e acorrentados.
Algumas vidas começavam ali,
também. Um médico de navio viu, horrorizado, nascer um bebê escravo enquanto a
mãe ainda estava acorrentada a um cadáver que o feitor, bêbado, esquecera de
remover.
Um capitão de navio negreiro previa
perder um oitavo de sua carga na viagem para a América. No entanto, essa era,
normalmente, uma baixa estimativa. Os navios chegavam ao Novo Mundo com dois
terços de sua carga original. Ou com a metade, e até menos.
Os mortos e os loucos eram postos
de lado, dispensados como todos os objetos que a tripulação considerava
imprestáveis. Tubarões seguiam o navio por toda a rota, através do Atlântico.
Tanto nos Estados Unidos quanto
na Inglaterra, os traficantes de escravos haviam enriquecido com esse horrendo
comércio. Nos primeiros anos do século 19, tiveram êxito as reformas britânicas
destinadas a impedir que sua frota mercante praticasse esse comércio. Os
Estados Unidos seguiram o exemplo da Inglaterra. Mas, longe de prejudicar os
lucros dos escravagistas americanos, a proibição, na verdade, aumentou o
comércio. Porque, nessa época, o algodão havia mudado tudo.
Sem os escravos poderia não haver
colheita de algodão, riqueza para os plantadores do Sul, expansão do comércio
exterior com a Inglaterra e o resto do mundo. Colheita, fartura e comércio
dependiam do trabalho dos escravos: plantando, capinando e colhendo.
A lei, agora, dizia que essas
vítimas do “Rei Algodão" não poderiam mais ser importadas. Mas não fazia
diferença para os mercadores. Eles riam da lei e se vangloriavam do aumento do
preço que seus carregamentos poderiam ter. Na época em que Abraham Lincoln chegou ao Congresso, os
escravos saudáveis eram vendidos a 2.500 dólares cada um, e os mercadores
enriqueciam mais e mais, a cada viagem.
Ilegal, rápido e sem escrúpulos
diante dos lucros, o abominável comércio persistia.
Trabalho de sol a sol
O tempo de colheita do algodão
era longo, muito longo. E os escravos trabalhavam de sol a sol. Recebiam ordem
para começar o trabalho, parar para comer, começar outra vez e somente
descansar à noite. Quando não cumpriam rigorosamente as ordens, eram
selvagemente chicoteados.
Apesar de enriquecer seus donos,
os escravos trabalhavam nas plantações de algodão sem jamais conseguir nada
para seu próprio proveito. Era a lei. Eles não podiam ser pagos. Para muitos
sulistas, os negros não eram pessoas a quem se dá empregos, mas sim animais
para serem manejados. Eram tratados tão bem quanto os outros rebanhos da
fazenda - ou um pouquinho pior.
A alimentação era razoavelmente
boa: carne de porco e farinha de milho; sem isso, poderiam produzir pouco. As
roupas, de tecido fino e frágil. Usavam sapatos velhos, puídos e, mesmo assim,
somente no inverno. Quanto à moradia, os cavalos de corrida dos fazendeiros viviam mais bem
protegidos, pois tinham, no mínimo, estábulos limpos e secos, equipados com
cocheira e manjedoura. A maioria dos escravos vivia em pequenas cabanas, sem
janelas, cheias de buracos, por onde o vento entrava zunindo. Somente alguns
tinham a sorte de viver em cabanas com móveis para sentar, dormir e cozinhar. A
maioria dormia como o gado, no chão, sobre a palha.
O poder dos donos
Os donos de escravos faziam tudo
o que podiam para mantê-los em seu poder para sempre. Os escravos não podiam
comprar nada - nem vender. A eles não era permitido aprender a ler ou escrever.
Não podiam se casar nem testemunhar em juízo. Como medida de proteção para si
mesmos, não podiam, jamais, ferir uma pessoa branca. Acima de tudo, não podiam
sair da terra dos patrões sem permissão. Como a terra, eles faziam parte da
propriedade; portanto, se fugissem, estariam roubando o patrão. A punição para
esses casos era, no mínimo, o chicote. Teoricamente aos donos não era permitido
matar seus escravos. Na prática, a lei fechava os olhos. Escravos eram
chicoteados, espancados e queimados - até a morte.
Leiloados como objetos
Comprar ou vender mercadorias não
era permitido aos escravos. Mas, como patrimônio de alguém, podiam ser vendidos
ou comprados, o que acontecia diariamente, nos armazéns e casas de leilão em
todo o sul do país, como se fossem panelas, vasos ou móveis. Quando um
proprietário estivesse com pouco dinheiro, poderia resolver o problema vendendo
alguns escravos. Se morresse falido, seus herdeiros poderiam fazer dinheiro
vendendo a força de trabalho escrava. Serviam, ainda, a outro fim: eram usados
em lugar do dinheiro por jogadores que apostavam um ser humano numa rodada de
cartas ou num lançamento de dados.
Se um jogo de móveis vai a
leilão, normalmente as peças são arrematadas separadamente. O mesmo acontecia
com as famílias de escravos quando, engordados e limpos para a venda, subiam à
plataforma do leiloeiro. Mesmo impedidos de casar, eles se amavam e tinham flhos.
Os donos não se importavam. Na verdade, ficavam encantados, pois muitos viam a
mulher negra da mesma forma que suas éguas e porcas: máquinas de procriação
para aumentar o patrimônio a cada nove meses. As escravas que porventura
conseguissem sobreviver a dez partos eram, em alguns casos, agraciadas com a
liberdade.
As lembranças de Rose Williams
Uma boa reprodutora estava salva
de ser vendida - mas não a criança. Apesar de milhares de negros viverem em
condições parecidas às de um campo de concentração, eles tentavam formar uma
família normal.
Por mais que quisessem, e por
mais que se amassem, não conseguiam escapar do terrível medo que pairava sobre
eles. Se o proprietário decidisse vendê-los para diferentes compradores,
corriam o risco de nunca mais se encontrarem.
Não faz muito tempo, Rose
Williams, uma mulher negra já com 90 anos de idade, recordava como havia
passado por esse pesadelo. Ela era apenas uma menina quando seu pai foi
arrematado em um leilão por um fazendeiro chamado Hawkins. Rose esperava sua
vez, comprimida no pequeno palanque, observada pelos interessados. Após uma
agitada disputa de lances, Hawkins também comprou a mãe da menina. Chegou a vez
de Rose.
Quatrocentos dólares... 425... e
450. Para a criança, as pessoas que decidiam seu destino eram apenas vozes:
vozes de homens brancos, vindas da multidão que a rodeava, examinando-a
fixamente.
Os lances aumentavam e as vozes
agora se resumiam a apenas duas.
“Então, as lágrimas correram por
minhas faces", recordou Rose, “porque eu estava sendo vendida para algum
homem que me separaria de minha mãe. Alguém ofereceu 500 dólares e o leiloeiro
perguntou: 'Eu ouvi mais? Ela vai ser levada por 500'."
Quinhentos dólares: um quinto do
que normalmente alcançava no mercado um escravo adulto, mas, ainda assim, um
bom dinheiro. E veio outra oferta: 25 dólares a mais.
Bang! O leiloeiro desceu o
martelo. Trêmula, incrédula e feliz, Rose ouviu que havia sido vendida para o
mesmo fazendeiro, Hawkins. A pequena família estava salva novamente... por enquanto.
Alguns escravos foram libertados
por seus proprietários. Apenas alguns. A maioria deles sabia que havia apenas
dois caminhos, além daquela vida de horrores. Um deles era a morte; o suicídio
ocorria com freqüência entre os escravos. O outro, a fuga para o Norte: o
industrializado e democrático Norte, onde a escravidão fora condenada há muitos
anos.
Os nortistas não permitiam
escravos em suas terras, mas não tinham opinião formada sobre o assunto. Os
sentimentos eram confusos. Não questionavam os direitos dos sulistas de
dirigirem seus Estados como bem entendessem. Muitos sentiam-se menos à vontade com
os negros que os próprios sulistas. Suportavam a idéia da abolição, mas não
gostavam de imaginar negros vivendo lado a lado com os brancos.
Ao mesmo tempo, havia nortistas
que se opunham sinceramente à escravidão, e era crescente o número deles. O
novo sentimento de compaixão se ampliava pelo Oeste. As pessoas começavam a
reagir contra a ríspida realidade da Revolução Industrial. Descobriam o quanto
a vida era implacável para todos – menos para os ricos. E exigiam reformas.
No norte dos Estados Unidos, muitos
desses reformistas eram abolicionistas, entregues por inteiro à causa da
abolição da escravatura em todo o país. Argumentavam que a fraternidade dos
homens era pregada pela Declaração da Independência e pelo cristianismo. A
escravidão contradizia esse preceito.
Isso dividia o país cujo nome -
EUA, ou simplesmente a União - carregava em si a mensagem da unidade. Além do
mais, a escravidão era um modo grosseiramente ineficiente de produzir riquezas.
Ameaça no Sul
Os sulistas não se deixaram
abater por esses ataques. Eles não poderiam produzir sem os escravos, pois
dependiam deles para tudo. Sem eles, a riqueza do Sul poderia se escoar da
noite para o dia.
Quem cultivaria os campos de
algodão, colheria a preciosa safra, consertaria carroças e cercas? Quem
ferraria as patas dos cavalos, cuidaria das crianças? E a roupa costurada e
limpa, a comida pronta? Quem entregaria as mensagens? Acima de tudo, a presença
dos escravos mostrava quanto dinheiro seus donos possuíam.
Sem eles, a vida dos brancos
cairia aos pedaços, completamente. Não era essa perspectiva do futuro sem o
trabalho escravo que preocupava os mais inteligentes. A ameaça real, esta sim,
vinha das constantes mudanças na geopolítica dos Estados Unidos.
Todos os Estados da União
mantinham o direito de resolver seus problemas como bem entendessem, inclusive
no que se referia à escravidão. Mas havia uma exceção nessas regras básicas.
Se, por acaso, três quartos dos Estados se unissem para tornar ilegal a
escravidão, os outros seriam obrigados a acatar a decisão. Enquanto o número de
Estados livres e escravistas fosse exatamente igual, o Sul estaria salvo. Mas,
se os números mudassem, essa segurança acabaria. E os números já começavam a
mudar, à medida que o século 19 avançava. Cada mudança abria mais o caminho que
poderia levar a União a um ponto sem retorno e daí à guerra inevitável. Como de
fato aconteceu.
Compromisso de Missourí
Em 1820, uma lei chamada
Compromisso de Missouri deu ao Norte e ao Sul uma total igualdade de doze
Estados para cada lado. Desde então, segundo o Compromisso, a escravidão seria
proibida em qualquer novo Estado formado ao norte da fronteira sul do Missouri.
Cada um dos dois lados pensava
haver levado vantagem com o acordo. O Sul jogara com sucesso o jogo dos números
para manter seu estilo de vida. O Norte, por sua vez, acreditava ter
interrompido a expansão da escravidão para sempre.
Mas os legisladores não levaram
em conta as surpresas que surgiram ininterruptamente na década de 1830
proporcionadas pelos texanos, subitamente rebelados contra seus governantes -
os mexicanos. Eles acabariam constituindo uma república independente,
escravista, e pediam para ser admitidos como membros dos Estados Unidos.
A vez da Califórnia
Os problemas políticos entre o
Norte e o Sul começaram a emergir. Os rebeldes texanos foram, finalmente,
integrados à União. A Flórida também era um Estado escravista, como vários
Estados do Norte. O jogo dos números fugia ao controle muito rapidamente.
Em 1850 foi a vez da Califórnia
integrar-se à União e entrar no jogo. Sua posição geográfica a levaria a ficar
com um pé em cada lado da linha do antigo Compromisso de Missouri. Norte e Sul
discutiram acaloradamente, até surgir um novo acordo que agradasse aos dois
lados. A Califórnia seria um Estado livre e uma nova e rigorosa lei poderia ser
aprovada, forçando o retorno dos escravos que haviam fugido para o Norte.
Os abolicionistas estavam
amedrontados e prometeram a si mesmos vencer o desafio. Mas o acordo de 1850
alertara também o Sul para os problemas. Quatro dos Estados escravistas
começaram a sugerir um último e dramático remédio: antes que a União destruísse
sua forma de vida, eles a deixariam, em conjunto.
Refletiram, conversaram, e a
idéia de secessão ficou de lado... por uns tempos.
Tio Tom
Se a situação entre as duas
metades dos Estados Unidos estava difícil em 1850, logo se tornaria pior. Em
1852, foi lançado um livro que atingiria o coração do mundo ocidental: A Cabana do Pai Tomás (UncIe Tom's Cabin), de Harriet Beecher
Stowe, que retratava a escravidão sob o ponto de vista dos escravos: o terror,
a brutalidade, o desespero. Vendeu milhões de exemplares.
Poucos foram aqueles que não se
sensibilizaram com a mensagem. Nos Estados livres, as vozes se levantavam, num
coro ensurdecedor, pedindo a abolição.
Kansas-Nebraska
Em 1854, outra mudança nas
fronteiras dos Estados Unidos provocou nova crise. Antes de se tornar Estado,
uma região colonizada recebia o status de “território". Nesse ano, dois
novos territórios foram estabelecidos no Oeste: Kansas e Nebraska.
A escravidão seria permitida? Os
escravos seriam libertados? Ou os novos territórios poderiam escolher o que
melhor lhes conviesse?
No final, para fúria de muitos
nortistas, os Estados Unidos escolheram a terceira opção. A decisão dos
legisladores revogou o antigo Compromisso de Missouri para sempre e deu sinais
de que a escravidão poderia se expandir para onde os fazendeiros brancos
quisessem.
Lincoln e a escravidão
Abraham Lincoln, um legislador do
Norte, abraçava com força e interesse todas as lutas. Sua visão sobre a
situação dos escravos era semelhante à de outros legisladores modernos do
Norte. Ele abominava a escravidão e tudo o que a cercava. Odiava ver como a
questão estava dividindo seu país, seu querido e democrático país. Abraham
Lincoln tinha certeza de que um dia a escravidão desapareceria naturalmente,
quando os agricultores de algodão esgotassem o solo. Mas, se fosse permitida
além das regiões de cultivo do algodão, seu fim poderia nunca chegar.
Ao mesmo tempo, ele não era um
abolicionista. A moderação representava a principal característica de sua
personalidade. Essa moderação não significava fraqueza e ignorância, mas era
fruto de anos difíceis, de reflexão e do auto-aprendizado que, pacientemente,
vinha acumulando desde a infância. Além disso, como sua madrasta dizia sempre,
ele havia sido um garoto de bom coração. A bondade ainda estava viva, mas, com
a maturidade, adquirira outra dimensão.
Lincoln era um homem bom. Não
exatamente com o coração, mas com a cabeça. Além de respeitar a lei, respeitava
as pessoas: os diferentes pontos de vista, os sonhos, as esperanças e o direito
à individualidade, o modo próprio de cada um ser e não "o que" ou
"quem” alguém gostaria que fosse. Respeitava o direito dos antigos Estados
escravistas de administrar seus problemas como quisessem, desde que autorizados
pela lei dos Estados Unidos. Ele dizia que, em um país livre, o povo deve ser
livre até para ter escravos - se fosse o que a lei permitisse.
“Um dever supremo"
Era um ponto de vista complicado,
baseado mais na razão que na emoção, e Lincoln tinha consciência
dessa,contradição. Ele revelou seus sentimentos e opiniões em uma carta a um
amigo, em 1845, ano em que o Texas ingressou na União.
“Eu sustento isso",
escreveu, "por ser um dever supremo para nós dos Estados livres, uma
dívida com a União dos Estados e talvez para a própria liberdade (por paradoxal
que possa parecer) não interferir na escravidão dos outros Estados. Por outro
lado, eu sustento isso por ser igualmente claro que nós não deveremos nunca,
conscientemente, nos prestar, direta ou indiretamente, a impedir a morte
natural da escravidão... (Não podemos) encontrar novos lugares para ela
continuar a existir, quando ela pode, em breve, ser uma coisa do passado."
Breve afastamento
Na época em que o caso
Kansas-Nebraska levou os ânimos ao ponto culminante, Lincoln estava vivendo
outra vez em Springfield, Illinois, exercendo a função de advogado. Para seu
desapontamento, seu mandato no Congresso não o lançara no cenário da política
nacional, longe disso. Ele era inteligente, ambicioso, político hábil e orador
público de primeira ordem. E, ainda assim, por alguma razão, o Lincoln
congressista não fora bem-sucedido.
Talvez seu desempenho não tivesse
sido bom. Com seu raciocínio frio e respeito pela verdade, talvez tivesse uma
tendência a apoiar questões impopulares. Ou talvez estivesse apenas sem sorte.
Contudo, quando, em 1849, chegou a hora de ser reconduzido ao Congresso, os
eleitores se voltaram para outro lado e escolheram outra pessoa. Resignadamente
ele voltou a trabalhar como advogado.
Lincoln não sabia disso, mas seu
afastamento forçado da política não duraria por muito tempo. Cerca de dez anos
depois, ele retornaria a Washington como o homem mais importante dos Estados
Unidos.
Líderes para um novo partido
O incidente de Kansas-Nebraska
mudou a sorte de Lincoln, decisivamente. Até então, os nortistas que se opunham
à escravidão estavam divididos em vários campos políticos. Eles se deram conta
de que deveriam começar a trabalhar em harmonia. Rapidamente, formaram um
partido novo, o Republicano, com dois objetivos principais: um deles, manter a
escravidão limitada às propriedades dos velhos Estados escravistas; o outro,
impedir que a União se desintegrasse.
O novo partido precisava de
líderes, mas era difícil encontrar as pessoas certas. Obviamente, eles deveriam
ser bons políticos, homens com autoridade, homens que falassem bem e
convencessem multidões. Mas eles deveriam ser de certo modo diferentes. Melhor:
respeitáveis. O abolicionista típico, muitos nortistas pensavam, tinha um
caráter tempestuoso, explosivo, poderia dizer ou fazer qualquer coisa para
sustentar seus propósitos. Os republicanos queriam alguém que exalasse bom
senso e moderação. Alguém como Abraham Lincoln.
Uma casa dividida
Lincoln se filiou ao Partido
Republicano em 1856 e rapidamente fez seu nome dentro dele. Nos anos seguintes,
o homem dos republicanos refez seu caminho na política: discursando, debatendo,
disputando eleições. O partido reconheceu então que havia encontrado a pessoa
certa, um quase desconhecido que se revelou um dos mais brilhantes oradores de
todo o país.
Por todo lllinois, milhares de
pessoas apareciam para ouvi-lo debater a escravidão com seu rival político,
Stephen A. Douglas, do Partido Democrático, o homem que conseguira aprovar a
lei de Kansas-Nebraska. O experiente Douglas, também um brilhante orador, sabia
que havia encontrado um adversário à altura.
Milhares de outras pessoas, lendo
os jornais pela manhã, vibraram com as emocionantes palavras de Lincoln,
endereçadas à Convenção Republicana de l858. Em linguagem que uma criança
poderia entender, ele citou primeiro a Bíblia: "Uma casa dividida contra
si mesma não pode resistir".
Então, usando suas próprias
palavras, ele continuou: “Eu acredito que este governo não pode resistir,
permanentemente, metade escravo, metade livre”.
“Eu não espero que a União se
dissolva, não espero que a casa desabe - mas que não seja mais tão dividida.
Ela se tornará inteiramente uma coisa ou inteiramente outra.
“Ou os opositores da escravidão
impedirão que eIa se expanda... ou seus defensores a empurrarão para a frente,
até se tornar legal em todos os Estados, antigos e novos, tanto no Norte quanto
no Sul."
O presidente Abraham Lincoln
Dois anos depois, chegou a vez da
população do Leste se deslumbrar com o homem esbelto, de cabelos revoltos,
olhar e voz firmes. No Instituto Cooper de Nova York, uma compacta audiência
vibrou quando ele declarou que os republicanos acreditavam em sua causa.
Lincoln disse a seus ouvintes que
o Sul queria que o Norte parasse de considerar a escravidão um erro. “Eles
acham que estão certos e que nós estamos errados. Este é exatamente o ponto de
nossa controvérsia (...) E, se achamos que a escravidão é um erro, como
poderemos nos render a eles? Poderemos depositar nossos votos no ponto de vista
deles e nos posicionar contra os nossos?"
Os sofisticados nova-iorquinos
ficaram de pé e aplaudiram ruidosamente quando ele finalizou: “Vamos acreditar
que a razão faz a força, e, acreditando nisso, vamos, até o fim, ousar cumprir
nosso dever como nós o entendemos".
Em maio de 1860, os republicanos
se encontraram para escolher o candidato do partido ao mais elevado de todos os
cargos políticos: o de presidente da República. Lincoln venceu. E, no dia 6 de
novembro daquele ano, ele venceria outra vez. Com os votos de todos -menos um -
os Estados do Norte, Abraham Lincoln foi eleito o décimo sexto presidente dos
Estados Unidos da América do Norte.
Foi uma vitória da moderação, da
humildade, da razão e do bom senso. Uma vitória que conduziria os Estados
Unidos diretamente para a guerra.
O Sul se liberta
Um republicano na Casa Branca!
Para os Estados escravistas, era o fim. Durante toda a década de 1850, eles
viram seu modo de vida e sua cultura sujeitos a ameaças cada vez mais fortes.
E, agora, lá estava um republicano encarregado de conduzir todo o país!
Só restava uma coisa a fazer:
deixar a União, declarar independência, sair enquanto a vida e a subsistência
ainda estavam intactas. Sair... já!
Em 2O de dezembro de 1860, antes
de Lincoln se mudar para Washington, o Estado da Carolina do Norte se declarou
independente - não mais fazia parte dos Estados Unidos e não mais se
subordinaria às leis da União. Antes de março de 1861, quando o novo presidente
faria o juramento, seis outros Estados fizeram o mesmo: Mississípi, Flórida,
Geórgia, Alabama, Louisiana e Texas. Formaram uma nação rival: os Estados
Confederados da América. Nessa nova nação, alguns homens, mulheres e crianças
eram iguais: os brancos.
“Uma casa dividida contra si
mesma..." De sua elevada e solitária nova posição, Lincoln contemplou esse
acontecimento com temor.
Governo para o povo e pelo povo
Durante toda sua vida, desde o
tempo em que teve pela primeira vez um livro nas mãos, Lincoln foi um
apaixonado pela concepção de Estados Unidos: uma forte união de repúblicas,
conduzida não por reis e lordes, mas por pessoas comuns, como ele próprio. O
garoto do campo, nascido em uma cabana de madeira, era agora o presidente da
nação.
Para um cidadão dos Estados
Unidos, todas as coisas seriam possíveis. Origem inferior, pobreza e passado
humilde não eram empecilhos para o sucesso. Para os Estados Unidos, o que
importava era trabalhar arduamente, ter muita energia e bom coração. O Sul
ainda possuía um sistema social em que a origem da pessoa e sua formação eram
de vital importância. Mas, um dia, essa condição desapareceria junto com o
sistema de produção agrícola que a mantinha viva.
Agora, de qualquer modo, o
sistema todo estava se desintegrando diante de seus olhos. Um país governado
por pessoas comuns estava sendo afundado... por pessoas comuns. Isso
significava que a concepção de governo do povo poderia não funcionar?
Lincoln não acreditava nisso. Não
podia acreditar. A União haveria de ser salva, e os Estados independentes,
trazidos de volta. Pela força, se necessário. Eles eram agora rebeldes, e a
maneira de acabar com a rebelião era esmagá-la. Se os rebeldes queriam a
guerra, eles teriam a guerra.
No dia 12 de abril de 1861, as
tropas confederadas começaram a bombardear um posto do Exército da União, o
forte Sumter, em Charleston Harbor, Carolina do Sul. Depois de dois dias, as
tropas da União se deram por vencidas.
A Guerra Civil Americana havia
começado.
A Guerra entre os Estados
Se os americanos soubessem o que
estavam preparando para eles mesmos, até o mais teimoso deles pensaria duas
vezes. A Guerra de Secessão - como era também chamada - envolveria a nação na
mais sangrenta e terrível hostilidade que o mundo ocidental conhecera até
então. Não era só o que os dois lados acabavam de fazer um com o outro. A
agressão já fora ruim o suficiente A escalada da guerra, porém, é que seria
algo terrível: meio milhão de mortos e outro tanto de feridos. Para uma guerra
travada sem aviões nem armamentos modernos, esses números são verdadeiramente
horripilantes.
Através do rio Potomac
O lado confederado consistia de
onze estados. Aos sete primeiros haviam se juntado outros quatro: Arkansas,
Virgínia, Carolina do Norte e Tennessee. A União contava com todos os Estados
livres do Leste e Oeste, do Maine à Califórnia.
Surpreendentemente também se uniu
a ela um pequeno número de Estados escravistas: Delaware, Maryland, Kentucky e
Missouri. Parte da Virgínía - que formou o Estado da Virgínía Ocidental -
também se integraria à União. A maioria dos Estados escravistas leais ficava na
divisa entre os dois lados em guerra. Obviamente, mantê-los leais era de
crucial importância para a União.
Washingtom, a capital da União e
quartel general de Lincoln, também ficava na fronteira. Das janelas de sua
sala, ele podia observar diretamente o território rebelde, do outro lado do rio
Potomac.
A União superava em número a
Confederação, e suas modernas indústrias estavam bem equipadas para manter a guerra
em curso. Mas, antes de mais nada, o Sul contava com duas vantagens que o Norte
não podia ainda rivalizar: audácia e generais brilhantes. O mais competente e
brilhante de todos era o virginiano Robert E. Lee, um homem de destacado
talento e grande integridade, como Lincoln.
Em contraste, Lincoln teve que
carregar nas costas, por longo tempo, generais tímidos, incompetentes e lentos.
0 resultado pôde ser visto nos campos de batalha: as encostas, de cima a baixo
dos Estados do Leste, transformadas em um cenário repelente de corpos e sangue.
Vitórias e derrotas
A primeira grande batalha, em
Bull Run, Virgínia, em 21 de julho de 1861, terminou em desastre para o Norte.
Quase em pânico, as tropas da União se dispersaram e fugiram. Ouvindo as
notícias, até o moderado e quieto Lincoln blasfemou selvagemente. E como o ano
de 1862 seguiu o exemplo de 1861, Lincoln teve bons motivos para continuar
blasfemando.
As vitórias do Norte não eram
decisivas; seus avanços, muito precários. E o número de vítimas, assombroso. Em
abril de 1862, por exemplo, os dois lados se encontraram, em dois dias de
batalha, em Shiloh, Tennessee. O Sul finalmente se retirou, mas foi uma amarga
vitória para o Norte. A União teve 13 mil vítimas, e a Confederação, quase o
mesmo.
Durante todo o verão, o general
da União G.B. McClellan dirigiu suas ações contra o leste da Virgínia, tentando
tomar a capital confederada, Richmond. Apesar de ter chegado com facilidade
perto da área inimiga, o general falhou. A União perdeu outros 37 mil homens, e
a Confederação, quase o mesmo tanto.
Em agosto, os dois exércitos
estavam de volta a Bull Run, um pequeno rio cortado peIa estrada de ferro
abaixo de Manassas Junction. A segunda batalha de Bull Run terminou em
espantosa derrota para o Norte - outra retirada precipitada, 14 mil mortos e as
tropas confederadas entrincheiradas a cerca de 30 quilômetros de Washington.
Um mau resultado para a União. Na
verdade, muito mau.
A arma secreta de Lincoln
Pouco antes de as notícias sobre
a segunda batalha de Bull Run atingirem Lincoln, ele guardava dois motivos de
esperança: duas armas secretas que talvez ajudassem a levar aquela pavorosa
matança ao fim.
Uma era um homem: o general
Ulysses S. Grant, extraordinária figura. Ele não gostava de guerra nem do
Exército. Parecia não gostar de nada mais além do cantil. Mas, diferente dos
outros generais, ele lutava como um demônio. Shiloh, com seu resultado
sangrento, fora obra dele. Ele estava, agora, no vale do Mississípi, atacando
os confederados em seu extenso flanco do Sul. Considerando sua grande energia,
ele deveria ter sucesso. Se tivesse, reduziria a Confederação à metade.
A outra arma secreta de Lincoln
era algo bem diferente. Se funcionasse, ela destruiria a Confederação por
dentro, por inteiro. Resolveria também um problema que há muito tempo vinha
atrapalhando a unidade de toda a nação: a escravidão.
Lincoln disse “Não"
Lincoln não era um abolicionista,
mas vários de seus partidários abraçavam a causa. Estavam certos de que, um
dia, Lincoln passaria a pensar como eles. Logo depois do começo da guerra, eles
sentiram que esse dia poderia não estar muito longe. Pediram a Lincoln para
realizar algo que ninguém, em tempo de paz, teria poder para fazer: abolir a
escravidão nos Estados rebeldes.
Lincoln ouviu, concordou com as
argumentações e recusou o pedido. Se abolisse a escravidão, ele, imediatamente,
perderia o apoio dos democratas.
Os rivais políticos dos
republicanos odiavam abolicionistas e também odiavam negros. Mas, por enquanto,
eles estavam dispostos a lutar para salvar a União. Se a escravidão fosse
abolida no Sul, a trégua entre os partidos políticos poderia acabar
imediatamente. 0 Norte se desintegraria e o Sul venceria.
Os abolicionistas foram embora.
Mas voltaram à carga. Outra vez Lincoln disse não. Eles redobraram seus
argumentos e acrescentaram outro: antes da guerra, o mais significativo
comprador de algodão era a Inglaterra. Agora, a Inglaterra poderia reconhecer a
Confederação como um país independente e até vir em socorro do Sul. Seria o fim
de tudo para a União.
Mas os ingleses não aprovavam a
escravidão. E se o Norte se comprometesse a bani-la para sempre?
Começando a dizer “Sim"
Lincoln respondeu “Não",
mais uma vez. O coração, talvez, já estivesse dizendo “Sim". Pessoalmente,
ele concordava com os abolicionistas. Como não concordar, odiando a escravidão
como odiava? Lincoln reverenciava os ideais de igualdade e liberdade da União.
Foi como estadista que ele disse "Não". Mas agora o estadista que
havia nele estava começando a aceitar as propostas dos abolicionistas. Seu
grande objetivo naquela guerra desgastante era salvar sua querida União.
Teria ele a aprovação da
Inglaterra? Acreditava que sim. E, certamente, arruinaria a capacidade de luta
do Sul: sem escravos, o Sul não poderia produzir nada, ganhar nada... fazer
nada.
Mas o que dizer sobre os Estados
aliados da fronteira com o Sul? Esta era a dificuldade real. Em qualquer
hipótese, esses Estados tinham que ficar do lado da União.
Resignadamente, Lincoln somou
esse problema a todos os outros, que já não eram poucos. Problemas como seus
generais ineficientes, seu grupo de conselheiros e políticos desconfiados e
difíceis de comandar.
Problemas como sua esposa.
Pobre Mary
Mary, pobre Mary, era um dos
piores problemas. Ela era, agora, uma mulher de 40 anos e, para Lincoln,
parecia tão bonita como em 1842, quando se casaram. Ela o amava.
Mas isso não impedia que tivessem
terríveis desentendimentos. Eles ainda eram basicamente diferentes: Lincoln, um
homem sóbrio, propenso à tristeza e depressão, enquanto Mary era toda paixão e
excitação. Ela adorava os amigos. Odiava os inimigos. E, quando hostilizada
pelos amigos por seu temperamento inflamável, odiava os amigos também.
Acima de tudo, ela adorava roupas
e móveis finos, e isso acabaria provocando muita confusão.
Ser mulher do presidente não era
trabalho fácil, porém menor que todos os outros. Mary, além do mais, era
sulista. Seus irmãos lutavam no lado rebelde e, para a alta sociedade de
Washington, ela representava pouco menos que uma rebelde. Para chocar seus
críticos, Mary decidiu fazer da Casa Branca a mais elegante e bem mobiliada
residência da capital.
Ela havia reservado 20 mil
dólares para esse fim. Mas gastou muito mais que isso. Quando Lincoln
descobriu, ficou pasmado. Muito dinheiro gasto em babados, enfeites e cortinas:
dinheiro em excesso, gasto enquanto a nação lutava pela vida. Tudo se ajeitava
no final, mas o temperamento caprichoso de Mary não melhorava.
Willie e Tad
Em última instância, eles tinham
filhos para mantê-los juntos. Robert, o mais velho, estava agora quase homem
feito e o pequeno Eddie morrera, muito tempo atrás. Mas Willie e Tad, com 11 e
8 anos de idade, ainda estavam descobrindo o mundo, bem-humorados e travessos.
Os pais os adoravam, mas eles faziam o
staff da Casa Branca estremecer.
Nada ficava a salvo: nem a
campainha da Casa Branca, que Tad tocava com insistência, nem os morangos para
os banquetes oficiais, que Tad comia sem avisar ninguém, nem os lençóis,
amarrotados pela cabra de Tad, alojada em sua cama. Tad, abreviatura de
“Tadpole", normalmente liderava as travessuras, mas Willie era quase tão
criativo quanto ele. E os jogos e risadas continuaram sem parar - até um
terrível dia de fevereiro de 1862, quando os dois meninos caíram doentes, com
febre.
Tad se recuperou. Mas Willie
morreu. Tendo ficado apenas com o filho mais velho e o mais novo, Mary se
afundou em um desgosto tão intenso que, durante três meses, não saiu do quarto.
O presidente foi atingido no
coração. Mas, obstinadamente, continuou a lutar por seu objetivo: vencer a
guerra.
Sobre o poder da guerra
Como tentativa, Lincoln esboçou
planos para abolir a escravidão, lentamente, com a aprovação dos Estados da
fronteira. Mas, quando solicitados, estes não deram nenhum sinal de apoio.
Lincoln debateu consigo mesmo
outra vez. Muito bem. Então, a abolição deveria ser imposta da maneira mais
dura. Não havendo consenso, ele a decretaria apoiado no extraordinário poder
que a guerra lhe dava. Em julho de 1862, ele fez sua própria cabeça.
Era preciso acabar com a guerra.
E Lincoln precisava dos escravos - não mais escravos, mas pessoas livres,
prontas e dispostas a apoiar o Norte e, talvez, até lutar por ele. A liberdade
dessas pessoas repousava nas mãos do presidente. Era chegada a hora de elas a
receberem.
Como comandante-em-chefe da
nação, ele proclamaria a emancipação dos escravos.
Esperando a vitória
Quando anunciou seu plano aos
atônitos conselheiros, eles, a princípio, pediram-lhe que aguardasse. Era
polêmico demais e perigoso - além do que não era a hora certa para isso. Se o
Norte tivesse conseguido algumas grandes vitórias, as coisas poderiam ser
diferentes. Mas, como estavam agora, os planos do presidente pareciam uma
tentativa mal-acabada para instigar a rebelião dos escravos. A contragosto,
Lincoln concordou. Ele teria que esperar pela notícia de uma vitória da União -
se ela um dia chegasse.
O que chegou, em 31 de agosto de
1862, foram as notícias da segunda batalha de Bull Run.
Poucos dias depois, em 5 de
setembro, o general Lee invadiu o Estado escravista de Maryland, um dos Estados
fronteiriços leais à União. O inimigo estava agora em solo nortista, movendo-se
para além da capital da União, na direção norte.
Grant, o melhor general de
Lincoln, ainda estava lá embaixo, no Mississípi. Em desespero, Lincoln
voltou-se para o indeciso McClellan e o despachou para fazer o melhor que
pudesse.
O pacto do presidente
Então, no silêncio de sua sala, o
presidente selou um pacto com Deus - ou, talvez, com o destino. Ele era,
normalmente, um homem religioso. Mas os tempos eram outros, agora. Lincoln
disse a si mesmo: se McClellan batesse os sulistas, tomaria isso como um sinal.
Seria o aviso de que sua decisão de libertar os escravos estava certa.
Se McClellan vencesse, Lincoln
iria em frente e decretaria a emancipação.
Em 17 de setembro, o general da
União encontrou as forças do Sul em um riacho chamado Antietam Creek. Depois de
uma batalha encarniçada, McClellan venceu. Como sempre, as baixas foram
gigantescas: 12 mil mortos, somente no lado da União. E, como sempre, McClellan
desperdiçou sua vantagem ao não manter o inimigo sob ataque: mesmo arrebentados
como estavam, os sulistas manobraram para fugir de volta para a Virgínia
Mas foi o suficiente. Uma
vitória. Em 23 de setembro, Lincoln publicou uma proclamação preliminar de
emancipação. Prometia liberdade a todos os escravos dos Estados rebeldes, se os
rebeldes não fizessem a paz até o primeiro dia de janeiro de 1863.
Ano-novo, 1863
Eles não a fizeram. Quando o 1º
de janeiro chegou, as duas Américas ainda estavam envolvidas em combates
homicidas. Então, com os dedos trêmulos, Abraham Lincoln assinou o papel que
aboliu a escravidão no Texas, Arkansas, Mississípi, Alabama, Flórida, Geórgia,
nas Carolinas, Virgínia e Louisiana.
As exceções eram áreas que já
haviam sido retomadas pela União, como a Virgínia Ocidental. Os Estados
escravistas da fronteira estavam desobrigados também. Tornara-se mais vital que
nunca a lealdade desses Estados à União. Chegaria a hora de tomar uma decisão sobre
eles, mais tarde. Se o Norte vencesse.
A fotografia acima - um soldado ferido sendo atendido por um companheiro - mostra um quadro muito mais preciso da vida na frente de batalha. |
Uma guerra em dois fronts
A importante decisão poderia ter
feito Lincoln perder a guerra. Resultou na perda significativa de apoio
popular. Em outubro de 1862, os democratas apearam os republicanos do poder,
Estado após Estado, nas eleições realizadas logo depois da proclamação
preliminar: os eleitores contrários à abolição e especialmente temerosos de que
os negros libertados pudessem “invadir" o Norte, para se fixar e trabalhar
entre os brancos, deram a vitória aos democratas.
Eles tinham se unido aos esforços
de guerra, conforme diziam, para salvar a União, não para acabar com a
escravidão. Muito em breve, seus protestos se transformariam em uma barulhenta
campanha exigindo que parassem a guerra.
Lincoln estava, agora, numa
guerra de duas frentes: no Sul e em casa, no Norte. E, no campo de batalha, ele
e a União estavam derrotados depois do terrível golpe.
“Meu Deus, meu Deus"
Dezembro foi o mês de
Fredericksburg, na Virgínia, onde 12 mil soldados da União foram exterminados
quando tentavam atravessar um rio. Janeiro de 1863 foi o mês da "Mud
March" (Marcha da Lama). Os 130 mil homens do Exército da União tentaram
atravessar o mesmo rio e atolaram na lama pegajosa e sufocante produzida pelas
chuvas de inverno.
E maio foi o mês de
Chancellorsville, também na Virgínia, perto do mesmo rio, onde a União perdeu
outros 17 mil homens.
Apesar de calejado pelos
desastres, Lincoln empalideceu ao ouvir as notícias de sua última derrota. “Meu
Deus, meu Deus", ele murmurava, andando freneticamente de um lado para o
outro de sua sala. 'O que o país vai dizer? O que o país vai dizer?"
No começo de março de 1863, o
Norte e seu presidente atingiram o fundo do poço. Foi a hora da escuridão.
Gettysburg
Finalmente, boas notícias
começaram a chegar pelo fim do mês, vindas do tenaz Grant. Como um terrier de
dentes afiados, ele esteve fustigando as defesas do Sul durante meses; agora,
afinal, ele começava a ter alguma sorte. No Nordeste, entretanto, a situação
logo passou de mal a pior.
Em junho, o general Lee invadiu a
União novamente, marchando através de Maryland para dentro da Pensilvânia. A
qualquer momento, agora, eles poderiam voltar e atacar Washington.
Mas o ataque nunca veio.
No dia 19 de julho de 1863, os
exércitos das duas Américas se encontraram em uma cidade chamada Gettysburg e
travaram a mais sangrenta batalha que a guerra jamais havia documentado. No
fim, dois dias depois, mais de 40 mil homens haviam caído mortos ou feridos.
Mas os rebeldes estavam se retirando porque a União vencera.
Em 7 de julho, chegaram notícias
de que Grant selara a vitória do Norte. Ele havia tomado Vícksburg, uma cidade
do Mississípi sitiada desde maio. Todo o Deep South estava agora sob seu domínio.
A sorte estava virando.
Hoje, o nome de Gettysburg é tão
conhecido nos Estados Unidos quanto o de Trafalgar ou Waterloo. Mas o motivo
dessa fama não se deve tanto à batalha ali travada, mas pelo que aconteceu
depois.
Em 19 de novembro de 1863, 150
mil pessoas se reuniram em uma colina, fora da cidade, local do cemitério
aberto para os mortos da União. Em pé sob o sol brilhante, elas ouviram, por
duas horas, o principal orador da cerimônia, um destacado estadista. Então,
chegou a vez de Abraham Lincoln, presidente dos Estados Unidos.
Seu discurso demorou não duas
horas, mas dois minutos. Alguns dos ouvintes ficaram surpresos - foi tão curto, tão simples! Outros
responderam àquela simplicidade com calorosos aplausos. E muitos não ouviram o
que ele disse.
As palavras que eles perderam
são, agora, mundialmente famosas como as palavras do “Gettysburg Address".
Com seu resumo do que significa um bom governo, elas se mantêm como um marco na
história da democracia.
Homenagem aos mortos
“Há 87 anos", dizia o
discurso de Lincoln, “nossos antepassados deram à luz, neste continente, a uma
nova nação, concebida com liberdade e consagrada ao propósito de que todos os
homens são criados iguais”.
“Agora, nós estamos engajados em
uma grande guerra civil, testando o quanto esta ou a outra nação assim
concebida e consagrada pode suportar. Nós nos encontramos em um grande campo de
batalha desta guerra. Nós viemos aqui para dedicar parte dele ao repouso eterno
daqueles que, aqui, deram suas vidas para que a nação possa viver. É
inteiramente justo e digno que nós façamos isso”.
“Mas, em sentido amplo, nós não
podemos dedicar, não podemos consagrar, nós não podemos santificar este chão.
Os bravos homens, vivos e mortos, que lutaram aqui já o consagraram, muito além
do que nosso pobre poder é capaz de acrescentar ou diminuir. O mundo pouco
notará, por pouco tempo vai lembrar o que dissemos aqui, mas não poderá jamais
esquecer o que eles fizeram aqui. A nós cabe consagrar nossa vida ao trabalho
inacabado que eles, que lutaram aqui, tão nobremente adiantaram até este
ponto”.
“A nós cabe consagrar nossa vida
à grande tarefa que restou a nossa frente - que dessas honrosas mortes nós
retiremos devoção crescente à causa pela qual eles deram a mais completa medida
de sua devoção - que esta grande nação, sob a proteção de Deus, tenha um novo
nascimento da liberdade - e que o governo do povo, pelo povo e para o povo não
pereça na Terra."
Em março de 1864, Grant foi
promovido a general-chefe de todos os exércitos da União. Ele passou a
controlar a guerra no Leste, deixando os comandos do Oeste para um de seus
generais, William Sherman, um homem habilidoso e tenaz, como seu chefe.
Por todo o verão, os dois
comandantes exerceram uma inexorável pressão sobre a Confederação: atacando,
perdendo, atacando, entrincheirando-se, atacando outra vez... Suas perdas eram
espantosas, mas a União continuou enviando mais homens. E havia, agora, nova
fonte de voluntários.
Como as linhas da União se
moveram para o Sul, milhares de escravos negros encontraram refúgio e liberdade
atrás delas. E então se alistaram. Negros livres do Norte juntaram-se a eles.
Antes do fim da guerra, quase 200 mil lutavam pela União, que lhes trouxera a
Iiberdade. Lincoln estava certo ao pensar que poderia precisar deles. Agora,
eles representavam a mais importante ajuda para o presidente vencer a guerra.
Tudo pela presidência
Por enquanto, a guerra ainda
parecia perdida. Apesar de Gettysburg, apesar de tudo os que Grant e Sherman
realizaram, os confederados ainda não estavam batidos. Essa situação levava a
crer que Lincoln perderia a presidência: as eleições se aproximavam outra vez,
Lincoln perdera a popularidade e o Norte ansiava pela paz.
Ele deveria ceder? Rasgar os
planos de liberdade, declarar paz ao Sul, dizer-lhe que a escravidão poderia
prosseguir sem obstáculos? A idéia o apavorava. Mas, ainda que somente por um
horrível minuto, em 24 de agosto de 1864, ele considerou a questão com
seriedade. No dia seguinte, Lincoln voltou a ser ele outra vez. Vetou qualquer
plano de paz, mesmo arriscando perder as eleições.
Sherman na Geórgia
Quando tudo parecia perdido, a
sorte voltou para o Norte de uma vez para sempre. Em 2 de setembro, Sherman
tomou uma das maiores cidades do “Reino do Algodão": Atlanta, na Geórgia.
De Iá, no mesmo ano, ele partiria para uma marcha de mais de 400 quilômetros em
direção à costa que tornaria seu nome famoso para sempre. A “Marcha de Sherman
para o Mar" cortou o território inimigo como se fosse uma espada,
destruindo tudo o que encontrava em sua rota. Seu código era guerra total,
travada tanto contra os soldados quanto contra a população civil. Antes do
Natal daquele ano, uma enorme faixa de terra devastada restaria como testemunha
de suas convicções.
As notícias sobre a importante
vitória em Atlanta eletrizaram o Norte. Aquela horrenda guerra poderia, quem
sabe, ser finalmente ganha, pondo fim à carnificina. O Exército da União
redobrou seus esforços e, nas eleições de 8 de Novembro, o próprio Abraham
Lincoln conseguiria uma apertada vitória sobre seu oponente democrata.
A Guerra acabou
Cinco meses depois, em 9 de abril
de 1865, o general Lee, do sul, enfrentou o general Grant, do Norte, em um
vilarejo chamado Appomattox Courthouse, na Virgínia, onde ocorrera a maioria
das batalhas.
Cercado e debilitado, o grande
Sul rendeu-se, perguntando se seus homens poderiam manter seus cavalos para
trabalhar a terra na primavera.
Grant, então, comunicou às tropas
que a guerra chegara ao fim. Os Estados Unidos da América estavam unidos outra
vez.
É preciso ganhar a paz
Delirando de alegria, Washington
e o Norte comemoraram a vitória. Bandas e sinos tocaram e a população
comprimia-se nas ruas, brindando a União e o presidente. Dentro da Casa Branca,
Lincoln estava mais preocupado do que nunca. Eles ganharam a guerra. Agora, de
algum modo, teriam que conquistar a paz e reparar os estragos da selvageria da
guerra. E mais: persuadir de uma vez os rebeldes a aceitar completamente uma
nova forma de vida, sem o trabalho dos escravos.
Uma tarefa assustadora, mas
Lincoln estava determinado a “conquistar a paz pacificamente", como
afirmou; “com rancor, não, mas com caridade para todos”.
“Nosso Primo Americano"
Poucos dias depois era 14 de
abril: Sexta-feira da Paixão, a sexta-feira que precede a Páscoa dos cristãos.
Mas, para Lincoln, agora o arquiteto da reconstrução do país, era um dia de
trabalho como todos os outros -
encontros, decisões, assinaturas.
No final da tarde, ele tomou a
carruagem com sua esposa, Mary, e atravessou Washington, como sempre fazia.
Estavam planejando sair mais tarde, também, para assistir à comédia Nosso Primo Americano, no Teatro Ford.
Logo depois das oito, Lincoln e
Mary entraram na carruagem outra vez e começaram a atravessar as ruas escuras e
nevoentas. Pegaram dois amigos no caminho e chegaram depois do início da peça,
mas sua entrada não passou despercebida. Todas as pessoas se levantaram e
aplaudiram o presidente.
Um tiro na terceiro ato
Do lado de fora do camarote, o
homem da segurança do presidente ficou de guarda durante algum tempo. Então,
inacreditavelmente ele se afastou. Enquanto isso, a peça se tornava cada vez
mais engraçada. Corria o terceiro ato e todas as atenções se concentravam no
palco. De repente, ouviu-se um tiro. Por um segundo, todos emudeceram, ninguém
se movia, falava ou respirava. Então, sucessivos gritos partiram do camarote
presidencial.
Incrédulas e atônitas, as pessoas
não se moviam. Um homem surgiu na ponta do camarote, com um punhal na mão. Aos
gritos, apunhalou um dos amigos de Lincoln. Depois, deu um salto, atirando-se
sobre o palco, e, cambaleando, desapareceu de vista.
Todos os olhos se voltaram para o
camarote, onde três pessoas, gritando, se inclinavam sobre Lincoln. O
presidente dos Estados Unidos estava caído, afundado e imóvel em sua poltrona.
Inconsciente, com uma bala assassina no cérebro, Abraham Lincoln estava
morrendo.
Em 21 de abril de 1865, americanos de todo o Norte tomaram as ruas para homenagear o presidente morto. O caixão de Lincoln foi carregado de Washington a Springfield, onde ele repousa para sempre. |
A morte do presidente
As nove horas seguintes foram
tenebrosas. O público do teatro havia corrido em pânico. Como o assassino que
escapara com facilidade, um médico do Exército irrompeu no camarote oficial e
beijou o presidente. Então, Lincoln foi carregado para uma casa, do outro lado
da rua, e colocado em uma cama. Mary, quase enlouquecida com o choque e a
aflição, veio para junto dele, como depois, também, o filho mais velho, Robert,
soldado do comando do general Grant. Quando a notícia correu Washington, vieram
amigos, médicos e estadistas.
O assassino foi reconhecido por
várias pessoas: um ator chamado John Wilkes Booth. Silenciosamente, ele entrou
no camarote, aproximou-se por trás do absorto presidente e deu um tiro em sua
cabeça.
Booth era uma pessoa conhecida,
que amava o Sul e odiava Lincoln. Antes de puxar o gatilho ele gritou para o
presidente: “Assim morrem todos os tiranos...”
Rapidamente, Washjngton foi
colocada sob lei marcial, e o vice-presidente, Andrew Johnson, convocado a
assumir o comando do país. Fora da casa onde o presidente agonizava, uma
multidão angustiada aguardava notícias.
Às 7h22 da manhã seguinte, 15 de
abril de 1865, morria Abraham Lincoln. Ele foi o primeiro, mas não o último,
presidente dos Estados Unidos a ser assassinado.
A décima terceira emenda
Quando Lincoln foi assassinado,
sua proclamação de 1863 e os exércitos da União já haviam levado a liberdade
para 3 milhões e meio de escravos E, enquanto viveu, o presidente fez seu plano
de emancipação dar um grande salto à frente.
Ele sabia muito bem que a
proclamação, decretada no tempo da guerra, poderia ser subvertida. Somente
foram libertados os negros dos Estados rebeldes. Então, logo depois da
reeleição, ele requereu ao Congresso a aprovação de uma nova lei de alcance
geral - uma emenda na Constituição que proibiria a escravidão em todos os
lugares dos Estados Unidos.
Em janeiro de 1865, o Congresso
concordou com sua proposta. Por maioria de votos, a Constituição recebeu sua
décima terceira emenda: “Nem escravidão nem servidão involuntária, exceto como
punição por crime, a respeito do que a parte interessada deverá ter plena
convicção, poderão existir dentro dos Estados Unidos...”
Quando a emenda formalmente se
transformou em lei, tornou livres todos os escravos nos Estados Unidos, em
todos os lugares.
O direito de votar
Aquele não seria o fim dos planos
de Lincoln. Antes da Guerra Civil, a Suprema Corte dos Estados Unidos decidira
que, mesmo livre, o negro não poderia tornar-se cidadão americano. Mas Lincoln
e a guerra, juntos, desmentiram a Suprema Corte. Seu principal objetivo era,
então, proporcionar aos negros a cidadania total dentro da sociedade americana:
na vida pública, nas escolas e com todas as outras oportunidades para
progredir.
Uma chave importante para o
reconhecimento como cidadão era o voto. Antes da guerra, somente três Estados
do Norte haviam permitido aos negros votar em suas eleições. Agora, depois de
quatro anos de derramamento de sangue, era tristemente óbvio o que o antigo
dono de escravos do Sul pensaria de tal proposta. Muita gente do partido de
Lincoln também odiava a idéia, mas os radicais insistiam com Lincoln para que
apressasse o andamento do plano.
Acuado entre esses conflitos de
interesses, Lincoln estava ainda lutando para encontrar soluções quando foi
assassinado.
Os sucessores do presidente, no
entanto, fizeram do direito do negro ao voto uma condição para levar os Estados
rebeldes de volta à União. Em 1869, o Congresso aprovou outra crucial emenda -
a décima quinta - para a Constituição: "O direito de votar dos cidadãos
dos Estados Unidos não poderá ser negado ou reduzido - pelos Estados Unidos ou
por qualquer Estado - por causa de raça, cor ou condição anterior de
servidão".
Então, bem próximo ao final da
década de 1860, a escravidão foi abolida nos Estados Unidos da América. Negros
e brancos passaram a ter os mesmos direitos, por força da lei. Aquela,
finalmente, era a lei. No entanto, por todo o Sul continuou a ser intencional e
escandalosamente desobedecida.
Sim. A Confederação fora
derrotada. Os escravos com os quais sua riqueza foi construída eram, agora,
cidadãos livres: todos eles eleitores e membros da sociedade americana.
Mas nunca - nunca enquanto
vivesse - a maioria dos brancos confederados aceitaria a idéia de igualdade
entre brancos e negros. E, quando o presidente morreu, os brancos sentiram que
poderiam frustrar o espírito das leis de Lincoln com outras leis; as deles.
A guerra e a emancipação dos
negros aniquilaram o antigo modelo do Sul escravista. Mas a guerra mal tinha
acabado e os Estados sulistas já começavam a preparar um novo código para
submeter os negros.
Os “Black Codes"
determinavam que os antigos escravos ainda deveriam tratar seus patrões por
"master" (senhor) e "mistress" (senhora), exatamente como
faziam antes. Na Carolina do Sul, eles somente poderiam exercer as mesmas
funções de antes da guerra: lavradores, babás e cozinheiras. No Missíssípi, só
poderiam viajar em vagões de trem separados dos brancos. Na Flórida, a divisão
se estenderia até mesmo à questão religiosa: negros não poderiam rezar em
igrejas de brancos. Uma pessoa negra que tentasse se juntar aos brancos na
oração recebia a punição tradicional do Sul: chicote.
Regras como essas, destinadas a
manter os negros longe dos brancos, eram conhecidas como ' 'Leis de Jim Crow' ',
nome do personagem negro de uma canção popular na década de 1850. Quando as
notícias sobre tais leis chegaram ao Norte, os republicanos se horrorizaram. A
ira dos nortistas impulsionou a aprovação de leis que, formalmente, dariam
cidadania aos negros.
Quando a décima quinta emenda
constitucional foi aprovada, os negros dos Estados Unidos festejaram o triunfo.
Mas a comemoração durou pouco tempo. O Sul se encarregou disso, pois tinha
legisladores próprios, habilitados em arquitetar outras leis ' “Jim Crow".
Havia uma rede social de nós bem atados, na qual a lealdade entre os brancos
reinava absoluta. E havia a Ku Klux Klan: a sociedade não muito secreta que
sustentava o domínio dos brancos, com puro terror.
Se um negro ousasse exercer seus
direitos legais, recebia a visita dos homens encapuzados da Klan, carregando
chicotes, baldes de alcatrão ou - o mais sinistro de tudo - uma corda.
Uma vítima que conseguisse
escapar coberta com penas e alcatrão fugiria rapidamente, tão brutal era esse
tipo de castigo. A corda significava enforcamento numa viga ou árvore, o que
estivesse mais próximo.
Em desespero, os negros do Sul
viam perderem-se pouco a pouco todos os benefícios que Lincoln e a guerra
trouxeram para eles. O direito de votar, o de receber salário, o de ser um
membro respeitado da comunidade: que direitos eram esses em uma sociedade
determinada a mantê-los separados, aterrorizados e pobres?
Muitos negros que tomaram o rumo
do Norte logo descobririam que a situação era apenas pouco melhor do que no Sul.
Sindicatos não os admitiam. Obrigados a aceitar trabalhos e salários
inferiores, viviam nas áreas mais miseráveis das cidades. No começo do século
20, a Ku Klux Klan foi atormentar os negros no Norte, levando sua terrível
fama. Entre 1880 e 1919, a Klux linchou 3 mil negros que se atreveram a
insistir no direito de igualdade.
Mas, por mais impiedosa que a
situação ainda parecesse, as mudanças estavam agora a caminho. Poderosas
organizações negras emergiam, como a Associação Nacional para o Progresso do Povo
Negro, prometendo terminar com êxito a luta pela real liberdade dos negros
americanos. Líderes negros surgiam e, à medida que o século avançava, seu
valor, posição e poder tendiam a crescer.
“Eu tenho um sonho"
Em 28 de agosto de 1963, 250 mil pessoas saíram em marcha, em Washington, para comemorar o centenário da emancipação. Liderados pelo grande defensor dos direitos civis dos negros, Martin Luther King, elas se reuniram ao redor do memorial construído para o homem que as libertara.
Os cartazes que carregavam
revelavam suas reivindicações. “Nós pedimos em 1963 a liberdade prometida em
1863", dizia um deles. E outro: “Um século de divida a ser paga".
Luther Kíng faria o discurso de
sua vida, que, como o "Gettysburg Address", também se tornou histórico.
“Eu tenho um sonho...",
disse Luther King. “Eu tenho um sonho que, um dia, esta nação se levantará e
levará até o fim o real significado deste princípio: ‘Eu carrego essas verdades
por ser evidente que todos os homens são criados iguais’”.
“Eu tenho um sonho que, um dia,
nas colinas vermelhas da Geórgia, os filhos dos antigos escravos e os filhos
dos antigos donos de escravos estarão prontos para se sentarem juntos à mesa da
fraternidade”.
“Eu tenho um sonho que, um dia,
mesmo o Estado do Mississípi será transformado em um oásis de liberdade e
justiça”.
“Eu tenho um sonho que meus
quatro pequenos filhos um dia viverão não julgados pela cor da pele, mas pelo
conteúdo do caráter."
Cinco anos depois, Luther King
seria morto; outra vítima de uma bala assassina. Mas, desde então, seu sonho
vem ficando mais perto da realização.
O movimento continuaria: mais e
mais negros seriam eleitos para cargos públicos. Mais e mais conseguiriam
passar pelas barreiras que os impediam de ter um trabalho, uma boa casa e uma
vida digna.
Contudo, ao mesmo tempo, os
negros americanos continuam mais pobres que os brancos. Em 1990, durante a
realização de uma reunião de cúpula internacional em Houston, Texas, a Ku Klux
Klan desfilou ostensivamente, com seus tenebrosos slogans e sinistros
uniformes. Acima de suas cabeças tremulava a bandeira “Stars and Bars"
(Estrelas e Listras), que uma vez levou o Sul à Guerra Civil.
Ainda hoje, a memória de Abraham
Lincoln aguarda a conclusão da tarefa suprema que ele iniciou há mais de um
século.
Datas Importantes
1776 Treze colônias na América do Norte declaram independência da Inglaterra e formam os Estados Unidos da América.
1809 Em 12 de fevereiro, nasce
Abraham Lincoln, em Kentucky, numa cabana de madeira.
1816 A família Lincoln muda-se
para Indiana.
1818 Morre a mãe de Lincoln. No
ano seguinte seu pai se casa novamente.
1820 O Compromisso de Missouri
estabelece o equilíbrio entre os Estados livres e os escravistas e proíbe a
expansão da escravidão no noroeste dos Estados Unidos.
1831 Lincoln deixa a casa do pai
para sempre e se estabelece em New Salem, Illinois.
1834 Lincoln é eleito deputado
estadual em Illinois.
1837 Lincoln se habilita
advogado, com 28 anos, e muda-se para a capital de Illinoís, Springfield.
1842 Lincoln casa-se com Mary Ann
Todd. O casal teve quatro filhos, dos quais somente o mais velho sobreviveria
até a vida adulta.
1845 O Texas se liga à União dos
Estados como Estado escravista.
1846 Lincoln é eleito para o
Congresso. Seu mandato termina em 1849.
1850 Por intermédio do Ato de
Compromisso de 1850, a Califórnia ingressa na União como Estado livre, a lei
contra escravos fugitivos é aprovada e o Compromisso de Missouri perde o valor.
1851 É publicado A Cabana do Pai
Tomás, livro que ataca o sistema de escravidão. Um ano depois, com a
repercussão do livro, aumenta a pressão pela abolição nos Estados Unidos.
1854 É aprovado o Ato de
Kansas-Nebraska, permitindo que a população dos novos territórios decida se
quer ou não a prática do sistema de escravidão. O Partido Republicano nasce
para combater a expansão da escravidão.
1856 Lincoln se filia ao Partido
Republicano.
1860 Em maio, os republicanos
escolhem Lincoln candidato do partido para a eleição presidencial. Em novembro,
Lincoln, com 51 anos, é eleito presidente dos Estados Unidos. O Estado
escravista da Carolina do Sul se desliga da União.
1861 Em janeiro e fevereiro, seis
outros Estados se rebelam: Mississípi, Flórída, Alabama, Louisiana, Geórgia e
Texas. Passam a formar os Estados Confederados da América. Em abril, as tropas
confederadas atacam o forte Sumter, na Carolina do Sul, começando a Guerra
Civil. Nas semanas seguintes, quatro outros Estados escravistas se separam da
União e se juntam à Confederação. Em julho acontece a primeira batalha de Bull
Run, na Virgínia, que acabou em derrota para a União.
1862 Em abril, a União vence a
batalha de Shiloh, no Tennessee, mas perde milhares de soldados. Para ajudar a
salvar a União, em julho, Lincoln decide abolir a escravidão nos Estados
rebeldes. E, no mês de agosto, a União é derrotada na segunda batalha de Bull
Run. As tropas confederadas invadem o território da União no mês de setembro,
mas saem derrotadas na batalha de Antietam, em Maryland. Estimulado pelo
sucesso, Lincoln divulga a versão provisória de sua Proclamação da Emancipação.
Em dezembro, a União é derrotada em Fredericksburg, Virgínia.
1863 No primeiro dia de janeiro,
Lincoln assina a Proclamação da Emancipação, libertando todos os escravos dos
Estados da Confederação. Maio é o mês de outra esmagadora derrota para a União
em ChancellorsvilIe, Virgínia. Em junho, a Confederação invade o território da
União outra vez. De 1 a 3 de julho, a batalha de Gettysburg, na Pensilvânia,
traz a vitória para a União. No dia 4, o general da União, Ulysses S. Grant,
recebe a rendição de Vicksburg, Missíssípi. Em 19 de novembro, Lincoln faz seu
mais famoso discurso, o “Gettysburg
Address", em uma homenagem às vítimas da guerra, no cemitério de
Gettysburg.
1864 No dia 8 de novembro,
Lincoln é reeleito presidente dos Estados Unidos. Em 31 de janeiro, o Congresso
aprova a décima terceira emenda, declarando ilegal a escravidão em todos os
lugares dos Estados Unidos. No dia 9 de abril, o general Robert E. Lee, da
Confederação, assina a rendição - e a guerra acaba. Em 14 de abril, Lincoln é
baleado na cabeça enquanto assiste a uma peça no Teatro Ford, em Washington.
Morre no dia l5, com 56 anos de idade.
1869 O Congresso aprova a décima
quinta emenda, concedendo o direito de voto a todos os cidadãos americanos.
ABRAHAM LINCOLN é um volume da Série Personagens que mudaram o mundo - Os grandes humanistas
Autor deste volume: Anna Sproule
Editor da obra original: Helen Exley
Tradução: Matilde Leone
Edição: Esníder Pizzo
Copyright Anna Sproule, 1992 - Copyright Exley Publications, 1992
Copyright 1993 by Editora Globo S.A. para a língua portuguesa, em território brasileiro.
ABRAHAM LINCOLN é um volume da Série Personagens que mudaram o mundo - Os grandes humanistas
Autor deste volume: Anna Sproule
Editor da obra original: Helen Exley
Tradução: Matilde Leone
Edição: Esníder Pizzo
Copyright Anna Sproule, 1992 - Copyright Exley Publications, 1992
Copyright 1993 by Editora Globo S.A. para a língua portuguesa, em território brasileiro.
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