No Sul do Brasil, a famosa
Confederação dos Tamoios, decantada em prosa e em verso, ameaçou a dominação
portuguesa. No Nordeste, especialmente no Rio Grande do Norte e no Ceará, a
Confederação dos Cariris, embora muito menos falada, quase destruiu em seus
fundamentos a colonização lusa. Os Cariris eram uma nação indômita e inquieta,
de língua travada, como se dizia, isto é, que não falava o idioma tupi.
Habitavam o sertão, mas, ao longo dos rios, de suas cabeceiras se estendiam até
as proximidades da costa. Ocupavam a vastíssima região compreendida entre a
margem esquerda do rio São Francisco e as quebradas das serras do Araripe e da
Ibiapaba. Combatidos pelos bandeirantes baianos da Casa da Torre de Garcia
d'Ávila, com eles às vezes se aliaram para dar caça a outros indígenas seus
inimigos.
Escuros, altos, membrudos,
ornados de penas negras, carrancudos e tristonhos, figuram nos documentos
antigos com os vários nomes de Carirys, Carirés, Kiriris e até Alarves. Essas
denominações cabiam ao seu ramo principal. Outros ramos do mesmo sangue usavam
apelidos diferentes. Evangelizaram-nos no alto S. Francisco, no Século XVII, os
capuchinhos franceses Martim de Nantes, Teodoro de Lucé, Bernardo de Nantes,
Boaventura de Becherel, Anastácio d'Audierne e José de Ploermel. Deve-se ao
primeiro a interessantíssima "Relation
succinte et sincère de la Mission du Pe. Martin de Nantes, prédicateur capucin,
missionaire apostolique dans le Brésil parmi les incliens appelés Cariris".
No Ceará, aldearam-nos e converteram-nos, no Século XVIII, os franciscanos italianos
Carlos Maria de Ferrara, Francisco de Palermo e Joaquim de Veneza, os frades
carmelitas fundadores de Missão Velha e Missão Nova e o jesuíta Jacob Cochlo.
Todavia, em 1780, restavam poucos descendentes dessas tribos bravias, que foram
transferidos para as vilas de índios mansos das cercanias da sede da capitania
do Ceará: Paupina ou Messejana, Arronche ou Parangaba e Caucaia ou Soure, onde
foram dentro de algum tempo absorvidos pela população local.
Grande número de tribos Cariris,
umas mais numerosas, outras menos, viviam pelas diversas ribeiras sertanejas do
Ceará até próximo do litoral ou para ele se dirigiam de outubro a novembro,
para a colheita do caju, que usavam como alimento e na fabricação do vinho
denominado mocororó. Quando se iniciou o povoamento desses rincões com a
fundação das primeiras fazendas de gado e dos primeiros estabelecimentos
agrícolas, nos seus deslocamentos a indiada não respeitou as reses e plantações
dos brancos que se apossavam das terras consideradas por eles como suas. Tais
choques foram o violento prefácio duma luta brutal que, de 1683 a 1713, duraria
30 anos. Durante esse longo período, as várias nações Cariris se confederaram
contra o invasor, mas se viram implacavelmente batidas, escravizadas,
chacinadas e disseminadas no seio de outras populações.
A grande luta começou em 1683 no
Rio Grande do Norte. Os índios Jandins ou Janduís, habitantes das regiões do
Açu, Mossoró e Apodi, aliados outrora dos holandeses, a quem ajudaram na
bárbara matança da população portuguesa no engenho Cunhaú, levantaram-se em
armas contra o domínio luso, matando, saqueando, arrasando as propriedades, não
deixando "pedra sobre pedra". O incêndio da revolta propagou-se celeremente
pelo vale cearense do Jaguaribe, alcançando os mais longínquos sertões,
chegando aos limites do Piauí. As tribos dos Paiacus, Icós, Anacés, Quixelôs,
Jaguaribaras, Acriús, Arariús, Canindés, Jenipapos, Tremembés e outras
acompanharam os Janduís, lançando-se ferozmente à luta.
Em face da gravidade da situação,
dos pedidos de socorro que lhe chegavam das zonas conflagradas, não dispondo de
forças suficientes para reprimir a revolta, frei Manuel da Ressurreição, então
no governo-geral do Estado do Brasil, decidiu requisitar do capitão-mor de S.
Vicente e S. Paulo uma tropa de paulistas aguerridos e conhecedores do modo de
combater do gentio, para pôr termo àquela anarquia, do mesmo modo de Palmares.
Veio por isso de S. Paulo, rompendo os ínvios sertões, o terço do
mestre-de-campo Matias Cardoso, que atravessou o São Francisco, varreu os
Janduís e estabeleceu na foz do Jaguaribe para dominar o vale o destacamento do
capitão João Amaro Maciel Parente.
A presença dos paulistas não
evitou que a guerra entre os brancos e os silvícolas confederados se dilatasse
anos seguidos das fronteiras do Rio Grande do Norte ao interior de Ceará. A
Matias Cardoso sucedeu no comando do aguerrido terço o mestre-de-campo Fernão
Carrilho, que, em 1691, conseguiu bater os melhores aliados dos Janduís, os
Paiacus, forçando-os a tratarem a paz e dando-lhes como condição a empresa de
atacarem os confederados Icós e Carateús, alçados em guerra pelo sertão
adentro.
Os Paiacus foram os mais terríveis
e constantes inimigos dos colonizadores na zona do baixo Jaguaribe. Seu apelido
varia muito na documentação coeva: Paiacus, Pacajus, Piacus, Pyacus, Baacuss, Bayacus,
mesmo Baiquis e Baquaes. Raça valente nunca de todo submetida. Desde 1666,
andava em constantes correrias e assaltos contra os brancos, combatida embora e
dizimada pelas expedições primitivas dos ajudantes Francisco Martins e Filipe
Coelho de Morais, veteranos nas campanhas contra os bugres. Aderiram em 1686 à
rebeldia dos Janduís. Batidos por Fernão Carrilho em 1691, três anos depois, em
1694, tornavam a guerrear os lusos, sendo vencidos pela tropa do famigerado
capitão Francisco Dias de Carvalho. Em 1696, o cansaço e as perdas de vidas
levaram-nos a firmar a paz com os portugueses.
Todavia, a luta contra outras
tribos da Confederação dos Cariris prosseguia sem descanso, tanto que foi necessário
mandar vir novos reforços de S. Paulo sob o comando do mestre-de-campo Manuel Alves
de Morais Navarro. Não se sabe bem por que motivo, se por alguma denúncia de
estarem preparando qualquer traição, se por ter sido ferido em combate contra
os selvagens e estar furioso por isso ou se por mera desconfiança e crueldade,
o chefe militar paulista convidou os Paiacus aquietados para entrarem em
campanha ao seu lado, atacando-os e matando-os de surpresa.
O sangrento episódio aconteceu no
dia 4 de agosto de 1699. Estavam os Paiacus desarmados e pintados festivamente,
dançando suas danças guerreiras, quando deram sobre eles, descarregando os mosquetes
e cortando-os a espada, os aventureiros do terço de Morais Navarro. Mataram
homens, mulheres e crianças sem piedade. O crime inominável levantou protestos
indignados do missionário João da Costa, a que energicamente logo se associou o
bispo de Olinda, D. Frei Francisco de Lima. Por ordem do rei, o mestre-de-campo
foi preso e submetido a processo.
Apesar dessa terrível matança,
como não cessasse a luta entre os brancos e os tapuias cearenses, de novo os Paiacus
se rebelaram em 1703, acompanhados pelos Icós. Então, todo o vale do Jaguaribe pegou
fogo. Mandado contra os Icós, o capitão Pedro Mendonça os derrotou,
escravizando-os sem distinção de sexo ou idade. Contudo, os remanescentes dos
vencidos, unindo-se a outras tribos em pé de guerra, continuaram a peleja de
tal modo que, em 1706, o governo real mandava fornecer armas a todos os moradores
da capitania do Ceará, para provimento de sua defesa pessoal, de suas famílias
e de seus bens contra a indiada rebelde. Em 1708, o capitão Bernardo Coelho de
Andrade, chefiando um destacamento de gente destemida, destruiu as resistências
que lhe opuseram os Icós, os Cariris, os Cariús e os Carateús.
No ano de 1713, a Confederação
dos Cariris mostrou-se ainda viva na revolta geral desencadeada pelos Paiacus,
Anacés, Jaguaribaras, Acriús, Arariús, Canindés e Jenipapos, que forçaram os
Tremembés a segui-los. A vila do Aquirás, então sede da capitania, foi
inopinadamente atacada. Na sua defesa, morreram 200 pessoas. O resto da
população fugiu, defendendo-se como pôde pelo caminho, que semeou de mortos,
indo acolher-se à proteção dos canhões da
fortaleza de Nossa Senhora da Assunção na foz do Pajeú. Esse êxodo deu
origem à vila, depois cidade da Fortaleza, que acabou superando a do Aquirás.
A bugrada à solta destruiu
centenas de casas, sítios e fazendas. O interior da capitania quase se
despovoa. As comunicações com Pernambuco, que se faziam pelo litoral, foram
cortadas. Entrou então em ação o famoso regimento de ordenanças do coronel João
de Barros Braga. Essa Cavalaria do Certam,
como dizem os velhos documentos, vestida de couro e composta de homens
conhecedores do terreno em que pisavam, bem como do modo de guerrear dos
indígenas, exterminou-os em violentíssima guerra de morte que subiu pelo vale
do Jaguaribe ao do Cariri e aos confins piauienses.
Depois dessa campanha, as relíquias
dos Paiacus do baixo Jaguaribe, dos Canindés e Janipapos do rio Banabuiú foram
aldeadas em Monte-mor-o-novo e Monte-mor-o-velho, depois, respectivamente,
vilas de Guarani e de Baturité. A primeira chama-se agora Pacajus em memória
dos seus indomáveis guerreiros bronzeados. Os restos dos Icós foram exilados em
Sousa, no alto sertão da Paraíba. Os remanescentes dos Acriús e Arariús do rio
Acaraú e da serra da Meruoca foram confinados na povoação de Nossa Senhora da
Assunção da Ibiapaba, posteriormente crismada em Vila Real da Viçosa, onde
pregara outrora o Padre Antônio Vieira. Os últimos Tremembés feneceram em Soure
em Almofala, onde seus descendentes ainda hoje conservam lembranças de seus
ritos coreográficos. Os derradeiros Cariris formaram no antigo Brejo a Missão
do Miranda, que se tornou a Vila Real do Crato.
Assim, acabou melancolicamente a
terrível Confederação dos Cariris que durante 30 anos trouxe em sobressalto as
gentes que iam povoando e civilizando as terras do Rio Grande do Norte e do Ceará.
Foi uma das mais notáveis experiências duma conjugação de esforços realizada
por selvagens do Brasil, sempre tão desavindos e inimigos entre si, com o fito
de obstar a conquista de suas terras. Esforço baldado, pois sua sorte diante do
invasor fora lançada e não seria a bravura instintiva suficiente para vencer
com arcos e flechas a inteligência sagaz, a pólvora, as balas de chumbo e a
cultura superior do europeu. Como a humanidade tupi, embora menos maleável, a humanidade
tapuia teria de ser dominada e absorvida pelo colonizador.
- Gustavo Barroso em À MARGEM DA HISTÓRIA DO
CEARÁ, editado em 1962 pela UFC, tendo sua segunda edição, de onde foi copiado
este capítulo, em 2004, sob os auspícios da FUNCET-PMF.
Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.
Gustavo Dodt Barroso, que nasceu em Fortaleza em 1888, foi advogado, político, contista, museólogo, folclorista, ensaísta, cronista, arqueólogo, memorialista e romancista. Membro da Academia Brasileira de Letras, foi o criador do Museu Histórico Nacional, em 1922, por ocasião das comemorações do Centenário da Independência, iniciativa do então presidente Epitácio Pessoa, tendo dirigido a instituição desde a fundação até a sua morte, em 1959.
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