TIRADENTES (1746-1792) |
"TIRADENTES". Quadro de Autran (detalhe). Vila Militar - Rio de Janeiro |
A História da Independência do Brasil poderia ter começado assim. Estamos em Vila Rica, Minas Gerais, em 1789.
Amanhã é o batizado. Na noite cheia de sombras, a senha corre entre
os conspiradores: amanha é o batizado.
O governador, finalmente,
assinara o decreto ordenando a derrama, rigorosa cobrança dos pesados impostos
atrasados que a toda gente assustava. Havia medo e revolta em Minas Gerais.
Chegara o momento esperado: a rebelião estava no ar.
— Amanha é o batizado — sopravam
vozes na escuridão.
E Vila Rica dormiu, sonhando com
a independência.
Amanhecia, quando o Alferes e
seus homens invadiram o Palácio da Cachoeira para dali trazer preso o
governador português.
A rapidez da ação impediu
qualquer resistência e os rebeldes, vencidos os guardas, levaram o prisioneiro.
Vila Rica ainda acordava, enquanto o grupo marchava sobre a cidade.
— Viva a liberdade! Viva a liberdade!
A voz do Alferes despertava um povo. A praça se apinhou de gente. Mãos atadas,
olhar perdido, traje em desalinho, o governador — cercado pela multidão —
perdia-se em murmúrios:
— Enlouqueceram, enlouqueceram.
Enquanto isso, os gritos de liberdade
sacudiam os ricos sobrados.
De repente, um tropel.
— Aí vem os Dragões de Minas!
Há silencio, quando à frente da
tropa um oficial português entra na praça:
— Que é isso, camaradas? Quem nos
governa? Não é esse prisioneiro o senhor governador?
Por um momento parece que vai
haver luta. Até que aos poucos, do meio dos soldados da própria tropa do Governo,
vai crescendo um grito:
— Liberdade! Liberdade!
E o povo aplaude, todos riem, se
abraçam.
É a revolução. Tomam o cofre da
Real Fazenda; ocorrem prisões; bandos partem para as vilas, anunciando a vitória
e pedindo apoio. Emissários seguem rumo a Bahia, Rio e São Paulo, para contar
que Minas Gerais está livre, que tem um Governo nacional e se prepara para a
guerra contra Portugal. É a Independência.
A nossa verdadeira historia, porém,
foi diferente.
O Governador de Barbacena não foi
preso, o povo não se levantou, não houve, enfim, a revolta. Mas poderia ter
havido, não fosse uma traição, que acabou com os planos dos rebeldes e com o
grande ideal do Alferes Joaquim José da Silva Xavier, delatado em Vila Rica
(hoje Ouro Preto), nas vésperas da esperada derrama, e preso no Rio, quando
procurava seguidores para seus planos de independência.
Por isso, nada deu certo e
naquela noite de 1789, em Vila Rica, sede da capitania de Minas Gerais, um homem
embuçado corria a casa dos conspiradores.
O governador suspendeu o decreto
ordenando a derrama e já corriam boatos: fora descoberta a rebelião, muitos
seriam presos.
O embuçado confirma:
— Fujam! Fujam! Fomos todos
descobertos. Tiradentes já esta preso no Rio.
Uma traição mudara a Historia do
Brasil, matando o sonho de Joaquim José da Silva Xavier, que foi tropeiro,
minerador, cirurgião, soldado e herói. Um herói sem medo, que todos chamavam e
chamariam sempre o Tiradentes.
Um menino como outro qualquer
Em 1746 o Brasil era uma colônia
empobrecida. Na capitania de Minas Gerais, cuja população não chegava a 200 mil
habitantes, boa parte das muitas toneladas de ouro extraídas era recolhida pela
Coroa portuguesa e seguia diretamente para Lisboa. Nesse mesmo ano, na fazenda
de Pombal, à beira do rio das Mortes, a um passo de São João del Rei e de São
José del Rei, nasceu Joaquim José da Silva Xavier. Ele era o quarto entre sete
irmãos: Domingos e Antônio, que se tornaram padres; José, que se fez capitão, e
as meninas Maria, Eufrásia e Antônia.
Ele nasceu na Vila de São José, hoje Tiradentes. |
Joaquim José era filho de pai português,
Domingos da Silva dos Santos, e mãe brasileira, Antônia da Encarnação Xavier,
nascida em Minas. Três dos avós eram portugueses e a avó materna paulista.
O menino Joaquim José cresceu na
fazenda, onde seu pai, sem grande sorte, dedicava-se à mineração. Até os nove
anos de idade, Joaquim José foi um garoto como outro qualquer, dividido entre
os brinquedos com os irmãos, os primeiros ensinamentos da mãe, a curiosidade
pelo trabalho de mineração que se fazia em seu redor, as orações aprendidas na
capela da fazenda, festas e procissões.
Seu pai nunca foi rico, mas tinha
o suficiente, chegando a possuir 35 escravos.
Era homem de respeito: elegeu-se
vereador para a Câmara da vila de São José e foi escolhido para almotacé,
importante cargo de fiscal. Também fazia parte, com a mulher, da Irmandade da
Ordem Terceira de São João del Rei, da Irmandade do Santíssimo Sacramento e da Irmandade
das Almas.
Mas, aos nove anos, Joaquim José
ficou órfão de mãe e aos onze perdeu o pai. Aí a família se desfez, cada irmão
foi para um canto, Joaquim José para a casa do padrinho, na vila de São José.
Joaquim José fora batizado na capela
anexa à fazenda, tendo como padrinho o cirurgião Sebastião Ferreira Leitão e
como madrinha Nossa Senhora da Ajuda. O padrinho Sebastião trabalhava na vila
de São José: era especialista em arrancar dentes e substituí-los por novos.
Tem-se como certo que foi Sebastião quem ensinou ao afilhado a arte de tirar
dentes, além de completar sua alfabetização.
Foi sabendo usar este instrumento que Joaquim José passou a ser "Tiradentes". |
E nas noites de São José, com saudades
da fazenda, recordações do pai e da mãe, Joaquim José ouvia histórias do ouro:
ali pertinho, contavam, o português Bento do Amaral Coutinho, por volta de
1709, aniquilara um grupo de paulistas desarmados, no lugar que passou a se
chamar Capão da Traição, numa luta pela posse das minas de ouro. Mas Joaquim
José gostava mesmo era do fim da história: ao fugir para São Paulo, derrotados,
os bandeirantes foram obrigados pelas próprias mulheres a retornar a Minas para
continuar a chamada Guerra dos Emboabas (era assim que os paulistas designavam
os forasteiros), uma briga que durou três anos.
E nas noites de São José, quem
sabe, o menino Joaquim José sonhava com ouro, com Vila Rica, São Paulo, Rio e
Bahia, ou até com a Europa, onde muitos brasileiros estudavam.
Defendeu um escravo, perdeu tudo
Todos às minas, que ali há ouro em quantidade suficiente para enriquecer uma nação. |
Alto, magro, forte e vesgo, o
menino virou rapaz, hábil no manejo dos ferrinhos com que arrancava dentes. Mas
as aspirações de Joaquim José iam além de Minas e dos trabalhos de dentista.
Vira muita fortuna se formar, muito aventureiro enriquecer, muito ouro sair da
terra, embora o auge da mineração, lá por 1750, já tivesse passado. Agora, aos
poucos, o ouro ia rareando. Portugal, com seu poderio reduzido, dependia das importações
da Inglaterra, mas continuava a viver na ostentação. O que pagava quase todas
as compras e o luxo português era o ouro do Brasil. Por isso, o rei acusava a
gente da Colônia de burlar a Coroa, quando dizia que as minas estavam
esgotadas.
Joaquim José, apesar de já conhecido
como o Tiradentes, deixou então de ser dentista, resolvendo primeiro
transportar mercadorias numa tropa de burros e depois tentar a sorte nas minas
de ouro. Não fez fortuna: a terra lhe negou ouro. Quando ia progredindo como
tropeiro, meteu-se numa grande encrenca: socorreu um escravo que estava sendo
castigado e acabou julgado por um tribunal, que o condenou a pagar pesada multa
e as custas do processo. Por isso teve de vender seus burricos e mercadorias.
Escravo era propriedade do dono, Tiradentes não tinha o direito — disseram — de
se intrometer.
Assim, em dezembro de 1775, aos
30 anos, o minerador sem sorte, o tropeiro tão popular nos caminhos de Minas e
Rio, sempre pronto a tratar ou arrancar um dente e capaz de fazer curativos como
poucos, sentou praça na 6ª Companhia de Dragões da capitania de Minas Gerais.
Por ser branco e descendente de portugueses cristãos, teve o privilégio de
ingressar nas armas já como oficial, sem passar pelos postos subalternos.
Tornou-se alferes, o que equivaleria hoje ao posto de 2º tenente.
Nos caminhos de Minas ficou seu
riso e seu vozeirão: era conversador, tinha sempre um caso interessante para
contar, todos gostavam dele. Soldado, Joaquim José destacou-se pela correção e
coragem, primeiro em Minas, depois no Rio de Janeiro, capital da Colônia.
Voltando a Vila Rica, Tiradentes
foi nomeado comandante da patrulha do Caminho Novo, que ligava Minas ao Rio.
Sua tarefa era cuidar da conservação da estrada e mantê-la livre de
assaltantes.
Pelo Caminho Novo passavam o ouro
e os diamantes com destino às arcas reais. E o patrulheiro Joaquim José via a
sua terra empobrecer, o marasmo a tomar conta dela. Quase tudo era proibido, as
melhorias eram poucas. Abrir estradas novas — pensava o Governo português — era
também criar caminhos para que os contrabandistas levassem o ouro das minas. A
instalação de um serviço de correios possibilitaria a troca de notícias entre
as longínquas localidades e com isso a união dos brasileiros. Fundar fábricas
prejudicaria o monopólio comercial de Portugal, diminuindo assim a renda da
Coroa. O conflito de interesses entre Colônia e Metrópole aumentava cada vez
mais.
Um alferes, sempre alferes
Em Minas Gerais, os anos passavam
e Tiradentes continuava um simples alferes. Não era promovido, embora tivesse
colegas mais novos na tropa que já eram capitães. Homem de confiança, escolhido
para missões de responsabilidade, Tiradentes mais de uma vez acompanhou o governador
de Minas, Rodrigo de Meneses, em expedições de reconhecimento dos sertões,
viagens em que, além de soldado, ajudava como cirurgião, traçava mapas,
pesquisava terras para mineração e identificava minerais. Mas não o promoviam.
Era sempre o Alferes. A injustiça estava marcando a vida de Joaquim José.
Em 1783, Cunha Meneses vem
substituir a Rodrigo de Meneses no Governo da capitania. É um homem arbitrário,
que só valoriza seus protegidos. Os brasileiros são sempre esquecidos, todos os
favores vão para os filhos do Reino. Os homens são premiados só pelo nascimento
ou pela bajulação. Também por isso, algumas velhas ideias vão ganhando corpo na
cabeça de Tiradentes. E, nas tavernas, nos quartéis e pousos de beira de estrada,
o Alferes, com seu vozeirão, começa a fazer críticas ao Governo, explicando que
os nacionais estavam condenados à pobreza e à ignorância pela prepotência dos
representantes da Coroa. Revoltava-o a submissão do povo à opressão dos
governantes.
Outra voz, também de Vila Rica,
logo se somaria à sua. A capital mineira era uma das vilas mais importantes do
Brasil colonial, tão importante que, em 1730, apenas dezenove anos depois de
sua fundação, já era assim descrita:
"Nesta Vila habitam os
homens de maior comércio, cujo tráfego e importância excedem, em comparação, o
maior dos maiores homens de Portugal; a ela se encaminham e recolhem as
grandiosas somas de ouro de todas as Minas, na Real Casa da Moeda; nela residem
os homens de maiores letras, seculares e eclesiásticos; nela tem assento toda a
nobreza e força da milícia e, por situação de natureza, cabeça de toda a
América, e pela opulência das riquezas, a pérola preciosa do Brasil".
Quase de um dia para outro, no centro da zona de mineração, surgiu Vila Rica, capital do ouro. |
Pois essa vila, rica em ouro,
igrejas, procissões coloridas e sobradões fechados no seu luxo, essa Vila Rica
também se manifestava contra a tirania, através dos versos de poetas, nas
chamadas Cartas Chilenas, que satirizavam
a situação.
Nos versos, distribuídos em folhetos,
o Governador de Minas aparecia como o Fanfarrão
Minésio, descrito corno cruel e prepotente. Os autores das Cartas, para escapar à fúria das
autoridades, usavam o pseudônimo de Critilo. Acredita-se hoje, através de
pesquisas literárias, que quem assim escrevia era Tomás Antônio Gonzaga,
ajudado por outro poeta, Cláudio Manuel da Costa. Juntos, ainda que trabalhando
separados até então, os versos dos poetas e a palavra do Alferes abriam a luta
pela emancipação política do Brasil.
Por fim, a grande escolha
Em 1787, quando a população da
capitania de Minas Gerais passava dos 400 mil habitantes, o ouro já era difícil
de encontrar e a Coroa portuguesa aumentava a pressão para recolher a parte que
exigia. Joaquim José, mais e mais, pregava a liberdade: — Ora eis aqui têm
vossas mercês todo este povo açoitado por um só homem e nós todos a chorarmos
como escravos — ai; ai; e de três em três anos vem um, e leva 1 milhão; e os
criados levam outro tanto; e como hão de passar os pobres filhos da América?
Aos 41 anos de idade, Tiradentes
dava sentido à vida entregando-se ao sonho da independência. Não podia ser
feliz em meio à exploração da sua gente: queria o que em outras partes do mundo
muitos homens também desejavam.
O século XVIII foi, na Europa, um
tempo de grande agitação política e filosófica. Tudo começara quase três
séculos antes, com a chamada Revolução Comercial, que acabou dando aos
burgueses o controle das finanças, das manufaturas, de quase todo o comércio.
Enquanto isso, o poder político continuava na mão de reis e nobres, que
protegiam companhias a eles ligadas e interferiam na liberdade dos comerciantes
de se abastecerem em mercados estrangeiros, freando a onda de progresso dos
grandes países da Europa daquele tempo. Analisando a disputa entre os donos do
poder político e os que controlavam a economia, muitos pensadores investiram
contra a nobreza e os velhos preconceitos, derrubando mitos em todos os campos,
da ciência à política. Um clamor de liberdade para todos, em todos os assuntos,
espalhou-se pela Europa. As novas ideias alastravam-se rapidamente. Os homens
passaram a debater um conceito até então indiscutível: que os reis governavam
por determinação divina. Iniciava-se a luta contra todas as tiranias. O homem
devia ser livre, devia poder pensar o que quisesse.
Essas ideias revolucionaram
também o Novo Mundo e, agitando a América inglesa, levaram-na a lutar pela sua independência.
Com a libertação das treze colônias da Inglaterra, que passaram a se chamar
Estados Unidos da América, chegava-se à primeira mudança concreta: o novo país
escolheu o sistema republicano de governo.
A declaração de Independência dos
americanos (4 de julho de 1776), escrita por Thomas Jefferson, sintetiza bem as
concepções filosóficas da época:
"São verdades indiscutíveis
para nós: que todos os homens nascem iguais; que a todos concedeu o Criador
certos direitos inalienáveis, entre os quais estão o da vida, liberdade e a
busca da felicidade; que os homens, para assegurarem esses direitos, constituíram
governos, cujos justos poderes emanam do consentimento dos governados. Que, toda
vez que uma forma de governo contraria esses fins, é um direito do povo
alterá-la ou aboli-la e instituir um novo governo, baseando seus fundamentos em
princípios tais e organizando seus poderes de tal forma, que a eles pareça contribuir
mais eficazmente para sua segurança e felicidade".
No ano de 1788, a rainha de Portugal,
Dona Maria I, tinha duas graves preocupações: impedir que as ideias de
liberdade entrassem no seu reino e recuperar as finanças do país. Na França, o
povo estava em vésperas de esmagar os nobres e a família real, clamando por
liberdade e igualdade. Enquanto isso, a Inglaterra continuava exercendo domínio
econômico sobre Portugal, a quem vendia produtos manufaturados a peso de ouro.
Tudo fora luxo e fartura na Corte portuguesa, durante os anos em que o Brasil
produzira ouro em abundância. Mas agora...
Até a metade do século XVIII, os riachos da região mineira foram palco de intensa atividade. Depois, o movimento começou a diminuir. Era o ouro que escasseava. |
Até 1750, enquanto as minas davam
muito, a Coroa manteve-se na opulência. Conseguia taxar as minas em quase 20%
(o "quinto"). Quando a produção caiu, entretanto, estabeleceu-se a
cobrança fixa dos direitos reais em 100 arrobas (1 500 quilos) por ano,
qualquer que fosse a produção. Os soberanos precisavam, de todo modo, continuar
recebendo o ouro das minas, sua propriedade particular que, benevolentemente, permitiram fossem
exploradas.
A partir de 1762, a arrecadação
não mais atingia a quantia fixada, pois as minas se estavam esgotando. Houve
então a primeira derrama. O povo era obrigado a completar o total de impostos
devidos com os seus próprios recursos. Uma segunda derrama se seguiu, em 1768,
e durou três anos. Dezessete anos depois, em 1788, a Corte portuguesa exigia novo
recolhimento das taxas atrasadas. Seria mais uma derrama, com a desculpa de que
não havia queda de produção e sim contrabando. Para cobrar a grande dívida, tão
grande que nem toda a produção de ouro de um ano poderia pagá-la, Dona Maria I
nomeou governador de Minas Gerais o General Dom Luís Antônio Furtado de
Mendonça, Visconde de Barbacena.
Um encontro muito importante
Desde março de 1787, desiludido da
vida militar, o Alferes Joaquim José pedira licença e seguira para o Rio. Em
Minas, os ideais de libertação fermentavam, mas não explodiam. E Tiradentes foi
tentar vida nova no Rio.
Se não teve sorte na infância,
nas diferentes profissões e nas relações com os poderosos, tampouco em sua vida
sentimental conseguiu triunfos maiores. Só uma vez amou de verdade, sendo quase
correspondido. Ela chamava-se Ana, tinha quinze anos, era sobrinha do Padre
Rolim, futuro companheiro de rebelião. Mas a moça já estava prometida a outro, Tiradentes
continuou só.
Homem elegante, chegando mesmo a ser vaidoso, Joaquim José sempre cuidou bem do único uniforme que vestiu na vida: o de alferes. |
Antes disso, duas outras mulheres
haviam entrado em sua vida, ambas de pobre condição social. A primeira, uma
mulata, Eugênia Joaquina da Silva, de quem Joaquim José teve um filho, João. A
outra, uma viúva, Antônia Maria do Espírito Santo, vivia nos arredores de Vila
Rica e também lhe deu uma criança: desta vez, uma menina, batizada com o nome
de Joaquina.
No Rio, Tiradentes elaborou projetos
importantes: queria construir armazéns no cais, para proteção e guarda das
mercadorias, e sonhava resolver o problema do abastecimento de água da cidade,
canalizando os rios Andaraí e Maracanã. Praticando a medicina para viver, foi,
ao mesmo tempo, fazendo grandes planos de engenharia.
As suas diversas petições para
obras estavam na Câmara Municipal, e elas exigiriam enormes financiamentos.
Joaquim José, agora misto de médico e engenheiro, pensou em recorrer a pessoas
de importância, que lhe facilitassem a aprovação da Câmara. É para isso que
naquele setembro de 1788 foi procurar o jovem José Álvares Maciel, que acabara
de concluir seus estudos em Portugal e Inglaterra. Joaquim José e Maciel não se
conheciam. Mas alguma coisa os ligava: ambos eram de Minas; Maciel, de Vila
Rica, filho do capitão-mor.
Maciel chegava da Europa alimentando
sonhos de independência. Joaquim José vinha de Minas, onde fervia a indignação
contra o Governo. Os dois se somaram. Logo, a conversa desviou-se da engenharia.
Joaquim José queria notícias da Europa, das novas ideias, dos movimentos de
libertação. E Maciel pedia notícias de Minas, do estado de coisas, da política portuguesa.
O Rio ia continuar sem água, no cais as mercadorias ficariam expostas à chuva e
ao sol. Os dois homens tinham coisas mais importantes para discutir.
A decisão está tomada
Nesse encontro é possível que Maciel
tenha lembrado a figura de José Joaquim da Maia, brasileiro do Rio, estudante
de medicina na Universidade de Montpellier, na França, que dois anos antes
procurara e fora recebido por Thomas Jefferson, um dos construtores da
independência dos Estados Unidos, então embaixador em Paris. Foi um encontro
entre um jovem entusiasmado e um estadista experiente. O brasileiro guardou
fria recordação da entrevista. Queria contar como ia a situação do seu país, a sede
de independência, a verdadeira subjugação em que andava seu povo. E pedir
conselho e ajuda. Jefferson escutou-o com simpatia. Mas nada prometeu, a não
ser que, se a guerra da independência começasse, alguns oficiais poderiam
auxiliar voluntariamente os brasileiros. Maia queria muito mais e saiu
decepcionado.
Terminada a licença, Tiradentes
regressa a Minas na escolta da mulher de Barbacena, o novo governador. Sua
recente conversa com Maciel — que prometera encontrá-lo em Vila Rica —
revelara-lhe o caminho a seguir.
Nos meses que se seguem, Tiradentes
procura ler tudo quanto se relacione com a independência das colônias inglesas
na América do Norte e com os ideais europeus de libertação e dignificação do
homem, ideais que tomavam também Portugal. Tem dificuldades. Essa literatura,
rara e difícil de ser obtida, vem escrita em francês e inglês, línguas que o
Alferes não dominava. Por isso, procura auxílio entre os intelectuais.
Tiradentes quer descobrir os caminhos da independência.
A propaganda abre o caminho
Juntos de novo, Joaquim José e Maciel
começam a traçar planos. Precisam da participação de um chefe militar que possa
sublevar as tropas contra a Coroa. Uma coincidência os ajuda. O comandante do
regimento em que o Alferes está servindo, Tenente-coronel Francisco de Paula
Freire de Andrada, é cunhado de Maciel. Vão procurá-lo, precisam conquistá-lo
para suas ideias. Mas tudo tem que ser feito com muito cuidado.
O tenente-coronel está em casa,
adoentado. Joaquim José chega dissimulando, a pretexto de uns soldos atrasados.
E passa a falar do desgosto do povo, dos temores que a ameaça da nova derrama
produzia, do sofrimento em que vivia toda a gente. Maciel, também presente,
começa a abrir o jogo, contando que na Europa as pessoas estranhavam que a América
portuguesa ainda não tivesse seguido o exemplo da América inglesa e proclamado
sua independência, libertando-se de Portugal.
Joaquim José acrescenta que os
impostos excessivos tornavam o povo disposto a seguir um chefe que os quisesse
libertar. E Maciel fala do possível auxílio estrangeiro a um novo regime
republicano, que se instalasse no Brasil. Paula Freire fica ouvindo e pensando.
Chega a dizer que Minas é apenas uma capitania dentre muitas. Mas os dois
conspiradores estão preparados, falam que as outras também apoiariam. Joaquim
José assegura que o Rio e São Paulo estão dispostos a acompanhar Minas Gerais. Maciel
lembra que, se o ouro ficasse no Brasil, Portugal não teria recursos para
manter uma guerra.
E o tenente-coronel, pensando e
ouvindo, concorda. Pronto: as tropas da rebelião contra a Coroa já tinham em
Paula Freire o seu comandante.
Joaquim José não espera mais
nada. Redobrou a propaganda da revolta. E, falando de Barbacena, ameaça:
— Sinto em mim o valor necessário
para pôr esse general de Paraibuna abaixo! Que vá para o Reino e que diga lá
que não precisamos mais deles! Somos mazombos
(brasileiros, filhos de portugueses) e sabemos governar!
Na casa de Cláudio Manuel da Costa reuniram-se os poetas inconfidentes. |
A primeira reunião dos conspiradores
aconteceu em fins de 1788, na casa do Tenente-Coronel Paula Freire. A eles se
unira o Padre Carlos Correia de Toledo e Melo, vigário de São João del Rei,
homem rico e influente. O tenente-coronel lembrou mais alguns nomes que
poderiam participar do movimento. E a conspiração foi crescendo com a
participação do Cônego Luís Vieira da Silva, do Padre Oliveira Rolim e dos
poetas e juristas Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga
Peixoto. Com o correr do tempo, mais nomes se juntariam aos primeiros. Não
tinham chefe, pois "todos eram cabeças". E as reuniões prosseguiam,
com as opiniões exaltadas de Tiradentes, a palavra de Maciel garantindo o apoio
externo e a concordância de Paula Freire, que via possibilidade de vitória no
terreno militar.
E Tiradentes dá início à campanha
revolucionária aberta. Num tempo em que criticar o soberano era crime gravíssimo,
o Alferes chega à temeridade, defendendo suas ideias em qualquer lugar em que
estivesse. Sua técnica é simples: aborda as pessoas e, conforme a condição do ouvinte,
ora denuncia a derrama, ora a injustiça social ou a violência das autoridades.
Mas sua intenção não é apenas evitar a derrama ou diminuir os impostos.
Por motivos puramente fiscais, já
em 1720 Vila Rica tinha sido palco de um protesto-monstro contra a Coroa,
protesto logo sufocado e que resultou na condenação do principal responsável —
o português Filipe dos Santos — à pena de morte e esquartejamento.
Mas Tiradentes não quer que o
povo de sua terra se revolte apenas para lutar contra impostos. Quer a liberdade
do Brasil. E assim iniciou-se a Inconfidência, como seria conhecida a rebelião,
já que os revoltosos estavam negando fidelidade à Coroa portuguesa.
Os planos para tomar o poder
A guerra da independência dos Estados
Unidos tivera início sob o impacto da cobrança de um imposto sobre o chá
(1773). Os brasileiros contavam com a derrama. No momento da decretação da
cobrança dos impostos atrasados, haveria clima para deflagrar o movimento e conquistar
o apoio popular.
Os planos foram traçados: na
ocasião da derrama, Tiradentes, depois de prender o governador, despertaria
Vila Rica aos gritos de liberdade. A pretexto de restaurar a ordem, Paula
Freire e suas tropas ocupariam a cidade e, com Vila Rica sob controle, declararia
sua adesão à Inconfidência. As vilas vizinhas estavam prontas para dar o apoio preciso:
o Padre Rolim garantia a adesão de Sêrro Frio; o Cônego Melo e seu irmão,
sargento-mor e comandante de cavalaria Luís Vaz de Toledo Piza, respondiam por
São João del Rei, enquanto Alvarenga Peixoto vinha preparando a sedição na
povoação de Campanha.
No mastro central desta praça de Vila Rica, em frente à Casa da Câmara e Cadeia (hoje Museu da Inconfidência de Ouro Preto), o povo pôde ver Tiradentes pela última vez. |
Os inconfidentes sabiam que haveria
luta. E se preparavam para ela. Nos primeiros dias, o Padre Rolim, homem rico,
fazendeiro, entraria com pólvora e cem homens armados. Mais pólvora deveria vir
de Domingos de Abreu Vieira, um velho comerciante e fazendeiro. Isso daria
tempo a que Maciel instalasse uma fábrica de pólvora. A coisa entra em ritmo de
urgência: Tiradentes queria que se proclamasse a República, mas o nome do novo
país não ficou decidido, porque a maioria dos conjurados queria antes saber até
que ponto o Brasil estava disposto a livrar-se do domínio português. Redigem um
projeto de Constituição; a capital deve ser transferida para São João del Rei;
Vila Rica em troca, vai ganhar uma universidade; debatem o fim da escravidão,
mas deixam a questão em suspenso, já que alguns não acham o momento oportuno.
Tiradentes propõe que a bandeira da nova república seja um triângulo
simbolizando a Santíssima Trindade, riscado em vermelho sobre fundo branco.
Alvarenga sugere uma inscrição tomada ao poeta latino Virgílio: Libertas quae
sera tamen — Liberdade ainda que tardia. Agora é só esperar que Barbacena
decrete a derrama. Os inconfidentes resolvem não mais se reunir e combinam uma
senha: — Tal dia é o batizado. O dia do "batizado" seria a data da
derrama.
Entre os heróis, um vilão
O Coronel Joaquim Silvério dos
Reis, fazendeiro e minerador no lugar chamado Igreja Nova da Borda do Campo
(hoje Barbacena), comandante de tropa em São João del Rei, pessoa de reputação
duvidosa, chegou à conspiração através do Sargento-Mor Toledo Piza. Embora não
o apreciando, os inconfidentes aceitaram a aproximação. Silvério dos Reis devia
enorme quantia ao Governo português e ficaria arruinado com a derrama. Assim,
os conspiradores julgaram poder confiar nele. Mas não lhes ocorreu que, para
alguém como Silvério, haveria formas mais fáceis e menos arriscadas de
livrar-se de suas dívidas. Introduzido no movimento, conheceu todos os
segredos. Tinha até missão para o dia da revolta: levaria duzentos escravos
armados para guardar a estrada do Rio de Janeiro, por onde deveriam vir as tropas
do vice-rei fiéis à Coroa portuguesa.
Mas eram outros os planos de
Silvério dos Reis. Com todas as informações sobre a Inconfidência, a 15 de
março de 1789 correu ao palácio de Barbacena para trocar a cabeça dos
companheiros pelo perdão das suas dívidas. Barbacena ouviu e meditou. Não era
homem de precipitações. Julgava Silvério dos Reis um homem de "mau
coração". Fez divulgar surdamente que já sabia de tudo e esperou por novos
traidores que confirmassem o primeiro. Logo apareceram Basílio de Brito Malheiros
e Inácio Correia de Pamplona, tudo contando ao governador. Barbacena, para
ganhar tempo, suspendeu imediatamente a decretação da derrama.
Nesse instante crucial, o Alferes
Joaquim José da Silva Xavier não estava em Vila Rica: tinha ido ao Rio com a
desculpa de ver como iam os seus requerimentos de obras públicas, para
conseguir o apoio da guarnição carioca. Sua ausência na hora da delação e da
descoberta dos planos auxiliou o desmoronamento da rebelião.
Amedrontados pela decisão de Barbacena,
os conspiradores limitaram-se a aguardar os acontecimentos. A decisão e
iniciativa, que poderiam ter sido a garantia de vitória, ficaram aos portugueses.
E começaram as prisões.
Faltaram à conspiração mineira
mais homens arrojados como Tiradentes e Oliveira Rolim, mais homens de
inteligência e sangue frio como Álvares Maciel. A rebelião seria esmagada sem
que um tiro fosse disparado.
Outra vez, uma traição
O cavaleiro que parte de Vila Rica
rumo ao Rio leva torpe missão. É ele mesmo, o delator Silvério dos Reis, que a
mando de Barbacena vai espionar Tiradentes para facilitar ao vice-rei o
trabalho de prendê-lo. O traidor encontra sua vítima e lhe relata os fatos de
Minas: a derrama está suspensa, Barbacena desconfia de alguma coisa.
Joaquim José sente que a
revolução corre perigo, mas não desconfia de Silvério e até lhe conta que
estava sendo seguido por homens que sabia serem soldados da capitania do Rio,
chegando mesmo a levar queixa ao Vice-Rei Dom Luís de Vasconcelos e Sousa,
perguntando-lhe se era acusado de algum crime. Vendo seus planos ameaçados, o
Alferes decide voltar a Minas: consegue iludir os espiões que o vigiavam e,
sempre no Rio, esconde-se em casa de Domingos Fernandes da Cruz, de onde começa
a preparar a viagem de regresso. Não lhe foi fácil arrumar casa que o
recebesse. Teve até que dissimular com Dona Inácia, sua comadre, a quem disse
que o vice-rei queria culpá-lo por um crime ocorrido em Minas e não lhe dava passaporte,
pretendendo prendê-lo. Porque era viúva e porque tinha filha solteira, Dona
Inácia não quis recebê-lo. Mas, como lhe devia favor — Joaquim José tratara e
curara uma feia ferida na perna de sua filha —, a viúva arruma-lhe lugar na
casa do torneiro Domingos, na Rua dos Latoeiros, hoje Gonçalves Dias. E lá está
o Alferes tramando planos de fuga, quando uma imprudência põe tudo a perder.
Joaquim José queria notícias de
Minas e, para obtê-las, mandou um amigo, o Padre Inácio Nogueira, à procura de
Silvério dos Reis. Outra vez, o traidor foi fiel à traição e entregou o padre
ao vice-rei. O sacerdote inconfidente Inácio Nogueira resistiu o quanto pôde,
mas as torturas acabaram por vencê-lo, levando-o a indicar a casa onde estava o
Alferes. Uma patrulha saiu em sua busca. E é assim que, a 10 de maio de 1789, a
casa de Domingos Fernandes da Cruz é cercada. Prendem Joaquim José com um
bacamarte na mão, mas já sem poder resistir.
Eram muitos os inimigos. Com apenas um bacamarte, nada pôde fazer o Alferes quando foi preso no Rio. |
Agonia de um sonho
Enquanto isso, em Vila Rica, os conspiradores
se dividiam. Apenas o Padre Oliveira Rolim tentava começar o levante de
qualquer maneira, só desistindo quando achou que a tarefa tornara-se
impossível. Não ficou notícia da posição do jovem Maciel. Supõe-se que, ao lado
do padre, tenha procurado levar adiante o movimento. Mas era muito tarde.
E Gonzaga, o poeta e jurista, também
procurou Barbacena. Não sendo propagandista apaixonado, nem teórico da causa, e
tendo tido atuação discreta, sentia-se capaz de passar como inocente aos olhos
da Coroa. Quando a derrama foi suspensa, Gonzaga esteve no palácio para
cumprimentar Barbacena pelo ato. Mas o governador já o tinha sob os olhos e,
onze dias após a prisão de Tiradentes, Gonzaga foi detido, apesar de ser ouvidor
(juiz de direito), de ter posição elevada e de ser amigo de Barbacena.
Com a derrota, os homens revelavam-se:
Alvarenga Peixoto aconselhava que, se fossem presos, deviam negar tudo; o
Cônego Melo, acovardado, recusava-se até a falar no assunto; e o
Tenente-Coronel Paula Freire, a quem deveria caber a iniciativa de resistir ao Governo
com seus soldados, abandonou a cidade, indo para sua fazenda, de onde voltou
para denunciar os companheiros e tentar salvar-se. Traiu, mas não conseguiu
escapar.
Dias depois, em Vila Rica, seus companheiros também eram detidos. Mais tarde, uma trágica expedição os levaria para o Rio de Janeiro. |
As prisões foram numerosas. Ia começar
a devassa, inquérito rigoroso para julgar os acusados de sedição, um crime
infame, segundo a Coroa portuguesa. Por decisão real, o processo correu no Rio
de Janeiro. Antes de ser transferido para o Rio, um dos prisioneiros, o poeta
Cláudio Manuel da Costa, sessenta anos, suicidou-se ou foi morto na prisão de
Vila Rica.
No Rio de Janeiro, mantidos em
celas individuais, só se avistando com seus interrogadores ou com os delatores
com quem eram acareados, os inconfidentes aguardaram a sentença durante três
longos anos. Completamente isolados do mundo, com os bens sequestrados e a
família posta na miséria, os prisioneiros esperavam. Os poetas encontravam
alento para escrever. Tomás Antônio Gonzaga lembrava-se dos momentos passados
com sua noiva:
"Que diversas que são, Marília, as horas
que passo na masmorra imunda e feia,
dessas horas felizes, já passadas
na tua pátria aldeia".
Esta é Joaquina, noiva do poeta Tomás Gonzaga. Com o nome de Marília, foi a inspiradora de muitos versos de amor. |
Alvarenga Peixoto dedicava seus
versos à esposa Bárbara Heliodora aos seus filhos:
"Eu não lastimo o próximo perigo,
uma escura prisão, estreita e forte.
Lastimo os caros filhos, a consorte,
a perda irreparável de um amigo”.
O amigo a quem Alvarenga se refere
era Cláudio Manuel da Costa. Pouco a pouco, sob o peso da coação moral e da
agressividade dos interrogatórios, os inconfidentes se entregaram.
O primeiro a ceder foi Alvarenga.
Em lágrimas, sob a mais violenta crise, contou tudo. E, um a um, os outros
todos se declararam culpados. Somente Gonzaga resistiu até o fim, insistindo na
sua inocência, fortalecido pela absoluta falta de provas contra si.
Para libertar seus companheiros, Tiradentes assumiu toda a culpa e se manteve sereno e tranquilo, mesmo depois de conhecer a sentença final. |
Em três interrogatórios,
Tiradentes tudo negou. Mas no quarto, a 18 de janeiro de 1790, apareceu com resolução
nova. Confessou. Não quis, entretanto, que seu ato fosse inútil e, frustrado em
libertar sua pátria, tentou ao menos salvar os companheiros. E confessou não só
a sua participação, mas assumiu a culpa de todos. Mentiu ser o único chefe e
apresentou os companheiros como inocentes a quem pervertera.
Catorze homens para a forca
No processo estavam envolvidos 34
acusados. Muitos tinham tido papel secundário, alguns nem mesmo participação
ativa.
A 18 de abril de 1792, os cinco
réus padres receberam a sentença: três deles, o Cônego Melo, o Padre Rolim e o
Padre José Lopes de Oliveira, foram condenados à forca; os outros dois,
atingidos pelo degredo perpétuo — seriam expulsos do Brasil e enviados para
lugar remoto, em alguma outra colônia, até morrerem.
No dia seguinte, 19, às 2 da madrugada,
os oficiais da Justiça entraram na cadeia com a sentença para os 29 civis e
militares. Pela primeira vez, desde a prisão, os inconfidentes estavam juntos.
Os três anos de incomunicabilidade — passados em isolamento, inquisições e
formalidades processuais — lhes deram um violento desejo de falar. E falando,
alguns se acusando, passaram horas, até a chegada da volumosa sentença, que
levou dezoito horas para ser escrita, e cuja leitura só terminou depois de duas
duras horas.
Os nomes dos réus, com suas
culpas, desfilaram um a um, até que o escrivão passou a ler as penas. Paula
Freire, Maciel, Alvarenga, Domingos de Abreu Vieira, Francisco Antônio de
Oliveira Lopes e Luís Vaz de Toledo Piza, irmão do Cônego Melo, iam ser
enforcados e suas cabeças cortadas e colocadas em postes altos, em frente de
suas casas, "até que o tempo as consuma". Salvador Carvalho do Amaral
Gurgel, José de Resende Costa, pai, José de Resende Costa, filho, e Domingos
Vidal Barbosa seriam enforcados, com infâmia para os descendentes até a
terceira geração, mas não teriam as cabeças cortadas.
Tomás Antônio Gonzaga e os demais
receberam o degredo perpétuo, a ser cumprido na África. Só alguns poucos foram
absolvidos, depois de terem sofrido três anos de prisão.
Digno e sereno, Tiradentes ouviu
a sua sentença:
— Portanto condenam ao réu Joaquim
José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, alferes que foi da tropa paga
da capitania de Minas, a que com braço e pregação seja conduzido pelas ruas
públicas ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre, e que depois
de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, onde em o lugar mais
público dela será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma; e o seu
corpo será dividido em quatro quartos, e pregado em postes, pelo caminho de
Minas, no Sítio da Varginha e das Cebolas, onde o réu teve as suas infames
práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações até que o tempo também os
consuma; declaram o réu infame, e seus filhos e netos, tendo-os, e os seus bens
aplicam para o Fisco e Câmara Real, e a casa em que vivia em Vila Rica será
arrasada e salgada, para que nunca mais no Chão se edifique, e, não sendo
própria, será avaliada e paga a seu dono pelos bens confiscados, e no mesmo
chão se levantará um padrão, pelo qual se conserve a memória desse abominável
réu.
46 anos depois, seus bens seriam confiscados. Este relógio foi o que de melhor a Coroa recebeu. |
Mas os bens de Tiradentes não enriqueceram
o tesouro de Dona Maria I, a Rainha Louca: um par de esporas de prata, um par
de fivelas, duas navalhas de barbear, um espelho, uma bolsa com ferros de
dentista, uma bússola, um canivete, uma caixinha de chifre e um relógio marca
Elliot. Isso era tudo o que possuía o autor, segundo os juízes, de um grande
crime:
— Mostra-se que entre os chefes e
cabeças da conjuração, o primeiro que suscitou as ideias de república foi o réu
Joaquim José da Silva Xavier, o qual há muito tempo que tinha concebido o
abominável intento de conduzir os povos da capitania de Minas a uma rebelião.
Após a leitura da sentença, reunidos
réus e confessores, houve muito choro, lamentações e pânico. Domingos Vidal
Barbosa ria como louco. Alvarenga rezava e falava nos filhos. Maciel lia uma
Bíblia e procurava consolar os companheiros mais desesperados.
A um canto, com seu confessor,
Frei Raimundo de Penaforte, Tiradentes murmura, quase numa oração:
— Se Deus me ouvisse, só eu morreria
e não eles.
E, como se Deus atendesse ao apelo,
no dia seguinte, todas as penas de morte foram comutadas para o degredo, exceto
uma. A Coroa fazia questão de enforcar ao menos um dos conspiradores, para que
servisse de exemplo: Tiradentes fora o escolhido.
A louca alegria foi geral. Houve
até quem, entre os condenados, desse vivas "à nossa clementíssima soberana
Dona Maria I". E na confusão ninguém prestou atenção a Tiradentes, ninguém
lhe agradeceu o papel heroico e digno. Somente Frei Penaforte recolheu lhe as
palavras:
— Dez vidas eu daria, se as tivesse,
para salvar as deles.
A longa marcha para a morte
Arreios de prata refletem o sol
que nasce. O desfile das montarias militares, com suas mantas coloridas, acorda
a cidade do Rio de Janeiro. A Rua do Piolho, onde está a cadeia, o Largo da
Lampadosa e o Campo de São Domingos estão cheios de gente. Os soldados, em
posição de sentido, são inspecionados pelo filho do novo vice-rei, o Conde de
Resende. As janelas estão apinhadas. As tropas fazem alas da cadeia ao Campo de
São Domingos.
O objetivo da Coroa era fazer da
execução uma festa. Mas na manhã ensolarada a multidão tem o rosto sombrio.
Todos sabem que aquilo tudo não passa de um enterro.
Um frade pede esmolas. Com o
dinheiro pretende mandar rezar uma missa pelo condenado. Todos contribuem com
suas moedas, enquanto a curtos intervalos um funcionário lê solenemente a
declaração real:
— Justiça que a Rainha Nossa
Senhora manda fazer a este infame réu Joaquim José da Silva Xavier, pelo
horroroso crime de rebelião e alta traição de que se constitui chefe e cabeça
na capitania de Minas, com a mais escandalosa temeridade contra a Real Soberana
e suprema autoridade da mesma Senhora que Deus guarde.
A Revolução Francesa levou esta mulher à loucura: ela temia perder o seu trono. |
Era o dia 21 de abril de 1792. O
ar estava cheio de vozes e de tambores. Às 7 da manhã, o negro Capitânia, que
vai servir de carrasco, entra no oratório da cadeia, onde está Tiradentes. Traz
nos braços comprida e grossa corda e o camisolão branco dos condenados. Joaquim
José está sem barba, o cabelo todo raspado, preparado para enfrentar a morte. O
carrasco lhe pede perdão pelo que o obrigam a fazer. Tiradentes beija-lhe as
mãos. E, sem roupa alguma, veste o feio manto dos que vão para a forca,
dizendo:
— Meu Salvador morreu também
assim, nu, por meus pecados.
Recebe no pescoço a corda do carrasco.
Não são ainda 9 horas e começa o triste cortejo. Sai à frente uma companhia de
soldados. Depois, os frades dizendo orações. E, em seguida, Tiradentes, laço no
pescoço, a ponta da corda segura pelo carrasco. Ao seu lado, funcionários da
Justiça e, quase abraçado ao condenado, Frei Penaforte reza com ele. Mais
atrás, os representantes da Coroa, guardados por outra companhia de soldados.
No fim, um carroção desajeitado: ali colocarão os pedaços de um corpo que será
esquartejado.
Apesar de descalço, metido em uma
camisola, Tiradentes nada tem de ridículo. Ele é forte: a cabeça alta, o porte
ereto, o passo firme, marcha para a forca. Há um clamor no Largo da Lampadosa:
o condenado está chegando. Tiradentes entra na praça, sobe os degraus do
patíbulo, beija o crucifixo e dirige-se ao carrasco:
— Acabe logo com isso.
Mas há sermão. É Frei José Jesus
Maria de Desterro quem fala: explica que a cena que vai ser vista não é cruel,
que é apenas justiça que a piedosa soberana Dona Maria I manda fazer contra o
réu, autor do mais hediondo dos crimes: a sedição.
Outra vez, Tiradentes pede ao carrasco
que acabe logo com tudo. Mas o padre continua falando da benignidade da rainha
e da infâmia do condenado ainda por uma hora e meia.
Fim do discurso impiedoso.
Reza-se o Credo. Os tambores não cobrem a voz de Tiradentes, que reza com o
povo. Súbito, no meio de uma frase, um baque surdo. O bater dos tambores
cresce, o corpo de Tiradentes balança no ar.
O carrasco cavalga o corpo do
herói, trepa-lhe nos ombros, para apressar o fim. São 11 horas e 20 minutos. O
sol vai alto. Tiradentes está morto.
Frei Raimundo de Penaforte, o
confessor, abençoa o corpo. Mais tarde escreveria:
— Foi um daqueles indivíduos da
espécie humana que põem em espanto a própria natureza. Entusiasta, empreendedor
com o fogo de um Dom Quixote, habilidoso com um desinteresse filosófico, afoito
e destemido, sem prudência às vezes e outras temeroso ao cair de uma folha, mas
o seu coração era bem formado.
Um espírito inquieto, um homem
leal, esse Alferes Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha Tiradentes, herói
sem medo de todo um povo.
A Coroa quisera, com o espetáculo
do enforcamento, afirmar o seu domínio sobre a colônia brasileira. Tiradentes
tentara, com o sacrifício, salvar os companheiros e abrir ao povo o caminho da
emancipação política.
O carrasco Capitânia conhece sua vítima: de pé, descalço, seminu, está um homem pronto para tudo. |
Na morte, venceu Tiradentes. Apenas
uma semana depois da execução registrava-se um novo ato de desobediência ao Governo
de Portugal: apesar da vigilância dos guardas, desaparece a cabeça de
Tiradentes, espetada num poste de Vila Rica.
O roubo da cabeça, embora possa
ter sido apenas um ato de piedade cristã, mostra também que o Governo não mais
intimidava o povo. Os traidores souberam disso pelo rancor que a população lhes
devotava. Silvério dos Reis escreveu ao vice-rei, dizendo que "tudo fizera
por Sua Majestade ... e agora só recebia em troca inquietação e desassossego".
Também Basílio de Brito Malheiros — o outro traidor — revelou em seu testamento
que vivera com receio de ser assassinado.
Os habitantes de Minas Gerais estavam
mais preparados para a revolta do que supunham os próprios inconfidentes. Não fossem
a indecisão e a pusilanimidade de Paula Freire, o comandante das tropas, e é
possível que a história da Independência do Brasil tivesse sido diferente.
Uma parte de insegurança que a
Inconfidência mostrou nos momentos decisivos talvez se deva ao isolamento de
Minas, pois os rebeldes não tinham certeza de como se comportariam as demais
capitanias, uma vez iniciado o levante. Numerosas vezes, as palavras de Paula
Freire expressaram tal preocupação. E, no entanto, em todo o Brasil já crescia
a revolta.
Menos de dois anos depois da morte
de Tiradentes, o Governo português iniciava uma nova devassa, desta vez no Rio
de Janeiro, prendendo o poeta Silva Alvarenga e o bacharel Mariano José
Pereira, futuro Marquês de Maricá, entre outros. Era o temor à rebelião que se
alastrava. E, em 1798, a conjuração explode na Bahia, envolvendo 669 pessoas, a
maioria das quais não pôde ser localizada. Desta vez, a repressão portuguesa
enforcou quatro revoltosos (João de Deus, Lucas Dantas, Manuel Faustino e Luís
Gonzaga), gente humilde — alfaiates e sapateiros — que pretendia fazer do
Brasil uma república.
A cada instante tornava-se mais difícil
a Portugal impedir que as ideias liberais se propagassem pelo Brasil. E, em
cada novo pensamento rebelde, em cada gesto de desobediência política, em cada
desejo de liberdade estava a sombra de um homem enforcado. Tiradentes mostrara
o caminho.
TIRADENTES é uma publicação em fascículos encadernáveis da coleção
GRANDES PERSONAGENS DA NOSSA HISTÓRIA - Volume I
ABRIL CULTURAL.
Editor: Victor Civita
Supervisão: Prof. Sérgio Buarque de Holanda
Colaboração Editorial: Luís Fernando Mercadante
Publicado em 1969
Cumpriram a sentença brutal até o fim. |
GRANDES PERSONAGENS DA NOSSA HISTÓRIA - Volume I
ABRIL CULTURAL.
Editor: Victor Civita
Supervisão: Prof. Sérgio Buarque de Holanda
Colaboração Editorial: Luís Fernando Mercadante
Publicado em 1969
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