Talvez o contato mais estreito que já tive com a morte fosse o que se
verificou num corredor de hotel em Dayton, no Estado de Ohio. Esse quase
desastre ocorreu porque eu sou cego. Mas não precisava ter acontecido
absolutamente e foi apenas por minha própria culpa.
Eu estava escalado para falar numa grande convenção naquela noite, o
trem chegara atrasado e eu estava em cima da hora. Em companhia de Buddy, a
cadela-guia que substituía os meus olhos, corri para o meu quarto no 14º andar.
Quando acabei de me preparar, só me restavam 15 minutos para chegar à sala onde
se reuniria a convenção. Tinha de descer o mais depressa possível e tomar um
táxi.
Em companhia da minha onipresente companheira, embarafustei pelo
corredor rumo ao vestíbulo dos elevadores. Ali, Buddy parou bruscamente. Ela,
que sempre se encaminhava para qualquer elevador e apontava com o focinho, para
orientar-me, o botão de chamada, não se aproximou daquele. Não tomou o menor
conhecimento da ordem de "Adiante" que lhe dei. Diante disso, na pressa
em que estava, fiz o que nenhum dono de cachorro-guia deve jamais fazer.
Larguei a trela e segui à frente sozinho.
Buddy imediatamente se atravessou diante das minhas pernas, empurrando-me
com tanto vigor que eu não pude mais prosseguir. Nesse momento, uma empregada
que saía de um dos quartos deu um grito de pavor.
—Não se mexa!—exclamou ela. —A porta do elevador está aberta, mas o
elevador não está aí! Há apenas o buraco escancarado!
Meus joelhos quase se dobraram. Se Buddy me tivesse deixado dar mais
dois passos eu teria desaparecido no poço do elevador vazio!
Naquele instante de gratidão e revelação, brilhou-me no cérebro a
compreensão perfeita do que significava para mim a lealdade e a inteligência
daquela bonita cadela de raça pastor alemão. E não apenas para mim, mas para
todos os cegos que alcançaram a liberdade e a independência, graças ao emprego
de cães-guias ensinados. Porque Buddy foi o primeiro cão que serviu de guia nos
Estados Unidos. Todos os seus atos eram acompanhados da mais ampla publicidade
e observados com uma curiosidade que a princípio era profundamente céptica. Se
a sua atuação não tivesse sido brilhante e impecável, é bem possível que o
programa de treinamento de cães para cegos jamais tivesse sido posto em
prática.
Até poucos anos antes, eu nunca tinha ouvido falar em cachorros ensinados
para servirem de guias a cegos. Tinha eu então 20 anos e era cego havia quatro.
Perdi o olho direito aos seis anos numa ocasião em que, andando a cavalo, dei
com o rosto num galho de árvore. Depois, aos 16 anos, levei um soco infeliz
numa luta de boxe e daí a dois dias deixei de ver. Não tinha intenção de
tornar-me um desses lamentáveis cegos que às vezes se veem e que dependem dos
outros para as suas menores necessidades. Havia algum tempo que eu cursava uma
universidade e fazia corretagem de seguros depois das aulas. Tinha, porém,
grande dificuldade em movimentar-me. Certa vez, tateando com a minha bengala,
caí numa vala mais alta do que a minha cabeça e tive de esperar uma hora
humilhado até aparecer alguém que de lá me tirasse. Em outra ocasião, um
motorista bateu no meio-fio para não me atropelar, capotou com o carro e só por
muita sorte saiu ileso. Esses enervantes acidentes mostravam claramente que eu
precisava de mais alguma coisa do que uma bengala.
A coisa não melhorou muito quando contratei um garoto para me guiar.
Eram muitas as manhãs em que ele não aparecia e eu tinha de perder as aulas. Às
vezes, quando ele me levava para fazer corretagem de seguros, as pessoas
faziam-lhe sinal para que dissesse que "não estavam" e ele concordava
com esse subterfúgio. De modo que eu estava desesperadamente disposto a
experimentar qualquer coisa que me assegurasse alguma independência.
Afinal, um dia, lembro-me bem da data - 5 de novembro de 1927 — meu pai
lia para mim numa revista um artigo sabre a maneira como os alemães haviam
ensinado cães pastores a servirem de olhos aos cegos. Dizia-se que esses
inteligentes e muito ensinados animais atendiam às ordens com uma percepção
quase humana e conduziam as pessoas a seu cargo com segurança através do
tráfego das cidades, em torno de obstáculos, por escadas acima, para os
elevadores. Em resumo, afirmava-se que o cego, com o auxílio desses cães
admiráveis, poderia ir a qualquer lugar que entendesse e levar uma vida quase
normal. Se isso era verdade, significava que eu e centenas de pessoas como eu
poderíamos livrar-nos da prisão da cegueira.
Depois de meditar naquele artigo de revista provocador de esperanças toda
uma noite sem sono, escrevi à autora, Dorothy Harrison Eustis, que vivia perto
de Vevey, nos Alpes suíços.
Depois de um angustioso mês de espera, chegou a resposta. A Sr.ª Eustis
escrevia que, na sua propriedade nos Alpes suíços, Fortunate Fields, ela mesma
criava cães pastores alemães e os preparava para fazer serviços de polícia e da
Cruz-Vermelha.
Mas, dizia, nunca ensinara cachorros para servirem de guias a cegos.
(Quando meu pai leu isso, senti um baque no coração.) Entretanto, se eu
realmente me dispusesse a ir até às montanhas da Suíça à procura de um
cachorro, ela me descobriria um e me arranjaria um instrutor habilitado.
Não tive a menor hesitação. Para conseguir independência, eu estaria
disposto a ir a qualquer parte.
As circunstâncias de família eram tais que eu tive de fazer a viagem
sozinho. Assim, em abril de 1928, fui à Suíça como se fosse uma encomenda, aos
cuidados da Companhia American Express. O fato me aborreceu e contrariou de tal
modo que me tornou ainda mais decidido a conquistar a minha liberdade.
Fui
confiado a um camaroteiro que era menos um servidor do que um carcereiro. Todas
as manhãs eu ficava preso no meu camarote, cuja porta se fechava pelo lado de
fora, até que ele chegava para escoltar-me à primeira refeição. Logo que eu
acabava o café, levava-me de novo para o camarote.
Às 10 horas, ele me trabalhava como se eu fosse um cavalo, fazendo-me
trotar metodicamente à volta do convés. Depois, depositava-me numa das cadeiras
da coberta. Se algum passageiro amável me convidava para dar uma volta, mal
dávamos alguns passos o meu guarda aparecia ofegante, agarrava-me pelo braço e
tornava a levar-me para a cadeira, onde podia vigiar-me. Não havia dúvida que a
American Express e o comandante daquele navio levavam a sério a
responsabilidade que tinham com o cego que ia a bordo!
Como foi diferente quando saltei do trem para o sol morno e o fresco ar
da primavera de Vevey, na Suíça!
— Aqui estamos, Sr. Frank!
Foram as primeiras palavras que ouvi. Era a voz gentil da Sr.ª Eustis.
Apertou-me calorosamente a mão e apresentou-me aos outros.
— Estão comigo o nosso diretor de treinamento e genética, Jack Humphrey,
a senhora dele e o filhinho do casal, George, que tem quatro anos.
Enquanto ouvia falar tão cordial criatura, calculei que a Sr.ª Eustis
devia ser pequena, com menos de 1,60m de altura, talvez. Em vista da sua
maneira de falar, dava-me a impressão de ser delicada, mas firme e uma pessoa
que observava padrões de conduta elevados e os exigia dos outros. Era evidente
que se tratava de uma pessoa que sabia conseguir o que queria.
Depois
do jantar em Fortunate Fields, Jack Humphrey me disse que a Sr.ª Eustis estava
empenhada em criar uma variedade de pastor alemão com elevada capacidade de
aprendizagem. Na maioria, estavam sendo treinados para serviço de guarda,
polícia ou salvamento, mas um dos melhores exemplares fora escolhido para ser o
meu cão-guia. Era uma cadela e fora ensinada pelo próprio Jack, que era quem ia
ser meu instrutor. Passara um mês em Potsdam aprendendo a muito especializada
técnica do preparo de cães-guias e depois estudara meios de ensinar os cegos a
servirem-se deles. Seria eu o seu primeiro aluno.
Na tarde seguinte, Jack me trouxe a minha cadela, colocando antes na
minha mão um pouco de carne moída para que eu começasse a conquistar-lhe a
amizade. Ouvi a porta abrir-se e o pisar macio das patas da cadela no chão.
Estendi a carne e ela a aceitou com dignidade. Depois, ajoelhei-me e
afaguei-lhe o pelo sedoso.
Como era bela! A Sr.ª Eustis a descrevera como um bonito animal
cinza-escuro com uma mancha creme no pescoço. As sensíveis orelhas estavam
sempre alerta e os doces olhos castanhos eram brilhantes e cheios de
compreensão. Senti um impulso de afeição por ela. Como eu desejava que a minha
aparência fosse para ela tão boa quanto a sua, no meu espírito, já o era para
mim. Abracei a minha nova amiga e disse-lhe:
— Vou chamá-la de Buddy.
Peguei Buddy pela trela e andei com ela para baixo e para cima a tarde toda.
Já apegada aos seus treinadores e amiga dos seus companheiros no canil, ela mal
me tolerava. Ficou, entretanto, satisfeita naquela noite quando foi levada para
dormir ao lado da minha cama no meu quarto quente, em vez de ir para o
alojamento dos cães.
O ar frio que descia das montanhas coroadas de gelo, na manhã seguinte, fez-me
ficar aninhado debaixo das cobertas até que, de repente, uma língua quente me
lambeu o rosto. Lembrei-me então de que estava na Suíça, no alto do Monte
Pelerin, e de que quem estava ali era Buddy. Então tudo o que se passara comigo
naquelas últimas semanas não fora um sonho!
Naquela manhã começou a minha aprendizagem. Coloquei a trela em Buddy,
com sua alça rígida de couro em forma de U que iria ser o elo vital que me
uniria a ela, e encontrei-me com Jack na porta da casa.
— Segure a alça com a mão esquerda. O animal ficará sempre à sua
esquerda, entre você e o tráfego de pedestres — disse Jack com a sua voz calma.
— Levante bem os ombros e ande com passo militar. Agora, dê-lhe a ordem de
"Adiante" com bastante clareza. Logo que ela obedecer, recompense-a
com um elogio.
Segurei a trela, com o coração batendo forte e disse com voz um pouco
trêmula:
— Adiante!
A alça quase me foi arrebatada da mão e nós voamos literalmente até ao
portão. Buddy parou diante deste e, por um instante, fiquei cambaleando para
trás e para diante, desequilibrado.
— Ela lhe está mostrando onde está o trinco — disse Jack.
Pousei a mão na cabeça do animal e desci a mão pelo seu focinho.
Ela não poderia ter indicado a localização do trinco com mais precisão.
Levantei o trinco e saímos.
— Conserve o braço livre encostado ao corpo, do contrário baterá na
ombreira do portão — avisou Jack.
Seguindo as instruções de Jack, dei as ordens "Direita" e
"Adiante" — desta vez com um pouco menos de timidez — e lá nos fomos
pela estrada a um passo com que eu não andava havia anos.
— Endireite os ombros! — ouvi me dizerem.
Ao mesmo tempo que aprumei o corpo, estufei o peito. Os meus passos se
tornaram mais largos e eu ouvi a voz da Sr.ª Eustis dizer:
— Veja! Ele ergueu a cabeça!
Não era de admirar! Era uma maravilha estar assim ligado à vida apenas
por um animal e uma correia de couro. Estávamos a caminho de Vevey e tínhamos
de andar no funicular na encosta da montanha onde ficava Fortunate Fields. Eu
percebia perfeitamente as pessoas, as charretes, os cavalos e os carros que
passavam na íngreme estrada para a estação. Estava imaginando o movimento e
apreciando o ar vivo, quando Buddy parou de repente. Pensei que devia ser a
escada para o funicular e deslizei o pé à frente. De fato, havia uma plataforma
baixa. Era magnífico!
— Adiante! Muito bem, Buddy! — exclamei.
Senti a trela de Buddy puxar-me de leve e subimos.
Jack sentou-se conosco quando encontramos lugar no bondinho.
— Ponha a cadela debaixo dos seus joelhos para que ninguém a possa pisar
— disse ele.
Senti o bondinho pôr-se em movimento com uma sacudidela e 20 minutos
depois havíamos descido até ao centro da pequena cidade.
A minha primeira e confusa recordação de Vevey é uma mistura de ordens e
de rápida e alegre caminhada, do tropear de cascos de cavalos nas ruas de pedra
e de conversas de pedestres.
Íamos pelo estreito passeio quando senti pela trela que Buddy estava
virando para a direita e virei com ela.
— Ela acaba de desviá-lo de um homem que carregava dois grandes
cestos—disse Jack.
Em dado momento, Buddy agilmente virou para a esquerda e depois voltou à
mesma direção em que estávamos indo. Eu não sentira a presença próxima de gente
ou de casa e perguntei a Jack:
— Por que ela fez isso?
— Levante a mão—foi o que ele me respondeu.
Levantei a mão e mais ou menos à altura dos olhos encontrei um cano de
ferro que fazia parte da estrutura de um toldo. Se não fosse Buddy, eu teria
batido com o rosto nele. Isso me pareceu o que de mais espantoso ela já fizera
como guia. Se estivesse sozinha, dificilmente teria notado aquela pesada
estrutura, tão acima dela. Mas desde que me levava a reboque, os seus olhos
haviam medido a altura da mesma com relação ao meu metro e oitenta e três. Não
recebera ordens e agira inteiramente sob sua responsabilidade. Ao fazer isso,
havia pensado! Os olhos dela eram realmente os meus olhos que viam.
— Muito bem, Buddy!—disse eu, emocionado.
Cada fato novo me dava mais sensibilidade para a trela, aumentava a
minha capacidade de tranquilizar-me e confiar em Buddy. Durante duas horas,
Jack me interpretou constantemente os movimentos do meu animal, recomendando-me
que andasse aprumado e não segurasse com muita força a alça da trela. Buddy
trabalhava com ar alegre, abanando o rabo como se tivesse prazer em saber
tantas coisas mais do que eu.
Foi tão emocionante que só quando voltei para casa e me estendi numa
poltrona compreendi quanto estava exausto. Os pés me doíam, tinha os músculos
das pernas doloridos do exercício a que eu não estava habituado, o braço
esquerdo me incomodava e sentia dores nas costas de puxar a trela. Mas essas
dores se resumiam no melhor estado de espírito em que eu já me sentira havia
muitos anos.
Durante cinco dias fiz excursões pela manhã e à tarde.
Afinal, Jack disse:
— Amanhã você ficará por sua conta.
Eu vou segui-lo, mas não intervirei de modo algum.
Tremi Intimamente. De excursão para excursão, Jack se tornara mais
rigoroso. Não tolerava devaneios. Se eu me deixava empolgar pela satisfação de
uma lépida caminhada, ele me fazia voltar à terra com o brusco lembrete de que
eu estava em treinamento. Era um excelente instrutor.
— Não ouvirá mais minhas advertências — disse-me ele. — Se não fizer o
que procurei ensinar-lhe, pode acabar com um bom galo na cabeça. Isso, sim,
conseguirá romper essa dureza!
Escutei o que ele dizia, pensando cheio de esperança que ele não teria
coragem de deixar que eu me machucasse.
Quando eu e Buddy aparecemos na manhã seguinte, Jack cuidadosamente
passou em revista para mim todas as curvas da estrada para a cidade. Em
seguida, pela primeira vez, saímos por nossa conta.
No portão, em lugar de parar imediatamente quando Buddy parou, dei mais
dois passos e bati ruidosamente na ombreira.
Atrás de mim, Jack deu uma gargalhada e exclamou bem humorado:
— Eu não lhe disse?
Abri o trinco, procurando dar a impressão de que apenas roçara pelo
poste, e ri também.
— Adiante e direita! — disse eu, dando a ordem.
Mas Buddy não se moveu. Jack não disse palavra.
— Não, quero dizer... Direita e Adiante! — disse eu, corrigindo-me e
desconcertado por haver cometido outro erro. Senti a cauda de Buddy abanar e
partimos.
Buddy parou como de costume na escada do funicular, mas eu estava
nervoso e mais uma vez deixei de parar prontamente. Dessa vez, tropecei e caí,
batendo com força com os joelhos. Mais uma vez Jack se limitou a rir. Sacudindo
o pó da roupa, cerrei os dentes e pensei que aquilo era uma maneira bem
mesquinha de tratar um cego.
Enquanto o bondinho nos levava montanha abaixo, o meu ressentimento pela
insensibilidade de Jack aumentou.
"Por que ele se ri assim?" — pensei eu. "Poderia ter
evitado que eu caísse."
Em Vevey, desanimado e zangado, segui Buddy sem interesse pelo passeio.
Quando chegamos à nossa primeira esquina eu estava fervendo de raiva. Em lugar
de prestar atenção ao barulho do tráfego como Jack me havia ensinado, dei
impetuosamente a ordem de "Adiante". Quando íamos atravessando, Buddy
parou de repente no meio da rua e recuou precipitadamente, arrastando-me consigo.
Senti um carro passar velozmente, tão perto que as suas rodas me jogaram
cascalho no rosto. Isso me fez voltar ao meu juízo. Quando chegamos à segurança
do outro passeio, dei em Buddy um grande e sincero abraço.
Na viagem de volta para Fortunate Fields, saí-me melhor. Procedi com
mais tranquilidade e segui o meu guia com um passo mais natural. Mas ainda
estava aborrecido com Jack.
Quando chegamos, fui para o meu quarto e me joguei na cama, cheio de
ressentimento. Pouco depois, ouvi a porta abrir-se.
— Escute rapaz... — Era a voz de Jack: — Você pode fazer o que preferir:
pode ser apenas um cego como os outros ou ser um homem independente com os
olhos de Buddy para ajudá-lo. Você não pode depender de mim. Se eu tiver de
segui-lo sempre e dizer-lhe o que deve fazer, você não ficará dependendo do seu
animal.
Não dei resposta.
— Quando você voltar para os Estados Unidos — continuou Jack — não
estarei lá. O seu futuro depende de você.
Fechara em silêncio a porta antes que eu percebesse que se havia retirado.
Senti-me envergonhado. Jack tinha toda a razão.
Naquela noite fui dormir, sentindo-me sozinho e desanimado. E se afinal
de contas eu nunca pudesse aprender a servir-me de um cão-guia? Que papel eu
faria se voltasse para a minha casa em Nashville, no Estado de Tennessee, e
confessasse a minha derrota? Os outros cegos que eu queria ajudar nem ao menos
saberiam que eu fizera a tentativa. Senti-me aniquilado.
Foi então que Buddy, como se soubesse quanto eu estava deprimido, se
levantou do lugar onde estava, ao lado de minha cama; subiu por cima das cobertas
para perto de mim, ajeitou o focinho debaixo de minha nuca e se acomodou o mais
perto possível, com um rosnar de contentamento e camaradagem.
A cordial afeição do animal me fez mudar por completo de atitude.
Recordando o que havia feito naquela manhã, pensei que afinal de contas não me
saíra muito mal. Cometera erros, mas estes me haviam servido de lição. Saíra-me
regularmente bem na última parte da excursão.
Mais importante ainda fora que Buddy me havia mostrado que, se eu
fizesse o que me cabia, poderíamos andar juntos sem perigo.
Descansado, adormeci, sentindo o conforto da proximidade de Buddy.
Naquela noite concluiu-se uma aliança, o começo de uma vida em comum — um
homem e um cão, um homem cujo cão representava para ele a emancipação, um mundo
novo e outros mundos para conquistar.
Os nossos passeios de treinamento se tornaram mais difíceis. Jack traçou
itinerários de experiência para Buddy e para mim que nos forçaram a aprender a
mover-nos juntos sob quaisquer circunstâncias. Tivemos um dia uma prova
inesperada das nossas reações. Quando subíamos o estreito caminho da estação do
funicular, invadiu-me os ouvidos um desatinado tropel.
"Cavalos desembestados!" foi o pensamento que tive enquanto o
barulho vinha descendo para onde estávamos. Não sabia absolutamente para que
lado me virar para fugir. Mas Buddy sabia! Pulou fora da estrada com tal ímpeto
que quase me derrubou. Em seguida, o cabo dos arreios se esticou até que eu
tive de estender o braço acima da cabeça para não largá-lo e ela me fez subir
aos arrastos a íngreme rampa da beira da estrada. Carregou-me literalmente para
o alto da escarpa de dois metros. Paramos ofegantes no alto, tendo saído da
frente no momento exato em que passava uma parelha de animais, resfolegando
enfurecidos, arrastando um carro ruidosamente e aos solavancos.
Quando tudo acabou e eu havia afagado e elogiado Buddy, percebi de
repente que Jack assistira a tudo. Estando muito atrás de nós para poder
socorrer-nos, limitara-se a prender a respiração e a rezar para que pudéssemos
escapar. E escapamos, graças a Buddy.
À medida que as lições prosseguiam a minha capacidade de concentração
aumentava, de tal maneira que, quando escutava instruções, nunca tinha de pedir
que as repetissem. Dava as minhas ordens com voz alta e clara, endereçadas
diretamente à parte posterior da cabeça de Buddy. Tornei-me mais sensível às
comunicações de Buddy. Era capaz de dizer até se ela mexia a cabeça para a
esquerda ou para a direita.
Já estava em Fortunate Fields havia algumas semanas quando um belo dia
disse à Sr.ª Eustis:
— Eu gostaria de cortar o cabelo. Acho que vou pedir a Jack para
levar-me até ao barbeiro.
— Leve-se a si mesmo — respondeu ela. — Não tem o seu animal?
Que desafio! Eu nunca fizera a viagem sozinho. Senti as mãos úmidas de
emoção. Pela primeira vez eu me atreveria a sair por iniciativa própria, sem o
conhecimento de que Jack estaria sempre por ali se o pior acontecesse.
— Adiante, Buddy! — exclamei.
Os meus sentidos pareciam aguçados enquanto ela e eu seguíamos os caminhos
já conhecidos. E repetia sem cessar as instruções que me haviam dado para
orientar-me. Era como se eu fosse um menino que procura descobrir o caminho
através de um labirinto, com a diferença de que aquilo não era brincadeira, mas
a sério.
Eu contava os passos à medida que íamos passando pelas casas de comércio
da aldeia. O cacarejar de galinhas me indicava que havia chegado à esquina da
casa de aves. Virei para a esquerda. Dentro em breve, o cheiro de pão fresco na
padaria me assegurou de que estávamos no caminho certo.
— Direita, Buddy — disse eu.
De repente, de mistura com o celestial aroma do tônico para os cabelos,
ouvi a voz alegre do barbeiro:
— Bom dia, Monsieur.
Eu havia chegado!
Nunca tive tanto prazer em cortar o cabelo, e Buddy e eu fizemos a
viagem de volta para casa como se tivéssemos asas. Por fim, sentei-me na sala
de estar, botei a cabeça para trás e ri-me às gargalhadas até que as lágrimas
me vieram aos olhos.
— Que há com você, Morris? — perguntou a Sr.ª Eustis.
— Minha senhora — disse eu — sou cego desde os 16 anos. Durante anos
alguém teve que me levar à barbearia. Ali me deixavam ficar esperando como
bagagem esquecida horas e horas de cada vez. Hoje, quando Buddy me levou à
barbearia e depois me trouxe de volta, convenci-me pela primeira vez de que vou
realmente ser livre. É por isso que estou rindo, porque sou um homem livre!
Nenhuma pessoa com visão poderá jamais compreender as proporções do meu desafogo.
Sentia-me como uma águia presa que se visse solta para voar de novo. Desde a juventude,
eu sempre conservara um sorriso no rosto, apenas para constar.
E então, finalmente, era tempo de eu voltar para casa. Eu não tinha palavras
com que agradecer à Sr.ª Eustis e a Jack. Meu coração transbordava. Porque,
acima de tudo, eles me haviam restituído a confiança em mim.
Não era possível haver maior contraste entre a minha viagem de volta no
vapor e o que fora a minha viagem de ida. Não era mais um cego levado para aqui
e para ali. Era um homem livre, que podia assistir aos concertos, escutar
música de dança e participar de reuniões sociais. Buddy e eu andávamos pelo
navio todo a todas as horas. Havia noites em que quase não íamos para a cama.
O nosso primeiro desafio de verdade surgiu quando um dos repórteres que
estavam esperando o vapor em Nova York me desafiou a atravessar West Street. Eu
nunca ouvira falar dessa rua, do contrário não teria respondido com tanta
confiança. Tendo quase 75 metros de largura, essa artéria do cais do porto tem
um tráfego intensíssimo. Mas para mim era apenas uma rua como qualquer outra.
— Mostre-nos onde fica — disse-lhe eu, com segurança—e nós a atravessaremos.
— É aqui mesmo.
— Está bem — respondi. — Buddy, adiante!
Entramos numa rua barulhenta, e foi quase como entrar num muro de som.
Buddy deu quatro passos e parou. Um ruído ensurdecedor e uma rajada de ar
quente me mostraram que um enorme caminhão estava passando em disparada. Buddy
avançou para o barulho atroador, parou, recuou e seguiu de novo. Perdi toda
noção de direção e me entreguei inteiramente à cadela. Nunca mais me esquecerei
dos três minutos seguintes. Caminhões passavam como flechas, táxis tocavam a
buzina em nossos ouvidos, motoristas gritavam para nós. Quando finalmente
chegamos ao outro lado e eu percebi que coisa magnífica ela havia feito, curvei-me
e dei um grande abraço em Buddy, dizendo-lhe que boa, que ótima cadela que ela
era.
- Claro que ela é ótima! — exclamou uma voz ao meu lado, a de um dos
fotógrafos. — Tive de atravessar num táxi e alguns dos outros ainda estão do outro
lado!
Depois disso, a Quinta Avenida, a Broadway e outros labirintos do
tráfego de Nova York foram quase fáceis em comparação. Durante a nossa
permanência em Nova York, fotógrafos e jornalistas nos acompanhavam
constantemente e registravam tudo o que Buddy fazia. Em toda a parte as pessoas
falavam com ela e lhe faziam festa. Buddy não se deixava distrair e continuava
a fazer o seu trabalho magnificamente e com evidente prazer. Ao fim de uma
semana, conquistara a maior cidade do mundo. Era uma celebridade numa cidade
que de nada gosta mais do que de celebridades.
Antes de partir de Nova York, estive numa importante instituição para
cegos. O diretor, que também era cego, escutou atenciosamente enquanto eu
procurava conseguir o seu apoio para uma organização que forneceria cães-guias.
— Sr. Frank — disse ele com frieza — creio que já é triste bastante ser
cego sem ter que viver amarrado a um cachorro.
Foi essa a primeira de uma série de encontros decepcionantes em Nova
York e depois em outras cidades, com pessoas que trabalhavam profissionalmente
na assistência aos cegos. Muitos realizavam uma obra excelente, mas outros
representavam apenas a espécie de cego que não pode ou não quer aceitar o
desafio de sair em campo e agir por si mesmo. Era evidente que o nosso trabalho
só encontraria eco naquela casta especial de homens e mulheres capazes de lutar
de verdade a fim de readquirirem a confiança em si mesmas. Perdi as esperanças
de ajuda de parte das instituições de caridade. Teríamos de começar desde o início.
O pequeno hotel em que nos hospedamos em Nova York acolheu Buddy sem
reservas e não deparamos com a regra que proíbe a presença de cachorros
enquanto não partimos para casa. Quando eu ia embarcando no trem, o
chefe-de-trem me segurou o braço e disse:
— Não pode levar esse cachorro para o trem.
— Tem razão — disse-lhe eu. - 0 cachorro é que me vai levar para o trem.
Adiante, Buddy!
Buddy entrou imediatamente, procurou-me um lugar e se encolheu embaixo
do banco. O chefe-de-trem nos seguiu furioso e estendeu a mão para agarrá-la.
Buddy apenas olhou para ele e mostrou-lhe os belos dentes alvos. O homem
hesitou, perfurou às pressas a minha passagem e bateu prudentemente em
retirada. Era claro que Buddy poderia resolver qualquer situação
inteligentemente... com ou sem ordens minhas!
Quando chegamos a casa, Buddy havia dado provas vitoriosas e amplamente
divulgadas das suas proezas em várias cidades do caminho. Exultante, fui passar
um telegrama.
— O endereço é: "Eustis, Monte Pelerin, Suíça" — disse ao funcionário.
— Muito bem, cavalheiro. Qual é o texto?
- SUCESSO!
— Só isso? — perguntou o funcionário, incrédulo. — Apenas uma palavra?
— Isso diz tudo, amigo! — respondi-lhe.
A minha família gostou imediatamente de Buddy. Quando ela cumprimentou
minha mãe, lambendo-lhe a mão, como se dissesse: "Trago-lhe, senhora, um
novo filho, um filho que pode ver de novo", os olhos de mamãe se encheram
de lágrimas. Quanto a meu pai, achava que tudo o que a cadela fazia estava
certo. Foi um trabalho impedir que ele estragasse Buddy com mimos.
A vida para mim em Nashville passara a ser bem diferente, porque eu
podia ir aonde bem quisesse. Buddy gostava do seu trabalho. Gostava dos
arreios. Bastava-me segurá-los para que Buddy pulasse para onde eu estava e se
metesse neles por si mesma. Passamos juntos muitas horas felizes, explorando
ruas conhecidas, que eu podia visualizar perfeitamente de memória. Nesses
passeios, readquiri a minha personalidade. Dantes, se eu saía do passeio a
algumas ruas da minha casa, alguém dizia de uma janela para quem passasse:
— Ajude o rapaz cego a voltar para o passeio.
Agora eu os ouvia dizerem:
— Oh! Lá vem Morris com o seu cachorro.
Morris! De novo eu tinha nome e era uma pessoa em seu direito.
Com meia dúzia de velhos amigos, que eu conhecia dos tempos de escola,
participava de atividades normais.
Os estranhos falavam também comigo sem constrangimento. Muitas vezes
invejara a facilidade com que os videntes puxavam conversa nas paradas de
ônibus e em outros pontos fortuitos de reunião. Era raro dirigirem-se a mim
porque não sabiam como chamar a minha atenção. Entretanto, depois da minha
volta, era a coisa mais natural do mundo dizerem: "Que lindo cachorro o
seu!" — e assim se iniciava a conversa.
O meu negócio de corretagem de seguros prosperou porque eu não tinha
mais dificuldade em falar com os clientes em perspectiva. Não faziam sinais
secretos para o meu guia a fim de evitar a minha visita. Ao contrário,
recebiam-me bem, ansiosos por fazer perguntas a respeito de Buddy e vê-la em
ação. Quando iam dizer a um vice-presidente que o Sr. Frank e o seu cachorro estavam
ali, a resposta era muito cordial:
— Mande-os entrar. Vá entrando, Morris!
Entretanto, desde o princípio se tornou evidente que havia necessidade
de uma longa campanha para derrubar a proibição da entrada de cachorros,
afixada em cartazes em tantos lugares públicos. O primeiro conflito se
verificou no escritório da minha companhia de seguros, no edifício do banco
local. O advogado do banco ficou tão preocupado de ver um cachorro andando nos
elevadores que falou a esse respeito com o presidente, Sr. James Caldwell.
O Sr. Caldwell chamou ao seu escritório o advogado e a mim.
— Percy — disse ele ao advogado — você tem três filhos, mas não sabe o
que pode acontecer. Algum deles pode tornar-se inválido. Este rapaz, outrora
inutilizado, achou agora um meio de andar para cima e para baixo de acordo com
as suas necessidades, sem depender dos outros. Nem você nem eu temos o direito
de impedi-lo.
O advogado começou a protestar e o Sr. Caldwell perdeu a paciência.
— Pouco me interessa o que diga a lei. Pelo amor de Deus, não ponha
obstáculos diante de gente que procura resolver os seus problemas com coragem e
dignidade!
Quando artigos sobre Buddy publicados em jornais e revistas começaram a
se espalhar pelos Estados Unidos, muitos companheiros cegos começaram a
escrever-me. Uma carta comovente me chegou às mãos, de um eclesiástico que
perdera a vista três anos antes em consequência de um ataque de malária.
Escrevia ele: "Sei ler Braille e escrever à máquina, mas não posso visitar
os meus fiéis. Minha esposa, que a princípio me guiava para fazer as visitas,
encontra-se inválida. Assim, estou impossibilitado de fazer o meu trabalho. Se
eu tivesse um cão para guiar-me pela minha paróquia, poderia dominar essa
deficiência. Quando soube do seu caso, fiquei pensando que talvez houvesse
alguma possibilidade para mim de conseguir auxílio."
Que coragem! Ali estava exatamente uma das pessoas de coração forte que
eu estava ansioso por ajudar!
Dentro em breve em minha mesa havia uma pilha de apelos igualmente
urgentes e eu sentia que era chegada a ocasião de fundar uma escola para
preparar cães-guias para americanos cegos. A Sr.ª Eustis concordou. Fortunate
Fields tinha já prontos dois cães-guias ensinados e Jack havia preparado alguns
treinadores que prometiam, entre eles uma moça de 20 anos, Adelaide Clifford,
que revelava disposição invulgar para esse trabalho. A Sr.ª Eustis era de
opinião que eu podia sem perigo marcar o início das aulas para fevereiro.
"Jack chegará aí dentro em breve e eu o seguirei o mais depressa
possível."
Numa fria manhã de janeiro, quando eu saía de casa para ir trabalhar,
Buddy sem motivo aparente estacou de súbito. Apurei os ouvidos para descobrir
porque. Ouvi então passos que me eram conhecidos e notei que a cabeça de Buddy
estava levantada de uma maneira atenta que na Suíça sempre havia significado
"Jack".
— Jack! — exclamei. — Não pode ser senão você!
Ouvi o riso cordial de Jack e ele se aproximou para apertar-me a mão.
Mas as suas primeiras palavras foram para Buddy. Afagou-a afetuosamente:
— Parabéns, menina! Você nos trouxe até aqui!
Em seguida, me disse:
— Agora, Morris, está na hora de entrar em ação.
Depois disso, as coisas se desenrolaram com rapidez. Abrimos um pequeno
escritório, alugamos um prédio velho para instalar o canil, estabelecemos o
horário das aulas e arranjamos alojamentos para os estudantes. A notável
Senhorita Clifford chegou da Suíça e se encarregou de mil e um detalhes que sem
ela nos teriam assoberbado. E o "Tio Willi" Ebeling, que criava cães pastores
alemães, ficou tão interessado pelo nosso projeto que foi trabalhar conosco e
se tornou dentro em pouco uma figura indispensável.
Pouco depois, a Sr.ª Eustis chegava e no fim de janeiro de 1929 fundávamos
a "Olho Que Vê", uma empresa sem objetivo de lucro, com a Sr.ª Eustis
como presidente e eu como diretor-gerente. Três amigos se comprometeram a
contribuir com 2.500 dólares cada um por ano, embora a Sr.ª Eustis se
oferecesse prazerosamente para pagar pessoalmente todas as nossas despesas.
Afinal, um ano e três meses depois de eu haver deparado com o seu abençoado
artigo, abrimos as portas da nossa escola.
A nossa primeira turma, que constava de dois médicos, esgotou todos os
nossos recursos em matéria de cães completamente treinados — os dois que Jack
trouxera da Suíça. Mas outros que havíamos adquirido estavam sendo treinados e,
para a nossa segunda turma, um mês depois, tivemos cinco animais em condições.
Cada cão-guia recebia três meses de treinamento intensivo, e sua inteligência e
compreensão eram experimentadas por completo antes de lhes ser finalmente
confiada a responsabilidade de se tornarem os olhos de um cego. Para o exame
final, Jack ou Tio Willi colocavam uma venda nos olhos e exigiam que o cão os
levasse através de passagens sob arcos, em torno de caixas do correio,
acostumando-o a usar portas giratórias e metendo-o em todas as espécies de
tráfego intenso.
O período de treinamento para os cegos era de quatro semanas e, claro,
igualmente intenso. Mas dava imensas satisfações. Os alunos chegavam hesitantes
e tímidos, arrastando os pés e andando às apalpadelas. Ao saírem pelas nossas
portas marchavam com passo vivo, de cabeça erguida, como seres humanos
renascidos. Custava a acreditar que eram cegos.
A diferença que isso representava na vida deles tornava a leitura da correspondência
dos que haviam concluído o curso conosco um prazer e um estímulo. Poucos meses
depois de abrirmos a escola, recebemos outra carta do eclesiástico que já nos
escrevera antes sobre os seus problemas. Tendo feito parte da nossa turma de
março, escrevia-nos mandando lembranças de Dot, a bela cadela de raça pastor
alemão que ele há muito estimava.
"Tenho certeza de que é graças a Dot", escrevia ele, "que
o número de fiéis da nossa igreja tem aumentado sem cessar. Ela é a minha
querida companheira nas visitas que faço aos meus paroquianos. É tão entusiástica,
tão cheia de vida que pela sua vontade faríamos visitas o tempo todo. Tenho de
contê-la constantemente, porque agora que encontrei os meus olhos, não quero de
modo algum cansá-los!"
Ao fim do terceiro ano, a nossa escola dera nova esperança a 50 homens e
mulheres e nenhum dos nossos alunos sofrera jamais um acidente grave. A Sr.ª
Eustis encontrara uma propriedade de 23 hectares idealmente localizada perto de
Morristown, no Estado de Nova Jersey, que ela comprou e deu ao Olho Que Vê. A
grande casa e as outras construções da propriedade proporcionavam espaço para
os escritórios, para os alojamentos dos estudantes e para os canis. O nosso
pessoal foi aumentando e nós sentimos que podíamos expandir-nos para dar ajuda
a mais candidatos das várias centenas que estavam impacientemente à espera, de
vaga.
Os principais obstáculos eram a dificuldade de encontrar cães em condições,
a dificuldade ainda maior de obter bons instrutores e o problema perene do
dinheiro. Nesta última parte, Buddy nos prestou serviços inestimáveis. Era uma
coletora de dinheiro inata.
Gente de toda a América já tinha ouvido falar no Olho Que Vê e o nosso
trabalho parecia fascinar a todos. Recebíamos inúmeros pedidos para que alguém fosse
falar a esse respeito, muitas vezes com propostas substanciais de pagamento.
Mas o que a maioria dos auditórios queria realmente era ver Buddy, a verdadeira
estrela da nossa empresa, em ação. Diante disso, a Sr.ª Eustis decidiu que eu
devia tornar-me conferencista.
Em nossas excursões, todos os dias Buddy me ensinava alguma coisa ou me
revelava um pouco a seu respeito. Demonstrava especial simpatia pelas pessoas
que tinham algum defeito. Se um cego ou alguém que usava muletas estava sentado
na ponta da fila de cadeiras quando passávamos rumo ao estrado de conferências,
ela parava e lhes fazia amistosas festas. Na rua, ela me puxava vários passos
fora do nosso caminho para fazer festa a um inválido numa cadeira de rodas ou
para aproximar cordialmente o focinho de um mendigo aleijado.
Mostrava também ternura para com os animais. Numa viagem de trem, Buddy
teve de ir no vagão de carga. Eu fiquei preocupado e a primeira coisa que fiz
quando amanheceu foi ir saber se ela estava bem.
— Não precisava ter-se preocupado — disse o encarregado do vagão. — Ela
teve companhia. Um desesperado filhote de buldogue que fazia a sua primeira
viagem gania e tremia de cortar o coração. Vi logo que Buddy não ia deixar que
essa situação continuasse. Ela estendeu as patas, puxou o animalzinho para si e
tratou-o com carinho maternal. O cachorrinho satisfeito dormiu entre as patas
dela a noite toda. Os dois se entenderam às mil maravilhas!
Não se podia ter um companheiro de viagem melhor do que Buddy. Mostrava
a sua inteligência em toda a espécie de situações. Uma vez, quando
desembarcamos do trem em Nova York e começamos a acompanhar um carregador na
Estação Pensilvânia, Buddy parou de repente e não quis ir mais adiante.
— Ela está olhando para as malas, cavalheiro — disse o carregador. —
Está olhando para elas de um jeito bem esquisito.
Buddy nos levou de volta ao nosso vagão. Encontramos lá o chefe-de-trem
procurando acalmar um passageiro indignado que jurava que alguém levara a mala dele.
Trocamos as maletas e todos ficaram satisfeitos, especialmente Buddy. Não
cessava de saltar para um lado e para outro, abanando a cauda vigorosamente e
aceitando os elogios que lhe eram profusamente feitos, como se soubesse quanto
os merecia.
Buddy era muito entendida em hotéis e podia arranjar-se muito bem sozinha
em estabelecimentos que não conhecia. Certa vez, em Atlantic City, pedi a um
empregado que a levasse para fora a fim de fazer exercício. Em vez disso, ele
procurou divertir os amigos, fazendo-a exibir-se. Buddy, logo aborrecida com as
corridas para apanhar coisas sem objetivo e outras ordens absurdas, fez a
coleira escorregar pela cabeça e fugiu.
Quase doente de preocupação, o empregado subiu ao meu quarto para me
confessar o que havia acontecido. Nunca ouvi tanto alívio na voz de uma pessoa
como quando ele viu Buddy deitada no canto. Ela já estava em casa havia cerca
de 45 minutos, tendo ido diretamente para o hotel e embarcando no elevador. O
ascensorista, que já a conhecia, deixou-a saltar no quinto andar, e, poucos
segundos depois, ela estava arranhando a nossa porta.
Não havia dificuldade que a fizesse falhar no seu julgamento. Numa noite
quente de verão, quando fiz escala em Nashville, a caminho de um lugar onde
tinha um compromisso para falar, minha mãe me botou para dormir num quarto do
primeiro andar. Acordei no meio da noite com a estranha impressão de que Buddy
não estava no lugar de costume, ao meu lado. Quando readquiri plena consciência
das coisas, ouvi um barulho alarmante — estavam cortando com todo o cuidado a
tela da janela. Ouvi então um grito penetrante de terror, seguido de ruído de
pés correndo.
Depois Buddy voltou calmamente para a cama. Ouvira decerto o ladrão
antes de mim e se encaminhara sem fazer barulho para a janela. Quando o homem
cortara a tela e estendera a mão para o ferrolho, encontrara em lugar disso um jogo
de dentes afiados e resolutos.
Buddy poderia ter resolvido a situação de outra maneira. Teria provavelmente
afugentado o intruso mais depressa se latisse. Mas a estratégia do tratamento
silencioso que ela adotara juntava à surpresa um elemento de terror.
Aonde quer que Buddy e eu fôssemos procurávamos sempre as pessoas que na
localidade haviam feito o curso do Olho Que Vê. Conhecia bem a todos. Fazia
parte do meu trabalho de viajante conversar com os candidatos e selecioná-los e
a muitos havia visitado antes de irem para Morristown. Quase sem exceção, era
emocionante observar a transformação. O equilíbrio e a confiança em si que eles
haviam adquirido confirmavam o acerto da solução do Olho Que Vê para o problema
da cegueira.
Suspeitando que alguns grupos exploravam os cegos que faziam o nosso
curso e os seus cães a fim de fazerem propaganda da sua
"generosidade", resolvemos desde logo que todas as contribuições
tinham de ser feitas diretamente ao Olho Que Vê e que não poderiam ser
atribuídas a pessoa alguma. Decidimos ainda que cada estudante, para
estimular-lhe o orgulho e a confiança, deveria pagar o seu cão. Estabelecemos o
preço de 150 dólares e concedemos ao estudante um prazo até de anos, caso fosse
necessário, para saldar o seu débito. O que queríamos era que êle não se
sentisse devedor de ninguém, nem de nós mesmos, pelo que possuía de mais
precioso.
Uma jovem mãe, Mary, de Milwaukee, foi apenas uma das pessoas que
concluíram o nosso curso e nos mostraram que a nossa decisão estava
absolutamente certa. Apesar da sua cegueira, ela trabalhava numa fábrica.
Levantava-se bem cedo todos os dias para preparar o almoço para si, o seu filho
e o cão antes de sair para o trabalho. Colocava o filho no seu carrinho de duas
rodas e, segurando a trela do cão-guia com a mão esquerda, empurrava a criança
com a direita. Andava perto de meio quilômetro até chegar à parada do ônibus.
Tomar o ônibus era uma verdadeira façanha. Era preciso fechar o
carrinho, pendurá-lo no braço direito, carregar o filho com segurança no mesmo
braço, segurar com firmeza a trela do cão com a mão esquerda e mostrar o seu
passe ao mesmo tempo.
Deixava a criança numa creche para passar o dia e caminhava cerca de
quilômetro e meio até ao trabalho. O programa da tarde era o mesmo às avessas —
primeiro a creche, e depois, para casa, a fim de fazer o jantar, dar de comer à
criança, arrumar a casa, lavar a roupa e preparar-se para o dia seguinte.
— Mary — disse-lhe eu — você bem sabe que há fundos públicos à disposição
de mães e filhos em casos como o seu. Por que não requer um auxílio?
— Quando procurei Olho Que Vê e ganhei Sara — disse ela — paguei-a com o
dinheiro que havia ganho. Foi a primeira coisa que consegui com o meu trabalho.
Isso me deu um sentimento de dignidade. Não vou sacrificar tal sentimento
apenas porque as coisas não me correm muito bem neste momento. Tenho Sara... e não
preciso de caridade.
Outra estudante de quem nos orgulhamos foi Anne. Quando lhe fiz uma
visita, ela já possuía Lady havia três anos e estava imensamente reconhecida a
ela e a nós. Todos tinham sido sempre bons para ela, mas Anne se sentia
profundamente ofendida quando se referiam a ela como "a cega" e
pareciam pensar que ela era surda e débil mental.
Graças a Lady, Anne conseguiu fazer um curso de datilografia e arranjar
um emprego, no qual se saiu muito bem. No primeiro Natal que passou empregada
teve o prazer de fazer compras sozinha e adquiriu para a família os melhores
presentes ao seu alcance. Mas o melhor presente foi para Lady.
Depois de eu a ter visitado, Anne me escreveu: "Um rapaz que
trabalha em meu escritório, vidente, me pediu em casamento. Quando lhe perguntei
por que queria casar-se comigo, uma cega, êle disse: 'Que diferença existe
entre você e qualquer outra pessoa? Você pode ir a toda parte e fazer tudo.
Além disso, eu quero Lady e a única maneira de consegui-la é ficar com ambas!'
E assim estou casada como qualquer outra moça e iniciando uma nova etapa da
minha vida."
Em minhas excursões ouvi muitas histórias dramáticas do heroísmo de cães
do Olho Que Vê. Uma delas foi o caso de um homem de Arkansas que escorregou e
caiu quando atravessava um cruzamento coberto de gelo. Um carro vinha em sua
direção, com os freios inúteis no chão coberto de gelo. Sendo cego, o homem nada
percebeu do perigo que corria. Mas o seu cão, Jerry, viu num instante a
terrível situação e arrastou-o pela trela até tirá-lo da passagem do automóvel.
Uma moça de Washington estava passeando quando de repente a sua cadela,
Jane, que estava com os arreios, se levantou nas patas traseiras, virou-se e a
jogou no chão.
Alguns trabalhadores foram em seu socorro e contaram-lhe o que havia
acontecido. Um guindaste estava sendo transportado pela rua e um dos cabos
cedera, soltando um gigantesco gancho de ferro. A moça estava bem na trajetória
do arco mortífero descrito pelo gancho. Se não fosse o fulminante raciocínio e
a ação da sua cadela, o passeio da moça teria terminado tragicamente.
Nos intervalos das minhas excursões, eu conseguia sempre voltar a
Morristown e ali passar ao menos alguns dias todos os meses. Buddy, a veterana,
gostava de ficar à janela e observar os cães da turma em preparo serem
treinados. Prestava tal atenção a tudo que eu quase esperava que ela me fizesse
um relatório minucioso sobre os alunos, dizendo: "Aquela loura, Suzie, não
está seguindo corretamente o seu dono". Ou então: "Tom II se
comportou muito bem hoje com a correia comprida”.
Desdenhava a companhia de tais neófitos. Se saíamos para a rua num grupo
de estudantes cegos com os seus cães, ela ou diminuía o passo e me fazia ficar
muito para trás ou andava mais depressa até haver passado todos os outros. Não
queria ser confundida com outro cão-guia qualquer. Ela era Buddy, a primeira e maior de todas!
Íamos muitas vezes passar o fim-de-semana na hospitaleira e próxima
granja do Tio Willi Ebeling, o criador de cães que se dedicara ao Olho Que Vê
desde o seu início. Buddy adorava essas ocasiões. Havia um lago para nadar, um
canteiro de flores que era um lugar magnífico para enterrar ossos — os cães
sempre tinham primazia sobre as rosas em casa de Ebeling — e o nosso quarto com
uma grande cama em que cabíamos ambos confortavelmente.
Numa das visitas que ali fizemos, Buddy deu outra prova clara de que era
um ser pensante. Estavam fazendo uma nova escada para o segundo andar. Os
degraus já estavam prontos, mas ainda não havia sido colocado o corrimão.
Buddy não tinha de me prestar serviço algum quando não estava na trela.
Tinha liberdade de correr e brincar, esquecendo-se dos seus deveres. Mas na
primeira vez que comecei a subir a escada por completar, ela correu para junto
de mim. Viu que faltava a barreira protetora e tratou de proteger-me. Subiu
comigo degrau por degrau, conservando-se entre mim e a extremidade aberta dos
degraus. Naquele fim-de-semana pouco foi o tempo que ela passou fora de casa.
Durante todo o tempo da nossa permanência, ela nunca me perdeu de vista,
correndo para escoltar-me sempre que eu subia ou descia a escada.
Em outra ocasião, na granja de Ebeling, o auxílio de Buddy foi mais necessário.
Eu havia começado a nadar para uma jangada de troncos ancorada no meio do lago.
Não dei com ela e, quando nadava em círculos procurando-a, perdi toda a noção
de orientação. Por fim percebi, com um pouco de medo, que estava quase exausto.
Como de costume, quando precisava de auxílio, pensei em Buddy. Chamei-a, com a
esperança de que ela não estivesse fora do alcance da minha voz. Ela respondeu
com um latido que foi o mais agradável que já me chegara aos ouvidos, caiu na
água com um baque ruidoso e dentro em pouco estava ao meu lado.
Estendi a mão para a coleira dela e antes que eu pudesse elogiá-la ela
me levara de volta á margem e à segurança.
Tão inestimável proteção exige afeto em retribuição e não pode ser
conquistada sem êle. Jack sempre insistia nesse ponto quando falava aos
estudantes e constantemente os exortava:
— Elogiem o seu cão! Recompensem o seu cão!
A campanha para tornar o cão-guia aceito nos lugares públicos não
triunfou com facilidade. Mas a Sr.ª Eustis e Buddy se revelaram contendores
notáveis naquela incessante batalha.
A Sr.ª Eustis traçou uma brilhante estratégia para conseguir autorização
incondicional para os nossos cães viajarem nos vagões de passageiros dos trens.
Ao fim de meses de manobras, consegui que estivéssemos presentes a um jantar a
que compareceria — por pura coincidência — o General Atterbury, Presidente da
Estrada de Ferro da Pensilvânia.
Depois do jantar, o general estava afagando Buddy, que correra para êle
na ocasião em que se servia o café, e a Sr.ª Eustis se aproximou.
— Sabia, general — disse ela — que esses maravilhosos cães têm de ficar
ao lado dos seus donos todo o tempo, a fim de lhes darem plena assistência ?
Ora, "a Chefe", como a chamávamos, era uma mulher extremamente
capaz, com uma força de vontade temível e um espírito de aço. Mas em certas
ocasiões sabia arregalar os grandes olhos castanhos e parecer um resumo de
indefesa feminilidade. Quando ela expunha os seus problemas a um grande e
poderoso homem de negócios, havia poucos que deixavam passar a oportunidade de
fazer desaparecer esses pequenos problemas.
— É horrível o que passamos — continuou a inocente Sr.ª Eustis — quando
as estradas de ferro despacham os nossos cachorros nos vagões de carga.
Buddy, toda cooperação, levantou a cabeça ao ouvir as odiadas palavras
"vagões de carga" e rosnou gravemente.
— Já não sei o que fazer para conseguir que os funcionários das estradas
de ferro cooperem, deixando que esses companheiros indispensáveis e bem
comportados dos cegos viajem como passageiros e não como bagagem — concluiu a
Chefe. - 0 senhor pode ajudar-nos?
Cinco dias depois, ela me telefonou para dar a boa notícia.
— Morris, pode entrar agora na Estrada de Ferro da Pensilvânia com Buddy
como um homem, não um contrabandista!
O General Atterbury havia baixado uma ordem que autorizava os cães do
Olho Que Vê a viajarem por toda a rede da Estrada de Ferro da Pensilvânia. Foi
essa a primeira estrada que oficialmente deu "passagem livre" aos
nossos guias.
Depois que a Pensilvânia nos deu permissão, as outras estradas de ferro
foram sucessivamente sendo franqueadas aos nossos cães. Dessa maneira, em 1935,
um dos nossos maiores objetivos fora já alcançado. Graças principalmente a
Buddy, o cego independente podia daí por diante viajar livremente para qualquer
parte dos Estados Unidos a que pudessem levá-lo uma locomotiva e dois trilhos
de aço.
Para fazer avançar o nosso trabalho, a Sr.ª Eustis conseguiu que eu e
Buddy passássemos vários fins-de-semana com ela em casa de amigos seus, ricos e
socialmente proeminentes. O dono da casa convidava um grupo para ver o nosso
filme e ouvir a história do Olho Que Vê. Eu e Buddy éramos a prova principal — o
produto acabado da nossa organização — e era importante causarmos boa
impressão, desde que aquela gente podia ajudar-nos financeiramente, dar
empregos para os nossos cegos nas fábricas e inestimável ajuda para abrir os
bondes, os ônibus e os hotéis aos nossos cães-guias.
Não tínhamos de preocupar-nos com Buddy. Nessas altas esferas sociais,
ela procedia sempre com o maior decoro. Até os seus furtos eram perpetrados com
imensa dignidade.
Certa vez num chá elegante, entre um murmúrio de conversas corteses, o
mordomo servia sanduíches numa mesinha de rodas. Quando esta passou por mim a
bandeja inferior da mesinha estava bem à altura do focinho de Buddy. Embora ela
não movesse a cabeça nem piscasse um olho, uma pilha de sanduíches desapareceu
em menos tempo do que se gasta em contar o fato. Apenas uma pessoa, a Sr.ª
Eustis, que por acaso estava olhando para Buddy, viu o furto. Foi, disse a Sr.ª
Eustis, como se uma grande dama, num momento em que se julgava despercebida,
sem ao menos baixar o lorgnon,
estendesse sub-repticiamente o pé bem calçado e puxasse para debaixo da saia
uma carteira caída no chão.
Durante uma das nossas estadas em Detroit recebemos um gentil bilhete de
Henry Ford, que dizia: "Tenho ouvido falar muito de Buddy. Gostaria de
conhecê-la".
O grande industrial nos recebeu cordialmente, apertando a pata de Buddy
e assistindo à nossa demonstração com genuíno interesse. Buddy assumiu uma pose
apropriada ao gabinete de um diretor. Sentou-se ereta, com as costas aprumadas
como um soldado prussiano, a bela cabeça erguida e atenta.
O Sr. Ford disse, rindo: — Parece exatamente um dos meus
vice-presidentes.
Buddy se impressionou muito com o escritor Booth Tarkington. Muitas
vêzes na sua casa flutuante, no Maine, ela corria, pousava a cabeça nos joelhos
dêle e olhava-o como se perguntasse: "E você o grande escritor que tem
dado tanto prazer a tanta gente?" E então, enquanto êle tomava chá e não
estava olhando, ela mordiscava o biscoito doce que ele tinha na mão.
Numa tarde de outono, estava eu sentado em frente à confortável lareira
na casa do Sr. Tarkington, quando deixei cair uma caixa de fósforos. Buddy se
levantou de onde estava dormitando, foi até junto de mim, apanhou a caixa e devolveu-a.
Quando a afaguei e lhe agradeci, o dono da casa disse:
— Sei que parece absurdo, mas alguma coisa na maneira pela qual Buddy o
olhou quando lhe entregou os fósforos me fez pensar que ela sabe que o seu dono
é cego.
A ideia o espantou como espanta muita gente. Mas nós, do Olho Que Vê,
estamos de há muito convencidos de que isso é verdade.
Quando Buddy e eu estávamos juntos havia cerca de cinco anos, apareceu-lhe
uma excrescência embaixo do estômago. Não quis confiar apenas na opinião de um
veterinário e fiquei tranquilizado quando um grande hospital para gente
concordou em interná-la. Ali alguns dos melhores especialistas a examinaram e
chegaram à conclusão de que a excrescência era cancerosa.
Um famoso cirurgião a operou para remover o tumor. Aguardei a saída de
Buddy da sala de operações com uma apreensão quase insuportável. Mas tudo
correu bem e em casa dos meus pais, onde nunca um convalescente humano foi
objeto de cuidados mais dedicados, ela se restabeleceu rapidamente. Ainda mais,
mostrava um certo orgulho do que lhe acontecera, pois quando chegava alguém,
deitava-se, virava de costas e mostrava a cicatriz.
Durante os dois anos seguintes, Buddy continuou na sua vida plena e
útil. Passávamos todos os nossos momentos de vigília procurando difundir o Olho
Que Vê de um canto a outro dos Estados Unidos. Mas no terceiro ano ela começou
a fraquejar. E no ano seguinte, embora o seu zelo pelo trabalho permanecesse
inabalável, êle estava muitas vêzes acima das suas forças. Tinha ela então 12
anos de idade e estava encontrando dificuldade em movimentar-se, respirando
mais pesadamente e tendo de descansar com frequência. Uma noite em Chicago,
onde tínhamos uma conferência marcada, ficou claro que o fim se aproximava.
Embora estivesse doente e cansada, quando chegou a hora de comparecer
perante a assistência, ela se aprumou, guiou-me até ao estrado e latiu nos
momentos oportunos e em outros que não o eram tanto. Depois disso, ficou de pé
muito quieta para que os seus admiradores pudessem fazer-lhe festas. Mas quando
todos haviam saído da sala de conferências, aquela artista nata caiu encolhida sobre
as patas dianteiras, cansada, velha, esgotada. Nessa noite não pôde subir à
cama e eu dormi no chão com ela.
Buddy teve mais um triunfo público. Embora já houvéssemos viajado muitas
vêzes nos aparelhos das linhas aéreas, tínhamos sempre de conseguir previamente
uma autorização especial. Antes de partirmos de Chicago, a companhia United
Airlines anunciou uma mudança de critério: dali por diante os cegos teriam
permissão tácita de levar os seus cães-guias para bordo dos aviões da empresa.
Isso significava que Buddy havia completado a sua missão.
A viagem foi feita com aparato apropriado. A United Airlines informou
aos jornais e às agências telegráficas que um cão do Olho Que Vê ia fazer a sua
primeira viagem oficial e regular de avião. Quando descemos para fazer escala
em Cleveland, repórteres e fotógrafos tinham ido esperar o avião e queriam
fotografias.
Buddy não revelou o seu mal quando desceu a prancha porque se inclinava
para a frente nos arreios e eu a sustentava. Eu não queria que se soubesse que
ela estava chegando ao fim da jornada. Quando chegou o momento de voltarmos aos
nossos lugares, atrasei-me, esperando que os jornalistas se retirassem, porque
sabia que Buddy não poderia com as próprias forças subir a íngreme prancha. Eu
teria de carregá-la e não queria ferir o seu sentimento de dignidade.
Demorei-me o mais possível. Afinal, um dos fotógrafos disse:
— Se isso não o incomoda, eu gostaria de bater uma fotografia dela
levando-o de volta ao avião.
Fora derrotado. Tive de confessar que Buddy estava velha e doente e
teria de ser ajudada para subir a prancha. Vários jornalistas acorreram
imediatamente e gentilmente me ajudaram a carregá-la para bordo. Embora uma fotografia
desse momento pudesse ter dado mérito a alguém por um flagrante de sensacional
"interesse humano", não houve um só daqueles fotógrafos calejados que
batesse um instantâneo de Buddy na sua hora de dificuldade.
Naquela noite fomos jantar tranquilamente com os Ebelings na sua granja.
Buddy, habitualmente tão cheia de vitalidade, deixou-se cair literalmente no
chão da sala de estar quando chegamos.
Parecia dizer:
"Trouxe-o são e salvo para casa. Terminei a minha jornada. Estou
acabada".
Ali ficou ela toda a noite sem se mover.
Levamos-lhe comida. Ela pareceu satisfeita com isso e reagiu debilmente.
Podíamos todos ver que ela estava cansada, muito cansada.
Quando voltamos ao nosso apartamento em Morristown, ela se mostrou
satisfeita em estar em casa e se estendeu na cama que havíamos feito para ela
desde que se lhe tornara tão difícil subir para a minha.
Tudo fizemos para aliviá-la. O nosso veterinário a tratava com diatermia
e raios ultravioleta pela manhã e à tarde. Não podia resignar-me a deixá-la sozinha
e cedi à sua insistência em acompanhar-me ao escritório. Eu estava realmente
preocupado demais para poder trabalhar, mas a cama de Buddy feita no escritório
foi uma mudança de ambiente para ela. Buddy costumava deitar-se ali e olhar
pela divisão de vidro observando tudo o que se passava.
Na manhã do último dia, ela me guiou do apartamento até ao automóvel.
Tive de sustentá-la com a trela, porque ela estava fraca demais para ficar de
pé sozinha. No escritório, queria ficar perto de mim o tempo todo. Em vista
disso, levei-a para a sua cama e sentei-me ao lado dela, alisando-lhe a bela
cabeça.
Ali, no sol que entrava em cheio por uma janela, a valente criatura
tremia de frio. Cobrimo-la com uma manta e eu a afaguei. Ela estendeu a cabeça,
lambeu-me afetuosamente o rosto banhado em lágrimas, depois deixou-se cair,
mergulhando num sono bem merecido.
A sua morte deu motivo a mais de 3.400 cartas e telegramas de pesar de
todos os cantos do mundo.
Naquela época — em 1938 - 50 cães já estavam guiando cegos e cegas em todas
as circunstâncias, nas cidades e nas vilas, nas fazendas e nas fábricas, em toda
a extensão dos Estados Unidos. Hoje há perto de 3.000 cães-guias, e os seus
donos, que representam quase 100 profissões, têm vindo buscá-los do Havaí, do
Alasca, de Porto Rico e do Canadá. Estou convencido de que foi Buddy, minha
querida companheira, a verdadeira pioneira que tornou possível esse grande
serviço aos cegos.
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