Em agosto de 1941 um caça britânico foi abatido em território
francês ocupado. O piloto foi transportado para o hospital militar de
Saint-Omer.
Um médico alemão o examinou e verificou com grande espanto
que ele tinha as duas pernas amputadas!
Para os homens da Luftwaffe este piloto não era
um desconhecido: sabiam que se tratava de um dos grandes ases britânicos da
aviação, talvez o mais famoso dos comandantes da Real Força Aérea.
Quando Douglas Bader, com 19
anos, era cadete em Cranwell, a academia da Real Força Aérea, seu instrutor de
pilotagem disse: "Este jovem ou ficará famoso ou se matará". Parecia
que era apenas uma questão de saber qual das duas coisas aconteceria primeiro.
Desde o começo Douglas Bader
revelara possuir as qualidades de um soberbo aviador. Tinha a coordenação do
atleta nato (brilhava em todos os esportes, do futebol ao boxe) e voava com
exuberância e com absoluto destemor. Mas era dado a aceitar logo qualquer desafio
e jovialmente transgredia todos os regulamentos menos importantes. No esquadrão
de caça onde foi classificado depois de concluir o curso ficou conhecido por suas
acrobacias aéreas de arrepiar os cabelos, que ele se deliciava em executar a
altitudes perigosamente baixas.
Os pilotos treinados para a
guerra não são recrutados por sua cautela, e às vezes a sua temeridade
prevalece sobre a competência. No dia 14 de dezembro de 1931, Bader, que tinha
acabado de completar 21 anos, voou para um aeródromo próximo a fim de visitar
uns amigos. Conhecendo a fama que granjeara por suas acrobacias aéreas, alguém
lhe pediu que, a título de demonstração, "batesse" o campo — uma
manobra de voo rasante sobremodo arriscada e rigorosamente proibida aos pilotos
da RAF. Bader hesitou um instante, pois o seu novo caça Bulldog, embora mais
rápido, era também mais pesado e menos maneável que o avião em que vinha voando
anteriormente. Em seguida decolou, inclinou o avião de lado e virou para trás a
fim de dar uma passada rasante sobre o campo. Cruzou como um raio a cerca
divisória, com o motor rugindo, empurrou o mancho e puxou o manete para manter
o motor funcionando, enquanto o Bulldog virava de dorso. Sentiu que o aparelho
começava a afundar, e procurou a todo custo fechar a curva. Tinha quase
completado a volta quando a ponta da asa esquerda tocou no solo e lançou o
nariz para baixo. Quando a hélice e o motor explodiram de encontro ao solo, o
Bulldog virou uma cambalhota lateral e se amarrotou numa massa confusa que
parecia uma bola de papel.
Preso nas correias, Bader nada
sentiu, e ouviu apenas um ruído terrível. Quando sua mente clareou, sentiu, no
repentino silêncio que se seguiu, uma sensação estranha nos joelhos e notou que
suas pernas estavam em posições esquisitas. A perna esquerda tinha ficado presa
debaixo do assento quebrado, de modo que ele estava sentado nela. O pé direito
estava enfiado lá no outro canto da carlinga, e a perna do macacão branco e
limpo estava manchada de sangue. Havia algo atravessado no joelho. Lembrava um
pouco a barra de direção. Muito estranho. Olhou aquilo abstratamente, e por
algum tempo não sentiu nenhum impacto, até que se cristalizou um pensamento desagradável:
"Maldição! Não vou poder jogar rugby
sábado".
No hospital civil para onde o
levaram a toda pressa, o médico amputou-lhe a perna direita (que já estava
quase solta) acima do joelho esmagado. E dois dias depois, quando a perna
esquerda ferida gangrenou, também esta foi amputada 15 centímetros abaixo do
joelho.
Não se sabe como, Bader conseguiu
resistir ao choque do desastre e da primeira operação, agarrando-se à vida por
um fio. Depois da segunda operação levou umas 24 horas para ficar de fato consciente.
Despertou presa de uma dor aguda e incessante.
— Minha perna esquerda está
doendo — queixou-se.
Deram-lhe morfina para aliviá-lo,
mas a dor continuou implacável.
Seus olhos ficaram inquietos e
mergulhados em negras olheiras, o rosto cinzento e ceráceo, brilhando sob uma
camada de suor. Durante dois dias ele alternou entre períodos de inconsciência
e momentos de vigília, e então a dor constante lhe atormentava o corpo e seu
espírito vagava num indefinido meio-mundo.
Depois o moço despertou e a dor
tinha desaparecido. Não sentia absolutamente o corpo, embora sua mente
estivesse perfeitamente clara. Ficou imóvel, olhando através da janela para um
trecho de céu azul, e um pensamento cheio de paz se insinuou na sua mente:
"Isto é agradável. Basta fechar os olhos agora e inclinar-me para trás, e
está tudo bem". Uma paz morna ia-se apoderando dele, seus olhos iam-se
fechando e sua cabeça parecia mergulhar no travesseiro, quando começou a
penetrar numa doce névoa de sonhos.
Pela porta do quarto entreaberta
uma voz incorpórea de mulher chegou até ele: "Psiu! Não faça tanto
barulho. Há um rapaz morrendo ali".
As palavras vibraram dentro dele
como um choque elétrico, disparando este rápido pensamento: "Então a coisa
é essa! Sim, eu vou morrer!" O desafio o mobilizou e ele parou de
entregar-se. Quando a sua mente começou a clarear, de novo tomou contato com a
realidade e a dor voltou-lhe à perna. Daquela vez, por uma razão qualquer, não
se incomodou; foi quase agradável, porque sentiu que voltara à normalidade.
"Não devo deixar que isto aconteça outra vez", pensou. (Mas desde
aquele momento nunca teve medo de morrer. Mais tarde isso viria a ter um profundo
efeito sobre a sua vida).
Nos dias que se seguiram, Bader
passou, inesperadamente, a se agarrar à vida. Embora tivesse pouco depois entrado
em coma e assim permanecesse 48 horas, sobreviveu a essa recaída e aos poucos
se restabeleceu. Entrementes, o hospital inteiro sabia, com uma espécie de
fascinante terror, que ele não tardaria a ter conhecimento da extensão do que
lhe acontecera.
Durante um período de lucidez em
seguida à primeira operação, Bader tinha percebido que a perna direita fora
amputada, tendo examinado sub-repticiamente, debaixo da roupa de cama, o coto
envolto em ataduras. Mas não sabia ainda que tinha perdido a perna esquerda
também. Uma das enfermeiras, temendo, que ele por acaso descobrisse e o choque
o pusesse de novo em perigo, tentou contar-lhe com tanto jeito e um ar tão
despreocupado quanto possível, mas seu cérebro, entorpecido pelas drogas, não
registrou as palavras da enfermeira.
Ele o soube no dia seguinte,
quando o comandante do seu esquadrão foi visitá-lo. Com a mente tornada lúcida
pelo tormento, Bader queixou-se de que a perna esquerda lhe doía tanto que
desejaria que a tivessem cortado como fizeram com a direita.
— Essa não dói nada!
— Você talvez não quisesse que
lha cortassem se não doesse — disse o oficial, nervosamente consciente do
drama.
— Não sei o que eu quereria se
ela não doesse. Só sei que estou saturado disto tudo e, por Deus, agora eu
queria que tivesse sido amputada.
— A verdade, Douglas — disse
lentamente o comandante do esquadrão — é que ela foi amputada.
Dessa vez ele entendeu bem.
Bader lançou-se com feroz
resolução à tarefa de conseguir locomover-se. Seis semanas depois do acidente
foi-lhe colocada uma perna de pau no coto esquerdo (onde havia ainda o joelho),
a fim de que pudesse tentar andar de muletas. Quando se apoiou na perna de pau,
o joelho dobrou; não tinha força nenhuma. Embora o tentasse repetidamente,
levou três dias para poder dar dois passos claudicantes, sem ajuda. Mas dali a
pouco estava andando sozinho e passava horas caminhando com seus cotos de perna
pelo jardim do hospital.
Mas antes de poder usar membros
artificiais adequados Bader teve de ser operado outra vez. Os cotos tinham
murchado tanto que havia perigo de o osso furar a pele, e por isso era preciso
aparar um pouco o osso de cada perna. Bader submeteu-se à operação quase com
alegria.
Enquanto ficou de cama esperando
que os cotos sarassem de novo, estudou os encorajantes folhetos que lhe haviam
sido enviados pelos fabricantes de membros artificiais. Esses folhetos lhe
deram a sensação de que quando tivesse as novas pernas poderia levar uma vida razoavelmente
normal; talvez não pudesse jogar rugby,
mas com certeza poderia andar e dançar (coxeando um pouquinho, talvez), guiar
automóvel, é claro, e voar também. Não via por que não. Voar era, sobretudo,
olhos e mãos e coordenação, e não pés.
"Eles não podem desligar-me da RAF", dizia. Afinal de contas, conhecia
um piloto militar que tinha perdido uma perna na Primeira Guerra Mundial e
ainda voava. Alguém lhe falou num amigo que perdera uma perna e ainda jogava
tênis. A rigor, todo o mundo vivia a falar-lhe de pessoas de uma perna só que
haviam vencido, embora ele notasse que ninguém parecia conhecer alguém que
tivesse perdido ambas as pernas e
sobrepujado isso.
Às vezes, o bem intencionado
encorajamento dos amigos o deprimia. "É claro que vão deixar você continuar na Aviação", diziam com
veemência um tanto excessiva. (Vão deixar-me
ficar... Caridade!) "Mesmo que você não possa voar, podem dar-lhe uma
função em terra". Mas a ideia de uma função em terra enquanto os camaradas
voavam o revoltava.
— De qualquer modo, o senhor
ainda poderia fazer nova carreira num gabinete — disse-lhe a enfermeira para
animá-lo.
— Gabinete — replicou ele com desprezo.
— Fechado num gabinete o dia inteiro! Amarrado a uma mesa! Não haverá vida para
mim se tiver de deixar a Aviação.
Uma preocupação desapareceu
quando oficiais superiores da Aeronáutica o visitaram para apurar o acidente.
Suas conclusões contornaram habilmente a questão da culpa, considerando que, fosse
o que fosse que tivesse havido, Bader já tinha sofrido mais do que o suficiente.
Em meados de abril ele foi
transferido para o hospital da Aeronáutica em Uxbridge. Ali a atmosfera era toda
militar. Os enfermeiros eram quase todos soldados, respeitosos mas distantes, e
as costumeiras restrições militares foram a princípio incômodas. Mas Bader
encontrou na enfermaria alguns dos seus antigos companheiros e naturalmente se
sentiu à vontade entre eles. Na realidade, a RAF era a sua casa.
Chegou, então, o momento que ele
vinha esperando. Os médicos da Aeronáutica enviaram-no a Londres a fim de tirar
as medidas para os membros artificiais. Ali encontrou Robert Desoutter, que fez
moldes de gesso dos seus cotos e lhe disse que enviasse um par de sapatos
velhos a fim de poderem arranjar-lhe pés do tamanho certo.
— Prepare-os o mais depressa
possível, sim? — pediu Bader. — Eu quero levar uma pequena a um baile.
— Vamos fazer tudo que estiver ao
nosso alcance — respondeu Desoutter, pensando, erradamente, que ele estivesse
brincando.
Duas semanas depois, quando
voltou para uma prova, suas pernas novas de metal estavam prontas.
— Bonitas, não? — disse
Desoutter. — Veja só como são musculosas!
Bader sorriu.
— O senhor vai ficar uns três
centímetros mais baixo do que era — continuou Desoutter.
O sorriso apagou-se.
— Por quê? — perguntou Bader,
indignado.
— Para lhe dar melhor equilíbrio.
Se as quiser maiores, sempre será possível aumentá-las.
Na sala de provas, Desoutter
apresentou-lhe dois assistentes de avental branco, que o fizeram tirar a roupa toda,
menos a camiseta e a cueca. Calçaram-lhe uma "meia" curta de lã no coto
esquerdo e o introduziram numa cavidade revestida de couro na barriga da sua
nova perna esquerda. Acima da barriga da perna havia umas barras de metal com
dobradiças que se prendiam de cada lado do joelho e terminavam numa faixa de
couro que era amarrada em volta da coxa. A sensação era muito boa e depois de
alguns passos de ensaio atravessou facilmente a sala com o auxílio de muletas.
— Muito bem — disse ele com
satisfação. — Vamos ver agora a perna direita.
Trouxeram-na. A coxa era um cilindro
de metal que subia até a virilha e tinha umas correias que iam dar num grosso
cinto e outras que davam volta por cima dos ombros. Enquanto encaixavam o coto
direito na funda cavidade e afivelavam as inúmeras correias, Bader sentiu-se
como se estivesse sendo metido numa camisa-de-força. Ajudaram-no a pôr-se de
pé, e dessa vez não lhe deram muletas.
Quando seu peso descansou sobre
ambas as pernas, sentiu-se desesperadamente desequilibrado, o coto direito
doeu-lhe, ficou inteiramente sem ação e as próprias correias pareciam tolhê-lo.
Além disso, quando tentou balançar para frente à perna direita, ela não se
moveu. Sem músculos dos dedos do pé ou do tornozelo que o impulsionassem para frente,
aquela perna direita formava uma firme barreira e êle só conseguiu pôr-se em
cima dela e transpô-la quando os assistentes de Desoutter o empurraram para
frente.
— Meu Deus, isto é completamente
impossível — exclamou ele com pungente desespero.
— Isso é o que todos dizem na primeira
vez — disse Desoutter. - O senhor se acostuma. Não se esqueça de que o seu coto
direito não faz movimento algum há quase seis meses.
Bader disse com amargura:
— Pensei que ia poder sair daqui
andando e começar logo a praticar esportes e fazer outras coisas.
— Escute — disse Desoutter com
muito jeito — acho que o melhor é o senhor ficar sabendo que nunca poderá andar
sem bengala.
Bader olhou para ele com intenso
desânimo e, em seguida, quando o desafio o animou, êle replicou combativamente:
— Uma ova! Eu nunca andarei de
bengala!
Em sua obstinada raiva, ele de
fato estava falando sério. E com furiosa resolução passou os braços sobre os
ombros dos assistentes de Desoutter e começou a aprender a técnica de usar as
novas pernas. Seguindo as instruções deles, aprendeu que tinha de dar um chute para
frente com o coto direito a fim de mover a perna, dar-lhe um arranco seco para baixo
outra vez para pôr o joelho reto e depois — o mais difícil de tudo — fazer peso
para frente até ficar precariamente equilibrado no enfraquecido coto direito.
Como tinha ainda o joelho esquerdo, conseguia com facilidade mover para frente à
perna esquerda; em seguida recomeçava a luta para mover a perna direita.
Finalmente, após duas horas de esforço
exaustivo, com o rosto brilhando de
suor, deu três ou quatro tropeções sincopados antes de ter de agarrar-se às
barras paralelas.
— Pronto - disse ele rindo. — Agora
o senhor pode ficar com as suas malditas bengalas.
Desoutter ficou surpreendido e
satisfeitíssimo.
— Eu nunca tinha visto ninguém
com uma perna fazer isso na primeira
vez — disse ele.
Na visita seguinte foi um pouco
mais fácil e não tardou que Bader conseguisse atravessar a sala sozinho,
cambaleando. Nesse dia aprendeu também a virar-se, movendo-se instavelmente num
apertado semicírculo. Já queria levar as pernas, mas Desoutter ainda precisava
fazer mais uns ajustamentos. Na terceira visita, porém, depois de haver
dominado a arte de se levantar de uma cadeira (com o joelho esquerdo bom
fazendo o esforço e erguendo-o) e de subir escadas (subindo cada degrau com a
perna esquerda primeiro e depois puxando a perna direita para junto dela),
Desoutter disse:
— Agora pode levá-las. Quer que
embrulhe?
— Nada disso! — replicou Bader
com um sorriso. — Vou sair daqui andando com elas. Tome! — acrescentou,
jogando-lhe a perna de pau e quase caindo ao jogá-la. — Pode fazer dela o que
quiser.
Em seguida, com certo esforço
vestiu pela primeira vez o resto da roupa por cima das pernas novas e olhou-se
ao espelho. Estava em pé, vestido como um camarada qualquer. Parecia ser
perfeitamente normal. Foi um momento impressionante.
— Agora, que tal uma bengala? — sugeriu
Desoutter em tom persuasivo.
— Nunca! — respondeu Bader secamente.
— Vou começar logo do modo que pretendo andar.
— Francamente, acho que o senhor é incrível — disse
Desoutter.
Os dias que se seguiram foram o
pior período desde o acidente. Outra vez no hospital, dependendo inteiramente
das suas estranhas pernas novas para mover-se, ele não parava de enfrentar
problemas até então desconhecidos: organizar a sua rotina de ir para cama antes
de tirar as pernas; aprender a técnica de equilíbrio para andar na grama,
inteiramente diferente da necessária para andar em chão liso; combater o
cansaço causado pelo tremendo esforço físico que cada movimento exigia.
Ia tropeçando, caindo com frequência,
recusando secamente qualquer ajuda e erguendo-se para cambalear e cair outra
vez. Hora após hora continuava teimosamente naquilo, com o rosto escorrendo
suor que lhe brotava de todo o corpo, ensopando-lhe as roupas de baixo e, infelizmente,
as meias dos cotos também, o que as fazia perder a maciez de lã e esfolar a
pele dos rígidos e doloridos cotos. As bem humoradas brincadeiras com que os
companheiros saudaram os seus esforços iniciais foram cessando à proporção que eles
percebiam que estavam vendo um homem lutar para fazer algo que nunca fora feito
com êxito até então.
Voltou várias vezes a Desoutter
para reajustamentos. Aprendeu a evitar as esfoladuras usando talco e colocando
esparadrapo nos pontos sensíveis, e os flácidos músculos do enfraquecido cato
direito começaram a endurecer. Mas andar com as pernas novas ainda parecia uma dificuldade
quase insuperável.
E então, uns dez dias depois de tê-las
recebido, descobriu o primeiro indício de controle automático. Era como um
homem aprendendo uma estranha língua que soa como um amontoado de sons
confusos, até que um dia consegue pegar uma frase e entendê-la. Bader verificou
que estava andando sem ter de se concentrar no movimento ou no equilíbrio;
algum instinto automático parecia ter-se encarregado de parte do trabalho.
Depois disso, embora a coisa estivesse longe de ser fácil, o progresso foi
rápido. Conseguiu afinal passar um dia inteiro sem cair e, como clímax dessa
vitória, aprendeu a virar-se girando sobre o calcanhar direito.
Mas Bader não se contentou em
vencer a sua deficiência; estava resolvido a não transigir com ela de maneira
alguma. Com um orgulho à flor da pele se dispôs a fazer tudo quanto fazem as
demais pessoas. Mandou mudar os pedais do seu carro MG de maneira a poder
acionar tanto a embreagem quanto o acelerador com a perna esquerda e, após um período
de treino, não teve dificuldade em obter carteira de "motorista
parcialmente inválido".
Numa importante visita que fez
num fim-de-semana a um velho amigo verificou que ainda podia nadar... E,
enquanto descobria isso, o sol lhe queimou tanto o ombro que ele ficou sem
poder colocar as alças. Com imensa satisfação constatou que se arranjava bem
com o cinto apenas, e nunca mais voltou a usar as incômodas alças do ombro.
Durante algum tempo pareceu que
Bader ia realizar a sua ambição e que não tardaria a estar de novo no seu
esquadrão, voando outra vez. Como primeiro passo para tornar a voar teve de
passar num exame feito por uma junta médica. Em seguida, no fim do verão,
recebeu ordens designando-o para a Escola Central de Voo a fim de ser
experimentada a sua capacidade para voar.
Verificou que voar lhe era mais
fácil do que dirigir automóvel e imediatamente demonstrou a sua competência
para manejar qualquer avião. Por fim o Chefe da Instrução de Voo lhe disse:
— Você está perdendo tempo aqui
em cima. Não há mais nada que lhe possamos ensinar.
E alguns dias depois Bader estava
seguindo para Londres no seu carro para a aprovação final pela junta médica,
necessária para a sua volta definitiva à Aviação.
Nem foi preciso que o médico o
examinasse, mas encaminharam-no logo ao gabinete do comandante do regimento,
onde se sentou tranquilamente à espera das boas-novas.
Pigarreando, o tenente-coronel
disse:
— A Escola Central de Voo informa
que o senhor consegue voar satisfatoriamente.
Bader esperou cortesmente.
— Infelizmente — prosseguiu o
comandante — não podemos dá-lo como em condições de voar porque não há nada nas
Disposições Reais que se aplique ao seu caso.
Por um instante Bader ficou
sentado em silêncio, estupefato, com uma sensação de frio invadindo-o
lentamente. Por fim conseguiu falar:
— Mas foi para isso que me
mandaram para a Escola Central de Voo. Para ver se eu podia voar. Só a Escola pode resolver a esse respeito. Não basta o
que a Escola decidiu?
Embaraçado, o tenente-coronel se
desculpou:
— Sinto muito, mas nada podemos
fazer.
Bader soube então que, provavelmente,
tudo tinha sido decidido antes de ele ir para a escola de voo. Esperavam que
fracassasse. Agora estavam atrapalhados; mas a decisão oficial permanecia de
pé. Ele estivera na RAF tempo suficiente para saber que recorrer de uma decisão
oficial era malhar em ferro frio.
Cheio de decepção e de raiva,
Bader foi transferido para uma função em terra: direção do transporte motorizado
na base de caças de Duxford. Aferrava-se à esperança de conseguir de alguma
maneira voltar a servir no ar. Mas o golpe final veio em abril de 1933 quando
chegou uma carta oficial do Ministério da Aeronáutica determinando que a RAF reformasse
Bader por incapacidade física.
Condenado à vida civil, Bader
arranjou um emprego de escritório na seção de aviação que uma companhia de
petróleo acabava de criar, mantendo assim uma ligação tênue com a aviação, uma
vez que o seu trabalho tinha relação mais com preços e com a entrega de
combustível e óleos de aviação à Austrália.
Casou-se com uma moça que
conhecera depois do acidente, uma moça
que havia começado a cortejar desde que conseguira andar de muletas, uma moça
que ele tinha, afinal, desajeitada, mas triunfantemente, levado a um baile.
Thelma foi o único raio de luz nas trevas dos seus anos pós-RAF. Serena,
desprendida, sabendo instintivamente lidar com as rebeldias do temperamento
dele, ajudou-o a enfrentar com relutante resignação as frustrações de ter
voltado para terra. E o encorajava quando ele buscava no golfe, no tênis e no squash os desafios exigidos pela sua vitalidade.
Porque, por um esforço quase sobre-humano, ele dominou todos esses esportes e
até conseguiu, surpreendentemente, reduzir a nove o seu handicap no golfe.
Mas Bader nunca conseguia evitar
uma dolorosa sensação de perda toda vez que pensava na RAF. Quando veio Munique
e ele percebeu que ia haver guerra, escreveu ao Ministério da Aeronáutica
oferecendo os seus serviços. Escreveu de novo e tornou a escrever, e, afinal,
poucas semanas depois de declarada a guerra, foi chamado a comparecer perante a
junta de alistamento.
Seguiu-se a rotina familiar de exames
médicos e testes de voo. Mas dessa vez as Disposições Reais foram esquecidas e
em fins de novembro chegou um envelope do Ministério da Aeronáutica. Ali, em
impessoal estilo oficial, vinha a comunicação: ele seria readmitido, como
oficial de carreira, no seu antigo posto e com os seus antigos direitos. Sua
pensão de reformado já tinha deixado de ser paga, mas continuaria fazendo jus a
toda a pensão de invalidez. (Esta foi uma nota engraçada: era considerado ao
mesmo tempo 100% capaz e 100% incapaz.) Telefonou para o alfaiate, mandou fazer
um uniforme novo e deixou pela última vez a sua escrivaninha, tão feliz como
Thelma nunca o vira.
(Imperial War Museum) |
Em fevereiro de 1940, Bader
apresentou-se em Duxford, onde tinha servido na Força Aérea pela última vez.
Geoffrey Stephenson, um dos seus antigos companheiros da RAF, comandava o 19º
Esquadrão e, sem se atemorizar com a ideia de ter um piloto sem pernas, pedira
Bader para a sua unidade. Mas quase todas as caras ali eram novas; parecia que andavam
todos por volta dos 21 anos. E Bader, vivamente consciente de que já estava
perto dos 30, sentiu-se compelido a mostrar-se à altura dos jovens pilotos que
usavam o uniforme com tão alegre confiança.
Naquele período inicial da guerra
o esquadrão passava o tempo quase todo exercitando-se nos três métodos
oficialmente aprovados de atacar bombardeiros, e aí Bader logo se viu às turras
com a autoridade. No "Ataque nº 1", por exemplo, os aviões de caça
seguiam o guia numa linha regular até ao bombardeiro, davam um tiro rápido
quando chegava a vez de cada um e afastavam-se graciosamente, oferecendo o
ventre da fuselagem ao metralhador do inimigo. Os teóricos do Comando de Caça
tinham concluído que os caças eram rápidos demais para a tática de entreveros
da Primeira Guerra Mundial. Bader achava isso um absurdo.
— Só há um modo de fazer isso —
rosnava para Geoffrey Stephenson. — Esse é formar todo o mundo um bolo. Por que
usar oito metralhadoras de uma vez se podemos usar 16 ou 24 de diferentes
ângulos?
Stephenson e os outros
retrucavam:
— Mas você não sabe, não é
verdade? Ninguém sabe.
— Os rapazes da última guerra
sabiam — dizia Bader — e a ideia básica é a mesma agora. Nenhum bombardeiro
alemão vai voar direitinho e deixar uma fila de sujeitos se alinhar atrás e
despejar tiro nele um após outro. Depois, não será um, mas muitos bombardeiros,
permanecendo juntos em formação cerrada, para concentrarem o seu fogo.
Provavelmente, depois de uma
investida, ou de duas, seria possível separar os bombardeiros uns dos outros,
pensava ele, e então haveria combates aéreos por todo o céu.
— Quem vai controlar o combate
ainda será quem tiver a altura e o sol a seu favor — dizia ele.
Alguns dos outros pilotos
procuravam arreliá-lo fazendo piadas sabre a geração de antes da guerra e sobre
passadismo, mas Bader continuava a condenar os ataques oficiais do Comando de
Caça em todas as oportunidades.
Certa noite, Tubby Mermagen,
outro amigo dos velhos tempos, que estava então comandando o 222° Esquadrão, em
Duxford, imprensou-o no refeitório. Algumas das suas tripulações estavam sendo
enviadas para outros pontos, disse Mermagen, e ele precisava de um novo
comandante de voo.
— Não quero fazer uma ursada com
Geoffrey, mas se ele concordar você quer vir?
Exultante, Bader respondeu que
iria com todo o prazer.
Depois da sua promoção a capitão,
Bader libertou-se da incômoda sensação de rapaz mais velho que volta à escola
para fazer exame outra vez. Sempre tivera uma personalidade dominadora, e agora
dirigia o seu esquadrão com entusiasmo e capacidade, encantado com a
oportunidade de pôr em prática as suas teorias. Por alguns dias guiou os seus
pilotos para o ar a fim de efetuarem os ataques do Comando de Caça. Fazia cada piloto
subir para servir de alvo, determinando-lhe que observasse cada caça na procissão
regulamentar, atirar um por um e escaparem todos na mesma direção, apresentando
a barriga do avião para um tiro fatal. Quando pousavam dizia:
— Agora você está vendo o que lhe
pode acontecer.
Em seguida ensinou-lhes o seu
próprio estilo de combate, levando dois ou três de cada vez, afastando-se do
sol, de um lado ou outro do avião destinado a servir de alvo e escapando
abruptamente para frente e por debaixo dele. Depois disso vinham horas de
práticas de entreveros e acrobacias entremeadas de operações de rotina como
patrulha de comboios.
Após oito meses de uma guerra em
que não tinham sequer visto um avião alemão, os pilotos de Duxford estavam
ficando impacientes. Quando Hitler marchou sobre a França e os Países Baixos,
sentiram-se cheios de júbilo. "Agora podemos atacá-los", disseram.
Bader não cabia em si de contente.
Nada, porém, parecia acontecer em
Duxford. Os jornais e o rádio estavam cheios da confusa batalha da França e os
pilotos liam com inveja as notícias dos embates dos Hurricanes com a Luftwaffe.
Mas o esquadrão só foi chamado a entrar em ação quando os seus homens, a princípio
perplexos com a missão (a grande evacuação ainda era segredo), foram enviados
para fazer patrulha sobre Dunquerque.
Mesmo nessa concentrada área de
combate, onde massas de tropas e uma incrível flotilha de socorro ofereciam
constantes alvos ao ataque aéreo inimigo, a frustração continuou. Outros
esquadrões informavam, excitados, que haviam dado com grandes grupos de
Messerschmidts e Stukas sobre as praias coalhadas de soldados. Mas embora Bader
levantasse voo diariamente, não encontrava aviões alemães. O inimigo parecia
vir matar logo que o seu esquadrão voltava para a base.
Então, no sexto dia, avistaram sobre
Dunquerque um bando de pontos que cresciam rapidamente, e Bader de repente viu
um Messerschmidt 109 enchendo o seu para-brisa. Apertou o gatilho e o 109
flamejou como um maçarico, rodopiou como um bêbedo e depois caiu, deixando para
trás uma fita de fumaça negra. A exultação invadiu-o rapidamente, com um brilho
de vitória, ao reconquistar assim a vida em combate primitivo. Mas quando rolou
na pista, ao aterrar, a alegria desapareceu: dois dos outros não tinham
voltado.
Quando Dunquerque acabou, Bader,
de súbito exausto, dormiu 24 horas, e ao despertar encontrou toda a Inglaterra
num estado de espírito diferente, cheia de resolução. Podia-se ler no rosto dos
pilotos o que estavam sentindo: se era luta que os inimigos queriam, iam tê-la.
Contra toda a lógica, o país se recusava a reconhecer que estava derrotado.
Para Bader, havia também um desafio pessoal, embora nunca se lhe impusesse conscientemente
o pensamento de que, agora, ninguém podia pensar nele com piedade. Absorvido
pelo voo e pela tática, ele vivia para a luta que se aproximava. Luta tanto da
Inglaterra como sua.
Menos de duas semanas depois,
Bader foi chamado ao Quartel-General do Grupo 12. Sem preâmbulos, o comandante
Vice-Marechal-do-Ar Leigh-Mallory disse:
— Tenho ouvido referências à sua
atuação como comandante. Vou dar-lhe um esquadrão, o 242 de Hurricanes.
Bader arregalou os olhos, depois
engoliu em seco e disse:
— Sim, senhor...
O homem atarracado, de rosto
quadrado, que estava atrás da mesa, prosseguiu rispidamente:
— O 242 é um esquadrão canadense,
o único do Canadá na RAF, e a turma é difícil de manejar. Acabam de voltar da
França, onde foram severamente atingidos. Para falar com franqueza, estão
saturados e com o moral baixo. Precisam de um pouco de organização adequada e
de alguém que saiba falar-lhes com dureza, e acho que o senhor é a pessoa
indicada.
O esquadrão estava em Coltishall,
disse Leigh-Mallory, e o Major-Aviador Bader devia assumir seu posto
imediatamente.
Major-Aviador Bader! Oito semanas
antes ele fôra um simples tenente-aviador! Agora tinha alcançado os seus
contemporâneos e podia trabalhar com afinco no seu primeiro comando.
— Acho que vou já travar
conhecimento com esses camaradas.
Encontrou-os em alerta, num
abrigo na extremidade do campo. Abrindo a porta de par em par, entrou
caminhando desajeitadamente, sem se fazer anunciar, e pelo seu andar
cambaleante viram que se tratava do novo major-aviador. Uma dezena de pares de
olhos o examinaram friamente das cadeiras e das camas de ferro onde os pilotos
dormiam de noite para o alerta da madrugada. Ninguém se levantou; ninguém se
moveu; até as mãos permaneceram nos bolsos; e o local ficou em silêncio.
— Quem é o responsável aqui?
Um jovem corpulento se ergueu
devagar de uma cadeira e disse:
— Acho que sou eu.
— Não há um comandante? — Bader
perguntou, notando o círculo único em volta da manga que indicava o seu posto
de tenente.
— Há um em qualquer parte, mas
não está aqui — disse o jovem.
— Como é o seu nome?
— Turner... — e em seguida, após
uma pausa nítida: — Sr. Major.
Bader olhou para eles um pouco
mais, com a raiva flamejando por dentro. Em seguida, voltou-se bruscamente e
saiu. A uns dez metros da porta estava um Hurricane. Na carlinga já havia um paraquedas,
capacete e óculos. Bader passou a perna por cima da beirada e se ergueu para
dentro. Se pensavam que o novo comandante era um aleijado, havia um meio danado
de bom para fazê-los mudar de opinião. Começou a subir e apontou o nariz do
Hurricane para o outro lado do campo.
Durante meia hora rodopiou com o
Hurricane pelo céu, fundindo uma acrobacia em outra, sem pausas para ganhar
altura de novo. Concluiu com uma de suas especialidades, na qual subia num loop, fazia um tonneau rápido no alto, entrando em parafuso, saía deste e
completava o loop. Quando pousou na
relva e rolou o avião para dentro, todos os pilotos estavam de pé do lado de
fora do abrigo, olhando. Desceu sem auxílio, tomou o carro e partiu sem olhar
para eles.
Na manhã seguinte chamou todos os
pilotos ao seu gabinete. Mirou-os friamente enquanto permaneciam amontoados e
movendo-se arrastadamente em frente à sua mesa, notando os uniformes
amarrotados, os suéteres de gola alta, o cabelo por cortar e a má aparência
geral. Afinal falou: — Olhem aqui... um bom esquadrão tem boa aparência. Quero que este seja um bom
esquadrão, mas vocês são um bando de maltrapilhos. De agora em diante não quero
ver botas de voo nem suéteres no refeitório. Vocês vão andar de sapatos, camisa
e gravata.
Foi um erro.
Turner disse sem emoção:
— Quase todos nós só temos as
camisas e gravatas que estamos usando. Perdemos tudo quanto tínhamos na França.
Serenamente, mas com um traço de
contida cólera, Turner prosseguiu explicando o caos da luta incessante, como
tinham sido, ao que tudo indicava, abandonados pela autoridade, inclusive pelo
próprio comandante, como se haviam livrado deles mandando-os de um lugar para
outro, sem que fossem recebidos em parte alguma, até que cada homem teve de
cuidar de si mesmo, mantendo o seu próprio avião, furtando o seu próprio
alimento e dormindo debaixo da asa; depois procurando gasolina suficiente para
decolar e lutar, enquanto os obrigavam a recuar de um campo de pouso para
outro. Sete já tinham sido mortos e um sofrera desequilíbrio nervoso — cerca de
50% de baixas.
Quando ele concluiu, Bader disse:
— Sinto muito. Peço desculpas
pelo que disse.
Em seguida, quando lhe disseram
que os seus pedidos de pagamento pela perda dos enxovais não foram atendidos,
disse-lhes que mandassem fazer uniformes novos nos alfaiates locais.
— Garanto que serão pagos. Até
lá, para esta noite, vejam se alguém pode dar ou emprestar a vocês sapatos e
camisas. Disponho de algumas camisas e vocês podem levá-las todas emprestadas.
Está bem?
Resolvida essa parte, disse:
— Agora fiquem à vontade. Em que
combates vocês já tomaram parte e como se saíram?
A meia hora seguinte transcorreu
numa animada discussão sobre os vários aspectos da profissão. De repente os
pilotos estavam interessados e com boa vontade e Bader viu que gostava muito
deles. Depois do almoço começou a levá-los para o ar em grupos de dois para
treinos de formação, e gostou de ver que sabiam manobrar os Hurricanes, embora
a formação deles (pelos padrões de Bader) fosse um tanto imperfeita. Naquela
noite, no refeitório, estavam todos razoavelmente arrumados, de sapatos,
camisas e gravatas, e ele aplicou-lhes o seu irradiante encanto pessoal. Não
tardou que se quebrasse o gelo, e os pilotos aglomeraram-se em volta dele rindo
e conversando. A vivacidade de Bader logo os empolgou, e perto da hora de se
retirarem um deles disse:
— Sabe, Sr. Major? Nós estávamos
com medo de que o senhor não passasse de outro irresponsável sem autoridade.
Na segunda manhã já havia um
senso de comando no esquadrão. Logo nas primeiras horas o novo comandante
começou a aparecer por toda parte, nos alojamentos, no hangar de manutenção, na
cabina de rádio, na seção de instrumentos, no parque de armamento. Por volta
das dez horas, tornou a levar grupos de Hurricanes para o ar, e dessa vez sua
voz explodia, seca, pelo rádio, quando algum avião se atrasava ou saía de
Posição. Mais tarde, no alojamento de oficiais, fez-lhes a primeira preleção sobre
as ideias de tática de caça que tinha exposto em Duxford. Dentro de poucos dias
o esquadrão inteiro estava entrando em posição como um team.
Entrementes, Bader lutava com um
novo problema: o oficial mecânico do 242, Bernard West, tinha comunicado que todas
as ferramentas e os sobresselentes das equipes de terra se haviam perdido na
França. Ele não podia manter em condições de voo os 18 Hurricanes do esquadrão
a menos que as suas requisições de novos fornecimentos fossem atendidas.
Segundo West, o oficial-almoxarife da base dissera que as requisições tinham de
percorrer os canais competentes e estes, achava West, estavam muito entupidos.
As indagações diretas de Bader
provocaram resposta idêntica do oficial-almoxarife: ele estava quase esmagado
pelo papelório. Coltishall era uma base nova e havia um mundo de coisas a serem
adquiridas: cobertores, sabão, botinas.
— Literalmente não tenho
funcionários suficientes nem para datilografar os formulários — disse ele.
— Os seus formulários e os seus
cobertores e o seu maldito papel sanitário que vão para o inferno — replicou
Bader com cólera. — Quero os meus sobresselentes e ferramentas e quero-os logo.
Poucos dias depois, quando nenhum
equipamento tinha ainda aparecido, Bader entregou a West um pedaço de papel.
— Talvez você gostasse de mostrar
este aviso ao Grupo — disse ele.
West arregalou os olhos ao ler o
breve radiograma: "ESQUADRÃO 242 OPERACIONAL TOCANTE PESSOAL, MAS NÃO
OPERACIONAL REPITO NÃO OPERACIONAL TOCANTE MATERIAL".
West ponderou discretamente que
não sabia se o comandante da base permitiria que se enviasse uma mensagem tão
incisiva. Bader disse que o comandante tinha
ficado um pouco perturbado, sobretudo quando soube que a mensagem já havia
seguido.
West quebrou uns momentos de
carregado silêncio:
— Muito bem, Sr. Major, nós ou
vamos receber as nossas ferramentas ou outro comandante.
E de fato a reação foi imediata.
Naquela noite, um major da seção de material do Quartel-General do Comando de
Caça telefonou para observar, com severidade, que havia uma norma própria para
obter equipamento novo.
— Observei a norma própria e nada
consegui — retrucou Bader.
Mas o indignado oficial do
material insistiu em que as coisas tinham de ser feitas pela norma própria, e
dois dias depois Bader foi chamado a comparecer perante o próprio
Marechal-Chefe-do-Ar, o austero Sir Hugh Dowding. A princípio a entrevista foi
difícil, mas o resultado final foi duplo: o indignado oficial do material foi
dispensado das suas funções, e na manhã seguinte, antes mesmo de êle ter
acabado de esvaziar a mesa para passá-la ao sucessor, os caminhões estavam
rodando para o hangar de manutenção do Esquadrão 242.
Com vivo bom humor, West superintendeu
a descarga de rodas sobresselentes, velas, anéis de êmbolo e mais umas 400
peças e miudezas. À noite, quando o último caminhão tinha partido, Bader
perguntou:
— Isso é bastante, Sr. West ?
— Bastante! — declarou West. — Tenho
material aqui para dez esquadrões, Sr. Major. O que me falta agora é espaço
para guardá-lo.
Leigh-Mallory tinha acertado ao
mandar Bader para o comando do 242. Os canadenses levavam uma vida vigorosa e
sem formalidades, respeitando apenas regras em que viam utilidade. Reconheciam
em Bader as mesmas qualidades e compreendiam suas contradições quando a sua
própria exuberância se chocava com o seu arraigado senso de disciplina. Ele,
por seu turno, compreendia e respeitava o desejo deles de saberem exatamente o
que tinham de fazer, porque e quando, e a unidade havia finalmente sublimado os
últimos vestígios de suas frustrações.
Um esquadrão em guerra é um corpo
sensível. Os homens que voam e encontram a glória morrem jovens. As equipes de
terra precisam executar sem cessar trabalho meticuloso, e se alguma vez fazem
algo mal feito um piloto pode morrer. É preciso haver respeito e confiança recíprocos,
e é ao comandante que cabe inspirar esse delicado equilíbrio. Bader vivia para
o seu esquadrão e esperava que os seus homens fizessem o mesmo. Sua figura um
tanto arrogante, de andar cambaleante, podia aparecer em qualquer lugar a
qualquer hora: um chefe de família dominador e absoluto cuidando de manter a
casa em ordem.
E quando a Batalha da Inglaterra
começou, o Esquadrão 242 estava preparado.
Hurricanes em voo. Monopostos e de um motor, esses caças eram armados com oito metralhadoras nas asas. |
Hitler planejava desembarcar 25
divisões na Inglaterra em 21 de setembro de 1940, e Göring, de acordo com o
esquema, tinha de inutilizar a RAF em meados daquele mês. Com 4.000 aviões
prontos para a luta logo do outro lado do Canal (contra os 500 caças britânicos
de primeira linha, e poucas reservas), Göring desfechou o ataque no princípio
de agosto. Para experimentar a força da oposição aérea, lançou bombas sobre
Dover, Portsmouth e outras cidades litorâneas. Em seguida começou a martelar os
campos de aviões de caça do sudeste da Inglaterra, chegando a enviar 600 aviões
num único dia. A ação defensiva dos caças britânicos se revelou mais forte do
que Göring imaginara, e mais de 200 aparelhos germânicos foram abatidos na
primeira semana. Mas Bader e o Esquadrão 242 não participaram dessa batalha. Somente
os caças do Grupo 11, estacionado no sul, foram enviados para enfrentar as
grandes formações; o Grupo 12 foi deixado para proteger o coração industrial da
Inglaterra, no norte de Londres.
Bader ora se enchia de mau humor,
ora irrompia pelo refeitório de oficiais de Coltishall, onde ele e os pilotos
se sentavam, agitados, aguardando a chamada telefônica das Operações, que não
chegava. Em certa ocasião, Thelma procurou atenuar essa sofreguidão ponderando
que ainda haveria muitas batalhas e que ele não era imortal.
— Não diga bobagens,
querida—replicou ele. — Tenho uma chapa blindada atrás de mim, pernas de lata
embaixo e um motor na frente. Como é que poderiam atingir-me?
Foi só a 30 de agosto de 1940 que
o Grupo 11 pediu auxílio. Naquela manhã as Operações ordenaram ao Esquadrão 242
que se transferisse para Duxford, ao sul, onde estaria à mão para qualquer
eventualidade. No seu conhecido campo de Duxford os homens de Bader
esperaram... e esperaram. Almoçavam sanduíches e café junto dos aviões enquanto
a Luftwaffe atacava furiosamente o sul da Inglaterra com ondas de aviões, mas
mesmo assim nenhum chamado vinha. Bader sentava-se à mesa do telefone no
refeitório de oficiais, com o cachimbo apagado apertado entre os dentes,
excitadíssimo. A um quarto para as cinco o telefone tocou.
Das Operações veio em tom seco e
rápido: "Esquadrão dois-quatro-dois: vamos! Inimigo a cinco mil metros em
North Weald".
Enquanto as rodas, ainda girando,
se dobravam para dentro das asas, Bader ligou o rádio e ouviu a voz fria e
medida do Tenente-Coronel Woodhall, Comandante da Base de Duxford: "Alô,
guia vermelho. Vetor um-nove-zero. Mais de 70 inimigos se aproximando de North
Weald".
Segurando um mapa sobre a coxa, ele
viu que 190 graus iam dar sobre a base de caças de North Weald — mas também
dentro do sol. Sabia o que faria se fosse o comandante alemão: entrar primeiro
partindo do sol! Do sudeste.
Isso era o diabo. Ele é que
queria estar de sol acima. Sem ligar às instruções de Woodhall, desviou-se 30
graus para oeste. Poderia deixar de alcançar o inimigo! Mas sentiu que estava
no caminho certo.
Estava a sudoeste de North Weald
e ainda ganhando altura quando viu a massa de pontinhos; numerosos demais para
serem ingleses. Comprimiu o manete e disse concisamente: "Aviões inimigos
ao nível de 10 horas".
Agora os pontos pareciam um
enxame de abelhas zumbindo sem parar em direção a North Weald, a 3.600 metros
de altura. Os bombardeiros – Dorniers - vinham em linhas regulares, de quatro
em quatro e de seis em seis e ele os estava contando: 14 linhas e, acima deles,
uns 30 caças. Acima destes outros ainda. Mais de 100 aviões contra os seus
nove. Os Hurricanes estavam acima do enxame principal, descendo sobre eles de
costas para o sol.
De repente, uma onda de raiva agitou
Bader. No impulso do momento, uma força diabólica levou-o a mergulhar bem no
meio daquela formação tão certa e desfazê-la. Apontou para baixo o nariz do
avião.
Caiu-lhes em cima, e imediatamente
as treinadas linhas se desmancharam em guinadas loucas para a esquerda e para a
direita, fora do seu caminho. Ele voou para baixo e para cima, virando para a
direita. Uma pequena onda estava correndo pelo grande rebanho, e depois este começou
a se dividir e a se espalhar.
Três 110 estavam rodando na
frente, o último lento demais. Logo atrás, Bader comprimiu o botão com o
polegar e quase instantaneamente o fogo brotou na raiz da asa do avião inimigo
e ele se precipitou. Abaixo e à direita outro 110 estava rodopiando para sair
de uma curva em perda. Bader apontou o nariz para baixo em busca dele e
disparou durante três segundos. O 110 se balançou para frente e para trás. Ele
disparou de novo e o avião caiu em chamas.
A exultação se arrefeceu quando
no espelho acima dos seus olhos um 110 meteu o nariz por cima do leme, inclinando-se
para dentro. Ele voltou-se bruscamente o mais que pôde e viu o 110 colado atrás,
com brancos raios de balas traçantes saindo-lhe do nariz. Em seguida, o Messerschmidt
mergulhou de repente e desapareceu por baixo da asa dele; estava voltando
disparado para a sua base.
Bader se surpreendeu ao verificar
que tinha baixado para 1.800 metros e estava suando, com a boca seca e
respirando fundo. Subiu abruptamente, para voltar à luta, mas a luta havia
terminado. O céu estava milagrosamente limpo de aviões e penachos de fumaça se
erguiam dos campos.
De novo em Duxford, ébrios de
satisfação, os pilotos apuraram o escore: dois para Bader, três para McKnight,
um para Turner. Crowley-Milling também tinha abatido um e vários outros haviam
igualmente marcado pontos. Doze confirmados e diversos avariados. O resto dos
alemães havia fugido de volta. Não havia um único buraco de bala em nenhum dos
Hurricanes.
E nem uma só bomba atingira North Weald.
Mais tarde, Bader explicou a
Woodhall por que tinha desobedecido às instruções, expondo com vigor os seus
pontos de vista. Conseguia falar à vontade com Woodhall, um grisalho e
atarracado veterano da Primeira Guerra Mundial.
—Temos de pegar os alemães antes
que cheguem aos seus alvos — disse Bader. — Não depois, quando eles já os
alcançaram e estão deixando cair as suas bombas. Se o senhor não disser em
tempo onde estão — direção e altura — decidiremos no ar sobre a nossa tática,
nos colocaremos acima do sol e os mandaremos para o inferno.
— Estou com o senhor — disse
Woodhall. — Hoje sem dúvida deu certo. Mas pode ser que estejamos avançando o
sinal um pouco — acrescentou com severidade.
O Vice-Marechal-do-Ar
Leigh-Mallory chegou de avião naquela noite trazendo muitas congratulações e
Bader aproveitou a oportunidade para ventilar uma ideia nova:
— Na realidade, senhor, se
tivéssemos mais aviões poderíamos ter derrubado muitos mais. E óbvio que o objetivo
do voo em formação consiste apenas em trazer para a luta ao mesmo tempo o maior
número possível de aviões. Uma vez iniciado o combate, não há mais nada que o
comandante possa fazer. Se eu tivesse tido três esquadrões esta tarde, teríamos
sido três vezes mais poderosos. E acho que o número de vítimas também seria
menor.
Leigh-Mallory disse que iria
pensar no assunto. E na manhã seguinte telefonou para dizer:
— Amanhã quero que o senhor experimente
esse plano da grande formação. Temos os Esquadrões 19 e 310 em Duxford. Veja
como se sai liderando todos os três esquadrões.
Com muito entusiasmo pelo jeito
decidido de Leigh-Mallory, Bader passou três dias praticando decolagens com os
três esquadrões e guiando-os no ar. A 5 de setembro tinha reduzido o tempo
entre o alerta e a decolagem para pouco mais de três minutos.
A 7 de setembro Göring atacou
Londres com a Luftwaffe. Começando de madrugada, vieram ondas de bombardeiros o
dia inteiro, mas foi só no fim da tarde que os três esquadrões de Bader
entraram em ação. Tinham eles atingido a uma altura de 4.500 metros quando
Bader divisou o inimigo, uns bons 1.500 metros acima deles. Pelo menos 70 Dorniers
e 110 misturados, e uns pontos mais acima — Messerschmidts 109. Não havia tempo
para tática. Não havia nada a fazer senão espalhá-los atacando-os de baixo para
cima.
Na confusa batalha que se seguiu,
uma batalha a alta velocidade, o próprio Bader derrubou dois 110 e levou uns
tiros de canhão na asa esquerda, mas conseguiu levar o seu Hurricane até ao
campo. O jovem Crowley-Milling foi atingido e cortou o rosto numa aterragem
forçada; quatro outros Hurricanes foram danificados e um dos pilotos foi morto.
Ao todo, o Esquadrão 242 abateu comprovadamente 11 aparelhos inimigos. Mas os
outros dois esquadrões, com Spitfires lentos na ascensão, tinham ficado tanto
para trás que a bem dizer não tomaram parte na luta.
No dia seguinte, quando Leigh-Mallory
apareceu, Bader disse: — Ontem não deu certo, Sr. Vice Marechal. Estávamos
baixo demais Se ao menos tivéssemos podido decolar antes poderíamos estar por
cima e prontos para atacá-los. Temos meios de localizar a reunião desses bombardeiros
sobre a França. Por que não levantamos voo antes?
Essa estratégia podia permitir os
alemães atraírem os caças para o ar e aguardarem até que o seu combustível se
esgotasse para então enviarem os bombardeiros, mas Leigh-Mallory concordou em
que valia a pena fazer uma tentativa.
— Vamos experimentar fazer vocês levantarem
voo com maior antecedência para poderem ganhar a altura de que precisam — disse
ele. — Veremos o que acontece.
No dia seguinte, Bader já tinha
feito os esquadrões se elevarem a 6.600 metros quando localizaram dois grandes
enxames de pontos dirigindo-se para Londres mais ou menos à mesma altura. As
cifras foram boas naquele dia: 20 aparelhos inimigos destruídos contra a perda
de quatro Hurricanes e dois pilotos. Em setembro de 1940 só as cifras tinham
valor.
Mas Bader ainda não estava
satisfeito. Ele voou para o quartel-general do Grupo 12 e disse a
Leigh-Mallory:
— Senhor, se ao menos tivéssemos
mais caças, poderíamos ter derrubado alemães às dezenas.
— Eu ia falar com você a esse respeito disse Leigh-Mallory.
— Se eu lhe der mais dois esquadrões você pode manobrá-los?
Cinco esquadrões. Mais de 60
caças! Até Bader se sobressaltou. Mas entusiasmou-se.
Conversaram então durante mais de
uma hora, e Leigh-Mallory disse que estava espalhando o evangelho de Bader de
desfazer formações inimigas mergulhando no meio delas. Bader tinha feito isso a
primeira vez por raiva — mas naquele momento nasceu um novo processo tático. O
Vice-Marechal-do-Ar (Leigh-Mallory) chamava o 242 de "esquadrão de
desintegração".
Mas o combate incessante
representava um esforço terrível para os pilotos. A vida destes era um contraste
brutal. Nas horas de folga podiam contar anedotas num bar e dormir entre
lençóis; de manhã despertavam para um mundo novo de caçadores e caçados. Sob essa
constante tensão, só Bader parecia insensível ao medo. Nunca teve, como os
outros, o que era conhecido como "o tique". Exteriormente deixava transparecer
uma confiança tão grande que chegava a ser contagiosa. Até para Thelma não
parecia real que êle pudesse ser morto. Um chefe assim é preciso porque os
pilotos são jovens e humanos e muitas vezes estão aterrorizados a despeito da
aparência despreocupada.
Cada vez que os esquadrões de
Bader decolavam, a voz dominadora começava a disparar comandos pelo rádio, os
quais, intencional ou acidentalmente, faziam com que a missão que tinham pela
frente deixasse de ser encarada com nervosismo. Houve, por exemplo, o caso de
Cocky Dundas, de 19 anos de idade, que teve o seu avião seriamente atingido
logo no primeiro combate. Um mês depois, ainda conturbado, estava ele voando
com Bader na sua primeira missão. Aprestaram-se a toda pressa e êle estava com
"o tique", a boca seca, tremores no estômago e marteladas no coração.
Então lhe chegou aos ouvidos, enquanto subiam, a voz daquele estranho chefe sem
pernas:
— Olá, Woodhall, tenho um jogo de
squash com Peters marcado para daqui
a uma hora. Quer fazer o favor de telefonar para ele e dizer que vou demorar um
pouco?
(Meu Deus. Sem pernas! Jogando squash)
Voz de Woodhall:
— Esqueça isso agora, Douglas.
Vetor um-nove-zero. Sete mil metros.
— Vamos, Woodhall, telefone para ele
agora.
— Não tenho tempo, Douglas. Há
uma coisa no quadro avançando para a costa.
— Ora, que diabo! Arranje tempo.
Você está sentado em frente a uma fila de telefones. Apanhe um e telefone para
o rapaz.
— Está bem, está bem — respondeu
o filosófico Woodhall. — Em nome da paz e do sossego vou telefonar. Agora, que
tal você continuar a guerra?
Dundas prosseguiu com o coração
mais leve, como todos os outros.
A 15 de Setembro de 1940, o maior
dia da Batalha da Inglaterra, o bando de 60 caças de Bader, conhecido
oficialmente como Regimento do Grupo 12, entrou em ação como unidade pela
segunda vez. De madrugada, ondas de aviões alemães começaram a transpor o
Canal, e esquadrões da RAF, um após outro, fizeram-se ao ar para recebê-los. A
formação de Bader foi chamada duas vezes, e à noite, quando fizeram o levantamento
da batalha do dia, verificaram que o Regimento do Grupo tinha justificado
plenamente a sua existência. Nas duas grandes batalhas daquele dia os pilotos
dos cinco esquadrões do Regimento tiveram a seu crédito 52 aviões inimigos
destruídos e mais oito prováveis.
Leigh-Mallory telefonou naquela
noite:
— Douglas, que espetáculo
maravilhoso hoje! Está absolutamente claro que as suas grandes formações estão
compensando.
Bader respondeu:
— Muito obrigado, Sr. Vice
Marechal, mas passamos um aperto na segunda viagem. Tornaram a chamar-nos muito
tarde e os alemães estavam muito acima quando os avistamos. O que eu realmente
gostaria de fazer, Sr. Vice Marechal, era abater um reide completo de modo que
não regressasse um único alemão.
Leigh-Mallory riu.
— Sedento de sangue, hein? Se
você continuar assim acaba tendo a oportunidade que deseja.
A oportunidade veio no dia 18.
Por volta de quatro e meia da
tarde, os cinco esquadrões foram chamados. Estavam voando logo abaixo de uma
fina camada de nuvens a uns 6.300 metros de altura, sentindo-se
confortavelmente seguros — ninguém poderia atacá-los de surpresa através
daquela cortina — quando Bader divisou dois pequenos enxames de aviões voando a
4.800 metros: uns 40 ao todo. Mais aviões ingleses que inimigos! Era
inacreditável! Enquanto os caças circulavam para se reunirem atrás, ele viu com
feroz alegria que os inimigos eram todos bombardeiros: JU 88 e Dorniers. Nenhum
sinal de 109. Os bombardeiros estavam abaixo, bem onde ele queria que
estivessem. Mergulhou, visando a fila da frente, e o ávido bando se precipitou
atrás dele.
A ação que se seguiu "foi um
tanto perigosa do ponto de vista de colisão", disse Bader posteriormente,
"mas foi um estado de coisas plenamente satisfatório".
No alojamento de oficiais, uma
multidão de joviais pilotos se amontoou em roda do oficial de informações,
quase todos declarando que tinham feito vítimas. Nunca nenhum deles tinha visto
tantos paraquedas. Bader laconicamente escreveu em seu diário: "O
Regimento destruiu 30 aviões, mais seis prováveis, mais dois danificados. Meu
escore: um JU 88, um Do 17. Não houve vitimas no esquadrão, nem no Regimento".
Desse dia em diante a batalha começou
a perder intensidade. Pelo fim de setembro os bombardeiros só apareciam
raramente; em seu lugar vinham bandos de 109, insinuando-se pelos colchoes de
nuvens com pequenas bombas brancas pendentes de porta-bombas improvisados.
Depois, até esses assaltantes sorrateiros começaram a escassear. Por fim, a
nação pode rejubilar-se, compreendendo que aquela altura nem mesmo um louco
iria invadi-la.
Bader foi talvez o único a ficar
um pouco triste com o fim do barulho. O seu Regimento derrubou 152 aviões
inimigos, contra a perda de 30 pilotos e um número um tanto major de aviões.
Mas então o encontro deles de madrugada foi ficando raro e os dias se tornaram
menos imprevisíveis: voltavam a prontidão normal de Coltishall.
Bader recebeu duas condecorações:
a Ordem de Serviços Relevantes e a Cruz da Aviação. Suas teorias sobre tática
de caça estavam merecendo respeitosa consideração por parte do Ministério da Aeronáutica;
numa conferência ali verificou que era o único oficial de posto inferior a
vice-marechal-do-ar. Além do mais, estava-se tornando famoso, apesar da orientação
da RAF no sentido de dar relevo ao espirito de equipe, de não mencionar o nome
dos ases nos seus comunicados à imprensa. Cada vez que ocorria uma nova façanha
de um piloto de caça sem pernas, a imprensa e o rádio sabiam muito bem de quem
se tratava. Mas o próprio Bader estava ocupado demais para tomar conhecimento
da publicidade: continuava a viver no pequeno mundo do esquadrão, do combate e
da tática.
Uma esquadrilha de Hurricanes em formação em grupos, voando acima de um mar de nuvens. |
No começo de março de 1941,
Leigh-Mallory mandou chamá-lo:
— Estamos elaborando umas ideias
para realizar o ataque através da França no verão — disse ele. — Vagas de caças,
mas coisa maior do que tudo quanto já experimentamos. Para isso estamos
organizando o nosso sistema de "regimento" e você deverá ser um dos
comandantes. Você provavelmente ira para Tangmere.
Há ocasiões em que as palavras
soam como música. Em termos militares, isso significava uma promoção a
tenente-coronel. Mas, após expressar seus agradecimentos, Bader perguntou:
— Poderei levar comigo o Esquadrão
242, Sr. Vice Marechal?
— Receio que não — respondeu
Leigh-Mallory. — Você já tem lá três esquadrões. Tudo Spitfire.
Bader fez sentir, sem jeito, que
nesse caso não estava muito certo se queria ser comandante do regimento de
aviação.
Leigh-Mallory disse com firmeza:
— Você fara o que lhe for
ordenado.
Em seguida, pois conhecia bem
aquele homem, acrescentou:
— Se o senhor levar o 242, não poderá
deixar de favorecê-los um pouco. Eu o conheço e sei como os considera.
Bader se apresentou em Tangmere
em meados de março, e imediatamente começou a treinar com afinco os seus três esquadrões
de Spitfires. Ao contrario do que ocorrera nos seus primeiros dias no 242, não
foi preciso conquistar a confiança do pessoal. Era o primeiro comandante de
regimento da RAF e os soldados e oficiais atendiam imediatamente os seus brados
ríspidos. Woodhall, recentemente promovido a coronel-aviador, também chegou a
Tangmere mais ou menos aquela época, para comandar a base. Leigh-Mallory queria
reunir o seu team antigo.
Bader verificou que quase todos
os pilotos tinham participado sem interrupção da Batalha da Inglaterra e vários
deles, sobretudo os comandantes, apresentavam evidentes sinais de esgotamento.
Pediu que Stan Turner fosse transferido para o comando de um dos esquadrões e
também trouxe Crowley-Milling do 242 como comandante de voo. Bader se
encarregou pessoalmente do esquadrão que tinha menos experiência de combate.
Como seu substituto, muitas vezes
escolhia o desengonçado Cocky Dundas, que sua voz tanto animara durante a
Batalha da Inglaterra. (A opinião e os ensinamentos de Bader pareciam ter sido
bons. Poucos anos depois Crowley-Milling e Dundas eram tenentes-coronéis,
condecorados com a Ordem de Serviços Relevantes e a Cruz da Aviação. Aos 25
anos Dundas se tornou um dos mais jovens coronéis da RAF).
Não tardou que Leigh-Mallory começasse
a enviar uns poucos bombardeiros para além do Canal, rodeados de hordas de
caças, porque a sua ideia era forçar os alemães a levantarem voo e lutarem.
Durante algumas semanas essa estratégia não deu resultado. O regimento de
Tangmere raramente via mais de três ou quatro Messerschmidts de uma vez, em
geral bem fora da rota, a espera de algum aparelho extraviado.
Finalmente Leigh-Mallory concluiu
que os Blenheims com uma tonelada de bombas eram leves demais para a provocação
planejada, e então conseguiu, à força de persuasão, alguns quadrimotores
Stirlings, que podiam transportar quase seis toneladas de bombas cada um.
Amontoando uns 200 Spitfires em volta deles, começou a mandá-los para além da
costa, contra alvos interiores: entroncamentos ferroviários e fabricas de aviões.
Essa tática começou a dar resultados. Os caças germânicos puseram-se a levantar
voo em grupos de 30 e 40. E a RAF os derrubava à razão de três aparelhos
alemães para cada dos Spitfires perdidos. Raramente era abatido um bombardeiro,
e assim mesmo sempre pela artilharia antiaérea.
Salvo quando o tempo estava ruim,
Bader levava quase diariamente o seu regimento para uma batida, atraindo o
inimigo para o combate. Todo o mundo sentia que ele era invencível e que essa
força escudava aqueles que voavam com ele. Era parte do seu reconhecido gênio
para o comando de caças. Thelma sabia
que o inimigo nunca o derrotaria.
Mas perto do fim de julho os seus
superiores começaram a preocupar-se com ele. Em sete dias realizou dez sortidas
— o bastante para derrubar o homem mais forte, quanto mais um com pernas
artificiais. Agora já fizera mais sortidas que qualquer outro no Comando de
Caças, e era o último dos primitivos comandantes de regimento ainda em ação: o
resto morrera ou fora mandado repousar. Um jornal londrino escreveu que Bader
já fizera bastante, que era valioso demais para perdê-lo e que devia ser
afastado das operações. Ele leu isso com indignação. Woodhall começou a
dizer-lhe que ele devia tirar uma folga, mas Bader se recusava terminantemente.
Por fim, o Vice-Marechal-do-Ar
Leigh-Mallory disse:
— É melhor você deixar de
participar das operações por algum tempo, Douglas. Você não pode continuar
assim indefinidamente.
— Ainda não, Sr. Vice Marechal — respondeu
Bader. — Estou em plena forma e prefiro continuar.
Mostrou-se tão obstinado que
Leigh-Mallory transigiu com relutância:
— Muito bem, vou deixá-lo ficar
ate o fim de agosto. Depois terá de sair.
Não continuava lutando para
aumentar o seu número de aviões inimigos abatidos, embora, com 20 1/2
comprovadamente destruídos, fosse o quinto na lista dos pilotos da RAF com
escores mais altos. O regimento era tudo para ele e o combate um tóxico que
respondia ao seu anseio de uma finalidade e de realização.
No dia 9 de agosto de 1941 saiu
tudo errado desde o começo.
Primeiro, foi uma confusão na
decolagem e o esquadrão de cobertura alta perdeu o rumo. Transpondo o Canal, os
outros não conseguiram distinguir o menor sinal dele, e Bader não queria violar
o silencio do radio para chamá-los. Depois, no meio da travessia, seu indicador
de velocidade do ar enguiçou, o que iria perturbar os cálculos para chegar
sobre Lille à hora marcada.
Exatamente quando cruzavam o
litoral da França, viram uns 12 Messerschmidts bem na frente, a uns 600 metros
abaixo, subindo na mesma direção. Nenhum deles parecia estar olhando para trás.
Eram presas fácil.
Bader disse incisivamente:
"Dá bem para todos. Derrubem-nos à proporção que forem chegando", e
escolheu para ele um dos guias. Aproximando-se com demasiada velocidade,
calculou muito mal e, para evitar uma colisão, teve de inclinar o Spitfire e
jogá-lo bem para baixo.
Furioso, nivelou novamente a uns
7.200 metros de altura, observando com toda atenção a retaguarda e verificando
que estava só. Então viu de súbito mais seis Messerschmidts na frente,
espalhados em três pares paralelos, com os narizes apontando para a direção
oposta. Nova presa fácil! Sabia que devia subir e deixá-los; estava cansado de
repetir aos seus pilotos que nunca se aventurassem sozinhos. Mas a tentação foi
irresistível. Olhou de novo para trás. Tudo limpo. A avidez afastou a prudência
e ele foi sub-repticiamente colocar-se atrás do par do meio. Nenhum dos pilotos
percebeu. De 100 metros ele abriu fogo contra o de trás. O avião inclinou-se
abruptamente sobre uma asa e se abateu todo em chamas. Os alemães continuaram
cegamente para diante.
Apontou para o guia, a uns 150
metros na frente, e deu-lhe uma rajada de três segundos. Voaram estilhaços e
rolos de fumaça branca jorraram do avião. Os caças da esquerda estavam-se
voltando para Bader e ele virou violentamente para a direita a fim de escapar.
Os dois aviões da direita continuavam voando para frente e, por pura bravata,
ele manteve seu rumo para passar entre eles.
Algo o atingiu. Sentiu o impacto,
mas a sua mente estava curiosamente entorpecida. Alguma coisa segurava o seu
aparelho pela cauda, fazendo-o girar e obrigando-o a dar um brusco mergulho em
espiral. Olhou confusamente para trás para ver se alguma coisa o estava
seguindo e teve um choque ao verificar que estava faltando ao Spitfire tudo
quanto ficava para trás da carlinga: fuselagem, cauda, quilha—tudo tinha
desaparecido. Com certeza, o segundo 109 se havia precipitado sobre ele
cortando-lhe aquela parte com a hélice.
Arrancou o capacete e a máscara e
deu um forte arranco na bolinha de borracha sobre a sua cabeça. A tampa se
rasgou toda e um ruído penetrante lhe feriu os ouvidos. Agarrando a borda da
carlinga para erguer-se, pensou que talvez não o conseguisse sem o impulso das
pernas que em nada podiam ajudar. Lutou desesperadamente para levantar a cabeça
acima do para-brisa e de repente, quando o vento dilacerante o alcançou, sentiu
que estava sendo sugado para fora.
Estava fora! Não, algo o prendia.
O rígido pé da perna direita tinha-se agarrado firmemente em alguma saliência
da carlinga. O vento lhe açoitava o corpo exposto e lhe gritava nos ouvidos
enquanto o caça quebrado, arrastando-o pela perna, mergulhava. Então, de
repente, o aço e o couro rebentaram com um estalo.
O ruído e as pancadas cessaram.
Num lampejo, seu cérebro se aclarou e ele puxou o anel do paraquedas, ouvindo o
barulho que este fez ao abrir-se. Depois começou a flutuar, muito acima da
terra verde e salpicada de manchas doutras cores. Algo lhe bateu no rosto e ele
viu que era a perna direita da calça, aberta na costura. A perna havia
desaparecido.
Que sorte, pensou, ter pernas que
podiam soltar-se. Se não fosse isso, teria morrido segundos antes.
Era uma sorte, também, não ir
aterrar sabre a rígida perna de metal. Descer de paraquedas equivale a saltar
de um muro de quatro metros de altura, e cair ao solo sobre a sua perna direita
artificial presa ao coto sem joelho teria sido como aterrar sabre um rígido
poste de aço. Isso lhe abriria a bacia de maneira horrível.
A terra, que estava tão distante,
de súbito se ergueu ferozmente. Então sentiu algumas costelas se partirem
quando um joelho lhe bateu no peito, e a consciência lhe fugia.
Durante os seus três anos e meio
como prisioneiro de guerra, Bader foi um constante problema para os alemães. No
hospital da Franca para onde primeiro foi levado persuadiu seus captores a
pedirem a RAF outra perna para ele, a qual posteriormente foi lançada de paraquedas.
Em seguida, recompensou-os fugindo através de uma janela do terceiro andar, descendo
12 metros ate ao solo, por uma corda feita de lençóis, com nós. Recapturado um
dia depois, foi embarcado para a Alemanha.
Ainda firmemente disposto a escapar,
Bader experimentou um plano após outro, e os alemães, esforçando-se por
enfrentar e dominar esse impossível prisioneiro, que deveria estar numa cadeira
de rodas, iam-no transferindo de um campo para outro. Por fim, mandaram-no para
Colditz, um sombrio castelo medieval, considerado a prova de fuga e reservado
para prisioneiros incorrigíveis. Ali foi libertado em abril de 1945 pelo
Primeiro Exercito Norte-Americano, em seu avanço.
Quando voltou para a Inglaterra,
Bader verificou que era uma lenda viva, com gente em toda parte bradando que
queria vê-lo. Durante algum tempo refugiou-se com Thelma num discreto hotel do
interior. Em seguida, ansioso de novo por obrigações, subiu um dia num Spitfire
e rodopiou com ele pelo céu. No primeiro minuto viu, com júbilo, que nada perdera
de sua perícia. Dali a dois dias, para consternação de Thelma, estava fazendo
planos para uma missão no Extremo Oriente contra os japoneses. Mas o pessoal do
Ministério da Aeronáutica, embora atencioso, não mostrou boa vontade. Ele já
tinha feito mais do que o suficiente, disseram. Continuava fazendo planos
quando a bomba atômica foi atirada e a luta cessou.
Douglas Bader é considerado o melhor
comandante e tático de caça da Segunda Guerra Mundial, e um dos melhores
pilotos. Mas o seu maior triunfo não são os seus combates aéreos; estes foram
apenas um episódio da vitória mais importante que ele conquistou na sua própria
guerra pessoal, que prossegue sem cessar, para ser vencida de novo todo dia. Ele
se vem dedicando cada vez mais a encorajar outras pessoas que tiveram membros
amputados, e elas acham que a sua simples existência, sua resistência e o seu
exemplo são um tônico. Ele as inspira de um modo que médico algum pode igualar.
Em princípio de 1946 aceitou um emprego
na Shell Petroleum Co. Ltd., pilotando o seu próprio avião por uma grande parte
do mundo, a serviço. Em todos os lugares onde esteve — Europa, África, Oriente Médio
e Extremo Oriente — sempre achou tempo para visitar hospitais, conversar com as
pessoas que haviam perdido membros e ajudá-las a aprender a andar outra vez.
Num hospital dos Estados Unidos,
que visitou em 1947, encontrou um veterano sem pernas esforçando-se por andar
com o auxílio de barras paralelas baixas. Bader caminhou para ele com seu andar
desajeitado e perguntou-lhe:
— Por que o senhor não sai dessas
barras e experimenta andar sem elas?
— Quem é o senhor? — rosnou o
homem.
— Apenas um inglês de passagem
por aqui, mas também perdi ambas as pernas e só tenho um joelho, não dois como
o senhor.
O homem deu um arranco para fora
e Bader ficou ao lado dele, ajudando-o a andar cambaleando para um lado e para
outro pela sala. Passado algum tempo, o paciente conseguiu dar os seus dois
primeiros passos sem auxílio, e a sua atitude mudou completamente.
— Diabo — disse ele. — Quase meti
uma bala na cabeça quando acordei hoje de manhã, mas agora acho que está tudo
bem outra vez.
Em Chicago, Bader leu uma notícia
sobre um menino de dez anos que teve ambas as pernas amputadas abaixo do
joelho. Douglas passou uma hora e meia à beira do leito dele, mostrando-lhe que
as pernas não têm tanta importância assim. Depois o pai do menino disse,
preocupado:
— Ele ainda não avalia a
gravidade da situação.
— E é uma coisa que ele nunca deve avaliar — replicou Bader com
exaltação. - O senhor tem de fazer com que ele sinta que isto é outro jogo que
ele precisa aprender, e não algo que o deixará aleijado. Se o amedrontar, ele
estará desde logo derrotado.
Em resumo, é essa a filosofia de
Douglas Bader. Ela diz respeito não apenas a pernas, mas também à própria vida.
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