domingo, 24 de agosto de 2014

RUMO ÀS ALTURAS


Em agosto de 1941 um caça britânico foi abatido em território francês ocupado. O piloto foi transportado para o hospital militar de Saint-Omer.
Um médico alemão o examinou e verificou com grande espanto que ele tinha as duas pernas amputadas!
Para os homens da Luftwaffe este piloto não era um desconhecido: sabiam que se tratava de um dos grandes ases britânicos da aviação, talvez o mais famoso dos comandantes da Real Força Aérea.



Quando Douglas Bader, com 19 anos, era cadete em Cranwell, a academia da Real Força Aérea, seu instrutor de pilotagem disse: "Este jovem ou ficará famoso ou se matará". Parecia que era apenas uma questão de saber qual das duas coisas aconteceria primeiro.
Desde o começo Douglas Bader revelara possuir as qualidades de um soberbo aviador. Tinha a coordenação do atleta nato (brilhava em todos os esportes, do futebol ao boxe) e voava com exuberância e com absoluto destemor. Mas era dado a aceitar logo qualquer desafio e jovialmente transgredia todos os regulamentos menos importantes. No esquadrão de caça onde foi classificado depois de concluir o curso ficou conhecido por suas acrobacias aéreas de arrepiar os cabelos, que ele se deliciava em executar a altitudes perigosamente baixas.
Os pilotos treinados para a guerra não são recrutados por sua cautela, e às vezes a sua temeridade prevalece sobre a competência. No dia 14 de dezembro de 1931, Bader, que tinha acabado de completar 21 anos, voou para um aeródromo próximo a fim de visitar uns amigos. Conhecendo a fama que granjeara por suas acrobacias aéreas, alguém lhe pediu que, a título de demonstração, "batesse" o campo — uma manobra de voo rasante sobremodo arriscada e rigorosamente proibida aos pilotos da RAF. Bader hesitou um instante, pois o seu novo caça Bulldog, embora mais rápido, era também mais pesado e menos maneável que o avião em que vinha voando anteriormente. Em seguida decolou, inclinou o avião de lado e virou para trás a fim de dar uma passada rasante sobre o campo. Cruzou como um raio a cerca divisória, com o motor rugindo, empurrou o mancho e puxou o manete para manter o motor funcionando, enquanto o Bulldog virava de dorso. Sentiu que o aparelho começava a afundar, e procurou a todo custo fechar a curva. Tinha quase completado a volta quando a ponta da asa esquerda tocou no solo e lançou o nariz para baixo. Quando a hélice e o motor explodiram de encontro ao solo, o Bulldog virou uma cambalhota lateral e se amarrotou numa massa confusa que parecia uma bola de papel.
Preso nas correias, Bader nada sentiu, e ouviu apenas um ruído terrível. Quando sua mente clareou, sentiu, no repentino silêncio que se seguiu, uma sensação estranha nos joelhos e notou que suas pernas estavam em posições esquisitas. A perna esquerda tinha ficado presa debaixo do assento quebrado, de modo que ele estava sentado nela. O pé direito estava enfiado lá no outro canto da carlinga, e a perna do macacão branco e limpo estava manchada de sangue. Havia algo atravessado no joelho. Lembrava um pouco a barra de direção. Muito estranho. Olhou aquilo abstratamente, e por algum tempo não sentiu nenhum impacto, até que se cristalizou um pensamento desagradável: "Maldição! Não vou poder jogar rugby sábado".

No hospital civil para onde o levaram a toda pressa, o médico amputou-lhe a perna direita (que já estava quase solta) acima do joelho esmagado. E dois dias depois, quando a perna esquerda ferida gangrenou, também esta foi amputada 15 centímetros abaixo do joelho.
Não se sabe como, Bader conseguiu resistir ao choque do desastre e da primeira operação, agarrando-se à vida por um fio. Depois da segunda operação levou umas 24 horas para ficar de fato consciente. Despertou presa de uma dor aguda e incessante.
— Minha perna esquerda está doendo — queixou-se.
Deram-lhe morfina para aliviá-lo, mas a dor continuou implacável.
Seus olhos ficaram inquietos e mergulhados em negras olheiras, o rosto cinzento e ceráceo, brilhando sob uma camada de suor. Durante dois dias ele alternou entre períodos de inconsciência e momentos de vigília, e então a dor constante lhe atormentava o corpo e seu espírito vagava num indefinido meio-mundo.
Depois o moço despertou e a dor tinha desaparecido. Não sentia absolutamente o corpo, embora sua mente estivesse perfeitamente clara. Ficou imóvel, olhando através da janela para um trecho de céu azul, e um pensamento cheio de paz se insinuou na sua mente: "Isto é agradável. Basta fechar os olhos agora e inclinar-me para trás, e está tudo bem". Uma paz morna ia-se apoderando dele, seus olhos iam-se fechando e sua cabeça parecia mergulhar no travesseiro, quando começou a penetrar numa doce névoa de sonhos.
Pela porta do quarto entreaberta uma voz incorpórea de mulher chegou até ele: "Psiu! Não faça tanto barulho. Há um rapaz morrendo ali".
As palavras vibraram dentro dele como um choque elétrico, disparando este rápido pensamento: "Então a coisa é essa! Sim, eu vou morrer!" O desafio o mobilizou e ele parou de entregar-se. Quando a sua mente começou a clarear, de novo tomou contato com a realidade e a dor voltou-lhe à perna. Daquela vez, por uma razão qualquer, não se incomodou; foi quase agradável, porque sentiu que voltara à normalidade. "Não devo deixar que isto aconteça outra vez", pensou. (Mas desde aquele momento nunca teve medo de morrer. Mais tarde isso viria a ter um profundo efeito sobre a sua vida).
Nos dias que se seguiram, Bader passou, inesperadamente, a se agarrar à vida. Embora tivesse pouco depois entrado em coma e assim permanecesse 48 horas, sobreviveu a essa recaída e aos poucos se restabeleceu. Entrementes, o hospital inteiro sabia, com uma espécie de fascinante terror, que ele não tardaria a ter conhecimento da extensão do que lhe acontecera.
Durante um período de lucidez em seguida à primeira operação, Bader tinha percebido que a perna direita fora amputada, tendo examinado sub-repticiamente, debaixo da roupa de cama, o coto envolto em ataduras. Mas não sabia ainda que tinha perdido a perna esquerda também. Uma das enfermeiras, temendo, que ele por acaso descobrisse e o choque o pusesse de novo em perigo, tentou contar-lhe com tanto jeito e um ar tão despreocupado quanto possível, mas seu cérebro, entorpecido pelas drogas, não registrou as palavras da enfermeira.
Ele o soube no dia seguinte, quando o comandante do seu esquadrão foi visitá-lo. Com a mente tornada lúcida pelo tormento, Bader queixou-se de que a perna esquerda lhe doía tanto que desejaria que a tivessem cortado como fizeram com a direita.
— Essa não dói nada!
— Você talvez não quisesse que lha cortassem se não doesse — disse o oficial, nervosamente consciente do drama.
— Não sei o que eu quereria se ela não doesse. Só sei que estou saturado disto tudo e, por Deus, agora eu queria que tivesse sido amputada.
— A verdade, Douglas — disse lentamente o comandante do esquadrão — é que ela foi amputada.
Dessa vez ele entendeu bem.

Bader lançou-se com feroz resolução à tarefa de conseguir locomover-se. Seis semanas depois do acidente foi-lhe colocada uma perna de pau no coto esquerdo (onde havia ainda o joelho), a fim de que pudesse tentar andar de muletas. Quando se apoiou na perna de pau, o joelho dobrou; não tinha força nenhuma. Embora o tentasse repetidamente, levou três dias para poder dar dois passos claudicantes, sem ajuda. Mas dali a pouco estava andando sozinho e passava horas caminhando com seus cotos de perna pelo jardim do hospital.
Mas antes de poder usar membros artificiais adequados Bader teve de ser operado outra vez. Os cotos tinham murchado tanto que havia perigo de o osso furar a pele, e por isso era preciso aparar um pouco o osso de cada perna. Bader submeteu-se à operação quase com alegria.
Enquanto ficou de cama esperando que os cotos sarassem de novo, estudou os encorajantes folhetos que lhe haviam sido enviados pelos fabricantes de membros artificiais. Esses folhetos lhe deram a sensação de que quando tivesse as novas pernas poderia levar uma vida razoavelmente normal; talvez não pudesse jogar rugby, mas com certeza poderia andar e dançar (coxeando um pouquinho, talvez), guiar automóvel, é claro, e voar também. Não via por que não. Voar era, sobretudo, olhos e mãos e coordenação, e não pés.
"Eles não podem desligar-me da RAF", dizia. Afinal de contas, conhecia um piloto militar que tinha perdido uma perna na Primeira Guerra Mundial e ainda voava. Alguém lhe falou num amigo que perdera uma perna e ainda jogava tênis. A rigor, todo o mundo vivia a falar-lhe de pessoas de uma perna só que haviam vencido, embora ele notasse que ninguém parecia conhecer alguém que tivesse perdido ambas as pernas e sobrepujado isso.
Às vezes, o bem intencionado encorajamento dos amigos o deprimia. "É claro que vão deixar você continuar na Aviação", diziam com veemência um tanto excessiva. (Vão deixar-me ficar... Caridade!) "Mesmo que você não possa voar, podem dar-lhe uma função em terra". Mas a ideia de uma função em terra enquanto os camaradas voavam o revoltava.
— De qualquer modo, o senhor ainda poderia fazer nova carreira num gabinete — disse-lhe a enfermeira para animá-lo.
— Gabinete — replicou ele com desprezo. — Fechado num gabinete o dia inteiro! Amarrado a uma mesa! Não haverá vida para mim se tiver de deixar a Aviação.

Uma preocupação desapareceu quando oficiais superiores da Aeronáutica o visitaram para apurar o acidente. Suas conclusões contornaram habilmente a questão da culpa, considerando que, fosse o que fosse que tivesse havido, Bader já tinha sofrido mais do que o suficiente.
Em meados de abril ele foi transferido para o hospital da Aeronáutica em Uxbridge. Ali a atmosfera era toda militar. Os enfermeiros eram quase todos soldados, respeitosos mas distantes, e as costumeiras restrições militares foram a princípio incômodas. Mas Bader encontrou na enfermaria alguns dos seus antigos companheiros e naturalmente se sentiu à vontade entre eles. Na realidade, a RAF era a sua casa.
Chegou, então, o momento que ele vinha esperando. Os médicos da Aeronáutica enviaram-no a Londres a fim de tirar as medidas para os membros artificiais. Ali encontrou Robert Desoutter, que fez moldes de gesso dos seus cotos e lhe disse que enviasse um par de sapatos velhos a fim de poderem arranjar-lhe pés do tamanho certo.
— Prepare-os o mais depressa possível, sim? — pediu Bader. — Eu quero levar uma pequena a um baile.
— Vamos fazer tudo que estiver ao nosso alcance — respondeu Desoutter, pensando, erradamente, que ele estivesse brincando.
Duas semanas depois, quando voltou para uma prova, suas pernas novas de metal estavam prontas.
— Bonitas, não? — disse Desoutter. — Veja só como são musculosas!
Bader sorriu.
— O senhor vai ficar uns três centímetros mais baixo do que era — continuou Desoutter.
O sorriso apagou-se.
— Por quê? — perguntou Bader, indignado.
— Para lhe dar melhor equilíbrio. Se as quiser maiores, sempre será possível aumentá-las.
Na sala de provas, Desoutter apresentou-lhe dois assistentes de avental branco, que o fizeram tirar a roupa toda, menos a camiseta e a cueca. Calçaram-lhe uma "meia" curta de lã no coto esquerdo e o introduziram numa cavidade revestida de couro na barriga da sua nova perna esquerda. Acima da barriga da perna havia umas barras de metal com dobradiças que se prendiam de cada lado do joelho e terminavam numa faixa de couro que era amarrada em volta da coxa. A sensação era muito boa e depois de alguns passos de ensaio atravessou facilmente a sala com o auxílio de muletas.
— Muito bem — disse ele com satisfação. — Vamos ver agora a perna direita.
Trouxeram-na. A coxa era um cilindro de metal que subia até a virilha e tinha umas correias que iam dar num grosso cinto e outras que davam volta por cima dos ombros. Enquanto encaixavam o coto direito na funda cavidade e afivelavam as inúmeras correias, Bader sentiu-se como se estivesse sendo metido numa camisa-de-força. Ajudaram-no a pôr-se de pé, e dessa vez não lhe deram muletas.
Quando seu peso descansou sobre ambas as pernas, sentiu-se desesperadamente desequilibrado, o coto direito doeu-lhe, ficou inteiramente sem ação e as próprias correias pareciam tolhê-lo. Além disso, quando tentou balançar para frente à perna direita, ela não se moveu. Sem músculos dos dedos do pé ou do tornozelo que o impulsionassem para frente, aquela perna direita formava uma firme barreira e êle só conseguiu pôr-se em cima dela e transpô-la quando os assistentes de Desoutter o empurraram para frente.
— Meu Deus, isto é completamente impossível — exclamou ele com pungente desespero.
— Isso é o que todos dizem na primeira vez — disse Desoutter. - O senhor se acostuma. Não se esqueça de que o seu coto direito não faz movimento algum há quase seis meses.
Bader disse com amargura:
— Pensei que ia poder sair daqui andando e começar logo a praticar esportes e fazer outras coisas.
— Escute — disse Desoutter com muito jeito — acho que o melhor é o senhor ficar sabendo que nunca poderá andar sem bengala.
Bader olhou para ele com intenso desânimo e, em seguida, quando o desafio o animou, êle replicou combativamente:
— Uma ova! Eu nunca andarei de bengala!
Em sua obstinada raiva, ele de fato estava falando sério. E com furiosa resolução passou os braços sobre os ombros dos assistentes de Desoutter e começou a aprender a técnica de usar as novas pernas. Seguindo as instruções deles, aprendeu que tinha de dar um chute para frente com o coto direito a fim de mover a perna, dar-lhe um arranco seco para baixo outra vez para pôr o joelho reto e depois — o mais difícil de tudo — fazer peso para frente até ficar precariamente equilibrado no enfraquecido coto direito. Como tinha ainda o joelho esquerdo, conseguia com facilidade mover para frente à perna esquerda; em seguida recomeçava a luta para mover a perna direita.
Finalmente, após duas horas de esforço  exaustivo, com o rosto brilhando de suor, deu três ou quatro tropeções sincopados antes de ter de agarrar-se às barras paralelas.
— Pronto - disse ele rindo. — Agora o senhor pode ficar com as suas malditas bengalas.
Desoutter ficou surpreendido e satisfeitíssimo.
— Eu nunca tinha visto ninguém com uma perna fazer isso na primeira vez — disse ele.
Na visita seguinte foi um pouco mais fácil e não tardou que Bader conseguisse atravessar a sala sozinho, cambaleando. Nesse dia aprendeu também a virar-se, movendo-se instavelmente num apertado semicírculo. Já queria levar as pernas, mas Desoutter ainda precisava fazer mais uns ajustamentos. Na terceira visita, porém, depois de haver dominado a arte de se levantar de uma cadeira (com o joelho esquerdo bom fazendo o esforço e erguendo-o) e de subir escadas (subindo cada degrau com a perna esquerda primeiro e depois puxando a perna direita para junto dela), Desoutter disse:
— Agora pode levá-las. Quer que embrulhe?
— Nada disso! — replicou Bader com um sorriso. — Vou sair daqui andando com elas. Tome! — acrescentou, jogando-lhe a perna de pau e quase caindo ao jogá-la. — Pode fazer dela o que quiser.
Em seguida, com certo esforço vestiu pela primeira vez o resto da roupa por cima das pernas novas e olhou-se ao espelho. Estava em pé, vestido como um camarada qualquer. Parecia ser perfeitamente normal. Foi um momento impressionante.
— Agora, que tal uma bengala? — sugeriu Desoutter em tom persuasivo.
— Nunca! — respondeu Bader secamente. — Vou começar logo do modo que pretendo andar.
 — Francamente, acho que o senhor é incrível — disse Desoutter.

Os dias que se seguiram foram o pior período desde o acidente. Outra vez no hospital, dependendo inteiramente das suas estranhas pernas novas para mover-se, ele não parava de enfrentar problemas até então desconhecidos: organizar a sua rotina de ir para cama antes de tirar as pernas; aprender a técnica de equilíbrio para andar na grama, inteiramente diferente da necessária para andar em chão liso; combater o cansaço causado pelo tremendo esforço físico que cada movimento exigia.
Ia tropeçando, caindo com frequência, recusando secamente qualquer ajuda e erguendo-se para cambalear e cair outra vez. Hora após hora continuava teimosamente naquilo, com o rosto escorrendo suor que lhe brotava de todo o corpo, ensopando-lhe as roupas de baixo e, infelizmente, as meias dos cotos também, o que as fazia perder a maciez de lã e esfolar a pele dos rígidos e doloridos cotos. As bem humoradas brincadeiras com que os companheiros saudaram os seus esforços iniciais foram cessando à proporção que eles percebiam que estavam vendo um homem lutar para fazer algo que nunca fora feito com êxito até então.
Voltou várias vezes a Desoutter para reajustamentos. Aprendeu a evitar as esfoladuras usando talco e colocando esparadrapo nos pontos sensíveis, e os flácidos músculos do enfraquecido cato direito começaram a endurecer. Mas andar com as pernas novas ainda parecia uma dificuldade quase insuperável.
E então, uns dez dias depois de tê-las recebido, descobriu o primeiro indício de controle automático. Era como um homem aprendendo uma estranha língua que soa como um amontoado de sons confusos, até que um dia consegue pegar uma frase e entendê-la. Bader verificou que estava andando sem ter de se concentrar no movimento ou no equilíbrio; algum instinto automático parecia ter-se encarregado de parte do trabalho. Depois disso, embora a coisa estivesse longe de ser fácil, o progresso foi rápido. Conseguiu afinal passar um dia inteiro sem cair e, como clímax dessa vitória, aprendeu a virar-se girando sobre o calcanhar direito.
Mas Bader não se contentou em vencer a sua deficiência; estava resolvido a não transigir com ela de maneira alguma. Com um orgulho à flor da pele se dispôs a fazer tudo quanto fazem as demais pessoas. Mandou mudar os pedais do seu carro MG de maneira a poder acionar tanto a embreagem quanto o acelerador com a perna esquerda e, após um período de treino, não teve dificuldade em obter carteira de "motorista parcialmente inválido".
Numa importante visita que fez num fim-de-semana a um velho amigo verificou que ainda podia nadar... E, enquanto descobria isso, o sol lhe queimou tanto o ombro que ele ficou sem poder colocar as alças. Com imensa satisfação constatou que se arranjava bem com o cinto apenas, e nunca mais voltou a usar as incômodas alças do ombro.
Durante algum tempo pareceu que Bader ia realizar a sua ambição e que não tardaria a estar de novo no seu esquadrão, voando outra vez. Como primeiro passo para tornar a voar teve de passar num exame feito por uma junta médica. Em seguida, no fim do verão, recebeu ordens designando-o para a Escola Central de Voo a fim de ser experimentada a sua capacidade para voar.
Verificou que voar lhe era mais fácil do que dirigir automóvel e imediatamente demonstrou a sua competência para manejar qualquer avião. Por fim o Chefe da Instrução de Voo lhe disse:
— Você está perdendo tempo aqui em cima. Não há mais nada que lhe possamos ensinar.
E alguns dias depois Bader estava seguindo para Londres no seu carro para a aprovação final pela junta médica, necessária para a sua volta definitiva à Aviação.
Nem foi preciso que o médico o examinasse, mas encaminharam-no logo ao gabinete do comandante do regimento, onde se sentou tranquilamente à espera das boas-novas.
Pigarreando, o tenente-coronel disse:
— A Escola Central de Voo informa que o senhor consegue voar satisfatoriamente.
Bader esperou cortesmente.
— Infelizmente — prosseguiu o comandante — não podemos dá-lo como em condições de voar porque não há nada nas Disposições Reais que se aplique ao seu caso.
Por um instante Bader ficou sentado em silêncio, estupefato, com uma sensação de frio invadindo-o lentamente. Por fim conseguiu falar:
— Mas foi para isso que me mandaram para a Escola Central de Voo. Para ver se eu podia voar. Só a Escola pode resolver a esse respeito. Não basta o que a Escola decidiu?
Embaraçado, o tenente-coronel se desculpou:
— Sinto muito, mas nada podemos fazer.
Bader soube então que, provavelmente, tudo tinha sido decidido antes de ele ir para a escola de voo. Esperavam que fracassasse. Agora estavam atrapalhados; mas a decisão oficial permanecia de pé. Ele estivera na RAF tempo suficiente para saber que recorrer de uma decisão oficial era malhar em ferro frio.
Cheio de decepção e de raiva, Bader foi transferido para uma função em terra: direção do transporte motorizado na base de caças de Duxford. Aferrava-se à esperança de conseguir de alguma maneira voltar a servir no ar. Mas o golpe final veio em abril de 1933 quando chegou uma carta oficial do Ministério da Aeronáutica determinando que a RAF reformasse Bader por incapacidade física.
Condenado à vida civil, Bader arranjou um emprego de escritório na seção de aviação que uma companhia de petróleo acabava de criar, mantendo assim uma ligação tênue com a aviação, uma vez que o seu trabalho tinha relação mais com preços e com a entrega de combustível e óleos de aviação à Austrália.
Casou-se com uma moça que conhecera depois do acidente, uma moça que havia começado a cortejar desde que conseguira andar de muletas, uma moça que ele tinha, afinal, desajeitada, mas triunfantemente, levado a um baile. Thelma foi o único raio de luz nas trevas dos seus anos pós-RAF. Serena, desprendida, sabendo instintivamente lidar com as rebeldias do temperamento dele, ajudou-o a enfrentar com relutante resignação as frustrações de ter voltado para terra. E o encorajava quando ele buscava no golfe, no tênis e no squash os desafios exigidos pela sua vitalidade. Porque, por um esforço quase sobre-humano, ele dominou todos esses esportes e até conseguiu, surpreendentemente, reduzir a nove o seu handicap no golfe.
Mas Bader nunca conseguia evitar uma dolorosa sensação de perda toda vez que pensava na RAF. Quando veio Munique e ele percebeu que ia haver guerra, escreveu ao Ministério da Aeronáutica oferecendo os seus serviços. Escreveu de novo e tornou a escrever, e, afinal, poucas semanas depois de declarada a guerra, foi chamado a comparecer perante a junta de alistamento.
Seguiu-se a rotina familiar de exames médicos e testes de voo. Mas dessa vez as Disposições Reais foram esquecidas e em fins de novembro chegou um envelope do Ministério da Aeronáutica. Ali, em impessoal estilo oficial, vinha a comunicação: ele seria readmitido, como oficial de carreira, no seu antigo posto e com os seus antigos direitos. Sua pensão de reformado já tinha deixado de ser paga, mas continuaria fazendo jus a toda a pensão de invalidez. (Esta foi uma nota engraçada: era considerado ao mesmo tempo 100% capaz e 100% incapaz.) Telefonou para o alfaiate, mandou fazer um uniforme novo e deixou pela última vez a sua escrivaninha, tão feliz como Thelma nunca o vira.

(Imperial War Museum)


Em fevereiro de 1940, Bader apresentou-se em Duxford, onde tinha servido na Força Aérea pela última vez. Geoffrey Stephenson, um dos seus antigos companheiros da RAF, comandava o 19º Esquadrão e, sem se atemorizar com a ideia de ter um piloto sem pernas, pedira Bader para a sua unidade. Mas quase todas as caras ali eram novas; parecia que andavam todos por volta dos 21 anos. E Bader, vivamente consciente de que já estava perto dos 30, sentiu-se compelido a mostrar-se à altura dos jovens pilotos que usavam o uniforme com tão alegre confiança.
Naquele período inicial da guerra o esquadrão passava o tempo quase todo exercitando-se nos três métodos oficialmente aprovados de atacar bombardeiros, e aí Bader logo se viu às turras com a autoridade. No "Ataque nº 1", por exemplo, os aviões de caça seguiam o guia numa linha regular até ao bombardeiro, davam um tiro rápido quando chegava a vez de cada um e afastavam-se graciosamente, oferecendo o ventre da fuselagem ao metralhador do inimigo. Os teóricos do Comando de Caça tinham concluído que os caças eram rápidos demais para a tática de entreveros da Primeira Guerra Mundial. Bader achava isso um absurdo.
— Só há um modo de fazer isso — rosnava para Geoffrey Stephenson. — Esse é formar todo o mundo um bolo. Por que usar oito metralhadoras de uma vez se podemos usar 16 ou 24 de diferentes ângulos?
Stephenson e os outros retrucavam:
— Mas você não sabe, não é verdade? Ninguém sabe.
— Os rapazes da última guerra sabiam — dizia Bader — e a ideia básica é a mesma agora. Nenhum bombardeiro alemão vai voar direitinho e deixar uma fila de sujeitos se alinhar atrás e despejar tiro nele um após outro. Depois, não será um, mas muitos bombardeiros, permanecendo juntos em formação cerrada, para concentrarem o seu fogo.
Provavelmente, depois de uma investida, ou de duas, seria possível separar os bombardeiros uns dos outros, pensava ele, e então haveria combates aéreos por todo o céu.
— Quem vai controlar o combate ainda será quem tiver a altura e o sol a seu favor — dizia ele.
Alguns dos outros pilotos procuravam arreliá-lo fazendo piadas sabre a geração de antes da guerra e sobre passadismo, mas Bader continuava a condenar os ataques oficiais do Comando de Caça em todas as oportunidades.
Certa noite, Tubby Mermagen, outro amigo dos velhos tempos, que estava então comandando o 222° Esquadrão, em Duxford, imprensou-o no refeitório. Algumas das suas tripulações estavam sendo enviadas para outros pontos, disse Mermagen, e ele precisava de um novo comandante de voo.
— Não quero fazer uma ursada com Geoffrey, mas se ele concordar você quer vir?
Exultante, Bader respondeu que iria com todo o prazer.
Depois da sua promoção a capitão, Bader libertou-se da incômoda sensação de rapaz mais velho que volta à escola para fazer exame outra vez. Sempre tivera uma personalidade dominadora, e agora dirigia o seu esquadrão com entusiasmo e capacidade, encantado com a oportunidade de pôr em prática as suas teorias. Por alguns dias guiou os seus pilotos para o ar a fim de efetuarem os ataques do Comando de Caça. Fazia cada piloto subir para servir de alvo, determinando-lhe que observasse cada caça na procissão regulamentar, atirar um por um e escaparem todos na mesma direção, apresentando a barriga do avião para um tiro fatal. Quando pousavam dizia:
— Agora você está vendo o que lhe pode acontecer.
Em seguida ensinou-lhes o seu próprio estilo de combate, levando dois ou três de cada vez, afastando-se do sol, de um lado ou outro do avião destinado a servir de alvo e escapando abruptamente para frente e por debaixo dele. Depois disso vinham horas de práticas de entreveros e acrobacias entremeadas de operações de rotina como patrulha de comboios.

Após oito meses de uma guerra em que não tinham sequer visto um avião alemão, os pilotos de Duxford estavam ficando impacientes. Quando Hitler marchou sobre a França e os Países Baixos, sentiram-se cheios de júbilo. "Agora podemos atacá-los", disseram. Bader não cabia em si de contente.
Nada, porém, parecia acontecer em Duxford. Os jornais e o rádio estavam cheios da confusa batalha da França e os pilotos liam com inveja as notícias dos embates dos Hurricanes com a Luftwaffe. Mas o esquadrão só foi chamado a entrar em ação quando os seus homens, a princípio perplexos com a missão (a grande evacuação ainda era segredo), foram enviados para fazer patrulha sobre Dunquerque.
Mesmo nessa concentrada área de combate, onde massas de tropas e uma incrível flotilha de socorro ofereciam constantes alvos ao ataque aéreo inimigo, a frustração continuou. Outros esquadrões informavam, excitados, que haviam dado com grandes grupos de Messerschmidts e Stukas sobre as praias coalhadas de soldados. Mas embora Bader levantasse voo diariamente, não encontrava aviões alemães. O inimigo parecia vir matar logo que o seu esquadrão voltava para a base.
Então, no sexto dia, avistaram sobre Dunquerque um bando de pontos que cresciam rapidamente, e Bader de repente viu um Messerschmidt 109 enchendo o seu para-brisa. Apertou o gatilho e o 109 flamejou como um maçarico, rodopiou como um bêbedo e depois caiu, deixando para trás uma fita de fumaça negra. A exultação invadiu-o rapidamente, com um brilho de vitória, ao reconquistar assim a vida em combate primitivo. Mas quando rolou na pista, ao aterrar, a alegria desapareceu: dois dos outros não tinham voltado.
Quando Dunquerque acabou, Bader, de súbito exausto, dormiu 24 horas, e ao despertar encontrou toda a Inglaterra num estado de espírito diferente, cheia de resolução. Podia-se ler no rosto dos pilotos o que estavam sentindo: se era luta que os inimigos queriam, iam tê-la. Contra toda a lógica, o país se recusava a reconhecer que estava derrotado. Para Bader, havia também um desafio pessoal, embora nunca se lhe impusesse conscientemente o pensamento de que, agora, ninguém podia pensar nele com piedade. Absorvido pelo voo e pela tática, ele vivia para a luta que se aproximava. Luta tanto da Inglaterra como sua.
Menos de duas semanas depois, Bader foi chamado ao Quartel-General do Grupo 12. Sem preâmbulos, o comandante Vice-Marechal-do-Ar Leigh-Mallory disse:
— Tenho ouvido referências à sua atuação como comandante. Vou dar-lhe um esquadrão, o 242 de Hurricanes.
Bader arregalou os olhos, depois engoliu em seco e disse:
— Sim, senhor...
O homem atarracado, de rosto quadrado, que estava atrás da mesa, prosseguiu rispidamente:
— O 242 é um esquadrão canadense, o único do Canadá na RAF, e a turma é difícil de manejar. Acabam de voltar da França, onde foram severamente atingidos. Para falar com franqueza, estão saturados e com o moral baixo. Precisam de um pouco de organização adequada e de alguém que saiba falar-lhes com dureza, e acho que o senhor é a pessoa indicada.
O esquadrão estava em Coltishall, disse Leigh-Mallory, e o Major-Aviador Bader devia assumir seu posto imediatamente.
Major-Aviador Bader! Oito semanas antes ele fôra um simples tenente-aviador! Agora tinha alcançado os seus contemporâneos e podia trabalhar com afinco no seu primeiro comando.
— Acho que vou já travar conhecimento com esses camaradas.
Encontrou-os em alerta, num abrigo na extremidade do campo. Abrindo a porta de par em par, entrou caminhando desajeitadamente, sem se fazer anunciar, e pelo seu andar cambaleante viram que se tratava do novo major-aviador. Uma dezena de pares de olhos o examinaram friamente das cadeiras e das camas de ferro onde os pilotos dormiam de noite para o alerta da madrugada. Ninguém se levantou; ninguém se moveu; até as mãos permaneceram nos bolsos; e o local ficou em silêncio.
— Quem é o responsável aqui?
Um jovem corpulento se ergueu devagar de uma cadeira e disse:
— Acho que sou eu.
— Não há um comandante? — Bader perguntou, notando o círculo único em volta da manga que indicava o seu posto de tenente.
— Há um em qualquer parte, mas não está aqui — disse o jovem.
— Como é o seu nome?
— Turner... — e em seguida, após uma pausa nítida: — Sr. Major.
Bader olhou para eles um pouco mais, com a raiva flamejando por dentro. Em seguida, voltou-se bruscamente e saiu. A uns dez metros da porta estava um Hurricane. Na carlinga já havia um paraquedas, capacete e óculos. Bader passou a perna por cima da beirada e se ergueu para dentro. Se pensavam que o novo comandante era um aleijado, havia um meio danado de bom para fazê-los mudar de opinião. Começou a subir e apontou o nariz do Hurricane para o outro lado do campo.
Durante meia hora rodopiou com o Hurricane pelo céu, fundindo uma acrobacia em outra, sem pausas para ganhar altura de novo. Concluiu com uma de suas especialidades, na qual subia num loop, fazia um tonneau rápido no alto, entrando em parafuso, saía deste e completava o loop. Quando pousou na relva e rolou o avião para dentro, todos os pilotos estavam de pé do lado de fora do abrigo, olhando. Desceu sem auxílio, tomou o carro e partiu sem olhar para eles.

Na manhã seguinte chamou todos os pilotos ao seu gabinete. Mirou-os friamente enquanto permaneciam amontoados e movendo-se arrastadamente em frente à sua mesa, notando os uniformes amarrotados, os suéteres de gola alta, o cabelo por cortar e a má aparência geral. Afinal falou: — Olhem aqui... um bom esquadrão tem boa aparência. Quero que este seja um bom esquadrão, mas vocês são um bando de maltrapilhos. De agora em diante não quero ver botas de voo nem suéteres no refeitório. Vocês vão andar de sapatos, camisa e gravata.
Foi um erro.
Turner disse sem emoção:
— Quase todos nós só temos as camisas e gravatas que estamos usando. Perdemos tudo quanto tínhamos na França.
Serenamente, mas com um traço de contida cólera, Turner prosseguiu explicando o caos da luta incessante, como tinham sido, ao que tudo indicava, abandonados pela autoridade, inclusive pelo próprio comandante, como se haviam livrado deles mandando-os de um lugar para outro, sem que fossem recebidos em parte alguma, até que cada homem teve de cuidar de si mesmo, mantendo o seu próprio avião, furtando o seu próprio alimento e dormindo debaixo da asa; depois procurando gasolina suficiente para decolar e lutar, enquanto os obrigavam a recuar de um campo de pouso para outro. Sete já tinham sido mortos e um sofrera desequilíbrio nervoso — cerca de 50% de baixas.
Quando ele concluiu, Bader disse:
— Sinto muito. Peço desculpas pelo que disse.
Em seguida, quando lhe disseram que os seus pedidos de pagamento pela perda dos enxovais não foram atendidos, disse-lhes que mandassem fazer uniformes novos nos alfaiates locais.
— Garanto que serão pagos. Até lá, para esta noite, vejam se alguém pode dar ou emprestar a vocês sapatos e camisas. Disponho de algumas camisas e vocês podem levá-las todas emprestadas. Está bem?
Resolvida essa parte, disse:
— Agora fiquem à vontade. Em que combates vocês já tomaram parte e como se saíram?
A meia hora seguinte transcorreu numa animada discussão sobre os vários aspectos da profissão. De repente os pilotos estavam interessados e com boa vontade e Bader viu que gostava muito deles. Depois do almoço começou a levá-los para o ar em grupos de dois para treinos de formação, e gostou de ver que sabiam manobrar os Hurricanes, embora a formação deles (pelos padrões de Bader) fosse um tanto imperfeita. Naquela noite, no refeitório, estavam todos razoavelmente arrumados, de sapatos, camisas e gravatas, e ele aplicou-lhes o seu irradiante encanto pessoal. Não tardou que se quebrasse o gelo, e os pilotos aglomeraram-se em volta dele rindo e conversando. A vivacidade de Bader logo os empolgou, e perto da hora de se retirarem um deles disse:
— Sabe, Sr. Major? Nós estávamos com medo de que o senhor não passasse de outro irresponsável sem autoridade.
Na segunda manhã já havia um senso de comando no esquadrão. Logo nas primeiras horas o novo comandante começou a aparecer por toda parte, nos alojamentos, no hangar de manutenção, na cabina de rádio, na seção de instrumentos, no parque de armamento. Por volta das dez horas, tornou a levar grupos de Hurricanes para o ar, e dessa vez sua voz explodia, seca, pelo rádio, quando algum avião se atrasava ou saía de Posição. Mais tarde, no alojamento de oficiais, fez-lhes a primeira preleção sobre as ideias de tática de caça que tinha exposto em Duxford. Dentro de poucos dias o esquadrão inteiro estava entrando em posição como um team.
Entrementes, Bader lutava com um novo problema: o oficial mecânico do 242, Bernard West, tinha comunicado que todas as ferramentas e os sobresselentes das equipes de terra se haviam perdido na França. Ele não podia manter em condições de voo os 18 Hurricanes do esquadrão a menos que as suas requisições de novos fornecimentos fossem atendidas. Segundo West, o oficial-almoxarife da base dissera que as requisições tinham de percorrer os canais competentes e estes, achava West, estavam muito entupidos.
As indagações diretas de Bader provocaram resposta idêntica do oficial-almoxarife: ele estava quase esmagado pelo papelório. Coltishall era uma base nova e havia um mundo de coisas a serem adquiridas: cobertores, sabão, botinas.
— Literalmente não tenho funcionários suficientes nem para datilografar os formulários — disse ele.
— Os seus formulários e os seus cobertores e o seu maldito papel sanitário que vão para o inferno — replicou Bader com cólera. — Quero os meus sobresselentes e ferramentas e quero-os logo.
Poucos dias depois, quando nenhum equipamento tinha ainda aparecido, Bader entregou a West um pedaço de papel.
— Talvez você gostasse de mostrar este aviso ao Grupo — disse ele.
West arregalou os olhos ao ler o breve radiograma: "ESQUADRÃO 242 OPERACIONAL TOCANTE PESSOAL, MAS NÃO OPERACIONAL REPITO NÃO OPERACIONAL TOCANTE MATERIAL".
West ponderou discretamente que não sabia se o comandante da base permitiria que se enviasse uma mensagem tão incisiva. Bader disse que o comandante tinha ficado um pouco perturbado, sobretudo quando soube que a mensagem já havia seguido.
West quebrou uns momentos de carregado silêncio:
— Muito bem, Sr. Major, nós ou vamos receber as nossas ferramentas ou outro comandante.
E de fato a reação foi imediata. Naquela noite, um major da seção de material do Quartel-General do Comando de Caça telefonou para observar, com severidade, que havia uma norma própria para obter equipamento novo.
— Observei a norma própria e nada consegui — retrucou Bader.
Mas o indignado oficial do material insistiu em que as coisas tinham de ser feitas pela norma própria, e dois dias depois Bader foi chamado a comparecer perante o próprio Marechal-Chefe-do-Ar, o austero Sir Hugh Dowding. A princípio a entrevista foi difícil, mas o resultado final foi duplo: o indignado oficial do material foi dispensado das suas funções, e na manhã seguinte, antes mesmo de êle ter acabado de esvaziar a mesa para passá-la ao sucessor, os caminhões estavam rodando para o hangar de manutenção do Esquadrão 242.
Com vivo bom humor, West superintendeu a descarga de rodas sobresselentes, velas, anéis de êmbolo e mais umas 400 peças e miudezas. À noite, quando o último caminhão tinha partido, Bader perguntou:
— Isso é bastante, Sr. West ?
— Bastante! — declarou West. — Tenho material aqui para dez esquadrões, Sr. Major. O que me falta agora é espaço para guardá-lo.
Leigh-Mallory tinha acertado ao mandar Bader para o comando do 242. Os canadenses levavam uma vida vigorosa e sem formalidades, respeitando apenas regras em que viam utilidade. Reconheciam em Bader as mesmas qualidades e compreendiam suas contradições quando a sua própria exuberância se chocava com o seu arraigado senso de disciplina. Ele, por seu turno, compreendia e respeitava o desejo deles de saberem exatamente o que tinham de fazer, porque e quando, e a unidade havia finalmente sublimado os últimos vestígios de suas frustrações.
Um esquadrão em guerra é um corpo sensível. Os homens que voam e encontram a glória morrem jovens. As equipes de terra precisam executar sem cessar trabalho meticuloso, e se alguma vez fazem algo mal feito um piloto pode morrer. É preciso haver respeito e confiança recíprocos, e é ao comandante que cabe inspirar esse delicado equilíbrio. Bader vivia para o seu esquadrão e esperava que os seus homens fizessem o mesmo. Sua figura um tanto arrogante, de andar cambaleante, podia aparecer em qualquer lugar a qualquer hora: um chefe de família dominador e absoluto cuidando de manter a casa em ordem.
E quando a Batalha da Inglaterra começou, o Esquadrão 242 estava preparado.

Hurricanes em voo. Monopostos e de um motor, esses caças eram armados com oito metralhadoras nas asas.


Hitler planejava desembarcar 25 divisões na Inglaterra em 21 de setembro de 1940, e Göring, de acordo com o esquema, tinha de inutilizar a RAF em meados daquele mês. Com 4.000 aviões prontos para a luta logo do outro lado do Canal (contra os 500 caças britânicos de primeira linha, e poucas reservas), Göring desfechou o ataque no princípio de agosto. Para experimentar a força da oposição aérea, lançou bombas sobre Dover, Portsmouth e outras cidades litorâneas. Em seguida começou a martelar os campos de aviões de caça do sudeste da Inglaterra, chegando a enviar 600 aviões num único dia. A ação defensiva dos caças britânicos se revelou mais forte do que Göring imaginara, e mais de 200 aparelhos germânicos foram abatidos na primeira semana. Mas Bader e o Esquadrão 242 não participaram dessa batalha. Somente os caças do Grupo 11, estacionado no sul, foram enviados para enfrentar as grandes formações; o Grupo 12 foi deixado para proteger o coração industrial da Inglaterra, no norte de Londres.
Bader ora se enchia de mau humor, ora irrompia pelo refeitório de oficiais de Coltishall, onde ele e os pilotos se sentavam, agitados, aguardando a chamada telefônica das Operações, que não chegava. Em certa ocasião, Thelma procurou atenuar essa sofreguidão ponderando que ainda haveria muitas batalhas e que ele não era imortal.
— Não diga bobagens, querida—replicou ele. — Tenho uma chapa blindada atrás de mim, pernas de lata embaixo e um motor na frente. Como é que poderiam atingir-me?
Foi só a 30 de agosto de 1940 que o Grupo 11 pediu auxílio. Naquela manhã as Operações ordenaram ao Esquadrão 242 que se transferisse para Duxford, ao sul, onde estaria à mão para qualquer eventualidade. No seu conhecido campo de Duxford os homens de Bader esperaram... e esperaram. Almoçavam sanduíches e café junto dos aviões enquanto a Luftwaffe atacava furiosamente o sul da Inglaterra com ondas de aviões, mas mesmo assim nenhum chamado vinha. Bader sentava-se à mesa do telefone no refeitório de oficiais, com o cachimbo apagado apertado entre os dentes, excitadíssimo. A um quarto para as cinco o telefone tocou.
Das Operações veio em tom seco e rápido: "Esquadrão dois-quatro-dois: vamos! Inimigo a cinco mil metros em North Weald".
Enquanto as rodas, ainda girando, se dobravam para dentro das asas, Bader ligou o rádio e ouviu a voz fria e medida do Tenente-Coronel Woodhall, Comandante da Base de Duxford: "Alô, guia vermelho. Vetor um-nove-zero. Mais de 70 inimigos se aproximando de North Weald".
Segurando um mapa sobre a coxa, ele viu que 190 graus iam dar sobre a base de caças de North Weald — mas também dentro do sol. Sabia o que faria se fosse o comandante alemão: entrar primeiro partindo do sol! Do sudeste.
Isso era o diabo. Ele é que queria estar de sol acima. Sem ligar às instruções de Woodhall, desviou-se 30 graus para oeste. Poderia deixar de alcançar o inimigo! Mas sentiu que estava no caminho certo.
Estava a sudoeste de North Weald e ainda ganhando altura quando viu a massa de pontinhos; numerosos demais para serem ingleses. Comprimiu o manete e disse concisamente: "Aviões inimigos ao nível de 10 horas".
Agora os pontos pareciam um enxame de abelhas zumbindo sem parar em direção a North Weald, a 3.600 metros de altura. Os bombardeiros – Dorniers - vinham em linhas regulares, de quatro em quatro e de seis em seis e ele os estava contando: 14 linhas e, acima deles, uns 30 caças. Acima destes outros ainda. Mais de 100 aviões contra os seus nove. Os Hurricanes estavam acima do enxame principal, descendo sobre eles de costas para o sol.
De repente, uma onda de raiva agitou Bader. No impulso do momento, uma força diabólica levou-o a mergulhar bem no meio daquela formação tão certa e desfazê-la. Apontou para baixo o nariz do avião.
Caiu-lhes em cima, e imediatamente as treinadas linhas se desmancharam em guinadas loucas para a esquerda e para a direita, fora do seu caminho. Ele voou para baixo e para cima, virando para a direita. Uma pequena onda estava correndo pelo grande rebanho, e depois este começou a se dividir e a se espalhar.
Três 110 estavam rodando na frente, o último lento demais. Logo atrás, Bader comprimiu o botão com o polegar e quase instantaneamente o fogo brotou na raiz da asa do avião inimigo e ele se precipitou. Abaixo e à direita outro 110 estava rodopiando para sair de uma curva em perda. Bader apontou o nariz para baixo em busca dele e disparou durante três segundos. O 110 se balançou para frente e para trás. Ele disparou de novo e o avião caiu em chamas.
A exultação se arrefeceu quando no espelho acima dos seus olhos um 110 meteu o nariz por cima do leme, inclinando-se para dentro. Ele voltou-se bruscamente o mais que pôde e viu o 110 colado atrás, com brancos raios de balas traçantes saindo-lhe do nariz. Em seguida, o Messerschmidt mergulhou de repente e desapareceu por baixo da asa dele; estava voltando disparado para a sua base.
Bader se surpreendeu ao verificar que tinha baixado para 1.800 metros e estava suando, com a boca seca e respirando fundo. Subiu abruptamente, para voltar à luta, mas a luta havia terminado. O céu estava milagrosamente limpo de aviões e penachos de fumaça se erguiam dos campos.
De novo em Duxford, ébrios de satisfação, os pilotos apuraram o escore: dois para Bader, três para McKnight, um para Turner. Crowley-Milling também tinha abatido um e vários outros haviam igualmente marcado pontos. Doze confirmados e diversos avariados. O resto dos alemães havia fugido de volta. Não havia um único buraco de bala em nenhum dos Hurricanes.
E nem uma só bomba atingira North Weald.

Mais tarde, Bader explicou a Woodhall por que tinha desobedecido às instruções, expondo com vigor os seus pontos de vista. Conseguia falar à vontade com Woodhall, um grisalho e atarracado veterano da Primeira Guerra Mundial.
—Temos de pegar os alemães antes que cheguem aos seus alvos — disse Bader. — Não depois, quando eles já os alcançaram e estão deixando cair as suas bombas. Se o senhor não disser em tempo onde estão — direção e altura — decidiremos no ar sobre a nossa tática, nos colocaremos acima do sol e os mandaremos para o inferno.
— Estou com o senhor — disse Woodhall. — Hoje sem dúvida deu certo. Mas pode ser que estejamos avançando o sinal um pouco — acrescentou com severidade.
O Vice-Marechal-do-Ar Leigh-Mallory chegou de avião naquela noite trazendo muitas congratulações e Bader aproveitou a oportunidade para ventilar uma ideia nova:
— Na realidade, senhor, se tivéssemos mais aviões poderíamos ter derrubado muitos mais. E óbvio que o objetivo do voo em formação consiste apenas em trazer para a luta ao mesmo tempo o maior número possível de aviões. Uma vez iniciado o combate, não há mais nada que o comandante possa fazer. Se eu tivesse tido três esquadrões esta tarde, teríamos sido três vezes mais poderosos. E acho que o número de vítimas também seria menor.
Leigh-Mallory disse que iria pensar no assunto. E na manhã seguinte telefonou para dizer:
— Amanhã quero que o senhor experimente esse plano da grande formação. Temos os Esquadrões 19 e 310 em Duxford. Veja como se sai liderando todos os três esquadrões.
Com muito entusiasmo pelo jeito decidido de Leigh-Mallory, Bader passou três dias praticando decolagens com os três esquadrões e guiando-os no ar. A 5 de setembro tinha reduzido o tempo entre o alerta e a decolagem para pouco mais de três minutos.
A 7 de setembro Göring atacou Londres com a Luftwaffe. Começando de madrugada, vieram ondas de bombardeiros o dia inteiro, mas foi só no fim da tarde que os três esquadrões de Bader entraram em ação. Tinham eles atingido a uma altura de 4.500 metros quando Bader divisou o inimigo, uns bons 1.500 metros acima deles. Pelo menos 70 Dorniers e 110 misturados, e uns pontos mais acima — Messerschmidts 109. Não havia tempo para tática. Não havia nada a fazer senão espalhá-los atacando-os de baixo para cima.
Na confusa batalha que se seguiu, uma batalha a alta velocidade, o próprio Bader derrubou dois 110 e levou uns tiros de canhão na asa esquerda, mas conseguiu levar o seu Hurricane até ao campo. O jovem Crowley-Milling foi atingido e cortou o rosto numa aterragem forçada; quatro outros Hurricanes foram danificados e um dos pilotos foi morto. Ao todo, o Esquadrão 242 abateu comprovadamente 11 aparelhos inimigos. Mas os outros dois esquadrões, com Spitfires lentos na ascensão, tinham ficado tanto para trás que a bem dizer não tomaram parte na luta.
No dia seguinte, quando Leigh-Mallory apareceu, Bader disse: — Ontem não deu certo, Sr. Vice Marechal. Estávamos baixo demais Se ao menos tivéssemos podido decolar antes poderíamos estar por cima e prontos para atacá-los. Temos meios de localizar a reunião desses bombardeiros sobre a França. Por que não levantamos voo antes?
Essa estratégia podia permitir os alemães atraírem os caças para o ar e aguardarem até que o seu combustível se esgotasse para então enviarem os bombardeiros, mas Leigh-Mallory concordou em que valia a pena fazer uma tentativa.
— Vamos experimentar fazer vocês levantarem voo com maior antecedência para poderem ganhar a altura de que precisam — disse ele. — Veremos o que acontece.
No dia seguinte, Bader já tinha feito os esquadrões se elevarem a 6.600 metros quando localizaram dois grandes enxames de pontos dirigindo-se para Londres mais ou menos à mesma altura. As cifras foram boas naquele dia: 20 aparelhos inimigos destruídos contra a perda de quatro Hurricanes e dois pilotos. Em setembro de 1940 só as cifras tinham valor.
Mas Bader ainda não estava satisfeito. Ele voou para o quartel-general do Grupo 12 e disse a Leigh-Mallory:
— Senhor, se ao menos tivéssemos mais caças, poderíamos ter derrubado alemães às dezenas.
 — Eu ia falar com você a esse respeito disse Leigh-Mallory. — Se eu lhe der mais dois esquadrões você pode manobrá-los?
Cinco esquadrões. Mais de 60 caças! Até Bader se sobressaltou. Mas entusiasmou-se.
Conversaram então durante mais de uma hora, e Leigh-Mallory disse que estava espalhando o evangelho de Bader de desfazer formações inimigas mergulhando no meio delas. Bader tinha feito isso a primeira vez por raiva — mas naquele momento nasceu um novo processo tático. O Vice-Marechal-do-Ar (Leigh-Mallory) chamava o 242 de "esquadrão de desintegração".
Mas o combate incessante representava um esforço terrível para os pilotos. A vida destes era um contraste brutal. Nas horas de folga podiam contar anedotas num bar e dormir entre lençóis; de manhã despertavam para um mundo novo de caçadores e caçados. Sob essa constante tensão, só Bader parecia insensível ao medo. Nunca teve, como os outros, o que era conhecido como "o tique". Exteriormente deixava transparecer uma confiança tão grande que chegava a ser contagiosa. Até para Thelma não parecia real que êle pudesse ser morto. Um chefe assim é preciso porque os pilotos são jovens e humanos e muitas vezes estão aterrorizados a despeito da aparência despreocupada.
Cada vez que os esquadrões de Bader decolavam, a voz dominadora começava a disparar comandos pelo rádio, os quais, intencional ou acidentalmente, faziam com que a missão que tinham pela frente deixasse de ser encarada com nervosismo. Houve, por exemplo, o caso de Cocky Dundas, de 19 anos de idade, que teve o seu avião seriamente atingido logo no primeiro combate. Um mês depois, ainda conturbado, estava ele voando com Bader na sua primeira missão. Aprestaram-se a toda pressa e êle estava com "o tique", a boca seca, tremores no estômago e marteladas no coração. Então lhe chegou aos ouvidos, enquanto subiam, a voz daquele estranho chefe sem pernas:
— Olá, Woodhall, tenho um jogo de squash com Peters marcado para daqui a uma hora. Quer fazer o favor de telefonar para ele e dizer que vou demorar um pouco?
(Meu Deus. Sem pernas! Jogando squash)
Voz de Woodhall:
— Esqueça isso agora, Douglas. Vetor um-nove-zero. Sete mil metros.
— Vamos, Woodhall, telefone para ele agora.
— Não tenho tempo, Douglas. Há uma coisa no quadro avançando para a costa.
— Ora, que diabo! Arranje tempo. Você está sentado em frente a uma fila de telefones. Apanhe um e telefone para o rapaz.
— Está bem, está bem — respondeu o filosófico Woodhall. — Em nome da paz e do sossego vou telefonar. Agora, que tal você continuar a guerra?
Dundas prosseguiu com o coração mais leve, como todos os outros.
A 15 de Setembro de 1940, o maior dia da Batalha da Inglaterra, o bando de 60 caças de Bader, conhecido oficialmente como Regimento do Grupo 12, entrou em ação como unidade pela segunda vez. De madrugada, ondas de aviões alemães começaram a transpor o Canal, e esquadrões da RAF, um após outro, fizeram-se ao ar para recebê-los. A formação de Bader foi chamada duas vezes, e à noite, quando fizeram o levantamento da batalha do dia, verificaram que o Regimento do Grupo tinha justificado plenamente a sua existência. Nas duas grandes batalhas daquele dia os pilotos dos cinco esquadrões do Regimento tiveram a seu crédito 52 aviões inimigos destruídos e mais oito prováveis.
Leigh-Mallory telefonou naquela noite:
— Douglas, que espetáculo maravilhoso hoje! Está absolutamente claro que as suas grandes formações estão compensando.
Bader respondeu:
— Muito obrigado, Sr. Vice Marechal, mas passamos um aperto na segunda viagem. Tornaram a chamar-nos muito tarde e os alemães estavam muito acima quando os avistamos. O que eu realmente gostaria de fazer, Sr. Vice Marechal, era abater um reide completo de modo que não regressasse um único alemão.
Leigh-Mallory riu.
— Sedento de sangue, hein? Se você continuar assim acaba tendo a oportunidade que deseja.
A oportunidade veio no dia 18.
Por volta de quatro e meia da tarde, os cinco esquadrões foram chamados. Estavam voando logo abaixo de uma fina camada de nuvens a uns 6.300 metros de altura, sentindo-se confortavelmente seguros — ninguém poderia atacá-los de surpresa através daquela cortina — quando Bader divisou dois pequenos enxames de aviões voando a 4.800 metros: uns 40 ao todo. Mais aviões ingleses que inimigos! Era inacreditável! Enquanto os caças circulavam para se reunirem atrás, ele viu com feroz alegria que os inimigos eram todos bombardeiros: JU 88 e Dorniers. Nenhum sinal de 109. Os bombardeiros estavam abaixo, bem onde ele queria que estivessem. Mergulhou, visando a fila da frente, e o ávido bando se precipitou atrás dele.
A ação que se seguiu "foi um tanto perigosa do ponto de vista de colisão", disse Bader posteriormente, "mas foi um estado de coisas plenamente satisfatório".
No alojamento de oficiais, uma multidão de joviais pilotos se amontoou em roda do oficial de informações, quase todos declarando que tinham feito vítimas. Nunca nenhum deles tinha visto tantos paraquedas. Bader laconicamente escreveu em seu diário: "O Regimento destruiu 30 aviões, mais seis prováveis, mais dois danificados. Meu escore: um JU 88, um Do 17. Não houve vitimas no esquadrão, nem no Regimento".
Desse dia em diante a batalha começou a perder intensidade. Pelo fim de setembro os bombardeiros só apareciam raramente; em seu lugar vinham bandos de 109, insinuando-se pelos colchoes de nuvens com pequenas bombas brancas pendentes de porta-bombas improvisados. Depois, até esses assaltantes sorrateiros começaram a escassear. Por fim, a nação pode rejubilar-se, compreendendo que aquela altura nem mesmo um louco iria invadi-la.
Bader foi talvez o único a ficar um pouco triste com o fim do barulho. O seu Regimento derrubou 152 aviões inimigos, contra a perda de 30 pilotos e um número um tanto major de aviões. Mas então o encontro deles de madrugada foi ficando raro e os dias se tornaram menos imprevisíveis: voltavam a prontidão normal de Coltishall.
Bader recebeu duas condecorações: a Ordem de Serviços Relevantes e a Cruz da Aviação. Suas teorias sobre tática de caça estavam merecendo respeitosa consideração por parte do Ministério da Aeronáutica; numa conferência ali verificou que era o único oficial de posto inferior a vice-marechal-do-ar. Além do mais, estava-se tornando famoso, apesar da orientação da RAF no sentido de dar relevo ao espirito de equipe, de não mencionar o nome dos ases nos seus comunicados à imprensa. Cada vez que ocorria uma nova façanha de um piloto de caça sem pernas, a imprensa e o rádio sabiam muito bem de quem se tratava. Mas o próprio Bader estava ocupado demais para tomar conhecimento da publicidade: continuava a viver no pequeno mundo do esquadrão, do combate e da tática.

Uma esquadrilha de Hurricanes em formação em grupos, voando acima de um mar de nuvens.


No começo de março de 1941, Leigh-Mallory mandou chamá-lo:
— Estamos elaborando umas ideias para realizar o ataque através da França no verão — disse ele. — Vagas de caças, mas coisa maior do que tudo quanto já experimentamos. Para isso estamos organizando o nosso sistema de "regimento" e você deverá ser um dos comandantes. Você provavelmente ira para Tangmere.
Há ocasiões em que as palavras soam como música. Em termos militares, isso significava uma promoção a tenente-coronel. Mas, após expressar seus agradecimentos, Bader perguntou:
— Poderei levar comigo o Esquadrão 242, Sr. Vice Marechal?
— Receio que não — respondeu Leigh-Mallory. — Você já tem lá três esquadrões. Tudo Spitfire.
Bader fez sentir, sem jeito, que nesse caso não estava muito certo se queria ser comandante do regimento de aviação.
Leigh-Mallory disse com firmeza:
— Você fara o que lhe for ordenado.
Em seguida, pois conhecia bem aquele homem, acrescentou:
— Se o senhor levar o 242, não poderá deixar de favorecê-los um pouco. Eu o conheço e sei como os considera.
Bader se apresentou em Tangmere em meados de março, e imediatamente começou a treinar com afinco os seus três esquadrões de Spitfires. Ao contrario do que ocorrera nos seus primeiros dias no 242, não foi preciso conquistar a confiança do pessoal. Era o primeiro comandante de regimento da RAF e os soldados e oficiais atendiam imediatamente os seus brados ríspidos. Woodhall, recentemente promovido a coronel-aviador, também chegou a Tangmere mais ou menos aquela época, para comandar a base. Leigh-Mallory queria reunir o seu team antigo.
Bader verificou que quase todos os pilotos tinham participado sem interrupção da Batalha da Inglaterra e vários deles, sobretudo os comandantes, apresentavam evidentes sinais de esgotamento. Pediu que Stan Turner fosse transferido para o comando de um dos esquadrões e também trouxe Crowley-Milling do 242 como comandante de voo. Bader se encarregou pessoalmente do esquadrão que tinha menos experiência de combate.
Como seu substituto, muitas vezes escolhia o desengonçado Cocky Dundas, que sua voz tanto animara durante a Batalha da Inglaterra. (A opinião e os ensinamentos de Bader pareciam ter sido bons. Poucos anos depois Crowley-Milling e Dundas eram tenentes-coronéis, condecorados com a Ordem de Serviços Relevantes e a Cruz da Aviação. Aos 25 anos Dundas se tornou um dos mais jovens coronéis da RAF).
Não tardou que Leigh-Mallory começasse a enviar uns poucos bombardeiros para além do Canal, rodeados de hordas de caças, porque a sua ideia era forçar os alemães a levantarem voo e lutarem. Durante algumas semanas essa estratégia não deu resultado. O regimento de Tangmere raramente via mais de três ou quatro Messerschmidts de uma vez, em geral bem fora da rota, a espera de algum aparelho extraviado.
Finalmente Leigh-Mallory concluiu que os Blenheims com uma tonelada de bombas eram leves demais para a provocação planejada, e então conseguiu, à força de persuasão, alguns quadrimotores Stirlings, que podiam transportar quase seis toneladas de bombas cada um. Amontoando uns 200 Spitfires em volta deles, começou a mandá-los para além da costa, contra alvos interiores: entroncamentos ferroviários e fabricas de aviões. Essa tática começou a dar resultados. Os caças germânicos puseram-se a levantar voo em grupos de 30 e 40. E a RAF os derrubava à razão de três aparelhos alemães para cada dos Spitfires perdidos. Raramente era abatido um bombardeiro, e assim mesmo sempre pela artilharia antiaérea.
Salvo quando o tempo estava ruim, Bader levava quase diariamente o seu regimento para uma batida, atraindo o inimigo para o combate. Todo o mundo sentia que ele era invencível e que essa força escudava aqueles que voavam com ele. Era parte do seu reconhecido gênio para o comando de caças. Thelma sabia que o inimigo nunca o derrotaria.
Mas perto do fim de julho os seus superiores começaram a preocupar-se com ele. Em sete dias realizou dez sortidas — o bastante para derrubar o homem mais forte, quanto mais um com pernas artificiais. Agora já fizera mais sortidas que qualquer outro no Comando de Caças, e era o último dos primitivos comandantes de regimento ainda em ação: o resto morrera ou fora mandado repousar. Um jornal londrino escreveu que Bader já fizera bastante, que era valioso demais para perdê-lo e que devia ser afastado das operações. Ele leu isso com indignação. Woodhall começou a dizer-lhe que ele devia tirar uma folga, mas Bader se recusava terminantemente.
Por fim, o Vice-Marechal-do-Ar Leigh-Mallory disse:
— É melhor você deixar de participar das operações por algum tempo, Douglas. Você não pode continuar assim indefinidamente.
— Ainda não, Sr. Vice Marechal — respondeu Bader. — Estou em plena forma e prefiro continuar.
Mostrou-se tão obstinado que Leigh-Mallory transigiu com relutância:
— Muito bem, vou deixá-lo ficar ate o fim de agosto. Depois terá de sair.
Não continuava lutando para aumentar o seu número de aviões inimigos abatidos, embora, com 20 1/2 comprovadamente destruídos, fosse o quinto na lista dos pilotos da RAF com escores mais altos. O regimento era tudo para ele e o combate um tóxico que respondia ao seu anseio de uma finalidade e de realização.

No dia 9 de agosto de 1941 saiu tudo errado desde o começo.
Primeiro, foi uma confusão na decolagem e o esquadrão de cobertura alta perdeu o rumo. Transpondo o Canal, os outros não conseguiram distinguir o menor sinal dele, e Bader não queria violar o silencio do radio para chamá-los. Depois, no meio da travessia, seu indicador de velocidade do ar enguiçou, o que iria perturbar os cálculos para chegar sobre Lille à hora marcada.
Exatamente quando cruzavam o litoral da França, viram uns 12 Messerschmidts bem na frente, a uns 600 metros abaixo, subindo na mesma direção. Nenhum deles parecia estar olhando para trás. Eram presas fácil.
Bader disse incisivamente: "Dá bem para todos. Derrubem-nos à proporção que forem chegando", e escolheu para ele um dos guias. Aproximando-se com demasiada velocidade, calculou muito mal e, para evitar uma colisão, teve de inclinar o Spitfire e jogá-lo bem para baixo.
Furioso, nivelou novamente a uns 7.200 metros de altura, observando com toda atenção a retaguarda e verificando que estava só. Então viu de súbito mais seis Messerschmidts na frente, espalhados em três pares paralelos, com os narizes apontando para a direção oposta. Nova presa fácil! Sabia que devia subir e deixá-los; estava cansado de repetir aos seus pilotos que nunca se aventurassem sozinhos. Mas a tentação foi irresistível. Olhou de novo para trás. Tudo limpo. A avidez afastou a prudência e ele foi sub-repticiamente colocar-se atrás do par do meio. Nenhum dos pilotos percebeu. De 100 metros ele abriu fogo contra o de trás. O avião inclinou-se abruptamente sobre uma asa e se abateu todo em chamas. Os alemães continuaram cegamente para diante.
Apontou para o guia, a uns 150 metros na frente, e deu-lhe uma rajada de três segundos. Voaram estilhaços e rolos de fumaça branca jorraram do avião. Os caças da esquerda estavam-se voltando para Bader e ele virou violentamente para a direita a fim de escapar. Os dois aviões da direita continuavam voando para frente e, por pura bravata, ele manteve seu rumo para passar entre eles.
Algo o atingiu. Sentiu o impacto, mas a sua mente estava curiosamente entorpecida. Alguma coisa segurava o seu aparelho pela cauda, fazendo-o girar e obrigando-o a dar um brusco mergulho em espiral. Olhou confusamente para trás para ver se alguma coisa o estava seguindo e teve um choque ao verificar que estava faltando ao Spitfire tudo quanto ficava para trás da carlinga: fuselagem, cauda, quilha—tudo tinha desaparecido. Com certeza, o segundo 109 se havia precipitado sobre ele cortando-lhe aquela parte com a hélice.
Arrancou o capacete e a máscara e deu um forte arranco na bolinha de borracha sobre a sua cabeça. A tampa se rasgou toda e um ruído penetrante lhe feriu os ouvidos. Agarrando a borda da carlinga para erguer-se, pensou que talvez não o conseguisse sem o impulso das pernas que em nada podiam ajudar. Lutou desesperadamente para levantar a cabeça acima do para-brisa e de repente, quando o vento dilacerante o alcançou, sentiu que estava sendo sugado para fora.
Estava fora! Não, algo o prendia. O rígido pé da perna direita tinha-se agarrado firmemente em alguma saliência da carlinga. O vento lhe açoitava o corpo exposto e lhe gritava nos ouvidos enquanto o caça quebrado, arrastando-o pela perna, mergulhava. Então, de repente, o aço e o couro rebentaram com um estalo.
O ruído e as pancadas cessaram. Num lampejo, seu cérebro se aclarou e ele puxou o anel do paraquedas, ouvindo o barulho que este fez ao abrir-se. Depois começou a flutuar, muito acima da terra verde e salpicada de manchas doutras cores. Algo lhe bateu no rosto e ele viu que era a perna direita da calça, aberta na costura. A perna havia desaparecido.
Que sorte, pensou, ter pernas que podiam soltar-se. Se não fosse isso, teria morrido segundos antes.
Era uma sorte, também, não ir aterrar sabre a rígida perna de metal. Descer de paraquedas equivale a saltar de um muro de quatro metros de altura, e cair ao solo sobre a sua perna direita artificial presa ao coto sem joelho teria sido como aterrar sabre um rígido poste de aço. Isso lhe abriria a bacia de maneira horrível.
A terra, que estava tão distante, de súbito se ergueu ferozmente. Então sentiu algumas costelas se partirem quando um joelho lhe bateu no peito, e a consciência lhe fugia.

Durante os seus três anos e meio como prisioneiro de guerra, Bader foi um constante problema para os alemães. No hospital da Franca para onde primeiro foi levado persuadiu seus captores a pedirem a RAF outra perna para ele, a qual posteriormente foi lançada de paraquedas. Em seguida, recompensou-os fugindo através de uma janela do terceiro andar, descendo 12 metros ate ao solo, por uma corda feita de lençóis, com nós. Recapturado um dia depois, foi embarcado para a Alemanha.
Ainda firmemente disposto a escapar, Bader experimentou um plano após outro, e os alemães, esforçando-se por enfrentar e dominar esse impossível prisioneiro, que deveria estar numa cadeira de rodas, iam-no transferindo de um campo para outro. Por fim, mandaram-no para Colditz, um sombrio castelo medieval, considerado a prova de fuga e reservado para prisioneiros incorrigíveis. Ali foi libertado em abril de 1945 pelo Primeiro Exercito Norte-Americano, em seu avanço.
Quando voltou para a Inglaterra, Bader verificou que era uma lenda viva, com gente em toda parte bradando que queria vê-lo. Durante algum tempo refugiou-se com Thelma num discreto hotel do interior. Em seguida, ansioso de novo por obrigações, subiu um dia num Spitfire e rodopiou com ele pelo céu. No primeiro minuto viu, com júbilo, que nada perdera de sua perícia. Dali a dois dias, para consternação de Thelma, estava fazendo planos para uma missão no Extremo Oriente contra os japoneses. Mas o pessoal do Ministério da Aeronáutica, embora atencioso, não mostrou boa vontade. Ele já tinha feito mais do que o suficiente, disseram. Continuava fazendo planos quando a bomba atômica foi atirada e a luta cessou.

Douglas Bader é considerado o melhor comandante e tático de caça da Segunda Guerra Mundial, e um dos melhores pilotos. Mas o seu maior triunfo não são os seus combates aéreos; estes foram apenas um episódio da vitória mais importante que ele conquistou na sua própria guerra pessoal, que prossegue sem cessar, para ser vencida de novo todo dia. Ele se vem dedicando cada vez mais a encorajar outras pessoas que tiveram membros amputados, e elas acham que a sua simples existência, sua resistência e o seu exemplo são um tônico. Ele as inspira de um modo que médico algum pode igualar.
Em princípio de 1946 aceitou um emprego na Shell Petroleum Co. Ltd., pilotando o seu próprio avião por uma grande parte do mundo, a serviço. Em todos os lugares onde esteve — Europa, África, Oriente Médio e Extremo Oriente — sempre achou tempo para visitar hospitais, conversar com as pessoas que haviam perdido membros e ajudá-las a aprender a andar outra vez.
Num hospital dos Estados Unidos, que visitou em 1947, encontrou um veterano sem pernas esforçando-se por andar com o auxílio de barras paralelas baixas. Bader caminhou para ele com seu andar desajeitado e perguntou-lhe:
— Por que o senhor não sai dessas barras e experimenta andar sem elas?
— Quem é o senhor? — rosnou o homem.
— Apenas um inglês de passagem por aqui, mas também perdi ambas as pernas e só tenho um joelho, não dois como o senhor.
O homem deu um arranco para fora e Bader ficou ao lado dele, ajudando-o a andar cambaleando para um lado e para outro pela sala. Passado algum tempo, o paciente conseguiu dar os seus dois primeiros passos sem auxílio, e a sua atitude mudou completamente.
— Diabo — disse ele. — Quase meti uma bala na cabeça quando acordei hoje de manhã, mas agora acho que está tudo bem outra vez.
Em Chicago, Bader leu uma notícia sobre um menino de dez anos que teve ambas as pernas amputadas abaixo do joelho. Douglas passou uma hora e meia à beira do leito dele, mostrando-lhe que as pernas não têm tanta importância assim. Depois o pai do menino disse, preocupado:
— Ele ainda não avalia a gravidade da situação.  
— E é uma coisa que ele nunca deve avaliar — replicou Bader com exaltação. - O senhor tem de fazer com que ele sinta que isto é outro jogo que ele precisa aprender, e não algo que o deixará aleijado. Se o amedrontar, ele estará desde logo derrotado.

Em resumo, é essa a filosofia de Douglas Bader. Ela diz respeito não apenas a pernas, mas também à própria vida.

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