domingo, 16 de novembro de 2014

LIBERTAÇÃO DA AMÉRICA LATINA

     
Sob a bandeira do Chile recém-independente, um casal dança em frente a um botequim dos Andes nesta ilustração de Viagens pelo Chile, que Peter Schmidtmeyer publicou em 1924. Ex-colônia da Espanha e país predominantemente rural, o Chile foi apenas um dos muitos estados das Américas do Sul e Central a conquistar a independência na primeira metade do século XIX. A sangrenta batalha pela liberdade nem sempre produziu a felicidade que estas figuras podem sugerir; para a maior parte da América Latina, o preço da liberdade foi a divisão e a ditadura.

     No verão de 1805, um jovem aristocrata venezuelano, em viagem de turismo pela Itália com seu tutor, subiu ao Monte Sacro e contemplou, pensativo, os monumentos antigos de Roma. Naquele morro, relembrou ele, mais de dois mil anos antes, plebeus oprimidos tinham se reunido pela primeira vez em sua luta vitoriosa para arrancar igualdade política e justiça econômica de uma minoria de patrícios arrogantes. Tomado pela emoção, ele ajoelhou-se e, segurando as mãos do tutor, jurou libertar seu próprio país da opressão do domínio espanhol. Simón Bolívar devotou o resto de sua vida a cumprir esse juramento.
     Vinte anos depois, em outubro de 1825, ele escalou as encostas tremendas do monte Potosí e sobre seu pico desolado desfraldou as bandeiras de Colômbia, Peru, Chile e Argentina. Não mais um aspirante a rebelde, ele era o general Bolívar, cidadão mais famoso da América do Sul, conhecido em todo o continente como o Libertador. Presidente da Colômbia e ditador do Peru, inspecionava agora as montanhas da Bolívia, país batizado em sua honra. Seu sonho se realizara. A Espanha perdera finalmente o controle do continente sul-americano. O regime colonial dera lugar a repúblicas independentes cujas constituições prometiam liberdade e prosperidade. “Em quinze anos de luta terrível e contínua”, anunciou Bolívar para seus auxiliares reunidos no alto do Potosí, ”destruímos o edifício que a tirania ergueu durante três séculos de usurpação e violência ininterrupta”.
     Os cinco anos seguintes iriam trair os ideais e sacrifícios das campanhas de Bolívar. Uma a uma, as novas repúblicas da América Latina cairiam na desunião e violência, enquanto os novos déspotas do Novo Mundo tomariam o lugar do jugo imperial da Espanha. Desiludido e desacreditado, Bolívar foi obrigado a assistir à queda do edifício que erguera com tanto ardor. “Mudar um mundo está além dos poderes de um pobre homem”, admitiu finalmente. Mas nunca perdeu a dimensão de suas próprias realizações. “Meu nome já pertence à história e lá eu terei justiça”, escreveu desafiador, pouco antes de morrer.

     Na época do nascimento de Simón Bolívar, em 1783, o imenso império americano da Espanha tinha mais de 250 anos de existência. Desde que as sociedades indígenas foram destruídas pelos conquistadores no início do século XVI, os espanhóis tinham tomado conta de boa parte da América do Sul. Somente o Brasil, colônia de Portugal, estava fora da jurisdição da Espanha.
     Distante quatro semanas de viagem da metrópole, esse vasto território era governado em nome do monarca espanhol por quatro vice-reis que, por sua vez, delegavam a administração regional a uma série de capitães-gerais, governadores e funcionários menores. No sudeste, ficava o vice-reinado do Rio da Prata, compreendendo os atuais Argentina, Paraguai, Uruguai e Bolívia.

Em 1808, quase toda a América do Sul e Central, com exceção do Brasil e de alguns pequenos territórios pertencentes a França, Holanda e Inglaterra, era governada pelo rei da Espanha através de um sistema de vice-reinados (mapa menor). Porém, as guerras napoleônicas desestabilizaram os países ibéricos, dando às suas colônias a chance de conquistar a liberdade; em 1825, Espanha e Portugal já não mais controlavam território algum no continente americano. Durante algum tempo, fizeram-se tentativas de unir os novos estados independentes; o herói revolucionário Simón Bolívar reuniu Venezuela, Equador e Nova Granada sob sua liderança. Em 1850, no entanto, nada mais restava desses esforços. Como mostra o mapa principal, a América Latina estava dividida em países separados que mantiveram, em grande parte, as mesmas fronteiras até hoje.

     O vice-reinado do Peru, do lado do Pacífico, incluía o moderno Peru e a maior parte do Chile de hoje, territórios separados e já virtualmente independentes um do outro. A Nova Granada ocupava o norte do continente, abrangendo Venezuela, Colômbia, Equador e Panamá. Mais ao norte, o vice-reinado de Nova Espanha compreendia a América Central, México e quase todo o oeste dos Estados Unidos. No Caribe, Cuba, Porto Rico e Santo Domingo - atual República Dominicana - completavam as possessões americanas da Espanha.
     Desde o início, a metrópole considerara seu império do Novo Mundo como uma fonte de renda e de matérias-primas. Os metais preciosos, que tinham originalmente atraído os conquistadores, continuavam a enriquecer a corte espanhola. Em 1800, noventa por cento da prata do mundo vinha das minas do México e da região do Alto Peru - hoje Bolívia. Mas a agricultura constituía a maior parte das exportações da América espanhola. Enormes propriedades, ou haciendas da Nova Granada plantavam café, tabaco e cacau, pelos quais a Europa desenvolvera um apetite insaciável; o açúcar das plantações do Caribe abastecia o paladar cada vez mais adocicado do Velho Mundo; nas vastas pastagens da Argentina e Venezuela, rebanhos de gado selvagem eram uma fonte lucrativa de couros para exportação.
     A América espanhola não era estimulada a lucrar ela mesma com nenhuma dessas matérias-primas. Com efeito, só tinha permissão para comerciar com a Espanha e, na Espanha, só com o porto de Cádiz. A política da metrópole era manter suas colônias em estado de perpétua dependência econômica, mercados cativos para suas indústrias manufatureiras. Quando os comerciantes de Cádiz reclamaram que as vendas de vinho espanhol estavam caindo nas colônias do norte, por exemplo, os vinhedos de Nova Granada foram arrancados para evitar que vinhos baratos locais tomassem o lugar do produto importado, mais caro.
     Acontece que a Espanha precisava desesperadamente da receita do Novo Mundo. Ela só conseguia manter sua posição entre as potências europeias graças ao fluxo constante de metais preciosos e matérias-primas de suas colônias. Com os Bourbon, que ascenderam ao trono espanhol em 1700, foram feitos esforços para aumentar a renda mediante o aperto do controle sobre as possessões. Novas leis subiram o imposto sobre consumo e reforçaram os monopólios estatais de produtos como tabaco, bebidas e sal. Os poderes dos cabildos, conselhos municipais que constituíam a única forma de representação permitida aos cidadãos das colônias, foram restringidos e funcionários assalariados chegaram da Espanha para supervisionar os governos provinciais. Quando as milícias locais deram sinais de que talvez se rebelassem, designaram-se oficiais espanhóis para preencher os postos mais altos.
     Enquanto aumentava o controle sobre a burocracia colonial, o regime dos Bourbon liberalizava a economia. Durante a segunda metade do século XVIII, diminuíram as tarifas sobre importações e exportações e aboliram-se antigas restrições comerciais. Embora ainda estivessem proibidos de negociar diretamente com países estrangeiros, os mercadores da colônia ganharam o direito de comerciar com qualquer porto espanhol, bem como com outras colônias espanholas.
     Porém, as reformas chegaram tarde demais. Essas tentativas de modernização e centralização apenas estimularam uma exigência crescente de independência. Até mesmo a nova liberdade de comércio foi pouca para satisfazer as colônias. Para alguns comerciantes latino-americanos, as reformas não tinham avançado o bastante; outros arruinaram-se com a entrada de artigos importados baratos. Tributos pesados e burocratas espanhóis intrometidos ofendiam a quase todos. O ressentimento em relação ao domínio europeu crescia e aumentavam paulatinamente as tensões sociais e raciais que caracterizavam a América do Sul desde a conquista. Já estavam liberadas as forças que mergulhariam a região na rebelião e na guerra civil.


     Agudamente polarizada entre espanhóis e americanos, entre raças e culturas, entre ricos e pobres, a sociedade da América espanhola estava há muito tempo à beira da explosão. Em 1800, quase dezessete milhões de habitantes viviam nas colônias espanholas; destes, apenas três milhões eram brancos. No topo desse grupo racial mais privilegiado estavam os peninsulares, nativos da Espanha, que não passavam de 40 mil. O resto dos brancos eram criollos nascidos no Novo Mundo. Embora nem todos fossem ricos, os criollos estavam em muito melhor situação que os de raça mesclada e não-brancos, que constituíam a massa da população sul-americana. Eram os mestiços, de sangue branco e indígena, e os mulatos, mistura em proporções variadas das raças europeia e africana.
     De sua posição de superioridade, os brancos referiam-se a todos os não-brancos livres como pardos. Dentro desse grupo, porém, havia vários graus de brancura. Gente de pele clara de raça mista empenhava-se em estabelecer legalmente sua cor branca. O que estava em questão era mais do que orgulho: a classificação étnica afetava toda a vida da pessoa. Os pardos não tinham acesso à educação e a cargos públicos; um pardo podia ser proibido de usar sombrinha, sua esposa, de usar jóias, seda ou veludo; em algumas regiões, até mesmo os assentos nas igrejas eram segregados.
     Perto do fundo da escala social estavam os índios e negros livres, bem como os zambos, de sangue misto negro e indígena. Por fim, vinham os trabalhadores indígenas e escravos africanos, cujo número variava de região para região. A maioria, de índios, não era classificada oficialmente como escrava, mas seus valiosos serviços em minas, fazendas e obras públicas eram garantidos por vários meios - inclusive induzi-los a dívidas que nem uma vida inteira de trabalho poderia pagar. Desprezadas e oprimidas, as classes escravizadas de negros e índios forneciam o alicerce sobre o qual repousavam a riqueza e os privilégios da Espanha e de suas colônias.

Uma gravura do livro de Peter Schmidtmeyer apresenta a laboriosa atividade de refinar o minério de prata nos Andes. O minério bruto passa por covas cheias de água, de onde o sedimento com o metal é removido e pisado com uma mistura de sal, esterco e mercúrio (no centro). O amálgama é depois lavado (à direita) e aquecido para purificar a prata. Durante séculos, a enorme riqueza mineral da América do Sul enriqueceu Espanha e Portugal. Em 1800, as montanhas hispano-americanas produziam praticamente toda a prata do mundo. As guerras de independência, no entanto, levaram a uma fuga de mão-de-obra e capital da qual a indústria de mineração latino-americana só se recuperaria no final do século XIX.

     A política espoliativa da metrópole provocou rebeliões violentas, embora espasmódicas. Nos dois primeiros séculos de jugo colonial, as revoltas de índios e escravos eram comuns. Mas as reformas dos Bourbon provocaram protestos ainda maiores. Em 1780, Tupac Amaru, um índio peruano que se dizia descendente dos incas, provocou ondas de choques em toda a América do Sul com uma revolta que exigia o fim da opressão dos impostos. Porém, os 60 mil homens sem treinamento que responderam a seu chamado às armas não eram páreo para os exércitos comandados por experientes oficiais europeus.
     O levante foi esmagado. Feito prisioneiro, Tupac Amaru teve primeiramente que assistir à execução de sua família; depois, foi amarrado a quatro cavalos e esquartejado em público. Apesar dessa punição cruel e exemplar, o espírito de rebelião continuou a se espalhar escala social acima como uma peste. No inicio do século XIX, o contágio já tinha despertado ressentimentos adormecidos até mesmo entre os criollos abastados. O movimento rebelde encontrava assim seus lideres.
     Em todo o continente, os criollos constituíam a aristocracia da América do Sul. Possuíam grandes haciendas e levavam uma vida de conforto privilegiado sustentado por escravos. Seus filhos frequentavam escolas europeias; suas famílias moravam em capitais elegantes - Caracas, Lima, Buenos Aires -, comparáveis aos centros provinciais da Espanha no estilo de seus edifícios públicos e no esplendor de suas reuniões sociais. Tudo que o dinheiro podia comprar, os criollos tinham a liberdade de usufruir. Mas era-lhes negada a única coisa que satisfaria seu crescente senso de identidade: poder político. Com medo da deslealdade e preocupados em recompensar seus emigrantes, a Espanha assegurava-se de que os melhores postos administrativos, bem como as posições mais graduadas do exército e da Igreja, fossem para os peninsulares. A arrogância desses recém-chegados enfurecia a elite criolla. O naturalista alemão Alexander von Humboldt, que visitou a América do Sul no início do século XIX, comentou: “O europeu mais baixo, menos educado e inculto acredita-se superior aos brancos nascidos no Novo Mundo”.

Esta gravura de 1824 mostra a principal edificação de uma grande hacienda, ou propriedade rural. Embora mais trivial que o ouro ou a prata, a produção agrícola desses latifúndios compunha a maior parte das exportações da América Latina. A sede da fazenda não era apenas a mansão do senhor, mas também o local de preparação de mercadorias como carne e couro (à direita) para o mercado. Os proprietários desses latifúndios - em sua maioria de ascendência europeia - eram ao mesmo tempo comerciantes e fazendeiros, vendendo geralmente os produtos de suas terras em seus estabelecimentos urbanos. Lucravam também com as vendas na própria hacienda: os empregados eram obrigados a comprar suprimentos no armazém da propriedade, tal como o que aparece em primeiro plano, quase sempre a preços exorbirtantes.

     O sopro de revolução vindo do exterior despertou mais ainda as aspirações políticas do criollos. Não estavam eles na mesma situação de seus vizinhos norte-americanos, antes que se libertassem do jugo britânico em 1781? Não eram eles escravos de uma corte decadente e negligente, tal como os revolucionários franceses de 1789? Jovens criollos ambiciosos liam as obras de pensadores liberais europeus. Revolucionários incipientes trocavam volumes contrabandeados de autores como Voltaire, Jean Jacques Rousseau, Adam Smith e John Locke. Alguns pagaram caro por ousar pensar. Antonio Nariño, um jovem brilhante de Bogotá, tentou publicar uma versão em espanhol da Declaração dos Direitos do Homem, o credo da Revolução Francesa. Por esse ato de “traição” ficou preso durante dez anos.
     Os eventos na Europa ajudaram a acelerar os primeiros passos hesitantes da América espanhola em direção à independência. Em 1796, a Espanha aliou-se à França numa dispendiosa guerra contra a Inglaterra, provocando um bloqueio naval retaliativo que efetivamente a isolou de sua principal fonte de riqueza. Isso deixou as colônias livres para comerciar usando navios estrangeiros, um estado de independência econômica que jamais tinham gozado. O gosto dessa liberdade nunca seria esquecido.
     Livre comércio, liberdade de expressão, mais representação política: os gritos familiares dos movimentos revolucionários de todo o mundo começavam a ser ouvidos no continente. A maioria dos rebeldes novatos continuava fiel ao rei espanhol, enquanto pedia a queda de seu governo. Uns poucos, porém, argumentavam que a Espanha jamais toleraria uma América do Sul semi-independente e defendiam o rompimento com a metrópole. A independência era a única solução.
     Os ventos da revolução tinham começado a soprar no Caribe muito antes que os criollos entrassem num acordo sobre o que fazer. Em 1804, depois de anos de rebelião, a colônia francesa de Saint-Domingue conseguira a independência, tornando-se a República do Haiti. Liderada pelo ex-escravo Toussaint L'Ouverture, uma difícil aliança de escravos negros e mulatos expulsou um exército mandado por ninguém menos que Napoleão Bonaparte. Os nacionalistas hispano-americanos ficaram ao mesmo tempo animados e consternados. O que podia ser feito no Haiti, podia ser feito também na Venezuela ou no Peru. Mas a que custo? No Haiti, os rebeldes tinham expulsado todos os brancos. Muitos criollos hesitavam em se comprometer, com medo de desencadear as forças dos não-brancos que estavam abaixo deles. Um vulcão construído por eles mesmos poderia entrar em erupção.

Três mexicanos de classe alta exibem os trajes europeus que marcam sua ascendência espanhola.

     No entanto, os acontecimentos no sul do continente surpreenderam até mesmo os nacionalistas mais radicais. Sempre alerta para novos mercados, a Grã-Bretanha já via as colônias isoladas da Espanha pelo bloqueio como um útil acréscimo a seu império comercial em expansão. Em junho de 1806, uma força britânica do cabo da Boa Esperança entrou no rio da Prata e ocupou Buenos Aires. Mas enquanto o vice-rei fugia e a resistência espanhola oficial desmoronava, surgia um bolsão de resistência entre as classes mais pobres. Em dois meses, os ingleses foram desbaratados por um exército multirracial improvisado, liderado por criollos. A autoridade espanhola foi restaurada, mas os nativos descobriram sua própria força e começaram a suspeitar que o monstro dominador estava sem dentes e garras.
     No mesmo mês em que os cidadãos de Buenos Aires celebravam a vitória sobre os britânicos, um bando de seiscentos rebeldes desembarcava na capitania-geral da Venezuela e apelava para que seus concidadãos se levantassem contra os espanhóis. À frente desse exército otimista estava Francisco de Miranda, um visionário carismático e fanfarrão que passara boa parte da vida na Europa tentando obter apoio para a independência hispano-americana. Alto, bonito e sempre impecável no trajar, Miranda era o grande propagandista da libertação colonial. Jantara com Napoleão, que o comparara a Dom Quixote; conquistara a afeição e, dizia-se, a cama de Catarina, a Grande, da Rússia. Mas sua capacidade como general estava muito aquém de seu gênio para as relações públicas. Sem contato com seu país, em particular com a elite criolla, enganou-se sobre a disposição da Venezuela. Mesmo com o apoio informal da marinha inglesa, sua invasão foi um fracasso embaraçoso. Miranda fugiu para Londres, onde sua casa se tornou um centro de expatriados sul-americanos subversivos. “Nunca admitas que o desespero ou o desânimo alguma vez dominem tua alma”, disse ele certa vez a um co-revolucionário. Apesar do fracasso militar, seu entusiasmo contagiante permaneceu como uma inspiração para o crescente número de criollos que viam na revolta armada a única saída para o futuro.

     Foi nessa sociedade de altos ideais e ambições reprimidas, de otimismo e inércia, que Simón Bolívar deu seus primeiros passos. Nascido em Caracas, principal cidade da Venezuela, era o quarto filho de uma família criolla muito rica, que traçava sua ancestralidade hispano-americana até o século XVI. Seu pai morreu quando tinha 3 anos, a mãe, seis anos depois. Embora criado por um tio, a influência mais forte foi a de um tutor politicamente radical chamado Simón Rodríguez. Com ele, Bolívar leu os livros liberais que circulavam entre os nascentes revolucionários.

Esta pintura a óleo de 1829 mostra Simón Bolívar, o grande herói da independência hispano-americana, em uniforme militar. Aclamado como o Libertador da América do Sul, Bolívar acalentava o sonho de unir todas a ex-colônias espanholas numa federação política, mas suas ambições visionárias estavam fadadas ao fracasso. Este retrato, pintado um ano antes de sua morte, captura seu rosto cansado e marcado num momento em que já estava assistindo à queda de muitos países que libertara no caos político.

     Mas foi na Europa, onde completou sua educação, que Bolívar desenvolveu a paixão pela política. Foi lá também que se revelou outro traço seu: o amor pela fama. Assistiu à coroação de Napoleão em 1804 e ficou emocionado com o amor universal que a imensa multidão tinha por seu herói. Ser assim tão reverenciado, escreveu Bolívar, parecia-lhe “o pináculo dos desejos de um homem”.
     Foi então que Bolívar começou a nutrir ideias de desempenhar um papel no futuro de sua nação. ”Creio que seu país está pronto para a independência”, disse-lhe Alexander von Humboldt, ao encontrá-lo pouco depois de retornar de sua viagem à América em 1804, “mas não vejo o homem que possa realizá-la”. No fundo da alma, Bolívar aceitou o desafio. Com seu velho tutor Rodríguez, excursionou a pé pela Europa. Em Roma, perto do final da viagem, fez o juramento do Monte Sacro. O curso de sua vida estava decidido.
     Ao voltar para a América do Sul em 1807, Bolívar assumiu a vida de um abastado terra tenente. Dirigiu com habilidade seu latifúndio, mantendo as aparências de um proprietário modelo. Mas sua principal preocupação continuava a ser a independência política da terra natal. Com outros conspiradores, fazia reuniões - disfarçadas de encontros literários ou de jogos - a fim de debater sobre os métodos mais adequados para atingir seus objetivos republicanos.
     Os eventos dramáticos da Europa não lhes deram tempo para chegar a uma conclusão. Em 1808, Napoleão invadiu a península Ibérica. Decidido a fechar os portos europeus ao comércio inglês, o imperador impacientara-se com a ineficácia de sua aliada Espanha. Aproveitando-se da invasão de Napoleão, o povo espanhol forçou o corrupto rei Carlos IV a abdicar em favor de seu filho Fernando. Napoleão não queria nenhum dos dois: depôs ambos os monarcas e, no lugar deles, para ultraje dos espanhóis, instalou seu próprio irmão José.
     Com esse nepotismo desastrado, Napoleão ajudou os republicanos da América do Sul. De repente, a sociedade criolla uniu-se em oposição a José. “Viva o rei Fernando!” - foi o grito que ressoou nas capitais do continente. Os emissários franceses foram expulsos. E os funcionários espanhóis, parecendo cada vez mais títeres de um usurpador francês, lutavam para conservar a autoridade. Por mais de um ano, mantiveram-se no poder, mas em 1810, a população criolla de todo o continente, agindo com unanimidade notável, depôs seus governantes, com exceção do Peru.
     Em Caracas, o governador saiu quase agradecido a 19 de abril de 1810, substituído por uma junta de criollos proeminentes. Mas Bolívar não estava entre os novos líderes. Sua posição era intransigentemente republicana, enquanto os membros moderados da junta contavam com alguma relação com o rei Fernando. Mesmo assim, porque era um dos rebeldes mais articulados - e porque se ofereceu para pagar sua própria passagem - foi nomeado delegado-chefe de uma missão a Londres.
     Apesar de sua eloquência, Bolívar não conseguiu auxílio oficial, militar ou econômico, para a Venezuela. Para a Grã-Bretanha, lutando agora ao lado da Espanha contra Napoleão, era complicado apoiar as colônias rebeldes de sua aliada. Mas se a recepção pública foi fria, Bolívar encontrou uma cálida acolhida na casa de Francisco de Miranda. Aos 60 anos de idade, ele ainda era a alma dos expatriados. Afetado pelo charme e paixão patriótica do “famoso general”, como Londres o chamava, Bolívar pediu para Miranda liderar a revolução na Venezuela. Embora o governo britânico tentasse evitar sua saída do reino, Miranda conseguiu voltar para a terra natal, e para o último e trágico capítulo de sua vida.

Nesta litografia de Johann Rugendas, de 1835, escravos africanos recém-chegados ao Brasil descansam em torno do fogo em seu caminho para as fazendas onde vão servir. Os escravos negros foram comumente usados para o trabalho no campo em toda a América Latina desde o século XVI, quando os indígenas foram dizimados por doenças europeias como a varíola e a gripe; os africanos também eram considerados mais robustos que os índios. A monocultura extensiva do Brasil e seu fácil acesso às possessões africanas de Portugal proporcionaram condições perfeitas para o florescimento da escravidão. A maioria dos países latino-americanos aboliu a escravidão na década de 1850, mas no Brasil ela perdurou até 1888.

     A expedição teve um início promissor. A 5 de julho de 1811, o Congresso Nacional de Caracas - uma assembleia eleita de criollos abastados que fora criada no início daquele ano - votou, com uma dissensão, pela independência, tanto da Espanha como da Nova Granada. Mas o país continuou dividido. Nem todas as províncias da Venezuela reconheciam a liderança de Caracas e havia muita gente temerosa de que um rompimento completo com Madri apenas levasse à tirania dos criollos mais privilegiados. Com efeito, os próprios republicanos logo se dividiram, com Miranda e Bolívar detestando-se cada vez mais.
     Assediada por inimigos dentro e fora, enfraquecida por disputas políticas e com a economia marchando para o caos, a jovem república lutava para sobreviver quando a natureza acertou-lhe um golpe fatal. A 26 de março de 1812, uma quinta-feira santa, fazia uma tarde escaldante em Caracas; algumas testemunhas falaram de um silêncio opressivo. De repente, o solo tremeu e a bela cidade - a terceira do continente - foi reduzida a escombros. Dez mil pessoas - quase um quarto da população - morreram no terremoto.
     Os mais supersticiosos, estimulados pelo clero, viram no desastre uma reprimenda divina pelo afastamento da Espanha. “Misericórdia, rei Fernando!” – gritavam entre as ruínas. E de fato, o castigo espanhol não estava muito longe. Do forte realista de Coro, a 320 quilômetros de Caracas, partiu um exército comandado pelo capitão Domingo Monteverde em direção à capital. Ao mesmo tempo, uma enxurrada de revoltas escravas persuadiu os criollos indecisos de que a Espanha oferecia mais segurança do que qualquer regime republicano.
     A Primeira República da Venezuela afundava rapidamente. A 25 de julho de 1812, Miranda fez um armistício com Monteverde, uma trégua que era quase uma rendição. Ao mesmo tempo, tomou providências para fugir, pegando dinheiro suficiente para sua aposentadoria. Mas, na última noite, foi preso por Bolívar e outros oficiais e, sob a acusação de traição, entregue às autoridades espanholas. Morreu quatro anos depois numa prisão de Cádiz. Bolívar escapou para a ilha holandesa de Curaçao. A Primeira República chegava a um fim inglório.
     Bolívar não descansou no exílio, indo logo para Cartagena, o principal porto de Nova Granada no Caribe que, tal como outras cidades do vice-reinado, se declarara independente. Mas o país estava desunido e sob ameaça constante das forças realistas. O venezuelano foi calorosamente acolhido e logo lhe deram um comando.
     Antes de iniciar nova campanha, Bolívar redigiu o Manifesto de Cartagena, uma análise da Primeira República da Venezuela. Nesse documento, emergiu um tema que seria o credo de Bolívar pelo resto de sua vida. "Não foram os espanhóis, mas nossa própria desunião que nos levou de volta à escravidão", escreveu ele. “Um governo central forte poderia ter mudado tudo". A própria estrutura da sociedade sul-americana militava contra a democracia, sustentava ele. Um povo que desconhecia o governo representativo só poderia alcançar liberdade e felicidade sob um “poder terríveI" que varresse os espanhóis do país. Tratava-se de uma concepção de ditadura cheia de consequências.
     Bolívar lançou-se então contra os espanhóis com uma energia que surpreendeu tanto os inimigos quanto seus aliados, avançando até os Andes, na direção de Caracas. A conquista dessa cidade, argumentava, era essencial para a segurança de Nova Granada. O alto comando de Cartagena autorizou o ataque.
     O conflito feroz que se seguiu levou Bolívar dos Andes até Caracas em três meses. À medida que avançou, seu exército aumentou de setecentos para 2 500 homens, pois os pobres da Venezuela rural tinham aprendido que a crueldade da contra-revolução espanhola era maior que a da Primeira República.
     Ambos os lados usaram de extremo barbarismo, competindo em atrocidades e terrorismo. Dizia-se que um general espanhol estimulava seus soldados a decorar seus chapéus com orelhas de simpatizantes republicanos (mantendo um baú cheio desses souvenirs). De sua parte, Bolívar declarou guerra de morte contra qualquer espanhol que não aderisse à causa republicana. “Nossa vingança deve ser igual à crueldade dos espanhóis”, anunciou ele. Essa política de destruição mútua transformaria a Venezuela num deserto.

O afresco no teto do Capitólio, em Caracas, representa a batalha de Boyacá, confronto decisivo para a libertação de Nova Granada - atual Colômbia - do domínio espanhol, em 1819. Os patriotas de pés descalços que atacam as forças realistas refletem o estado esfarrapado do exército de Bolívar, que acabara de cruzar os Andes com terríveis privações e perdas de vida. A batalha, travada em torno de uma ponte sobre o pequeno rio Boyacá, durou apenas duas horas e provocou baixas em ambos os lados, mas a maioria dos soldados foi aprisionada - inclusive seu general. Cinco dias depois, a 10 de agosto, os patriotas entraram em Bogotá sem enfrentar resistência.

     No momento, porém, o triunfo era de Bolívar. A 7 de agosto de 1813, ele entrou em Caracas. Meninas vestidas de branco levaram seu cavalo pelas ruas. “Viva nosso libertador!” - gritava a multidão. Dois meses depois, Bolívar escolheu oficialmente esse título. Ficaria conhecido para sempre como o Libertador.
     Decidido a evitar que a Segunda República tivesse o mesmo destino da primeira, Bolívar aceitou também o papel de ditador. “Nossa administração deve reduzir-se ao denominador mais simples”, explicou. Mas desde o início o país defrontou-se com problemas graves. A economia estava em pedaços, as grandes propriedades, despovoadas, e as cidades, arruinadas. Além disso, as facções republicanas logo estariam lutando entre si.
     Nas províncias orientais da Venezuela, um movimento nacionalista independente tinha expulsado por fim Monteverde do país. Santiago Mariño, o jovem líder rebelde, não era homem de dividir o poder. Proclamando-se ditador do Oriente, colocou-se em oposição a Bolívar. Sua recusa em colaborar com Caracas contribuiu para a tragédia que se seguiu.
     Ocorre que surgira um novo e terrível inimigo mais ao sul. José Tomás Boves era um aventureiro espanhol que passara alguns anos exilado nos llanos do centro da Venezuela, planícies onde o capim crescia da altura de um homem e o gado era selvagem. Ali só viviam os llaneros, vaqueiros mestiços e semi-selvagens que não se interessavam por política, mas que aproveitaram a oportunidade de saquear oferecida pela causa realista. Armada apenas com facas, lanças e laços, a cavalaria de Boves abriu uma trilha de saques, incêndios e estupros pelas vilas e cidades republicanas. O próprio Boves deliciava-se com a crueldade, mandando desmembrar crianças e fazendo homens e mulheres de pés esfolados caminharem sobre vidro picado.
     Uma brutalidade insana tomou conta do país, afetando monarquistas e republicanos. Na primavera de 1814, Bolívar mandou executar oitocentos prisioneiros, por medo de rebelião. Tal crueldade pouco ajudou sua causa. Sem armamentos e totalmente desmoralizados, os republicanos evacuaram Caracas no julho seguinte, menos de um ano depois da entrada triunfal de Bolívar. Vinte mil civis arrastaram-se para leste, com muitos morrendo no caminho. Bolívar fugiu para Cartagena, onde uma vez mais ofereceu seus serviços à rebelião em Nova Granada.
     Mas a situação política mudara. Napoleão fora para o exílio e, na Espanha, o restaurado rei Fernando estava decidido a disciplinar suas teimosas colônias. Uma força espanhola de quase 11 mil soldados chegou à Venezuela na primavera de 1815, ocupando Caracas e depois partindo para Cartagena. A cidade caiu após um sítio terrível que matou de fome a maioria de seus habitantes.
     A queda de Cartagena marcou o nadir da revolução. Bolívar, que fugiu para a Jamaica, tomou da pena e purgou seu sentimento de fracasso com outro manifesto político. Na Carta da Jamaica, de 1815, defendeu novamente um governo central forte. “As instituições plenamente representativas não se adequam a nosso caráter", afirmou ele, propondo um presidente vitalício como cura para os divisionismos da jovem república. Ao mesmo tempo, exprimia o desejo de ver toda a América do Sul unida sob um “congresso de representantes das repúblicas, reinos e impérios que discutiriam a paz e a guerra com o resto do mundo”. Era uma ambição que ele perseguiria pelo resto da vida.
     Reencontrando-se com seus companheiros revolucionários no Haiti, tentou uma nova invasão da Venezuela na primavera de 1816. Foi um fracasso dispendioso; mas irrefreável, Bolívar partiu para uma nova tática no final do ano.
     Estava ficando cada vez mais claro que seria difícil invadir a populosa e bem-defendida faixa litorânea da Venezuela. Bolívar decidiu então entrar pelo vale do Orenoco, um rio imenso que serpenteava por florestas e llanos até o oceano Atlântico. Mal defendido pelos espanhóis, o terreno impenetrável oferecia aos republicanos um lugar para consolidar suas forças e formar uma ordem estável de comando que faltara em campanhas anteriores. Em Angostura, cidade ribeirinha de 6 mil habitantes, situada a 320 quilômetros da costa, os patriotas fizeram seu quartel-general e conquistaram uma base permanente em sua terra natal.
     A primeira tarefa de Bolívar foi a de se consolidar como comandante supremo. Mariño recusava-se novamente a cooperar. Mais perigoso ainda era Manuel Piar, um general mulato que planejava abertamente uma rebelião. Bolívar mandou prendê-lo. Submetido à corte marcial, Piar foi executado. Mais tarde, Bolívar sustentou que esse ato salvara o país: “Nunca houve uma morte mais útil, mais política e, ao mesmo tempo, mais merecida". Por sua vez, Mariño dobrou-se diante dessa exibição de força, jurando fidelidade às autoridades republicanas de Angostura.
     Piar representava o perigo de divisão racial do movimento republicano. Ressentido diante dos privilegiados criollos e humilhado pelo estigma de seu sangue misto, ele tentara atrair a grande massa de pardos e escravos para um exército separado. Isso teria sido fatal para a estratégia de Bolívar, bem como um golpe em seu idealismo.

     Ao contrário de grande parte dos criollos, Bolívar era um libertário sincero. Um povo que estava lutando para se libertar, argumentava, não podia em sã consciência conviver com o “manto negro da escravidão bárbara e profana". Ao mesmo tempo, compartilhava do medo dos brancos privilegiados de um levante das raças oprimidas. Acreditava que a única maneira de desarmar a bomba relógio da injustiça racial era a reforma política. As iniciativas liberais, sustentava, já tinham transformado a sociedade nas áreas republicanas da Venezuela. “A odiosa distinção de classes e cores já não foi quebrada para sempre?" - perguntou a suas tropas após a execução de Piar. ”Não dei ordens para que a propriedade nacional fosse distribuída entre vocês? Não são vocês iguais, livres, independentes, felizes e respeitados? Piar podia dar-lhes mais? Não. Não. Não."

Esta pintura alegórica de 1825, apresentando um escudo remanescente da heráldica colonial, homenageia Simón Bolívar como libertador do Peru. Em vez dos animais heráldicos da Espanha, os símbolos da luta pela liberdade - um barrete frígio, uma coroa de louros e as mãos dadas da fraternidade - refletem o orgulho peruano de sua independência. Entre os heróis revolucionários retratados no escudo estão o próprio libertador (no centro), seu general favorito Antonio Sucre (no alto, à direita) e o general William Miller (embaixo, à direita), um dos muitos ingleses que se apresentaram como voluntários para lutar ao lado de Bolívar.

     Sob essa retórica altissonante - Bolívar sabia - jazia a realidade da exploração racial. O próprio Libertador não Iibertara seus escravos (embora fosse fazê-lo mais tarde, em 1821). Muitos de seus companheiros republicanos jamais pensariam seriamente nisso e só com muita relutância estenderiam os privilégios legais aos pardos. Contudo, as massas de cor da Venezuela eram necessárias para o exército republicano. Para satisfazer ao mesmo tempo as necessidades militares e suas genuínas simpatias libertárias, Bolívar prometeu liberdade aos escravos negros que se alistassem com os patriotas. Poucos juntaram-se às fileiras, mas ao oferecer-lhes liberdade ainda que condicional, Bolívar ajudou a desarmar um inimigo potencialmente perigoso. Os pardos, no entanto, deram resposta mais positiva às promessas de oportunidades iguais de promoção, em especial porque o corpo de oficiais das forças espanholas não oferecia tal incentivo.
     Surgiu então um novo e valioso aliado dos republicanos nos llanos a oeste de Angostura. Tomás Boves morrera em batalha, mas os llaneros tinham encontrado outro líder em José Antonio Páez, um enorme e analfabeto criollo que fora para os llanos fugido da justiça aos 15 anos de idade. Um gênio da guerra de guerrilhas, “Tio Antonio” regozijava-se com a violência e afirmava ter matado setenta homens com suas próprias mãos. Sujeito a ataques epiléticos em batalha, era escoltado por um negro gigantesco conhecido como El Primo Negro, que carregava seu senhor para longe quando sofria um ataque. Páez entendeu-se imediatamente com Bolívar quando os dois se encontraram, em 1818.
     Se os llaneros representavam um dos extremos do exército republicano, os redcoats britânicos compunham o outro. Ardente anglófilo que havia muito tentava atrair o apoio econômico e militar da Grã-Bretanha para as guerras de independência, Bolívar procurou recrutar um exército privado nas ilhas britânicas. O momento era certo. Entediados e empobrecidos pela vida civil após anos de guerra na Europa, milhares de veteranos britânicos responderam ao chamado de Bolívar. Vestidos de modo absurdo e mal-informados sobre a natureza da guerra, muitos desses mercenários desertaram ou morreram de doenças tropicais. Alguns, porém, ficaram com Bolívar ao longo da campanha, criando uma ligação pessoal ao homem e a sua causa. Da Inglaterra vieram também suprimentos, armas e equipamentos, comprados a crédito por agentes de Bolívar em Londres.
     A 15 de fevereiro de 1819, um congresso de representantes eleitos ouviu Bolívar fazer um discurso tipicamente agitador em Angostura. Aos 35 anos, estava no auge de suas forças. Tinha o rosto magro e pálido, as maçãs saltadas e nariz aquilino. De constituição franzina, media 1,67 metro, mas parecia crescer quando se dirigia à multidão. Segundo seu rival Mariño, a eloquência dele era de tal ordem que “poderia convencer as pedras da necessidade de sua vitória”.
     No Congresso de Angostura, Bolívar propôs uma constituição para a Venezuela. Coerente com seu crescente ceticismo em relação às assembleias populares e seu medo da desunião, sugeriu um senado hereditário, ao estilo da Câmara dos Lordes da Grã-Bretanha. Pedia a união de Venezuela e Nova Granada em um único estado a se chamar Colômbia, que mais tarde seria batizado de Grã-Colômbia. Com mais da metade da Venezuela ainda em mãos realistas, sua proposta deve ter parecido extravagante, mas Bolívar era irresistível. No dia seguinte, o Congresso elegeu-o presidente da Terceira República venezuelana.
     Bolívar deu início então a uma das mais notáveis campanhas da guerra. Ele e Páez não estavam fazendo progressos contra o poderoso exército espanhol ao norte. Por que não mudar o cenário da ação completamente? A 23 de maio de 1819, Bolívar convocou seus generais para um conselho de guerra. Sentados sobre crânios de gado numa cabana em ruínas, eles concordaram em invadir Nova Granada através dos Andes.
     Estavam na estação das chuvas, pior ocasião para viajar pelos afluentes transbordantes do Orenoco. Para chegar até o pé da montanha, o exército já teve de enfrentar dificuldades extraordinárias. “Durante sete dias, marchamos com água pela cintura”, escreveu Daniel Florencio O'Leary, ajudante irlandês de Bolívar. Canoas de couro transportavam armamentos e os soldados que não conseguiam atravessar a nado os trechos mais fundos. Então chegaram às montanhas. Para os homens da planície tropical do Orenoco, atravessar os Andes foi uma experiência aterrorizante. Caminhando penosamente sobre rochas pontiagudas, com as botas em tiras, ou montados em cavalos cambaleantes até a morte, eles penetraram em nuvens geladas. A fim de aumentar o elemento surpresa, Bolívar escolhera a pior rota para a travessia: o páramo de Pisba, um platô árido de até 4 mil metros de altitude, considerado intransponível na estação chuvosa. Foi quase o que aconteceu. Todos os cavalos e bois morreram. Então os homens começaram a cair, alguns de frio, outros de mal das alturas, alguns de puro cansaço. Dos 3 mil soldados que começaram a jornada, menos da metade chegou ao outro lado.
     No início de julho, o exército de Bolívar desceu das montanhas, surpreendendo completamente os espanhóis de Nova Granada. Os camponeses saudaram com entusiasmo os republicanos, deram-lhes alimentos e roupas, cavalos e mulas. Muitos se apresentaram voluntariamente para servir a Bolívar, outros foram recrutados na ponta da arma. Assim revitalizado, o exército venezuelano atacou os espanhóis com um ânimo avassalador. Até os mercenários europeus foram afetados pela febre do patriotismo. “Viva la pátria!” - gritou o coronel Rooke, da Legião Britânica, em seu leito de morte, erguendo o braço amputado.
     A 7 de agosto de 1819, no vale do Boyacá, uma força de 2 mil republicanos confrontou-se com 3 mil realistas numa batalha que decidiu o destino do continente. Cerca de 1600 realistas foram feitos prisioneiros, junto com o general comandante e seu estado-maior. Os ventos da revolução tinham mudado. Bogotá, principal cidade da Nova Granada, recebeu Bolívar com arcos do triunfo e procissões floridas. O Libertador voltou então para Angostura com a notícia de sua campanha vitoriosa. Antes de partir designou o general Francisco de Paula Santander para vice-presidente da Nova Granada, uma decisão que se revelaria fatal.
     Naquele mesmo ano, em Angostura, Bolívar conseguiu o que descrevera como a ambição de sua vida. A 17 de dezembro de 1819, o parlamento venezuelano estabeleceu oficialmente a República da Colômbia, estado composto por Venezuela, Nova Granada e Equador. É verdade que nenhum dos três países estava completamente livre de tropas espanholas, mas os republicanos estavam confiantes e, além disso, a Europa vinha agora em auxílio de Bolívar.
     Após uma revolução liberal na Espanha, o general Morillo, comandante-em-chefe das forças realistas na Venezuela, recebeu instruções de negociar com Bolívar. Morillo espantou-se com a aparência modesta de seu oponente. “Aquele homem pequeno de casaco azul e chapéu de campanha sentado na mula!” - exclamou. “Aquele é Bolívar?” Mas a eloquência do líder republicano conquistou-o. Naquela noite, os dois dormiram no mesmo aposento e separaram-se como irmãos. Após esse encontro - uma das vitórias mais notáveis de Bolívar sobre a Espanha -, Morillo pediu para deixar o comando e voltou para a Europa. O armistício de seis meses durou apenas cinco, pois os republicanos aproveitaram sua força crescente para retomar as hostilidades. A 24 de junho de 1821, ganharam finalmente a batalha pela Venezuela na planície de Carabobo, perto de Valência, e uma vez mais Bolívar entrou vitorioso em Caracas.
     Embora a Venezuela ainda não estivesse em paz, o Libertador estava ansioso para completar seu sonho de uma Colômbia unida com a liberação do Equador, território ao sul de Nova Granada. Já tinha enviado seu melhor general, Antonio José Sucre, para iniciar a campanha. Agora corria a ajudá-lo. No outono de 1821, quase de passagem, aceitou a presidência da Colômbia do recém-reunido Congresso de Cúcuta, na Nova Granada. De novo, fez de Santander seu vice-presidente.

Vestido com o branco dos mártires, o patriota José Olaya é retratado aqui numa pintura a óleo de 1823, ano de sua morte. Olaya, um índio peruano, servia de correio entre as forças republicanas nos Andes e seus colaboradores em Lima, ainda em mãos espanholas. Capturado pelos realistas, Olaya, mesmo sob tortura, não revelou os destinatários das cartas e foi executado. Mas nem todos os indígenas compartilhavam do fervor patriótico de Olaya: a maioria achava que essa luta pela independência não lhes dizia respeito.

     Guayaquil, principal porto do Equador, já tinha declarado sua independência. A capital montanhosa de Quito resistiu ferozmente ao ataque republicano, mas caiu para Sucre em maio de 1822. Enquanto isso, o exército de Bolívar forçara seu caminho para o sul após lutas sangrentas nas passagens dos Andes. Em julho de 1822, o Libertador entrou em Guayaquil e voltou novamente seus olhos para o sul: o Peru.
     A pressa de Bolívar em libertar o Equador era apenas parcialmente motivada pelo amor à liberdade. Ele estava convencido de que a revolução no norte só estaria consolidada quando os espanhóis fossem derrotados no sul. Queria também que Guayaquil, com seus estaleiros e porto natural, ficasse como estado colombiano, sem ser absorvido pelo Peru. E estava com ciúmes do único homem do continente cuja fama ombreava-se com a sua: José de San Martín.

     San Martín era argentino e passara sua juventude na Europa, servindo com distinção ao exército espanhol. Inspirado pelas notícias de rebelião em sua terra, retornara para Buenos Aires em 1812 e oferecera seus serviços aos patriotas do Prata.
     Naquele momento, o país estava em desordem. O vice-rei fora expulso e instalara-se um governo criollo dois anos antes. Com uma sucessão de ditadores de vida curta tentando ganhar apoio de facções regionais, as províncias do Prata estavam difíceis de governar e impossíveis de unir. O Alto Peru continuava realista; o Paraguai repudiara a autoridade externa para se tornar um estado soberano em 1811; e do outro lado do rio da Prata, a província da Banda Oriental - atual Uruguai – lutava pela independência tanto contra Buenos Aires como contra os portugueses do Brasil.
     Para essa terra anárquica San Martín trouxe uma devoção desprendida pela liberdade e um gênio para a organização militar. Seu valor foi logo reconhecido pelo governo, que lhe confiou a missão de proteger o país contra uma invasão espanhola. Tal como Bolívar, San Martín reconhecia que a independência de seu país - declarada oficialmente em 1816 - estaria sempre ameaçada enquanto Chile e Peru continuassem em mãos espanholas. Em consequência, San Martín devotou mais de dois anos equipando e treinando o que descreveu como “um pequeno exército disciplinado", em Mendoza, junto aos Andes. Seu objetivo era impressionantemente simples: atravessar os Andes, libertar o vizinho Chile e depois navegar para o norte a fim de conquistar o Peru.

A arquitetura herdada da Espanha domina a praça da Independência, em Santiago, capital da república chilena, tal como foi representada numa ilustração do Atlas do Chile de Claudio Gay.

     Nessa empreitada audaciosa, San Martín foi ajudado por patriotas chilenos, que tinham fugido para o leste quando as tropas espanholas esmagaram seu desunido exército de independência. Entre eles, destacava-se Bernardo O'Higgins, cujo pai irlandês fora promovido, contra as probabilidades, de comerciante aventureiro a vice-rei do Peru. Em tenra idade, Bernardo encontrara Miranda em Londres e entrara para o campo revolucionário. Como comandante-em-chefe do exército patriota chileno, O'Higgins perdeu decisivamente para os espanhóis em 1814, derrota precipitada pelo ressentimento de outros líderes nacionalistas. Agora, unia-se a San Martín em Mendoza e preparava-se com entusiasmo para libertar sua terra natal.
     Em janeiro de 1817, San Martín e O'Higgins começaram a escalada dos Andes. Do inicio ao fim, toda a operação foi meticulosamente planejada e levada a cabo. Uma força de cerca de 5 mil homens - junto com artilharia, comboios de suprimentos e rebanhos de gado - cruzou essa tremenda barreira natural por quatro desfiladeiros separados, em apenas vinte dias, suportando altitudes de mais de 3 500 metros e depois se reunindo exatamente como planejado no lado chileno das montanhas. Os espanhóis, que tinham recebido informações falsas sobre a tática de San Martín, foram surpreendidos quando esse exército bem-equipado desceu da muralha de rochas e neve que parecia oferecer tanta segurança. A 12 de fevereiro, os patriotas dizimaram um exército realista na planície de Chacabuco e, três dias depois, entraram triunfalmente na capital, Santiago.

Mesmo depois da independência, a mão da Espanha pesava sobre as ex-colônias. Os criollos - como os que aparecem em um baile no Palácio do Governo de Santiago - assumiram o papel da classe dominante espanhola, imitando as roupas, costumes e arquitetura dos europeus.

     Levou mais um ano para que os patriotas liquidassem a resistência espanhola. Então, com O'Higgins de supremo ditador do Chile, San Martín voltou-se para a segunda fase de seu esquema de libertação. Em 1820, sua frota de sete vasos de guerra - comprada, junto com tripulações mercenárias, da Inglaterra e dos Estados Unidos - partiu para o Peru. Menos de um ano depois, San Martín instalava-se em Lima.
     Mas embora tivessem perdido a capital, os espanhóis ainda controlavam as ricas regiões montanhosas do interior. San Martín não tinha ilusões de que poderia submeter o resto do Peru com a mesma facilidade da conquista do Chile. Apesar da insistência de lorde Cochrane, seu almirante britânico, San Martín escolheu evitar o confronto militar. “Quero que todos os homens pensem como eu”, escreveu ele, enfatizando seu desejo de persuadir em vez de coagir a população.
     Não conseguiu nem uma coisa nem outra. Embora muitos peruanos aderissem à causa nacionalista, eles não se uniram sob seu "Protetor", como San Martín chamava a si mesmo. Alguns tinham inveja do poder que aquele estrangeiro assumira; outros, republicanos dedicados, ficaram irados com sua intenção confessa de estabelecer uma monarquia constitucional no Peru. Além disso, sua posição militar estava ficando precária: rompera com a liderança caótica de Buenos Aires, que se opusera a sua campanha no Peru e estava perdendo o apoio de muitos de seus oficiais, que lhe atribuíam ambições ditatoriais. Enquanto isso, o exército espanhol se reagrupara nos Andes. Mas havia uma esperança ao norte: Simon Bolívar estava lutando no Equador. Com a ajuda do exército colombiano, San Martín esperava esmagar os espanhóis e impor a ordem política no Peru. Tal como Bolívar, também estava tentado pelo próspero porto de Guayaquil. “Vou me encontrar com o Libertador da Colômbia”, anunciou ele, e partiu para o norte.
     Os dois homens encontraram-se em Guayaquil a 26 de julho de 1822. Bolívar, que já se declarara ditador da cidade, não estava para fazer concessões ao rival. Na noite seguinte, após outro dia de discussões infrutíferas, San Martín escapuliu de um baile comemorativo e partiu para Lima. Dois meses depois, resignou ao comando supremo e deixou o país. Taciturno e orgulhoso, deu poucas explicações para sua retirada. “Estou cansado de ser chamado de tirano”, disse ele. Morreu em Boulogne, na França, em 1850.
     O caminho estava aberto para Bolívar libertar o Peru. Seria um empreendimento solitário. As forças de San Martín tinham se dissolvido e o almirante Cochrane levara sua frota para o sul, a fim de atacar navios espanhóis por conta própria. Além disso, no Chile, os últimos seis anos tinham mostrado um O'Higgins muito simpático, mas político incapaz. Ele era um igualitarista fervoroso, ansioso para aplicar seus princípios através de um governo forte. “Se não ficarem felizes com seus próprios esforços”, disse ele de seu povo, “devem ficar felizes à força; por Deus, eles têm de ser felizes”. Para tanto, aboliu todos os títulos espanhóis, confiscou terras dos realistas e reformou o sistema tributário para financiar melhoras na educação e nos transportes. Mas seu tipo de despotismo esclarecido não era apreciado por todos. No sul subdesenvolvido, o ressentimento diante dos altos impostos resultou em continuada guerra debilitadora. Além disso, suas reformas enfureceram tanto os terratenentes criollos quanto o clero. Em outubro de 1822, a proposta de O'Higgins de uma constituição que lhe daria poderes virtualmente ditatoriais para a década seguinte foi a gota d'água. No ano seguinte, seus oponentes forçaram-no a renunciar e fugir para o Peru. Nos anos de caos que se seguiram, enquanto uma série de presidentes de curta duração tentava controlar o país desunido, o Chile teve pouco tempo para se preocupar com os eventos do Peru.
     Impávido, Bolívar foi para Lima em agosto de 1823, encontrando o Peru em um estado de desorientação política e colapso militar. ”O país sofre de uma pestilência moral", escreveu ele. Sofria também com os espanhóis: em fevereiro de 1824, quando Bolívar foi nomeado oficialmente ditador do Peru por um governo desesperado, a república só mantinha o controle de uma única província costeira.
     Com a ajuda do general Sucre, Bolívar conseguiu treinar e equipar uma força de quase 10 mil homens e, em junho de 1824, os dois generais partiram para os Andes. Dois meses depois, derrotavam os realistas numa escaramuça na planície de Junín. A vitória parecia próxima, mas em outubro, Bolívar recebeu uma súbita ordem do parlamento colombiano para abandonar o comando. (O vice-presidente Santander, supôs ele, estava por trás desse ato.) Sucre assumiu todo o controle e a 18 de dezembro forçou um confronto decisivo com os realistas em um lugar que levava o nome indígena de Ayacucho - Beco da Morte.
     Essa batalha quebrou a resistência espanhola no Peru. Sucre avançou rapidamente até o Alto Peru, onde derrotou os realistas em abril de 1825. Foi a última batalha que a Espanha travou no continente sul-americano. Em agosto, o Alto Peru declarou sua independência, adotando o nome de Bolívar (mais tarde Bolívia), tendo Sucre como primeiro presidente. Bolívar, que não participara pessoalmente da luta final, chegou em triunfo e subiu o monte Potosí com Sucre para celebrar o final da guerra contra a Espanha. Ela ainda conservava suas possessões no Caribe, mas a libertação da América do Sul estava completa.

     Com o fim da luta pela independência, começava a batalha pela estabilidade do futuro do continente. Desta vez, o Libertador não conseguiria vencer.
     Bolívar assumiu o papel de conselheiro da nova república boliviana, assessorando numa ampla variedade de assuntos, de agricultura e comércio até higiene e criação de lhamas. Para auxiliar no programa educacional, chamou seu velho tutor Simón Rodríguez (logo banido do país devido a seu comportamento sexual desinibido). Mas a principal e mais controvertida contribuição de Bolívar foi a própria constituição, um documento altamente pessoal que refletia sua crescente desilusão com a democracia. Embora garantisse os direitos humanos e abolisse a escravidão, seu texto previa também a criação de um presidente vitalício que teria o poder de designar seu próprio sucessor.
     As eleições, explicou Bolívar, “só produzem anarquia". Sentia-se imensamente orgulhoso da constituição boliviana. Sob sua influência, o Peru adotou-a em 1826 e Bolívar exortou a Colômbia a fazer o mesmo. “Todos vão considerar essa constituição como a arca da aliança", afirmou irrefletidamente. Na opinião de seus oponentes, ela se parecia mais com o bezerro de ouro.
     Chegou então o momento de Bolívar realizar sua ambição maior: uma confederação de todos os estados das Américas do Sul e Central. Todo o continente meridional estava livre do domínio europeu. México e Guatemala - que então abrangia, além do país atual de mesmo nome, El Salvador, Costa Rica, Honduras e Nicarágua - tinham conquistado a independência em 1821. E o Brasil tinha se declarado uma monarquia constitucional, independente de Portugal, no ano seguinte. Bolívar propunha então a formação de uma liga de nações que arbitraria as disputas que ocorressem entre os países, aboliria a discriminação racial e providenciaria a defesa mútua. Para lançar o projeto, convidou delegados de todas as novas nações (e de Inglaterra e Estados Unidos) para uma reunião no Panamá, que acabava de se declarar independente.

  BRASIL: A REVOLUÇÃO PACÍFICA                                                                                                                                                            Foi a circunstância, mais do que o conflito, que deu a independência ao Brasil. Em 1807, quando as forças francesas invadiram Portugal, o príncipe regente dom João e cerca de 2 mil membros da corte fugiram para o Brasil. Recebidos com enlevo, os emigrados logo começaram a transformar a colônia. Um Rio de Janeiro rapidamente reformado tornou-se a capital do império português e os portos brasileiros foram abertos ao comércio mundial.                                         Após a morte de sua mãe em 1815, dom João declarou-se rei de Portugal e Brasil; quatro anos depois, retornou para a Europa, deixando seu filho Pedro como regente. Mas logo ficou claro que o governo de Lisboa estava decidido a fazer o Brasil voltar à condição de colônia. Em 1822, quase sem derramar sangue, o Brasil declarou sua independência e Pedro, retratado acima em trajes de coroação, tornou-se imperador. Seu filho Pedro II, que subiu ao trono em 1831, continuou a dinastia até 1889, quando foi proclamada a república. 

     O congresso resultante de 1826 foi um fracasso que chegou às raias da farsa. Agora que eram independentes, as nações americanas estavam mais preocupadas em resolver seus problemas domésticos do que em iniciar qualquer ação conjunta. Alguns países nem mandaram delegados, outros chegaram tarde demais. O representante dos Estados Unidos morreu em viagem ao Panamá, enquanto o próprio Bolívar ficava no Peru. No fim, apenas quatro países - México, Colômbia, Peru e Guatemala - participaram. Suas resoluções tiveram pouca consequência e, de qualquer forma, foram logo esquecidas diante do tumulto que tomou conta da Colômbia.
     Na longa ausência de Bolívar, pioraram as relações entre Santander e o llanero Páez, agora comandante geral da Venezuela. Com efeito, os venezuelanos estavam em pé de guerra quando Bolívar retornou a Bogotá, no final de 1826. O Libertador apressou-se em resolver as diferenças entre os dois homens, mas mal dera as costas para Lima, e os soldados de Nova Granada que tinham ficado para manter a ordem rebelaram-se contra seus oficiais venezuelanos e voltaram para casa. Os políticos peruanos imediatamente jogaram fora a constituição de Bolívar e devolveram o país ao estado de caos no qual aparentemente eles prosperavam. Os sonhos de unidade do Libertador pareciam cada vez mais distantes.
     Em seus esforços para restaurar a ordem na Colômbia, Bolívar começou a defender soluções ainda mais autoritárias. “Sem força não há virtude", anunciou ele. “Que tenhamos leis inexoráveis". Suas ideias, no entanto, só serviam para distanciá-lo ainda mais dos liberais. Em 1828, o governo constitucional rompeu-se e Bolívar assumiu poderes ditatoriais. No mesmo ano, seu desapontado rival Santander, tendo maquinado um atentado fracassado contra Bolívar, exilou-se.
     Mas a posição do Libertador tornava-se precária. Aferrou-se ao poder por mais um ano e meio, período em que sua popularidade declinou e sua saúde deteriorou-se. O Peru, que já havia expulsado Sucre da Bolívia, invadia agora o Equador. O ataque foi rechaçado, mas a Venezuela de Páez rebelou-se e separou-se da Colômbia. A união de Bolívar esfacelava-se. Enquanto os venezuelanos o repudiavam, políticos e generais de Nova Granada consideravam-no um risco. Os liberais difamavam-no, temerosos ainda de que acabaria assumindo poderes tirânicos.
     Bolívar renunciou à presidência e, a 8 de maio de 1830, deixou Bogotá, decidido a emigrar a fim de fugir do divisionismo debilitador da América do Sul. Mais golpes o esperavam. Antes de chegar à costa, recebeu a notícia de que o Equador declarara sua independência, destruindo assim o último vestígio do sonho colombiano. Depois ficou sabendo que Sucre, o mais leal e capaz de seus generais, fora assassinado numa estrada montanhosa do sul da Colômbia.
     Devastado fisicamente pela tuberculose e mentalmente pelo colapso da obra de sua vida, Bolívar perdeu toda a esperança no continente. Seu último pronunciamento um mês antes de morrer, revelou sua desilusão: “A América é ingovernável. Os que servem à revolução aram o mar. A única coisa a fazer na América é emigrar”.
     Bolívar morreu a 17 de dezembro de 1830, numa quinta perto de Santa Marta, no litoral caribenho de Nova Granada. Doze anos depois, quando finalmente amainou o ódio que o Libertador inspirara na Venezuela, seu corpo foi levado de volta para Caracas e enterrado em sua terra natal.

     Os anos imediatamente posteriores à morte de Bolívar confirmaram sua mensagem final. Os sonhos de cooperação internacional e unidade continental afundaram numa onda de violência e cobiça. Venezuela, Nova Granada - mais tarde rebatizada de Colômbia - e Equador foram convulsionados por guerras civis sangrentas. A Bolívia invadiu o Peru, o Chile entrou em guerra com os dois países. Em vez de constituições, a política da América Latina teve caudilhos. A convicção de Bolívar de que os presidentes deveriam ser vitalícios gerou uma progênie maligna de ditadores.
     A longa e dura estrada da independência não levara à liberdade. Os criollos tomaram o lugar dos peninsulares como classe política dominante, sem abandonar nenhum dos privilégios. As prometidas reformas agrárias deram em nada. Enormes haciendas continuaram a dominar a economia rural, com um pequeno grupo de criollos novos-ricos tomando as propriedades dos peninsulares. Poucos sofreram tanto quanto os índios, cujas terras comunais foram cinicamente absorvidas pela nova elite, sob o pretexto de integrar seus donos tradicionais à república.
     O vácuo econômico criado pela saída da Espanha foi preenchido pela Inglaterra e outras potências europeias, cujos interesses eram igualmente egoístas. Em 1823, os Estados Unidos tinham lançado a doutrina Monroe, uma declaração unilateral que afirmava que qualquer tentativa da Europa de oprimir ou controlar governos independentes do hemisfério ocidental seria considerada um ato de inimizade. A América do Sul, porém, continuava à mercê dos tentáculos mercantis do Velho Mundo. Com efeito, o próprio Bolívar chegara a sugerir ao governo peruano a venda “na Inglaterra de todas suas minas, terras, propriedades e outros bens do governo para cobrir a dívida nacional”. Agora, uma torrente de produtos manufaturados baratos da Europa caía sobre o continente em troca de matérias-primas. Mas enquanto os criollos abastados podiam se dar ao luxo de adquirir bens de consumo dos centros industriais da Grã-Bretanha, os trabalhadores das minas e plantações continuavam a viver na miséria.
     Em toda a América Latina, a sociedade continuou profundamente dividida por distinções de raça e cor. As belas palavras dos abolicionistas foram logo esquecidas. Em países como Argentina, Colômbia, Venezuela e Peru, cujas economias ainda comportavam o trabalho forçado, a escravidão só seria abolida na década de 1850. Outros trabalhadores continuaram a viver em condições de quase escravidão, presos à terra por dívidas ou desesperança.
     Mas as guerras de libertação não foram travadas inteiramente em vão. Os nomes de Boyacá e Ayacucho, Sucre, O'Higgins e San Martín seriam lembrados com admiração reverente, enquanto Simón Bolívar se tornaria um semideus, uma geração após sua morte. Os feitos e ideais do Libertador e seus companheiros revolucionários permaneceram como inspiração para os espíritos rebeldes que viriam no futuro, para quem a visão de um povo latino-americano livre jamais feneceria.




LIBERTAÇÃO DA AMÉRICA LATINA é um capítulo do livro A FORÇA DA INCIATIVA, da coleção HISTÓRIA EM REVISTA,  que trata temas ocorridos entre os anos de 1800/1850.
Os demais capítulos são O IMPÉRIO DE BONAPARTE, A INDÚSTRIA NA GRÃ-BRETANHA, A ABERTURA DA CHINA e O SUL DA ÁFRICA EM DISPUTA.

Editores de TIME-LIFE LIVROS
                  ABRIL LIVROS - Rio de Janeiro

Editor da série: TONY ALLAN
Consultor para este capítulo: JOHN LYNCH,
                                            Professor emérito de História Latino-americana
                                            Universidade de Londres








Um comentário:

  1. só me resta dizer uma constatação ... não tivemos o nosso simon bolivar ... quem sabe foi bom para o brasil ...quem sabe ...

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