sábado, 15 de agosto de 2015

COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI - VIDRO

Nota do Blog: as inter-relações entre tempo e fatos estabelecidas pelo autor e a sua ideia propriamente dita da obrigatória simbiose entre as coisas, poderá ser melhor compreendida se a introdução do livro for lida, o que poderá ser feito em: 
http://adautogmjunior.blogspot.com.br/2015/08/como-chegamos-ate-aqui-introducao.html

     
                    1º CAPITULO - VIDRO

     MAIS OU MENOS 26 milhões de anos atrás, alguma coisa aconteceu sobre as areias do deserto da Líbia, a paisagem árida e incrivelmente seca que marca a margem oriental do deserto do Saara. Não sabemos exatamente o que foi, mas sabemos que era quente. Grãos de sílica derreteram e se fundiram sob um calor intenso, de pelo menos 1.000°. Os compostos de dióxido de silício que formaram têm várias propriedades químicas curiosas. Tal como H2O, eles formam cristais, em seu estado sólido, e derretem em líquido quando aquecidos. No entanto, o dióxido de silício tem um ponto de fusão muito mais elevado que a água; são necessárias temperaturas acima de 260°, em vez de 100°. Mas a coisa realmente peculiar sobre o dióxido de silício é o que acontece quando ele resfria. A água líquida recupera tranquilamente a forma de cristais de gelo se a temperatura baixar de novo. Por alguma razão, contudo, o dióxido de silício é incapaz de se reorganizar novamente na estrutura ordenada do cristal. Em vez disso, ele forma uma nova substância que está num estranho limbo entre o sólido e o líquido, uma substância que tem obcecado os seres humanos desde os primórdios da civilização. Quando esses grãos de areia superaquecidos se resfriam abaixo do seu ponto de fusão, uma vasta extensão de deserto da Líbia fica revestida por uma camada do que nós agora chamamos de vidro.
     Cerca de 10 mil anos atrás, alguém viajando pelo deserto deparou com um grande fragmento desse vidro. Não sabemos mais nada sobre esse fragmento, apenas que deve ter impressionado quase todos que entraram em contato com ele, porque isso foi divulgado pelos mercados e redes sociais da civilização primitiva, até acabar como peça central de um broche esculpido em forma de escaravelho. O besouro ficou ali sem ser perturbado por 4 mil anos, e os arqueólogos revelaram-no em 1922, enquanto exploravam o túmulo de um governante egípcio. Contra todas as probabilidades, essa pequena lasca de dióxido de silício percorreu o caminho desde o deserto da Líbia até a câmara funerária de Tutancâmon.
     O vidro começou a fazer sua transição de ornamento para tecnologia avançada durante o auge do Império Romano, quando fabricantes de vidro descobriram maneiras de tornar o material mais resistente e menos turvo que o vidro forjado naturalmente, como o do escaravelho do faraó Tutancâmon. Durante esse período, pela primeira vez construíram-se janelas de vidro, fixando-se as bases para as cintilantes torres envidraçadas que agora povoam o horizonte das cidades ao redor do mundo. A estética visual de degustação de vinho surgiu quando as pessoas passaram a tomá-lo em recipientes semitransparentes de vidro e a armazená-lo em garrafas do mesmo material. De certa forma, contudo, o início da história do vidro é relativamente previsível: artesãos descobriram como derreter a sílica na forma de vasilhames de bebida ou vidraças, o mesmo tipo de utilização que instintivamente associamos hoje ao material. Só depois do milênio seguinte e da queda de outro grande império o vidro tornou-se o que é agora: um dos materiais mais versáteis e transformadores de toda a cultura humana.

     O SAQUE DE CONSTANTINOPLA, em 1204, foi um daqueles históricos terremotos que ecoam ondas de influência, repercutindo em todo o planeta. Caem dinastias, exércitos surgem e se vão embora, o mapa do mundo é redesenhado. Mas a queda de Constantinopla também desencadeou um evento em aparência menor, perdido em meio a esse vasto reordenamento da dominação geopolítica e religiosa e ignorado pela maioria dos historiadores da época. Uma pequena comunidade de fabricantes de vidro da Turquia navegou para oeste pelo Mediterrâneo e se estabeleceu em Veneza, onde começou a praticar seu comércio na próspera cidade nova, expandindo-se a partir dos pântanos às margens do mar Adriático.

Descobertos por volta de 1900, recipientes de vidro para pomada, da civilização romana, datados dos séculos I e II d.C.

     Essa foi uma entre milhares de migrações postas em movimento pela queda de Constantinopla; todavia, olhando para trás, ao longo dos séculos, foi também uma das mais significativas. À medida que se estabeleciam pelos tortuosos canais e ruas de Veneza, naquela época possivelmente o centro das transações comerciais do mundo, as novas técnicas de soprar o vidro logo criaram uma mercadoria de luxo para os comerciantes da cidade, que começaram a vendê-la ao redor do globo. Contudo, por mais lucrativa que fosse, a vidraçaria também tinha suas desvantagens. O ponto de fusão do dióxido de silício exigia fornos a temperaturas acima de 500°, e Veneza era uma cidade construída quase inteiramente em estruturas de madeira. (A pedra clássica dos palácios venezianos só seria elaborada alguns séculos depois.) Os fabricantes de vidro levaram uma nova fonte de riqueza para Veneza, mas também o hábito menos simpático de incendiar as vizinhanças.
     Em 1291, num esforço duplo para aprimorar as habilidades dos fabricantes de vidro e proteger a segurança pública, a administração da cidade enviou os fabricantes de vidro de novo para o exílio, só que agora a jornada foi curta, de 1,5 quilômetro, até o outro lado da lagoa de Veneza, para a ilha de Murano. Sem saber, os doges venezianos tinham criado um centro de inovação: concentrando os fabricantes de vidro numa única ilha do tamanho de um pequeno bairro da cidade, eles desencadearam uma onda de criatividade, fazendo nascer um ambiente que dispunha do que os economistas chamam de “spillover” de informações. A demografia de Murano fez com que novas ideias passassem a fluir depressa entre a população. Os fabricantes de vidro eram concorrentes, porém suas linhagens familiares estavam fortemente interligadas. Havia mestres no grupo com mais talento ou habilidade que outros, contudo, de maneira geral, a criatividade de Murano era um acontecimento coletivo: algo gerado mais pela troca de informação do que pela pressão competitiva.

Parte do mapa de Veneza no século XV, mostrando a ilha de Murano.

     Nos primeiros anos do século seguinte, Murano já era conhecida como Ilha do Vidro, e seus vasos ornamentados e outras requintadas obras de vidro tornaram-se símbolos de status em toda a Europa Ocidental. (Os fabricantes de vidro continuam seu comércio até hoje, muitos deles descendentes diretos das famílias originais que emigraram da Turquia.) Aquele não era um modelo que pudesse ser replicado diretamente nos tempos modernos. Os administradores que procurassem atrair a classe criativa para suas cidades provavelmente não usariam exílio forçado e fronteiras armadas prontas para aplicar a pena de morte. Mas de alguma forma funcionou. Depois de anos de tentativa e erro, experimentando com diferentes composições químicas, o fabricante Angelo Barovier, de Murano, usou alga marinha, rica em óxido de potássio e manganês, queimou-a para criar cinza e depois adicionou esses ingredientes ao vidro derretido. Quando a mistura resfriou, ele havia criado um tipo de vidro extraordinariamente claro. Perplexo pela semelhança com as mais translúcidas pedras de cristais de quartzo, Barovier chamou-a cristallo. E assim nasceu o vidro moderno.

     EMBORA VIDREIROS como Barovier tenham sido brilhantes em produzir vidro transparente, nós só viemos a entender cientificamente por que o vidro é transparente no século XX. A maioria dos materiais absorve a energia da luz. Num nível subatômico, os elétrons que orbitam os átomos fazem o material “engolir” a energia dos fótons de luz que o penetram, e esses elétrons ganham energia. Mas os elétrons podem ganhar ou perder energia apenas em etapas discretas, conhecidas como “quanta”. O tamanho dessas etapas varia de material para material. Acontece que o dióxido de silício tem etapas muito amplas, e isso significa que a energia de um fóton de luz não é suficiente para levar os elétrons a um nível mais elevado de energia. Por essa razão, a luz passa através do material. (A maioria dos raios ultravioleta, no entanto, tem energia suficiente para ser absorvida, e é por isso que a gente não consegue se bronzear atrás de uma janela de vidro.) Mas a luz não apenas passa através do vidro; ela também pode ser dobrada por ele, distorcida ou até decomposta em seus comprimentos de onda. O vidro pode ser usado para alterar a visão do mundo, dobrando a luz de forma precisa. Isso se mostrou ainda mais revolucionário que a simples transparência.
     Nos mosteiros dos séculos XII e XIII, os monges, curvados sobre manuscritos religiosos em salas iluminadas à luz de velas, recorriam a pedaços de vidro para auxiliar a leitura. Utilizavam volumosas lupas sobre a página para ampliar as inscrições em latim. Ninguém tem certeza exatamente de quando ou onde isso aconteceu, porém, naquela época, em algum lugar no norte da Itália, fabricantes de vidro chegaram com uma inovação que mudaria a forma como vemos o mundo, ou pelo menos deixaria tudo mais nítido: eles moldaram o vidro em pequenos discos com uma curvatura no centro, colocaram cada disco numa moldura e uniram as molduras na parte superior. Tinham criado os primeiros óculos do mundo.
     Os primeiros óculos eram chamados roidi da ogli, ou “discos para os olhos”. Graças à sua semelhança com a lentilha – lens, em latim –, esses discos vieram a se chamar “lentes”. Por várias gerações, os novos e engenhosos dispositivos foram quase exclusivamente da alçada de estudiosos monásticos. A condição de “presbiopia” – não enxergar de perto – era amplamente comum a toda a população, mas a maioria das pessoas não percebia que tinha esse problema simplesmente porque não lia. Para um monge, esforçando-se para traduzir Lucrécio à luz bruxuleante da vela, a necessidade de óculos ficou muito evidente. Mas a população em geral – a maioria analfabeta – quase nunca precisava discernir pequenas letras como as dos nossos formulários em sua rotina diária. As pessoas enxergavam de longe, não tinham nenhuma razão real para perceber que não enxergavam de perto. Por isso, aqueles espetaculares objetos permaneceram raros e caríssimos.

Óculos do século XV

     O que mudou tudo isso, claro, foi a invenção da imprensa por Gutenberg nos anos 1440. É possível encher uma pequena biblioteca com a quantidade de trabalhos acadêmicos publicados para documentar o impacto da imprensa, a criação do que Marshall McLuhan denominou de “a galáxia de Gutenberg”. As taxas de alfabetização subiram significativamente; subversivas teorias científicas e religiosas foram traçadas em torno dos canais oficiais da crença ortodoxa; divertimentos populares, como o romance e a pornografia impressos, tornaram-se lugar-comum. Mas a grande descoberta de Gutenberg teve outro efeito muito menos célebre: fez um número enorme de pessoas tomar consciência, pela primeira vez, de que era presbíope, e essa revelação aumentou a procura de óculos.
     O que se seguiu foi um dos mais extraordinários casos de efeito beija-flor na história moderna. Gutenberg possibilitou a impressão de livros relativamente baratos e portáteis, o que provocou um avanço da alfabetização, expôs uma falha na acuidade visual de parte considerável da população e criou um novo mercado para a fabricação de óculos. Passados cem anos da invenção de Gutenberg, milhares de fabricantes de lentes em toda a Europa prosperavam, e os óculos tornaram-se a primeira peça de tecnologia avançada – desde a invenção da vestimenta, no Neolítico – que pessoas comuns usaram de modo regular em seu corpo.
     Mas a dança coevolucionária não parou por aí. Assim como o néctar das plantas promoveu um novo tipo de voo do beija-flor, o incentivo econômico criado com o surgimento do mercado de óculos engendrou uma nova área de especialização. A Europa não foi apenas inundada por lentes, mas também por ideias sobre lentes. Graças à prensa, de repente o continente foi povoado por pessoas especialistas na manipulação da luz usando pedaços de vidro ligeiramente convexos. Esses foram os hackers da primeira revolução ótica. Suas experiências iriam inaugurar um novo capítulo na história da visão.
     Em 1590, na pequena cidade de Middleburg, nos Países Baixos, Hans e Zacharias Janssen, pai e filho fabricantes de óculos, experimentaram alinhar duas lentes, em vez de colocá-las lado a lado como nos óculos. Eles observaram que os objetos pareciam ampliados, e assim inventaram o microscópio. Setenta anos depois, o cientista britânico Robert Hooke publicaria seu inovador volume ilustrado Micrographia, com esplêndidos desenhos à mão livre, recriando o que tinha visto através do microscópio. Hooke analisou pulgas, madeira, folhas e até sua própria urina congelada. No entanto, sua descoberta mais famosa veio com uma lasca extraída de um fino feixe de cortiça vista através da lente do microscópio. “Eu podia perceber claramente todas as perfurações e poros, muito parecidos com um favo de mel”, escreveu Hooke, “mas vi que esses poros não eram regulares; mesmo assim, não eram diferentes de um favo de mel nessas particularidades. ... Esses poros, ou células, não eram muito profundos, consistiam em um grande número de caixinhas.” Com essa frase, Hooke dava nome a um dos blocos fundamentais da organização da vida, a célula, abrindo caminho para uma revolução na ciência e na medicina. Logo o microscópio revelava as invisíveis colônias de bactérias e vírus que sustentam e ameaçam a vida humana, o que por sua vez levou às modernas vacinas e aos antibióticos.

A pulga (gravura de Micrographia, de Robert Hooke, Londres)

     Demorou quase três gerações para o microscópio produzir uma ciência verdadeiramente transformadora, porém, por algum motivo, o telescópio foi mais rápido em gerar suas revoluções. Vinte anos após a invenção do microscópio, um grupo de fabricantes holandeses de lentes, incluindo Zacharias Janssen, inventou, mais ou menos ao mesmo tempo, o telescópio. (Reza a lenda que um deles, Hans Lippershey, tropeçou na ideia enquanto via os filhos brincando com suas lentes.) Lippershey foi o primeiro a requisitar uma patente, descrevendo um dispositivo “para ver as coisas distantes como se elas estivessem perto”. Em um ano, Galileu encontrou a palavra para o novo dispositivo milagroso e modificou o desenho de Lippershey, chegando a uma ampliação correspondente a dez vezes a visão normal. Em janeiro de 1610, apenas dois anos depois de Lippershey ter arquivado sua patente, Galileu usou o telescópio para observar luas orbitando Júpiter, o primeiro desafio verdadeiro para o paradigma aristotélico de que todos os corpos celestes giravam ao redor da Terra.
     Essa é a estranha história paralela à invenção de Gutenberg, por várias razões muitíssimo associada à revolução científica. Panfletos e tratados de supostos hereges como Galileu fizeram as ideias circular para além dos limites da censura da Igreja, acabando por minar sua autoridade. Ao mesmo tempo, o sistema de citação e referência que evoluiu nas décadas posteriores à Bíblia de Gutenberg tornou-se ferramenta essencial na aplicação do método científico. Mas a criação de Gutenberg acelerou a marcha da ciência de outra maneira, menos conhecida: ela expandiu as possibilidades do desenho de lentes e do próprio vidro. Pela primeira vez, as propriedades físicas peculiares do dióxido de silício não eram utilizadas apenas para vermos as coisas que já enxergávamos com os próprios olhos; agora podíamos ver coisas que transcendiam os limites naturais da visão humana.
     As lentes continuaram a desempenhar papel crucial na mídia dos séculos XIX e XX. Primeiro foram utilizadas por fotógrafos, para focar feixes de luz num papel especialmente tratado que captava imagens; depois pelos cineastas, para registrar e projetar imagens em movimento pela primeira vez. No início da década de 1940, começamos a revestir o vidro com fósforo e nele disparar elétrons, criando as hipnóticas imagens da televisão. Alguns anos depois, sociólogos e teóricos da mídia declararam que nos tornamos uma sociedade “da imagem”, a galáxia alfabetizada de Gutenberg, dando lugar à paixão pelo brilho azul da tela da TV e ao glamour de Hollywood. Essas transformações emergiram de uma vasta gama de inovações e materiais, mas todas elas, de uma maneira ou de outra, dependiam da capacidade única do vidro de transmitir e manipular a luz.

Primeiro microscópio desenhado por Robert Hooke, 1665.

     Na verdade, a história da lente moderna e seu impacto na mídia não é tão surpreendente assim. É possível seguir uma linha intuitiva desde as lentes dos primeiros óculos até a lente do microscópio e à lente da câmera. Mas o vidro viria a apresentar outra bizarra propriedade física, que nem os mestres sopradores de vidro de Murano conseguiram explorar.

     COMO PROFESSOR, parece que o físico Charles Vernon Boys era um fracasso. H.G. Wells, que por breve tempo foi um dos alunos de Boys no Royal College of Science de Londres, descreveu-o mais tarde como “um dos piores professores que já viraram as costas para uma audiência refratária. ... [Ele] mexia no quadro-negro, matraqueava durante uma hora e voltava depressa para o mecanismo [em que estava trabalhando] em sua sala particular”.
     Mas o que faltou a Boys na habilidade em ensinar foi compensado por sua contribuição para a física experimental, pelo projeto e construção de instrumentos científicos. Em 1887, como parte de suas experiências na física, Boys quis criar um caco de vidro muito fino para medir os efeitos das delicadas forças físicas nos objetos. Ele teve a ideia de usar uma fina fibra de vidro como braço de balança. Mas primeiro tinha de criar esse vidro.
     Efeitos beija-flor algumas vezes acontecem quando uma inovação em um campo expõe uma falha em alguma outra tecnologia (ou, no caso do livro impresso, na nossa própria anatomia) que pode ser corrigida somente por outra disciplina, em conjunto. Mas às vezes esse efeito é alcançado graças a um tipo diferente de avanço: um radical progresso da nossa capacidade de medir algo e uma melhoria nas ferramentas que construímos para a medição. Novas maneiras de medir quase sempre implicam novas formas de produção. Foi isso que aconteceu com o braço de balança de Boys. Mas o que o tornou uma figura tão incomum nos anais da inovação foi decididamente a ferramenta pouco ortodoxa que ele usou em busca desse novo dispositivo de medição. Para criar sua delgada fibra de vidro, Boys construiu uma balestra especial em seu laboratório, e criou flechas muito leves (ou parafusos) para a arma. Em cada parafuso ele fixou com lacre a ponta de uma haste de vidro. Depois, aqueceu o vidro até amolecer e disparou o parafuso. Quando era arremessado em direção ao seu destino, o parafuso puxava uma cauda de fibra do vidro fundido ligada à balestra. Em um dos tiros, Boys produziu uma fibra de vidro de quase 28 metros de comprimento.
     “Se eu tivesse feito um pedido a uma fada para obter alguma coisa que desejasse, teria pedido algo com tantas propriedades valiosas como essas fibras”, escreveria Boys. Mais espantoso, porém, era o quanto a fibra era forte: tão resistente, se não mais, que um fio de aço de tamanho equivalente. Há milhares de anos, os seres humanos vinham utilizando o vidro por sua beleza e transparência, mas tolerando sua fragilidade crônica. No entanto, a experiência com a balestra de Boys sugeriu que havia uma guinada na história desse material surpreendentemente versátil: o uso do vidro pela sua força.
     Em meados do século seguinte, as fibras de vidro, agora associadas a um novo material miraculoso denominado fiberglass, estavam em todos os lugares: no isolamento de casas, em roupas, pranchas de surfe, grandes iates, capacetes e nas placas de circuito que conectam os chips dos computadores modernos. A fuselagem do principal jato da Airbus, o A380 – o maior avião comercial a cruzar os céus – é construída com um composto de alumínio e fibra de vidro, tornando-a muito mais resistente à fadiga e aos danos que as carcaças de alumínio tradicionais. Ironicamente, a maioria dessas aplicações ignorava a estranha capacidade do dióxido de silício para transmitir ondas de luz: não se percebia a olho nu que muitos objetos de fibra de vidro eram feitos de vidro. Durante as primeiras décadas de inovação com a fibra de vidro, a ênfase na não transparência fazia sentido. Era útil permitir que a luz passasse por uma vidraça ou por uma lente. Por que era necessário passá-la através de uma fibra não muito maior que um fio de cabelo humano?

Charles Vernon Boys no laboratório, 1917.

     A transparência das fibras de vidro só se tornou um recurso quando começamos a pensar na luz como uma forma de codificar a informação digital. Em 1970, pesquisadores da Corning Glassworks – a Murano da atualidade – desenvolveram um tipo de vidro tão extraordinariamente claro que um bloco do comprimento de um ônibus feito com esse vidro seria tão transparente quanto uma vidraça. (Hoje, depois de novos aprimoramentos, o bloco pode medir oitocentos metros de comprimento com a mesma transparência). Depois disso, cientistas da Bell Labs dispararam feixes de laser ao longo dessas fibras de vidro supertransparentes, fazendo flutuar sinais óticos que correspondiam aos 0 e 1 do código binário. Esse híbrido de duas invenções que aparentemente não tinham relação – a luz concentrada e ordenada do laser e a hipertransparência da fibra de vidro – veio a ser conhecido como fibra ótica.
     Usar cabos de fibra ótica era bem mais eficiente que enviar sinais elétricos por meio de cabos de cobre, em especial para longas distâncias: a luz permitia maior amplitude de banda, era muito menos suscetível a ruído e interferências que a energia elétrica. Hoje, a espinha dorsal da internet global é construída com cabos de fibra ótica. Aproximadamente dez cabos distintos atravessam o oceano Atlântico, transportando quase todas as comunicações de voz e dados entre os continentes. Cada um desses cabos contém uma coleção de fibras separadas, rodeadas por camadas de aço e isolamento para mantê-las à prova d’água e protegidas de barcos pesqueiros, âncoras e até tubarões. Cada fibra individual é mais fina que um pedaço de palha. Parece impossível, mas o fato é que você pode segurar o conjunto de todas as vozes e tráfego de dados transmitidos entre a América do Norte e a Europa na palma de uma das mãos. Milhares de inovações uniram-se para tornar esse milagre possível. Tivemos de inventar a própria ideia de dados digitais, feixes de laser e computadores nas duas extremidades que pudessem transmitir e receber esses feixes de informações – para não mencionar os navios que assentam e reparam os cabos. No entanto, esses estranhos laços do dióxido de silício, mais uma vez, tornaram-se fundamentais para a história. A world wide web é tecida por filamentos de vidro.
     Pense nesse ato icônico do início do século XXI: você tira uma selfie com seu telefone quando está em férias em algum lugar exótico; em seguida, carrega a imagem no Instagram ou no Twitter, de onde ela será transmitida para telefones de outras pessoas e computadores ao redor do mundo. Estamos acostumados a celebrar as inovações que possibilitaram esse ato quase como se fossem uma segunda natureza para nós: a miniaturização de computadores digitais para dispositivos portáteis, a criação da internet e da web, as interfaces de software de redes sociais. O que raramente fazemos é reconhecer a forma como o vidro suporta essa rede inteira. Podemos tirar fotos usando lentes de vidro, armazená-las e manipulá-las em placas de circuito feitas de fibra de vidro, transmiti-las para o mundo todo através de cabos de vidro e apreciá-las em telas feitas de vidro. É o dióxido de silício do início ao fim da cadeia.

     É FÁCIL FAZER PIADA com nossa propensão a fazer selfies, mas o fato é que existe uma longa e histórica tradição por trás dessa forma de auto expressão. Algumas das mais reverenciadas obras de arte do Renascimento e do início do Modernismo são autorretratos; Leonardo da Vinci e Rembrandt até Van Gogh com sua orelha enfaixada, os pintores se mostram obcecados em captar imagens variadas e detalhadas de si mesmos na tela. Rembrandt, por exemplo, pintou cerca de quarenta autorretratos ao longo de sua vida. Mas uma coisa interessante sobre o autorretrato é que ele efetivamente não existia como convenção artística na Europa antes de 1400. As pessoas pintavam paisagens, a realeza, cenas religiosas e mil outros temas. Mas não pintavam a si mesmas.
     A explosão do interesse por autorretratos foi resultado direto de mais um avanço tecnológico da nossa capacidade de manipular o vidro. Em Murano, os fabricantes de vidro perceberam uma maneira de combinar seus vidros cristalinos com uma inovação na metalurgia, revestindo a parte de trás do vidro com um amálgama de estanho e mercúrio a fim de criar uma superfície brilhante e altamente reflexiva. Pela primeira vez, os espelhos tornaram-se parte da estrutura da vida cotidiana. Isso foi uma revelação no mais íntimo dos níveis: antes do advento dos espelhos, as pessoas comuns passavam a vida sem nunca terem uma representação realmente exata do próprio rosto, mas apenas imagens fragmentárias e distorcidas refletidas em poças de água ou metais polidos.
     Os espelhos pareciam tão mágicos que logo foram integrados a rituais sagrados um tanto bizarros. Durante peregrinações sagradas, tornou-se prática comum para os peregrinos prósperos levar um espelho na viagem. Ao visitar as relíquias sagradas, eles posicionavam-se para que pudessem ver os ossos refletidos nos espelhos. Ao voltar para casa, mostravam esses espelhos para os amigos e parentes, vangloriando-se de que haviam captado o reflexo da cena sagrada. Antes de se concentrar na prensa, Gutenberg teve a ideia de fabricar e vender pequenos espelhos para os peregrinos que partiam em viagem.
     No entanto, o impacto mais significativo do espelho seria secular, e não sagrado. Filippo Brunelleschi usou um espelho para inventar uma perspectiva linear na pintura, desenhando um reflexo do batistério de Florença, em vez de sua percepção direta do prédio. A arte do final do Renascimento é muito marcada por espelhos à espreita dentro das pinturas. A mais famosa é a obra-prima invertida de Diego Velázquez, As meninas, que mostra o artista (e a família real) no processo da pintura do rei Felipe IV e da rainha Mariana da Espanha. Toda a imagem é captada do ponto de vista dos dois personagens reais posando para o retrato; em sentido literal, esse é um quadro sobre o ato de pintar. O rei e a rainha são visíveis apenas num pequeno fragmento da tela, à direita do próprio Velázquez: duas imagens pequenas, embaçadas, refletidas num espelho.
     Como ferramenta, o espelho tornou-se um trunfo inestimável para pintores que agora podiam captar o mundo ao seu redor de modo muito mais realista, inclusive as características detalhadas de seus próprios rostos. Leonardo da Vinci observou o seguinte em seus cadernos (usando espelhos, naturalmente, para escrever de trás para a frente em seu lendário manuscrito):

Quando você quiser ver se o efeito geral de sua pintura corresponde àquele do objeto representado a partir da natureza, pegue um espelho e posicione-o para que ele reflita o objeto real, e então compare o reflexo com sua pintura, e analise cuidadosamente se o objeto das duas imagens está em conformidade um com o outro, estudando especialmente o espelho. O espelho deve ser tomado como um guia.

     O historiador Alan Macfarlane escreve sobre o papel do vidro na formação da visão artística:

É como se todos os seres humanos tivessem algum tipo sistemático de miopia que tornou impossível ver, e particularmente representar, o mundo natural com precisão e clareza. Os seres humanos normalmente viam a natureza simbolicamente, como um conjunto de sinais. ... O vidro, ironicamente, retirou ou compensou o escuro vidro da visão humana e as distorções da mente, deixando, portanto, entrar mais luz.

     No exato momento em que a lente de vidro nos permitiu estender nossa visão até as estrelas ou as células microscópicas, os espelhos de vidro propiciaram que nós nos víssemos pela primeira vez. O espelho colocou em movimento uma reorientação mais sutil da sociedade, mas não menos transformadora que a reorientação do nosso lugar no Universo engendrada pelo telescópio. “O mais poderoso príncipe do mundo criou um vasto salão de espelhos, e o espelho se propagou de um quarto para outro nas casas burguesas”, escreve Lewis Mumford em Technics and Civilization. “A consciência de si mesmo, a introspecção, a conversa com o espelho desenvolveram o novo objeto em si.” As convenções sociais, assim como os direitos de propriedade e outros costumes, começaram a girar em torno do indivíduo, e não de unidades mais antigas e coletivas: a família, a tribo, a cidade, o reino.
     As pessoas passaram a escrever sobre suas vidas interiores com muito mais apuro. Hamlet ruminou no palco; o romance surgiu como forma dominante da narrativa, sondando a vida interior dos personagens com profundidade incomparável. Entrar em um romance, em particular o narrado na primeira pessoa, era uma espécie de truque conceitual: deixava o leitor nadar através da consciência, dos pensamentos e das emoções de outras pessoas de modo mais eficaz que qualquer forma estética já inventada. O romance psicológico, em certo sentido, é o tipo de história que você começa a querer ouvir quando passa algumas horas significativas de sua vida olhando-se no espelho.
     Quanto dessa transformação se deve ao vidro? Duas coisas são inegáveis: o espelho desempenhou um papel direto nisso, permitindo que artistas pintassem a si próprios e inventassem a perspectiva como dispositivo formal. Logo em seguida, uma mudança fundamental ocorreu na consciência dos europeus, orientando-os em torno de si próprios de uma nova maneira, mudança que seria difundida por todo o mundo (e continua se propagando). Sem dúvida, muitas forças convergiram para possibilitar essa mudança. O mundo autocentrado jogou bem com as primeiras formas do capitalismo moderno que prosperou em lugares como Veneza e Holanda (casa dos mestres da pintura introspectiva, Dürer e Rembrandt). Provavelmente essas várias forças complementavam-se. Espelhos de vidro estiveram entre os primeiros mobiliários de alta tecnologia para a casa; uma vez que fixamos o olhar nos espelhos, começamos a nos ver de maneira diferente, de formas que incentivaram os sistemas de mercado, que alegremente passaram a nos vender mais espelhos.
     Não que o espelho tenha causado o Renascimento, porém ele se emparelhou, em uma retroalimentação positiva, com outras forças sociais, e sua capacidade incomum de refletir a luz fortaleceu essas forças. Essa é a perspectiva que o historiador robô nos permite ver: a tecnologia não é a única causa de uma transformação cultural como o Renascimento, mas, em muitos aspectos, é tão importante para a história quanto os homens visionários que convencionalmente homenageamos.
     Macfarlane tem uma maneira engenhosa de descrever esse tipo de relacionamento causal. O espelho não “forçou” o surgimento do Renascimento, mas “permitiu” que ele acontecesse. A elaborada estratégia reprodutiva dos polinizadores não forçou o beija-flor a desenvolver sua espetacular aerodinâmica. Ela criou as condições que permitiram ao beija-flor tirar proveito dos açúcares livres das flores evoluindo esse traço distintivo. O fato de o beija-flor ser tão único no reino aviário sugere que, se as flores não tivessem evoluído sua dança simbiótica com os insetos, a capacidade de pairar do beija-flor jamais teria se desenvolvido. É fácil imaginar um mundo com flores e sem beija-flores. Muito mais difícil é imaginar um mundo sem flores e com beija-flores.
     O mesmo vale para avanços tecnológicos como o espelho. Sem a tecnologia que possibilitou ao homem ver um reflexo claro da realidade, incluindo seu próprio rosto, a constelação específica de ideias na arte, na filosofia e na política do que chamamos de Renascimento teria tido mais dificuldades para se agrupar. (A cultura japonesa valorizou muito os espelhos de aço durante mais ou menos o mesmo período, mas nunca os adotou com o mesmo uso introspectivo que floresceu na Europa, em parte, talvez, porque o aço reflete muito menos luz que os espelhos de vidro, além de adicionar uma coloração artificial à imagem.) Mas o espelho não estava ditando com exclusividade os termos da revolução europeia em sua sociedade do eu.
     Uma cultura diferente, que inventasse o fino espelho de vidro em um momento diferente do seu desenvolvimento histórico, poderia não ter experimentado a mesma revolução intelectual, pois o restante da sua ordem social diferia daquilo que era próprio das cidades montanhosas da Itália no século XV. O Renascimento também se beneficiou de um sistema de patrocínio que tornou possível que artistas e cientistas passassem seus dias brincando com espelhos em lugar de, digamos, procurar nozes e frutas silvestres. Um Renascimento sem os Médici – não a família em si, claro, mas a classe econômica que ela representava – é tão difícil de imaginar quanto o Renascimento sem o espelho.
     Pode-se dizer que as virtudes da sociedade do eu são totalmente discutíveis. Orientar as leis em torno de indivíduos levou diretamente a toda uma tradição de direitos humanos e à preeminência da liberdade individual em códigos legais. Isso deve ser contado como progresso. Mas pessoas razoáveis discordam para saber se nós, agora, não fomos longe demais em direção ao individualismo, distanciando-nos das organizações coletivas: o sindicato, a comunidade, o Estado. Resolver essas divergências requer um conjunto diferente de argumentos – e valores – do que aqueles de que precisamos para explicar de onde esses desentendimentos surgiram. O espelho ajudou a inventar o indivíduo moderno, de uma forma real, porém não quantificável. Deveríamos concordar com isso. Mas se foi uma coisa boa, esta é, afinal, uma questão à parte, que talvez jamais seja resolvida de forma conclusiva.

     O VULCÃO INATIVO de Mauna Kea, no arquipélago do Havaí, eleva-se a mais de 4 mil metros acima do nível do mar, embora a montanha desça outros 6 mil metros para o fundo do oceano, tornando-se significativamente maior que o monte Everest em termos de altura da base até o topo. Ele é um dos poucos lugares no mundo onde você pode subir do nível do mar para 4 mil metros em questão de horas. No cume, a paisagem é estéril, quase marciana, em sua extensão rochosa e sem vida. Uma camada de inversão térmica geralmente mantém as nuvens milhares de metros abaixo do pico do vulcão. O ar é seco e rarefeito. No ponto mais alto do vulcão, você está tão longe dos continentes do planeta quanto na base; isso significa que a atmosfera ao redor do Havaí – não perturbada pela turbulência da energia solar, refletida ou absorvida por abundantes e variadas massas de terra – é tão estável como em qualquer outro lugar no planeta. Todas essas propriedades fazem do pico de Mauna Kea um dos lugares mais sobrenaturais que você pode visitar. Além de ser também um lugar sublime para contemplar as estrelas.
     Hoje, o pico do Mauna Kea é coroado por treze observatórios distintos, abóbadas brancas maciças espalhadas pelas rochas vermelhas como se fossem postos avançados cintilando num planeta distante. Incluídos nesse grupo estão os telescópios gêmeos do Observatório W.M. Keck, os mais poderosos telescópios óticos na Terra. Os telescópios Keck parecem descendentes diretos da criação de Hans Lippershey, só que não dependem de lentes para fazer sua magia. A fim de captar luz dos cantos distantes do Universo, você precisaria de lentes do tamanho de uma caminhonete. Nesse tamanho, fisicamente, o vidro não se sustentaria e causaria distorções inevitáveis para a imagem. Assim, os cientistas e engenheiros que trabalharam no Keck empregaram outra técnica para captar traços extremamente tênues de luz: o espelho.
     Cada telescópio tem 36 espelhos hexagonais que, juntos, formam uma tela reflexiva de seis metros. Essa luz é refletida em um segundo espelho e enviada para um conjunto de instrumentos, no qual as imagens podem ser processadas e visualizadas na tela de um computador. (Não há nenhum ponto de vista no Keck de onde alguém pudesse olhar diretamente por um telescópio de Galileu ou de outros incontáveis astrônomos desde que ele foi construído.) Mas, mesmo na rarefeita e ultra estável atmosfera acima de Mauna Kea, pequenas perturbações podem macular as imagens captadas pelo Keck. Por isso, os observatórios empregam um engenhoso sistema denominado “ótica adaptativa” para corrigir a visão dos telescópios.
     Lasers são lançados à noite para o céu acima do Keck, criando efetivamente uma estrela artificial no firmamento. Essa falsa estrela torna-se uma espécie de ponto de referência. Os cientistas sabem exatamente como o laser seria visto no céu se não houvesse nenhuma distorção atmosférica, e assim eles conseguem medir a distorção ao comparar a imagem “ideal” do laser com o que na verdade os telescópios registram. Guiados por esse mapa dos ruídos atmosféricos, os computadores instruem os espelhos do telescópio a se curvarem ligeiramente, baseados nas exatas distorções ocorridas nos céus de Mauna Kea naquela noite. O efeito é quase o mesmo de colocar óculos numa pessoa míope: de repente objetos distantes ficam significativamente mais claros.

Observatório Keck

     Claro que, para os telescópios Keck, esses objetos distantes são galáxias e supernovas em alguns casos situados a bilhões de anos-luz de distância. Quando olhamos através dos espelhos do Keck, estamos inspecionando minuciosamente um passado distante. Mais uma vez, o vidro ampliou nossa visão, não só para o invisível mundo de células e micróbios, ou da conectividade global do telefone com câmera, mas para um caminho de volta aos primórdios do Universo. O vidro começou como bugigangas e recipientes vazios. Alguns milhares de anos mais tarde, empoleirado acima das nuvens no topo do Mauna Kea, tornou-se uma máquina do tempo.

     A HISTÓRIA DO VIDRO nos lembra como nossa engenhosidade está ao mesmo tempo confinada e fortalecida pelas propriedades físicas dos elementos ao nosso redor. Quando pensamos nos seres que fizeram o mundo moderno, em geral falamos dos grandes visionários da ciência e da política, de invenções revolucionárias ou de grandes movimentos coletivos. Mas há um elemento material na nossa história, não o materialismo dialético praticado pelo marxismo, em que “material” representava a luta de classes e a suprema primazia da explicação econômica. Uma história material no sentido de uma história moldada pelos blocos básicos da estrutura da matéria, que se conectam a coisas como movimentos sociais ou sistemas econômicos.
     Imagine que fosse possível reescrever o big bang (ou brincar de Deus, dependendo de sua metáfora) e criar um Universo que fosse exatamente como o nosso, apenas com uma pequena mudança: os elétrons do átomo de silício não se comportariam da mesma maneira. Nesse Universo alternativo, os elétrons absorvem a luz, como a maioria dos materiais, em vez de deixar os fótons passarem por eles. Esse pequeno ajuste poderia não fazer nenhuma diferença para toda a evolução do Homo sapiens até alguns milhares de anos atrás. Mas então, surpreendentemente, tudo mudou. Os seres humanos começaram a explorar o comportamento quântico desses elétrons de silício de inúmeras formas diferentes.
     Em algum nível fundamental, é impossível imaginar o último milênio sem o vidro transparente. Agora podemos transformar o carbono (na forma composta definida pelo século XX, o plástico) em materiais transparentes duráveis que podem funcionar como vidro, mas essa descoberta tem menos de um século. No entanto, com os elétrons do silício alterados, são eliminados os últimos mil anos de vitrais, óculos, lentes, lâmpadas, tubos de ensaio. (Espelhos de alta qualidade poderiam ter sido inventados usando-se outros materiais reflexivos, embora isso provavelmente demorasse mais alguns séculos.) Um mundo sem vidro transformaria não apenas os edifícios da civilização, removendo todos os vitrais das grandes catedrais e as superfícies lustrosas e reflexivas da paisagem urbana moderna. Um mundo sem vidro atingiria o cerne do progresso moderno: o aumento da expectativa de vida decorrente do entendimento da célula, do vírus e da bactéria; o conhecimento genético do que nos faz humanos; o conhecimento dos astrônomos do nosso lugar no Universo. Nenhum material na Terra foi mais importante que o vidro para esses avanços inovadores.
     Em carta a um amigo sobre o livro de história natural que jamais conseguiu escrever, René Descartes explicou como ele gostaria de contar a história do vidro: “Como essas cinzas, pela mera intensidade (da ação) do calor, transformaram-se em vidro: como essa transmutação de cinzas em vidro pareceu-me tão maravilhosa como qualquer outra natureza, tive especial prazer em descrevê-la.” Descartes estava suficientemente perto da revolução original do vidro para perceber sua magnitude. Hoje, nós estamos a muitos passos de distância da influência do material original para apreciar quão importante o vidro foi e continua a ser para a existência cotidiana.
     Esse é um daqueles lugares que se iluminam por uma abordagem de zoom longo, permitindo-nos ver coisas que teríamos perdido se permanecêssemos concentrados nos suspeitos habituais da narrativa histórica. Invocar os elementos físicos para debater as mudanças históricas não é algo inédito, claro. A maioria de nós aceita a ideia de que o carbono tem desempenhado papel essencial na atividade humana desde a Revolução Industrial. Mas, de certa forma, isso não chega a ser novidade.
     O carbono tem sido essencial para todo organismo vivo desde a sopa primordial. Mas os homens não tinham encontrado muita utilidade para o dióxido de silício até que os fabricantes de vidro começaram a mexer com suas curiosas propriedades, mil anos atrás. Hoje, se você olhar ao seu redor, no recinto onde está no momento, verá que há centenas de objetos ao seu alcance que dependem do dióxido de silício para existir, e, mais ainda, que contêm o próprio silício: a vidraça das janelas ou claraboias, a lente do telefone celular, a tela do computador, tudo com um microchip ou um relógio digital. Se você estivesse distribuindo os papéis de protagonistas da química cotidiana de 10 mil anos atrás, os principais intérpretes seriam os mesmos de hoje: somos fortes usuários de carbono, hidrogênio e oxigênio. Mas é provável que o silício não tivesse recebido nenhum crédito. Embora seja abundante na Terra – mais de 90% da crosta é composta por esse elemento –, o silício não desempenha quase nenhuma função no metabolismo natural das formas de vida no planeta. Nossos corpos dependem do carbono, e muitas das nossas tecnologias (combustíveis fósseis e plásticos) mostram a mesma dependência. Todavia, a necessidade do silício é um desejo moderno.
     A pergunta é: por que demorou tanto tempo? Por que as extraordinárias propriedades dessa substância foram tão ignoradas pela natureza, e por que essas propriedades de repente tornaram-se essenciais para a sociedade humana, começando aproximadamente mil anos atrás? Claro que, para tentar responder a essas questões, só podemos especular. Mas a resposta decerto tem a ver com outra tecnologia: a fornalha. Uma das razões de a evolução não encontrar muito uso para o dióxido de silício é que a maioria das coisas realmente interessantes sobre a substância só aparece depois de atingir mais de 500°. A água líquida e o carbono fazem coisas maravilhosas e inventivas com a temperatura da atmosfera terrestre, mas é difícil ver as possibilidades do dióxido de silício antes de ele ser derretido, e o ambiente da Terra – pelo menos na superfície do planeta – simplesmente não é tão quente. Esse foi o efeito beija-flor desencadeado pela fornalha: ao aprender a gerar calor extremo em ambiente controlado, desvendamos o potencial molecular do dióxido de silício, que logo transformou a forma como vemos o mundo e a nós mesmos.
     De uma maneira estranha, o vidro estava tentando ampliar nossa visão do Universo desde os primórdios, muito antes de sermos inteligentes o suficiente para notar. Os fragmentos de vidro do deserto da Líbia que foram parar na tumba do faraó Tutancâmon intrigaram igualmente arqueólogos, geólogos e astrofísicos durante décadas. As moléculas semilíquidas do dióxido de silício indicavam que tinham se formado em temperaturas que só poderiam ter sido criadas pelo impacto direto de um meteoro, mas não havia evidência de uma cratera de impacto em qualquer lugar nas proximidades. Então, de onde vieram essas temperaturas extraordinárias? Um relâmpago pode transmitir calor suficiente para produzir vidro numa pequena quantidade de silício, mas não pode abranger hectares de areia num único impacto.
     A partir daí, os cientistas começaram a explorar a ideia de que o vidro da Líbia surgiu de um cometa que colidiu com a atmosfera da Terra e explodiu sobre as areias do deserto. Em 2013, um geoquímico sul-africano chamado Jan Kramers analisou uma pedra misteriosa do local e determinou que ela havia se originado do núcleo de um cometa, o primeiro objeto desse tipo a ser descoberto na Terra. Cientistas e agências espaciais têm gasto bilhões de dólares à procura de partículas de cometas, porque elas oferecem uma visão minuciosa sobre a formação de sistemas solares. O pedregulho do deserto da Líbia agora lhes dá acesso direto à geoquímica dos cometas. Enquanto isso, o vidro já estava indicando esse caminho.



VIDRO é o primeiro capítulo do livro



COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI
"A história das inovações que fizeram a vida moderna possível"

de STEVEN JOHNSON

editado pela ZAHAR


com tradução de CLAUDIO CARINA

e disponibilizado pela LE LIVROS (http://lelivros.site/)


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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."

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