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4º CAPÍTULO - HIGIENE
EM DEZEMBRO DE 1856, um engenheiro de meia-idade de Chicago chamado Ellis Chesbrough cruzou o Atlântico para apreciar os monumentos do continente europeu. Paris, Hamburgo, Amsterdam e meia dúzia de outras cidades – o clássico Grand Tour. Mas Chesbrough não fez essa peregrinação só para estudar a arquitetura do Louvre ou do Big Ben. Ele foi analisar as invisíveis realizações da engenharia europeia. Estava lá para estudar os esgotos.
Em meados do século XIX, Chicago era uma
cidade com extrema necessidade de conhecimentos sobre a remoção de resíduos.
Graças a sua importância crescente como centro distribuidor, transportando
trigo e carne de porco preservada das grandes planícies para as cidades
costeiras, transformou-se de aldeia em metrópole em questão de décadas. Mas, ao
contrário de outras cidades que cresceram a taxas prodigiosas durante o mesmo
período (como Nova York e Londres), Chicago sofria de um legado incapacitante,
o rastro deixado por geleiras milhares de anos antes que os primeiros seres
humanos se estabelecessem por ali. A cidade tem uma geografia imperdoavelmente
plana.
Durante o Pleistoceno, um vasto campo de
gelo alastrou-se da parte baixa da Groenlândia e cobriu a atual Chicago de
geleiras de mais de dois quilômetros de altura. À medida que o gelo derreteu, formou-se uma
densa massa de água que os geólogos chamam agora de lago Chicago. Com o tempo,
o lago foi drenado até formar o lago Michigan, achatando os depósitos de argila
deixados pelo glaciar. A maioria das cidades goza de um desnível seguro entre
os rios ou portos ao redor dos quais se desenvolveu. Em comparação a elas,
Chicago é uma tábua de passar roupa – e por isso é a grande cidade da região
das planícies americanas.
Construir uma cidade em terreno
perfeitamente plano parece uma boa. Pode-se pensar que terrenos íngremes ou
montanhosos como os de São Francisco, Cidade do Cabo ou Rio de Janeiro
apresentariam mais problemas de engenharia para edificações e transporte. Mas topografias
planas não drenam. Na metade do século XIX, a drenagem pela gravidade era fundamental
para os sistemas de esgotos urbanos. As terras de Chicago também sofreram por não
serem particularmente porosas. Como a água não tinha lugar para ir, as pesadas tempestades
de verão transformavam o solo em região pantanosa em questão de minutos.
Quando William Butler Ogden, que mais
tarde se tornaria o primeiro prefeito de Chicago, chegou à cidade encharcada
pela chuva, percebeu que estava “afundando na lama até os joelhos”. Escreveu ao
cunhado, que tinha comprado terras no limite da cidade, numa aposta audaciosa
em seu futuro: “Você foi culpado de um ato de grande insensatez ao fazer [essa]
compra.” No final dos anos 1840, estradas feitas com pranchas de madeira foram
erguidas sobre a lama. Um contemporâneo observou que de vez em quando uma das
pranchas cedia, e “um lodo verde e preto jorrava entre as rachaduras”. O
primeiro sistema de remoção sanitária constava de porcos soltos nas ruas,
devorando o lixo que os seres humanos deixavam para trás.
Com sua rede ferroviária e de
transporte expandindo-se numa velocidade extraordinária, Chicago mais que
triplicou de tamanho durante a década de 1850. Essa taxa de crescimento impôs desafios para os recursos
de habitação e transporte da cidade, mas o maior problema de todos veio de algo
mais escatológico: quando quase 100 mil novos residentes chegam a uma cidade,
eles geram um bocado de excremento. Um editorial local declarou: “Os bueiros
estão com tanta sujeira que até os porcos torcem o nariz com supremo desgosto.”
Nós raramente pensamos sobre isso, mas o crescimento e a vitalidade das cidades
sempre dependeram de nossa capacidade de gerenciar o fluxo dos resíduos humanos
que se intensifica quando as pessoas se aglomeram. Desde os primórdios dos
assentamentos humanos, descobrir onde colocar o excremento tem sido tão
importante quanto descobrir como construir abrigos, praças ou mercados.
O problema é mais grave nas cidades que
passam por um crescimento galopante, como vemos hoje nas favelas e cortiços das
megacidades. A Chicago do século XIX, claro, tinha dejetos humanos e de
animais, pois cavalos e suínos andavam pelas ruas, os bovinos aguardavam o
abate nos currais. (“O rio é realmente vermelho de sangue quando passa sob a
ponte da Rush Street, por baixo da nossa fábrica”, escreveu um empresário. “Que
tipo de pestilência pode resultar disso, eu não sei.”)
Os efeitos de toda essa imundície não eram
apenas ofensivos para os sentidos, eles eram mortais. Epidemias de cólera e
disenteria irrompiam regularmente na década de 1850. Morreram sessenta pessoas
por dia durante o surto de cólera do verão de 1854. As autoridades da época não
entendiam bem a conexão entre os resíduos e a doença. Muitas apoiavam a teoria
do “miasma” então em vigor, alegando que doenças epidêmicas surgiam a partir de
vapores tóxicos, por vezes chamados de “neblinas da morte”, que as pessoas inalavam
em cidades densamente habitadas. A verdadeira rota de transmissão – as
invisíveis bactérias transportadas pela matéria fecal que poluía o suprimento
de água – só se tornaria parte da sabedoria convencional uma década depois.
Enquanto a bacteriologia ainda não estava
bem desenvolvida, as autoridades de Chicago tinham razão em estabelecer uma
conexão essencial entre a limpeza da cidade e o combate às doenças. Em 14 de
fevereiro de 1855, foi criado em Chicago um Conselho de Comissários de Esgotos
para estudar o problema. Seu primeiro ato foi anunciar a busca do “mais
competente engenheiro da época que estivesse disponível para o cargo de
engenheiro-chefe”. Em alguns meses eles encontraram esse homem, Ellis
Chesbrough, filho de um funcionário da estrada de ferro, que havia trabalhado
em projetos para o canal e projetos ferroviários, na época engenheiro-chefe do
Sistema Hidráulico de Boston.
Ellis Chesbrough, Chicago, cerca de 1870 |
Essa foi uma sábia escolha. O conhecimento
de Chesbrough sobre transporte ferroviário e engenharia de canais revelou-se
decisivo na resolução do problema do terreno plano e não poroso de Chicago. A
criação de um patamar artificial e a construção de esgotos no subsolo foram
consideradas saídas muito caras; construir uma galeria muito abaixo da
superfície era um trabalho difícil para os equipamentos do século XIX, e todo o
esquema exigia o bombeamento dos resíduos para a superfície no fim do processo.
Aqui a história pessoal de Chesbrough o
ajudou a encontrar a alternativa, remetendo-o a uma ferramenta que havia visto
quando era um jovem trabalhador na estrada de ferro: o macaco de rosca,
dispositivo usado para levantar dos trilhos locomotivas que pesavam toneladas.
Se não era possível escavar para criar um ângulo adequado de drenagem, por que não
usar macacos de rosca para levantar a cidade?
Auxiliado pelo jovem George Pullman, que
mais tarde faria fortuna com a construção de vagões, Chesbrough lançou um dos
mais ambiciosos projetos de engenharia do século XIX. Edifício por edifício,
Chicago foi suspendida com macacos de rosca por um exército de homens. Enquanto
os macacos levantavam os edifícios centímetro por centímetro, operários cavavam
buracos sob as fundações dos prédios e instalavam grandes caibros de madeira
para apoio, ao mesmo tempo que os pedreiros construíam uma nova base sob a
estrutura. Tubulações de esgoto foram inseridas sob os edifícios, com as
galerias principais passando por baixo das ruas, que foram depois recobertas
por um aterro retirado do rio Chicago, suspendendo toda a cidade quase três
metros em média.
Hoje os turistas que caminham pelos
arredores de Chicago se admiram com a proeza de engenharia exposta no
espetacular horizonte na cidade; o que eles não percebem é que o solo sob seus
pés também é produto de uma engenharia brilhante. (Não admira que, depois de
ter participado de empreendimento tão hercúleo, quando começou a construir a
cidade-modelo fabril de Pullman, em Illinois, algumas décadas mais tarde, o
primeiro passo de George Pullman foi instalar tubulações de água e esgoto antes
de qualquer outra edificação.)
Por incrível que pareça, a vida continuou
mais ou menos inalterada enquanto a equipe de Chesbrough suspendia os edifícios
da cidade. Um visitante britânico viu um hotel de 750 toneladas ser erguido e
descreveu a experiência surrealista numa carta: “As pessoas estavam dentro [do
hotel] o tempo todo, indo e voltando, comendo e dormindo – as atividades do
hotel prosseguiam sem interrupção.” À medida que o projeto avançava, Chesbrough
e sua equipe tornavam-se cada vez mais ousados nas estruturas que tentavam
suspender. Em 1860, os engenheiros ergueram metade de um quarteirão da cidade:
quase 4 mil metros quadrados de prédios de cinco andares, pesando cerca de 35
mil toneladas, foram erguidos por mais de 6mil macacos de rosca. Outras
estruturas tiveram de ser erguidas e transportadas a fim de abrir espaço para
os esgotos: “Nenhum dia se passou durante minha estada na cidade sem que eu
visse uma ou mais casas mudando de lugar”, recordou um visitante. “Um dia,
foram nove. Seguindo pela Great Madison Street de carruagem, tivemos de parar
duas vezes para deixar as casas atravessarem.”
Içamento do Briggs House – hotel de tijolos em Chicago –, cerca de 1857 |
O resultado foi o primeiro sistema de
esgotos aplicável a qualquer cidade americana. Em três décadas, mais de vinte
cidades em todo o país seguiram o exemplo de Chicago, planejando e instalando
suas próprias redes subterrâneas de esgoto. Esses grandes projetos de
engenharia criaram um padrão que viria a definir a metrópole do século XX: a
ideia da cidade como sistema apoiado por uma rede invisível de serviços
subterrâneos. O primeiro trem a vapor percorreu túneis subterrâneos de Londres
em 1863. O metrô de Paris foi inaugurado em 1900, logo seguido pelo metrô de
Nova York. Passarelas para pedestres, autoestradas, fios elétricos e cabos de
fibra ótica formaram uma rede sob as ruas da cidade. Hoje, há um conjunto de
mundos paralelos no subsolo, fornecendo suporte e energia. Agora pensamos
naturalmente nas cidades em termos de horizontes que procuram alcançar o céu. Mas
a grandeza das catedrais urbanas seria impossível sem o mundo oculto abaixo do
solo.
DE TODAS ESSAS CONQUISTAS, mais do que os
trens do metrô e os cabos de internet de alta velocidade, o mais essencial e
mais facilmente esquecido é o pequeno milagre que os sistemas de esgoto
ajudaram a tornar possível: desfrutar um copo de água potável diretamente da torneira.
Apenas 150 anos atrás, em cidades ao redor do mundo, a água potável era uma roleta-russa.
Quando pensamos nos assassinos que marcaram o urbanismo do século XIX, nos lembramos
naturalmente de Jack o Estripador assombrando as ruas de Londres. Mas os verdadeiros
assassinos da cidade vitoriana eram as doenças geradas pela água contaminada.
Esse foi – literalmente – o furo fatal no
plano de Chesbrough para o esgoto de Chicago. Ele concebeu uma estratégia
brilhante para afastar os resíduos das ruas, das latrinas e das adegas da vida
cotidiana, mas quase todos os tubos de esgoto escoavam para o rio Chicago, que deságua
no lago Michigan, a principal fonte de água potável da cidade. No início dos
anos 1870, o abastecimento de água da cidade tornara-se tão terrível que era
normal uma pia ou banheira se encher de peixes mortos, envenenados pela imundície
humana antes de serem captados pelas tubulações de água. Nos meses de verão, segundo
um observador, os peixes “saíam cozidos, e as banheiras podiam ser cheias com o
que os cidadãos mais melindrosos chamavam de sopa”.
O romance The Jungle, de Upton Sinclair, em geral é considerado a obra literária
mais influente na tradição do ativismo político mais radical. Parte da força do
livro vem da crueza explícita de suas palavras, nas imagens da imundície da
Chicago da virada do século em aflitivos detalhes, como em sua descrição do
Bubbly Creek [Ribeirão Ebuliente], um riacho que saía do rio Chicago:
A graxa e os produtos químicos despejados
no rio passam por todos os tipos de transformações estranhas, que são a causa
do seu nome; a água está em constante movimento, como se enormes peixes
estivessem se alimentando, ou grandes leviatãs se divertissem em suas
profundezas. Bolhas de gás carbônico sobem à superfície e estouram, formando
anéis de quase um metro de largura. Aqui e ali, a graxa e a imundície se
solidificaram, e o riacho parece um leito de lava; galinhas andam sobre ele, ciscando,
e muitas vezes um incauto estrangeiro tenta atravessar a pé, desaparecendo
temporariamente.
A experiência de Chicago foi replicada em
todo o mundo: esgotos removiam dejetos humanos dos porões e quintais das
pessoas, mas na maioria das vezes simplesmente eram jogados nas fontes de
suprimento de água potável, diretamente, como no caso de Chicago, ou indiretamente,
pelas chuvas torrenciais. Fazer projetos para galerias de esgoto e tubulações
de água na escala da cidade não era por si só suficiente para a tarefa de
manter a grande cidade limpa e saudável. Nós também precisávamos entender o que
estava acontecendo na escala dos microrganismos. Precisávamos de uma teoria que
ligasse os germes à doença – e precisávamos impedir que esses germes nos
prejudicassem.
Operários trabalham na Metropolitan Line do metrô, sob as obras da estação King’s Cross, em Londres. |
QUANDO SE OLHA para trás, para a reação
inicial da comunidade médica à teoria dos germes, a resposta parece mais que
cômica. A questão foi simplesmente ignorada. É bem conhecida a história do
médico húngaro Ignaz Semmelweis, duramente ridicularizado e criticado pelas
autoridades médicas ao propor pela primeira vez, em 1847, que os médicos e
cirurgiões lavassem as mãos antes de atender os pacientes. (Demorou quase meio
século para que comportamentos antissépticos básicos fossem adotados pela
comunidade médica, muito depois de Semmelweis ter perdido o emprego e morrido
em um asilo de loucos.) Bem menos conhecido é o fato de que Semmelweis baseou
seu argumento inicial em estudos sobre a febre puerperal (ou “de parto”), da
qual as novas mães morrem logo após o parto.
Trabalhando no Hospital Geral de Viena,
Semmelweis deparou com um experimento natural alarmante: o hospital contava com
duas maternidades, uma para atender bem, com a participação de médicos e
estudantes de medicina, e outra para a classe trabalhadora, que recebia os
cuidados de parteiras. Por alguma razão, as taxas de mortalidade por febre
puerperal eram muito mais baixas na ala da classe trabalhadora. Depois de
investigar os dois ambientes, Semmelweis descobriu que os médicos da elite e
seus alunos alternavam-se entre partos e pesquisas em cadáveres no necrotério.
Estava claro que algum tipo de agente infeccioso era transmitido dos cadáveres
para as mães. Com uma simples aplicação de um desinfetante, como limão com
cloro, o ciclo de infecção poderia ser interrompido.
É provável que não haja exemplo mais
surpreendente de quanto as coisas mudaram em nossa compreensão da higiene ao
longo do último século e meio. Semmelweis foi ridicularizado e demitido não só
por se atrever a propor que os médicos lavassem as mãos; ele foi ridicularizado
e demitido por propor que os médicos lavassem as mãos se quisessem fazer partos e dissecar cadáveres na mesma tarde.
Esse é um caso em que nosso senso comum
básico está muito longe do que parecia razoável para nossos antepassados do
século XIX. De muitas maneiras, eles pareciam ser e agir como pessoas modernas:
tomavam trens, agendavam reuniões e comiam em restaurantes. Mas, em algumas
ocasiões, estranhas lacunas se abrem entre nós e eles, não apenas as óbvias
lacunas da sofisticação tecnológica, mas algumas mais sutis e conceituais. No
mundo de hoje, vemos a higiene de uma forma radicalmente diferente. O conceito
de tomar banho, por exemplo, era estranho para a maioria dos europeus e
americanos do século XIX. Você pode pensar que tomar banho era um conceito
estranho simplesmente porque as pessoas não tinham acesso a água corrente e
canalização nem possuíam chuveiros em casa, como a maioria de nós possui hoje
no mundo desenvolvido. Na verdade, a história é muito mais complicada que isso.
Na Europa, desde a Idade Média e durante quase todo o período até o século XX,
o preceito predominante em termos de higiene era que submergir o corpo na água
era uma coisa insalubre, até perigosa. Supostamente, tapar os poros com sujeira
e óleo era uma proteção contra as doenças. “Banho enche a cabeça de vapores”,
aconselhava um médico francês em 1655. “É um inimigo dos nervos e dos
ligamentos, que o banho afrouxa, de tal forma que muitos homens nunca sofrem de
gota a não ser quando tomam banho.”
Podemos ver a força desse preconceito com
mais clareza nas crônicas da realeza durante os anos 1600 e 1700 – em outras
palavras, justamente as pessoas que tinham dinheiro para projetar e construir
salas de banho sem pensar duas vezes. Elizabeth I dava-se ao trabalho de tomar
banho uma vez por mês, e era uma verdadeira aberração em termos de higiene, em
comparação com seus pares. Quando criança, Luís XIII tomou o primeiro banho aos
sete anos. Entrar nu numa piscina cheia d’água não era algo que europeus
civilizados fizessem; era uma tradição bárbara dos balneários do Oriente Médio,
e não da aristocracia de Paris ou de Londres.
Devagar, a partir do início do século XIX,
essa atitude começou a mudar, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos.
Charles Dickens construiu um sofisticado chuveiro de água fria em sua casa em
Londres, e foi um grande defensor das virtudes higiênicas e energéticas de um
banho de chuveiro diário. Um gênero menor de livros de autoajuda e panfletos
ensinava as pessoas a tomar banho, com instruções tão detalhadas que hoje
parecem ensinar alguém a pousar um 747. Na peça Pigmalião, de Bernard Shaw, uma das primeiras atitudes do
professor Higgins na transformação de Eliza Doolittle é colocá-la numa
banheira. (“Você quer que eu entre aí e me molhe toda?”, ela protesta. “Eu não.
Eu não quero morrer.”)
Harriet Beecher Stowe e sua irmã Catharine
Beecher apregoavam uma ablução diária em seu influente manual The American Woman’s Home, publicado em
1869. Reformadores começaram a construir banhos públicos e chuveiros em favelas
urbanas em todo o país. “Nas últimas décadas do século”, escreve a historiadora
Katherine Ashenburg, “a higiene estava
firmemente ligada não só à religiosidade, mas também ao estilo de vida
americano.”
As virtudes da higiene pessoal não eram
evidentes por si sós, da forma como as vemos hoje. Tiveram de ser descobertas e
promovidas, principalmente por meio dos veículos de reforma social e do boca a
boca. Curiosamente, fala-se pouco sobre o sabonete no processo de popularização
do banho no século XIX. Já foi muito difícil convencer as pessoas de que a água
não iria matá-las. (Como veremos, quando o sabonete afinal entrou em voga, no
século XX, seria impelido por outra nova convenção: a publicidade.) Mas os
arraigados defensores dos banhos foram apoiados pela convergência de vários avanços
científicos e tecnológicos importantes. Progressos na infraestrutura pública
possibilitaram que mais pessoas tivessem água encanada nas casas para encher as
banheiras; a água era mais limpa do que décadas antes; e, o mais importante, a
teoria dos germes deixou de ser uma ideia marginal para se tornar consenso
científico.
Esse novo paradigma foi conquistado por
meio de duas linhas paralelas de investigações. Primeiro, houve o trabalho do
detetive epidemiológico John Snow, em Londres, ao mapear as mortes de uma
epidemia no Soho, mostrando pela primeira vez que o cólera era causado por água
contaminada, e não por cheiros miasmáticos. Snow jamais conseguiu ver a
bactéria que provoca o cólera. Era quase impossível ver os organismos com a
tecnologia dos microscópios da época (Snow os chamava de “animálculos”), por
serem muito pequenos. Mas ele conseguiu detectar os organismos indiretamente,
pela distribuição das mortes nas ruas de Londres. A teoria de Snow sobre a
transmissão da doença pela água seria o primeiro golpe decisivo no paradigma do
miasma, apesar de ele não ter vivido para ver o triunfo de sua teoria. Depois
de sua morte prematura, em 1858, The Lancet publicou um obituário conciso, sem
nenhuma referência a seu inovador trabalho epidemiológico. Em 2014, a revista
publicou a “correção” um pouco atrasada de seu obituário, detalhando as contribuições
originais do médico de Londres para a saúde pública.
Cartaz publicado pelo Conselho Central para Educação em Saúde (1927-1969), 1955. |
A síntese moderna que viria substituir a
hipótese do miasma – que doenças como cólera e febre tifoide são causadas não
pelo cheiro, mas por organismos invisíveis que se desenvolvem na água
contaminada – firmou-se afinal, mais uma vez, graças a uma inovação no vidro.
No início dos anos 1870, os artesãos alemães da fábrica de lentes Zeiss
começaram a produzir novos microscópios – dispositivos que, pela primeira vez,
foram construídos a partir de fórmulas matemáticas descrevendo o comportamento
da luz. Essas novas lentes possibilitaram o trabalho microbiológico de
cientistas como Robert Koch, um dos primeiros cientistas a identificar a
bactéria do cólera. (Depois de receber o Prêmio Nobel por seu trabalho, em 1905,
Koch escreveu a Carl Zeiss: “Devo grande parte do meu sucesso a seus excelentes
microscópios.” Como seu grande rival Louis Pasteur, Koch e seus microscópios
ajudaram a desenvolver e a divulgar a teoria dos germes. Do ponto de vista
tecnológico, o grande avanço do século XIX na saúde pública – o conhecimento de
que germes invisíveis podem matar – foi uma espécie de trabalho de equipe envolvendo
mapas e microscópios.
Hoje, Koch é merecidamente famoso pelos
inúmeros microrganismos que identificou com essas lentes Zeiss. Mas sua
pesquisa também levou a uma descoberta secundária, também importante, embora
menos amplamente reconhecida. Koch não apenas viu as bactérias, ele também desenvolveu sofisticadas ferramentas
para medir a densidade de bactérias
em certa quantidade de água. Quando misturou água contaminada com gelatina
transparente, observou o crescimento de colônias de bactérias sobre uma placa
de vidro. Koch estabeleceu uma unidade de medida que podia ser aplicada a
qualquer quantidade de água – se tivesse menos de cem colônias por mililitro,
era considerada segura para beber.
Novas formas de medição criam novas
maneiras de fazer. A capacidade de medir o teor de bactérias permitiu um novo
conjunto de abordagens para enfrentar os desafios da saúde pública. Antes da
adoção dessas unidades de medida, era preciso testar as melhorias de um sistema
de água à maneira antiga: construir um novo esgoto, reservatório ou tubulação,
e esperar para ver se menos pessoas morriam. Mas a capacidade de colher uma
amostra de água e determinar empiricamente se ela estava livre de contaminação
significava que os ciclos de experimentação podiam ser muitíssimo acelerados.
Mapa do cólera no Soho, de John Snow |
Os microscópios e as mensurações logo abriram
uma nova frente na guerra contra os germes. Em vez de combatê-los
indiretamente, afastando os resíduos da água potável, novos produtos químicos
podiam ser usados para atacar diretamente as bactérias. Um dos importantes soldados
nessa segunda frente de combate foi um médico de Nova Jersey chamado John Leal.
Assim como John Snow, Leal era um médico que tratava de pacientes, mas também tinha
um interesse apaixonado por questões mais amplas de saúde pública, em
particular aquelas relativas à contaminação da água. O seu interesse nascera de
uma tragédia pessoal: seu pai tinha sofrido uma lenta e dolorosa morte ao beber
água infestada de bactérias durante a Guerra Civil. A experiência do pai de
Leal na guerra nos fornece um convincente retrato estatístico da ameaça
representada pela água contaminada e outros riscos à saúde durante o período.
Dezenove homens no 144º Regimento morreram em combate, enquanto 178 morreram de
doença durante a guerra.
Leal experimentou muitas técnicas para
matar bactérias, mas no início de 1898 um veneno em particular começou a
despertar seu interesse: o hipoclorito de cálcio, produto químico potencialmente
letal, mais conhecido como cloro, também chamado naquele tempo de “cloreto de
cal”. A química já tinha grande circulação como remédio para a saúde pública.
Casas e bairros que sofriam um surto de febre tifoide ou cólera eram rotineiramente
desinfetados com substâncias químicas, intervenção que não fazia nada para combater
as doenças causadas pela água. Mas a ideia de colocar cloro na água ainda não tinha
sido pensada.
Para os habitantes de todas as cidades dos
Estados Unidos e da Europa, o cheiro forte e acre do cloreto de cal estava
indelevelmente associado a doenças epidêmicas. Decerto não era um cheiro que
alguém gostaria de sentir na água potável. A maioria dos médicos e autoridades
de saúde pública rejeitou o procedimento. Um conhecido químico protestou: “A própria
ideia de desinfecção química é repelente.” No entanto, armado de ferramentas
que lhe permitiam ver os patógenos por trás de doenças como febre tifoide e
disenteria, e medir sua presença global na água, Leal convenceu-se de que o
cloro – na dosagem certa – livraria a água das bactérias de forma mais eficaz
que qualquer outro meio, sem qualquer ameaça para os homens que a bebessem.
Leal acabou conseguindo um emprego na
companhia de fornecimento de água de Jersey City, onde passou a supervisionar 7
bilhões de galões de água potável retirados da bacia do rio Passaic. Esse novo
trabalho preparou o terreno para uma das intervenções mais bizarras e ousadas
da história da saúde pública. Em 1908, a companhia estava atolada em uma prolongada
batalha legal sobre contratos (no valor de centenas de milhões de dólares em
valor atual) referentes a reservatórios e tubulações de abastecimento de água
então recentemente concluídos. O juiz do caso criticou a empresa por não
fornecer uma água “pura e saudável”, e ordenou a construção de dispendiosas
galerias adicionais de esgoto para manter os patógenos longe da água potável da
cidade. Mas Leal sabia que as galerias de esgoto teriam uma eficácia limitada,
principalmente durante grandes tempestades. Por isso, resolveu submeter seus recentes
experimentos com cloro a um teste final.
Em sigilo quase total, sem qualquer
permissão das autoridades governamentais (e sem aviso prévio ao público em
geral), Leal decidiu adicionar cloro aos reservatórios de Jersey City. Com a
ajuda do engenheiro George Warren Fuller, Leal construiu e instalou um “sistema
de alimentação de cloreto de cal” para o reservatório de Boonton, fora de
Jersey City. Aquele foi um risco tremendo, dada a oposição popular à filtragem
química. Mas as decisões do tribunal tinham limitado drasticamente seu
cronograma, e ele sabia que testes de laboratório não fariam sentido para uma
audiência leiga. “Leal não tinha tempo para um estudo-piloto. E sem dúvida não
tinha tempo para construir uma demonstração em escala para testar a nova tecnologia”,
escreveu Michael J. McGuire em seu relato The Chlorine Revolution. “Se o sistema de alimentação do cloreto de cal
perdesse o controle da quantidade do produto químico aplicado, e uma amostra
com alto cloro residual chegasse a Jersey City, Leal saberia que o sucesso do
processo estava comprometido.”
Essa foi a primeira cloração em massa do
abastecimento de água de uma cidade na história. Quando o fato se tornou
público, porém, logo pensaram que Leal era um louco ou uma espécie de
terrorista. Afinal, tomar alguns copos de hipoclorito de cálcio podia ser
letal. No entanto, ele tinha feito muitas experiências, e sabia que quantidades
muito pequenas da mistura eram inofensivas para os seres humanos, ainda que
fatais para muitas formas de bactérias. Três meses depois de sua experiência,
Leal foi chamado a comparecer ao tribunal a fim de defender suas ações. Durante
todo o interrogatório, ele manteve-se firme na defesa de sua descoberta em
saúde pública:
PERGUNTA – Doutor, o senhor pode
mencionar alguns outros lugares do mundo em que essa experiência tenha sido
testada da mesma forma, colocando-se esse pó de branqueamento na água potável
de uma cidade de 200 mil habitantes?
RESPOSTA – De 200 mil habitantes?
Em nenhum lugar no mundo, isso nunca foi testado antes.
PERGUNTA – Isso nunca foi feito?
RESPOSTA – Não nessas condições
ou nessas circunstâncias, mas isso será usado muitas vezes no futuro.
PERGUNTA – Jersey City foi a
primeira cidade?
RESPOSTA – A primeira a lucrar
com isso.
PERGUNTA – Jersey City foi a
primeira a ser usada para provar se sua experiência é boa ou ruim?
RESPOSTA – Não, senhor, a lucrar
com ela. O experimento acabou.
PERGUNTA – O senhor notificou a
cidade de que iria testar esse experimento?
RESPOSTA – Não.
PERGUNTA – O senhor bebe essa
água?
RESPOSTA – Sim, senhor.
PERGUNTA – O senhor chegou a
hesitar em oferecer essa água à sua esposa e à sua família?
RESPOSTA – Eu acredito que seja a
água mais segura no mundo.
No fim, o processo judicial foi resolvido
com uma vitória quase completa de Leal. “Eu vou averiguar e fazer um
relatório”, escreveu o perito especial do caso, “se esse processo é capaz de
tornar a água fornecida a Jersey City pura e saudável, ... e eficaz na remoção
... de perigosos germes da água.” Em poucos anos, os números que validavam a
ousadia de Leal tornaram-se incontestáveis: comunidades como Jersey City, que
tomavam água potável clorada, tiveram reduções radicais nas doenças
transmitidas pela água, como a febre tifoide.
Em certo momento, durante o interrogatório
no julgamento em Jersey, o promotor acusou John Leal de estar interessado em
grandes recompensas financeiras com sua inovação. “E se o experimento acabou
bem”, ironizou, “ora, você ganhou uma fortuna.” Do banco de testemunhas, Leal
interrompeu-o, dando de ombros: “Não sei de onde virá essa fortuna. Para mim
não faz diferença.” 26 Ao contrário de outros, Leal não fez qualquer tentativa
de patentear a técnica de cloração de que fora o pioneiro no reservatório de
Boonton. Sua ideia ficou livre para ser adotada por qualquer empresa de
fornecimento que quisesse abastecer seus clientes com uma água “pura e
saudável”. Livres das restrições de patentes e taxas de licenciamento, logo os
municípios adotavam a cloração como prática-padrão em todos os Estados Unidos,
e depois ao redor do mundo.
Aviso sobre o cólera, 1866. |
Cerca de uma década atrás, dois professores
de Harvard, David Cutler e Grant Miller, verificaram o impacto da cloração (e
de outras técnicas de filtragem da água) entre 1900 e 1930, período em que foi
implantada nos Estados Unidos. Como havia dados extensos sobre as taxas de
doenças, em especial sobre a mortalidade infantil em diferentes comunidades de todo
o país – e como os sistemas de cloração foram lançados de forma escalonada –,
Cutler e Miller conseguiram obter um retrato muito preciso do efeito do cloro
sobre a saúde pública. Eles descobriram que a água limpa e potável reduzia em
43% a mortalidade total de uma cidade americana média. Ainda mais
impressionante, o cloro e os sistemas de filtragem reduziram em 74% a
mortalidade nos primeiros anos de vida, com valor quase idêntico para a redução
da mortalidade infantil.
É importante fazer uma pausa para refletir
sobre o significado desses números, a fim de transportá-los do estéril domínio
das estatísticas de saúde pública para o reino da experiência vivida. Até o
século XX, uma das incertezas de ser pai era enfrentar a alta probabilidade de que
pelo menos um dos filhos morresse em idade precoce. Assim, o que talvez seja a
mais lancinante experiência que podemos enfrentar – a perda de um filho – era um
fato rotineiro da existência. Hoje, no mundo desenvolvido, esse fato tornou-se
raridade. Um dos desafios mais fundamentais do ser humano – manter os filhos
protegidos – reduzia-se drasticamente, em parte por conta de grandes projetos
de engenharia, em parte pela batalha invisível entre compostos de hipoclorito
de cálcio e bactérias microscópicas. As pessoas por trás dessa revolução não
ficaram ricas, poucas se tornaram famosas. Mas, sob muitos aspectos, deixaram uma
marca mais profunda em nossas vidas que os legados de Edison, Rockefeller ou
Henry Ford.
No entanto, a cloração não queria dizer
apenas salvar vidas. Ela também implicou diversão. Depois da Primeira Guerra
Mundial, foram abertos 10 mil banhos e piscinas públicos clorados pelos Estados
Unidos. Aprender a mergulhar tornou-se um rito de passagem. Esses novos espaços
públicos aquáticos foram a vanguarda que desafiou as velhas regras de decência
pública durante o período entre as duas guerras. Antes do surgimento das piscinas
municipais, de maneira geral as mulheres banhavam-se como se estivessem agasalhadas
para um passeio de trenó. Em meados dos anos 1920, elas começaram a expor as pernas
abaixo dos joelhos; alguns anos depois, o vestuário foi adaptado com decotes
maiores. Trajes com abertura atrás, seguidos por maiôs de duas peças, vieram
logo a seguir, na década de 1930. “Coxas, cintura, ombros, barriga, costas e
colo das mulheres só foram publicamente expostos entre 1920 e 1940”, escreveu o
historiador Jeff Wiltse em Contested
Waters, uma história social das piscinas. Podemos avaliar essa
transformação em termos de quantidade de tecido.
Na virada do século, a roupa de banho da
mulher média exigia dez metros de pano para ser fabricada; até o final da
década de 1930, um metro era suficiente. Tendemos a ver os anos 1960 como o
período em que as mudanças de atitudes culturais geraram a mudança mais radical
na moda cotidiana, mas é difícil competir com a velocidade com que o corpo
feminino foi despido no período entre as guerras. É provável que a moda
feminina encontrasse outro caminho para a exposição sem o aumento do número de
piscinas, porém parece improvável que tivesse acontecido tão depressa.
Sem dúvida, expor coxas de banhistas do
sexo feminino não estava na mira de John Leal quando ele despejou cloro no
reservatório de Jersey City. Mas, assim como a asa do beija-flor, uma mudança
num campo desencadeia uma mudança aparentemente não correlata em um diferente
nível de existência: mata-se 1 trilhão de bactérias com hipoclorito de cálcio;
de alguma forma, vinte anos depois, são reinventados comportamentos básicos de
exposição do corpo da mulher. Tal como acontece com tantas mudanças culturais,
não foi a prática de cloração, sozinha, que transformou a moda feminina; muitas
forças sociais e tecnológicas convergiram para diminuir os maiôs, várias
vertentes do feminismo precoce, o olhar fetichista das câmeras de Hollywood,
para não mencionar as estrelas de cinema que usavam maiôs mais reveladores.
Contudo, sem a adoção em massa da natação como atividade de lazer, essa moda teria
se privado de uma de suas principais vitrines. Além disso, essas outras
explicações – por mais pertinentes que sejam – em geral são as que chegam à
imprensa. Pergunte a uma pessoa normal na rua que fatores determinam a moda
feminina, e as respostas irão mencionar Hollywood ou revistas de moda. Quase
ninguém falará do hipoclorito de cálcio.
DURANTE TODO O SÉCULO XIX, a marcha das
tecnologias limpas desenvolveu-se em boa parte no terreno da saúde pública:
grandes projetos de engenharia, sistemas de filtração de água em massa. Mas a
história da higiene no século XX é um assunto muito mais íntimo. Poucos anos após
a arrojada experiência de Leal, cinco empresários de São Francisco investiram
centenas de dólares cada qual para lançar um produto à base de cloro. Vista em
retrospectiva, aquela parecia uma boa ideia, mas as vendas de alvejantes tinham
como objetivo a grande indústria, e elas não se desenvolveram tão rapidamente
quanto os sócios esperavam. No entanto, a esposa de um dos investidores, Annie
Murray, dona de uma loja em Oakland, na Califórnia, teve uma ideia: o cloro
alvejante podia ser um produto revolucionário na casa das pessoas, não só nas fábricas.
Por insistência de Annie, a empresa criou uma versão mais fraca do produto e embalou
em frascos pequenos. Ela estava tão convencida do potencial do produto que distribuiu
amostras grátis para todos os seus clientes da loja. Em alguns meses, aquelas garrafas
vendiam loucamente. Annie Murray não sabia na época, mas estava ajudando a inventar
uma nova indústria. Ela tinha criado o primeiro branqueador comercial doméstico
dos Estados Unidos e a primeira de uma leva de marcas de produtos de limpeza
que se tornaria onipresente no novo século: o Clorox.
Garrafas de Clorox tornaram-se tão comuns
que os recipientes deixados por nossas avós são usados hoje por arqueólogos
para datar escavações em sítios (uma garrafa de cloro alvejante está para o
início do século XX assim como a lança está para a Idade do Ferro, ou a cerâmica
colonial para o século XVIII), quase sempre acompanhada por outros best-sellers
em produtos de higiene doméstica: o sabonete Palmolive, o Listerine e um
desodorante popular chamado Odorono. Produtos de higiene como esses estavam entre
os primeiros a serem anunciados em página inteira de revistas e jornais. Nos
anos 1920, os americanos eram bombardeados por mensagens comerciais tentando convencê-los
de que passariam por humilhações se não fizessem algo a respeito dos germes em
seus corpos ou casas. (A frase “Sempre a dama de honra, nunca a noiva” nasceu
numa propaganda do Listerine de 1925.)
Anúncio de Clorox |
Quando o rádio e a televisão começaram a
contar histórias, foram as empresas de higiene pessoal que mais uma vez abriram
caminho para formas pioneiras de publicidade, uma jogada de marketing
brilhante, que até hoje continua conosco na expressão americana soap opera. Esse é um dos mais estranhos
efeitos beija-flor da cultura contemporânea: a teoria do germe pode ter
reduzido a mortalidade infantil a uma fração dos níveis do século XIX, tornando
a cirurgia e o parto muito mais seguros que nos dias do dr. Semmelweis. Mas
também desempenhou papel crucial na criação da propaganda moderna.
Hoje, a indústria da higiene é estimada em
US$ 80 bilhões. Ao caminharmos por um grande supermercado ou drogaria,
encontramos centenas, se não milhares, de produtos dedicados a livrar nossa
família de germes perigosos: produtos para pias, vasos sanitários, pisos,
talheres, para os dentes e os pés. As lojas são abastecidas por gigantescos
armazéns para a guerra contra as bactérias. Há os que julguem que nossa
obsessão atual por limpeza pode ter ido longe demais. Algumas pesquisas sugerem
que nosso mundo, cada vez mais higienizado, na verdade pode se relacionar a
taxas crescentes de bronquite e alergia, pois agora o sistema imunológico
infantil se desenvolve sem se expor a toda a diversidade de germes.
O CONFLITO ENTRE o homem e a bactéria ao
longo dos últimos dois séculos teve consequências de longo alcance, das
triviais tendências da moda na natação até incrementos existenciais de melhorias
que reduziram as taxas de mortalidade infantil. Nosso crescente conhecimento
das rotas microbianas de doenças possibilitou às cidades atingir limites
máximos de população antes restritos a toda a civilização humana. Até 1800,
nenhuma sociedade tinha construído e mantido uma cidade com mais de 2 milhões
de habitantes. As primeiras cidades a romper essa barreira (Londres e Paris,
seguidas de perto por Nova York) sofreram intensamente com doenças que
irrompiam quando muitas pessoas compartilhavam um pequeno número de imóveis. Em
meados do século XIX, muitos observadores razoáveis da vida urbana se convenceram
de que as cidades não podiam ser construídas nessa escala, que Londres sofreria
um inevitável colapso e se reduziria a um tamanho mais gerenciável, como havia
acontecido com Roma quase 2 mil anos antes. Contudo, a resolução dos problemas
da água limpa e potável e a remoção confiável de resíduos mudaram tudo isso. Cento
e cinquenta anos depois de Ellis Chesbrough realizar sua primeira grande turnê
pelos esgotos da Europa, cidades como Londres e Nova York chegavam a 10 milhões
de habitantes, com uma expectativa de vida e taxas de doenças infecciosas muito
mais baixas que suas antecedentes vitorianas.
Na verdade, o problema agora não são
cidades de 2 milhões ou 10 milhões de habitantes. São megacidades, como Mumbai
ou São Paulo, que em breve chegarão a 30 milhões de seres humanos ou mais,
muitos deles vivendo em comunidades improvisadas – cortiços e favelas –, mais
próximas da Chicago que Chesbrough teve de soerguer que de uma cidade contemporânea
do mundo desenvolvido. Quando se olha apenas para a Chicago ou a Londres de
hoje, a história do último século e meio parece ser de progressos
incontestáveis: a água é mais limpa; as taxas de mortalidade são muito mais
baixas; as doenças epidêmicas quase inexistem. Mas até hoje há mais de 3
bilhões de pessoas no mundo todo que não têm acesso a água potável e a sistemas
básicos de saneamento. Em números absolutos, nós retroagimos como espécie.
(Havia apenas 1 bilhão de pessoas vivas em 1850.) Por isso, a questão que se impõe
é como levar a revolução da higiene para as favelas e não apenas para a
Michigan Avenue.
A suposição convencional é de que essas
comunidades precisam seguir o mesmo caminho cartografado por Snow, Chesbrough,
Leal e todos os outros heróis anônimos da nossa infraestrutura de saúde
pública: elas precisam de sanitários ligados a enormes sistemas de esgoto que
eliminem os resíduos sem contaminar os reservatórios que bombearão a água filtrada,
que chegará às residências por um sistema igualmente complexo. Todavia, cada
vez mais cidadãos dessas novas megacidades – e outros inovadores do
desenvolvimento global – começam a pensar que a história não precisa se
repetir.
Por mais ousado e resoluto que tenha sido,
John Leal jamais teria a oportunidade de clorar a água de Jersey City se
tivesse nascido na geração anterior, simplesmente porque a ciência e a
tecnologia que tornaram possível a cloração não haviam sido inventadas. Os
mapas e as lentes, as substâncias químicas e as unidades de medida que
convergiram na segunda metade do século XIX forneceram a plataforma para seu
experimento. Podemos até dizer, sem sermos injustos, que, se Leal não tivesse
transformado a cloração na prática corrente que ela se tornou, alguém teria
feito o mesmo na década seguinte, se não antes.
Tudo isso leva a uma questão: se novas
ideias e novas tecnologias podem criar novas soluções, assim como a teoria dos
germes e o microscópio geraram a ideia do tratamento químico da água, será que
não surgiram novas ideias desde os tempos de Leal que possam acionar um novo paradigma para manter nossas
cidades limpas, talvez eliminando a fase das grandes obras de engenharia?
Talvez esse paradigma possa ser um indicador que leve a um futuro que todos
estamos destinados a compartilhar. Os países em desenvolvimento conseguiram
superar parte da intrincada infraestrutura de linhas de telefone com fio,
saltando à frente de economias mais “avançadas”, baseando suas comunicações em
conexões sem fio. Será que não se pode fazer o mesmo com os esgotos?
Em 2011, a Fundação Bill e Melinda Gates
anunciou uma disputa para estabelecer uma mudança de paradigma na forma como
pensamos os serviços de saneamento básico. Memoravelmente chamada de “Desafio
para reinventar a privada”, a disputa solicitou projetos para banheiros que não
necessitem de ligação com o esgoto nem de eletricidade, e que custem menos de
US$ 0,5 por usuário, por dia. O vencedor foi um sistema de lavabo do Instituto
de Tecnologia da Califórnia (Caltech) que utiliza células fotovoltaicas para
alimentar um reator eletroquímico, que trata os resíduos humanos, produzindo
água limpa para lavagem ou irrigação e hidrogênio, que pode ser armazenado em
células de combustível. O sistema é inteiramente autossuficiente, dispensa rede
elétrica, tubulação de esgoto ou uma instalação de tratamento. A única
substância que o banheiro exige, além de luz solar e resíduos humanos, é sal de
mesa, que é oxidado para produzir cloro a fim de desinfetar a água.
Essas moléculas de cloro talvez fossem a
única parte desse banheiro que John Leal reconheceria, se pudesse vê-lo hoje.
Isso porque o banheiro se baseia em novas ideias e tecnologias que se tornaram
parte do possível adjacente no século XX, ferramentas que talvez nos permitam
dispensar o caro trabalho intensivo de construção de gigantescos projetos de infraestrutura.
Leal precisou de microscópios, da química e da teoria dos germes para sanear o
abastecimento de água em Jersey City. O banheiro do Caltech precisa de
combustível de células de hidrogênio, painéis solares e chips leves e baratos
de computador para monitorar e regular o sistema.
Ironicamente,
em parte, esses microprocessadores são eles próprios um subproduto da revolução
da limpeza. Os chips de computador são criações fantásticas, intrincadas.
Apesar de, em última análise, serem produto da inteligência humana, seus
detalhes microscópicos são quase impossíveis de compreender. Para medi-los,
precisamos ampliá-los até a escala de micrômetros, ou mícrons, um milionésimo
de metro. A espessura de um cabelo humano é de cerca de uma centena de mícrons.
Uma célula da nossa pele tem cerca de trinta mícrons. A bactéria do cólera tem
cerca de três mícrons de diâmetro. As vias e os transistores por meio das quais
a eletricidade flui em um microchip – transportando aqueles sinais que
representam os 0 e 1 do código binário – podem ser tão pequenos quanto 1⁄10 de
mícron. A fabricação nessa escala requer extraordinárias ferramentas de
robótica e laser; não há microprocessadores artesanais.
Mas as fábricas de chips exigem ainda
outro tipo de tecnologia, que normalmente não associamos ao mundo da alta
tecnologia: elas precisam ser absurdamente limpas. Um grão de poeira doméstica
pousando numa dessas delicadas pastilhas de silício seria comparável ao monte
Everest aterrissando nas ruas de Manhattan.
Ambientes como o da fábrica de chips da
Texas Instruments, nas cercanias de Austin, Texas, estão entre os lugares mais
limpos do planeta. Só para entrar no espaço, você deve vestir um traje
completamente limpo, e cobrir o corpo da cabeça aos pés com materiais estéreis
que não soltem pelos. Há uma estranha inversão nesse processo. Em geral, quando
usamos equipamentos de extrema proteção, é para nos isolar de algum tipo de
ambiente hostil: frio intenso, patógenos, o vácuo do espaço. Nesse recinto imaculado,
o traje é projetado para proteger o espaço de nós. Nós somos o patógeno ameaçando os valiosos recursos dos chips de
computador à espera de nascer, nós, os folículos de cabelo e as camadas de
epiderme e muco que pululam ao nosso redor. Do ponto de vista do microchip,
cada ser humano é um chiqueirinho, uma nuvem de pó e sujeira. Se você se lavar
para entrar nessa sala limpa, não pode nem usar sabonete, pois a maioria tem
fragrâncias que emitem potenciais contaminantes. Até o sabonete é muito sujo
para um recinto imaculado.
Bill Gates inspeciona o trabalho vencedor do “Desafio para reinventar a privada”, em 2011. |
Há uma estranha simetria nesse recinto tão
limpo que nos leva de volta aos pioneiros que lutaram para purificar a água
potável de suas cidades, Ellis Chesbrough, John Snow, John Leal. A produção de
microchips também requer grandes quantidades de água, mas é uma água radicalmente
diferente daquela que bebemos da torneira. Para evitar impurezas, as fábricas
de chips criaram H2O pura, uma água filtrada não só de qualquer contaminação
bacteriana, mas também de todos os minerais, sais e íons aleatórios que compõem
a água filtrada normal. Isenta de todos os “contaminantes” extras, a água
ultrapura, como é chamada, é o solvente ideal para os microchips. A falta
desses elementos, contudo, também torna a água ultrapura impotável para os
seres humanos. Se tomarmos um copo dessa coisa, ela vai sugar minerais do nosso
organismo. Esse é o ciclo completo de limpeza: algumas das ideias brilhantes em
ciência e engenharia do século XIX nos ajudaram a purificar uma água que era
muito suja para beber. E agora, 150 anos depois, criamos uma água limpa demais para ser bebida.
Quando se está num recinto tão limpo, os
pensamentos se voltam naturalmente para os esgotos que se encontram sob as ruas
das nossas cidades, os dois extremos polares da história da higiene. Para
construir o mundo moderno, tivemos de criar um espaço inimaginavelmente repelente,
um rio subterrâneo de imundície, e isolá-lo da vida cotidiana. Ao mesmo tempo, para
fazer a revolução digital, tivemos de criar um ambiente hiperlimpo, e mais uma
vez isolá-lo da vida cotidiana. Como nunca visitamos esses ambientes, eles não
se fixam na nossa consciência. Celebramos as coisas que eles tornaram possíveis
– arranha-céus e computadores cada vez mais poderosos –, mas não os esgotos e
os recintos imaculados. Contudo, os resultados práticos estão em todos os
lugares ao nosso redor.
Interior da Texas Instruments |
COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI
"A história das inovações que fizeram a vida moderna possível"
de STEVEN JOHNSON
com tradução de CLAUDIO CARINA
e disponibilizado pela LE LIVROS (http://lelivros.site/)
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