PARTE I
1. A invenção da
agricultura
“Vi textos de horticultura expressando grande surpresa diante
da maravilhosa habilidade dos jardineiros em produzir tão esplêndidos
resultados a partir de materiais tão deficientes; mas a arte foi simples e, no
que diz respeito ao resultado final, foi seguida de maneira quase inconsciente.
Ela consistiu em sempre cultivar a melhor variedade conhecida, semeando essas
sementes, e, quando uma variedade ligeiramente melhor por acaso aparecia,
selecioná-la, e assim por diante.”
CHARLES DARWIN, A
origem das espécies
Alimentos como
tecnologias
O que representa melhor a
generosidade da natureza que uma espiga de milho? Com uma torção do punho ela é
facilmente arrancada do caule, sem desperdício ou trabalho excessivo. É repleta
de grãos saborosos e nutritivos, maiores e mais numerosos que os de outros
cereais. E é envolvida por uma palha que a protege de pragas e da umidade. O
milho parece um presente da natureza; já vem até embrulhado. Mas as aparências
podem enganar. Um campo cultivado de milho, ou de qualquer outro produto
agrícola, é tão manufaturado ou fabricado pelo homem quanto um microchip, uma
revista ou um míssil. Por mais que gostemos de pensar na agricultura como uma
atividade natural, há 10 mil anos ela era uma estranha inovação. Para
caçadores-coletores da Idade da Pedra, campos cuidadosamente cultivados que se
estendiam até o horizonte seriam uma visão inusitada. O cultivo de terras é um
projeto tão tecnológico quanto biológico. E no grande plano da existência
humana, as tecnologias em questão – as plantações agrícolas – são invenções
muito recentes.
Os ancestrais dos seres humanos modernos
distanciaram-se dos macacos cerca de meio milhão de anos atrás, e seres humanos
“anatomicamente modernos” surgiram há cerca de 150 mil anos. Os seres humanos
primitivos eram caçadores-coletores que subsistiam com plantas coletadas e
animais caçados na natureza. Foi somente nos últimos 11 mil anos, aproximadamente,
que se começou a cultivar alimentos. A agricultura emergiu independentemente em
momentos e lugares diferentes: já estava estabelecida no Oriente Próximo por
volta de 8500 a.C., na China por volta de 7500 a.C. e nas Américas Central e do
Sul por volta de 3500 a.C. Desses três pontos de partida principais, a
tecnologia da agricultura espalhou-se por todo o mundo, para se tornar o mais
importante meio de produção de alimentos da humanidade.
Essa foi uma mudança extraordinária para
uma espécie que dispunha de um estilo de vida nômade, baseado na caça e na
coleta, ao longo de toda a sua existência anterior. Se os 150 mil anos de
existência dos seres humanos modernos fossem transformados em uma hora, somente
nos últimos quatro minutos e meio eles teriam começado a adotar a agricultura,
e ela só teria se tornado o meio dominante de subsistência no último minuto e
meio. A troca operada pela humanidade entre a procura de alimentos e a lavoura,
de um meio natural para um meio tecnológico de produção de alimentos, foi
recente e repentina.
Embora muitos animais coletem e armazenem
sementes e outros gêneros alimentícios, os seres humanos são os únicos a
cultivar deliberadamente produtos agrícolas específicos e a selecionar e
propagar determinadas características desejadas. Como um tecelão, um carpinteiro
ou um ferreiro, um agricultor cria coisas úteis que não estão na natureza. Isso
é feito mediante o uso de plantas e animais modificados ou domesticados para
melhor atender aos objetivos humanos. São criações humanas, ferramentas
cuidadosamente manufaturadas para produzir comida de novas formas e em
quantidades muito maiores do que ocorreria naturalmente. Não é possível
exagerar a importância de seu desenvolvimento, pois eles literalmente tornaram
o mundo moderno possível. Três plantas domesticadas, em particular, provaram-se
extremamente importantes: trigo, arroz e milho. Elas lançaram os alicerces para
a civilização e continuam a sustentar a sociedade humana até hoje.
O milho fornece a melhor demonstração de
que colheitas domesticadas são inquestionavelmente criações humanas. A
distinção entre plantas silvestres e domesticadas não é rígida. De fato, as
plantas se distribuem num continuum:
de inteiramente silvestres, passando por plantas que tiveram algumas
características modificadas para convir aos seres humanos, até aquelas
inteiramente domesticadas, que só podem se reproduzir com ajuda humana. O milho
encaixa-se na última categoria. Ele é o resultado da propagação, pelos seres
humanos, de uma série de mutações genéticas aleatórias que o transformaram de
uma simples erva num estranho e gigantesco mutante que não pode mais sobreviver
na natureza. O milho é descendente do teosinto, um capim silvestre nativo do
que hoje é o México. As duas plantas parecem muito diferentes. De fato, porém,
apenas algumas mutações genéticas foram suficientes para transformar uma na
outra.
Uma diferença óbvia entre o teosinto e o
milho é que as espigas do primeiro consistem de duas fileiras de grãos contidas
em invólucros duros, ou glumas, que protegem a parte comestível no interior. Um
único gene, chamado pelos geneticistas modernos de tga1, controla o tamanho
dessas glumas; uma mutação nesse gene resulta nos grãos expostos. Isso
significa que os grãos têm menor probabilidade de sobreviver à viagem através
do trato digestivo de um animal, pondo as plantas mutantes em desvantagem
reprodutiva em relação às não mutantes, pelo menos na ordem normal das coisas.
Mas os grãos expostos teriam também tornado o teosinto muito mais atraente para
seres humanos coletores, uma vez que não seria necessário remover as glumas
antes do consumo. Ao coletar apenas as plantas mutantes, com grãos expostos, e
depois usar esses grãos como sementes, protoagricultores puderam aumentar a
proporção de plantas com grãos expostos. A mutação do tga1, em suma, tornou
menos provável a sobrevivência do teosinto na natureza, mas tornou-o também
mais atraente para os seres humanos, que propagaram a mutação. (No milho, as
glumas são tão reduzidas que só as notamos quando ficam presas entre nossos
dentes. Elas são o filme sedoso e transparente que envolve cada grão.)
A evolução do teosinto ao protomilho e à espiga moderna. |
Outra diferença óbvia entre o teosinto e o
milho está na estrutura, na arquitetura das duas plantas, que determina a
posição e o número das partes reprodutivas masculina e feminina, as
inflorescências. O teosinto tem uma arquitetura altamente ramificada com
múltiplos caules, cada um com uma inflorescência masculina (o pendão) e várias
inflorescências femininas (os grãos). O milho, no entanto, tem um único caule e
nenhum ramo, um único pendão no topo e espigas muito menos numerosas, mas muito
maiores, a meio caminho do caule, encerradas numa palha folhosa. Em geral, há
apenas uma espiga, mas em algumas variedades pode haver duas ou três. Essa
mudança na estrutura do pé de milho parece ser o resultado de uma mutação num
gene conhecido como tb1. Do ponto de vista da planta, essa mutação é negativa:
torna mais difícil a fertilização, na qual o pólen do tendão deve descer até a
espiga. Do ponto devista dos seres humanos, porém, ela é bastante útil, uma vez
que é muito mais fácil colher um pequeno número de espigas grandes que um
grande número de espigas pequenas. Consequentemente, protoagricultores estavam
mais propensos a colher espigas de plantas com essa mutação. Ao semear esses
grãos, propagaram outra mutação que resultou numa planta inferior, mas num alimento
superior.
As espigas, estando mais perto do solo,
ficam mais próximas da provisão de nutrientes e podem potencialmente ficar
muito maiores. Mais uma vez, a seleção humana guiou esse processo. Quando
colhiam espigas de protomilho, os protoagricultores teriam dado preferência a
plantas com espigas maiores, e grãos dessas plantas teriam sido usados depois como
sementes. Dessa maneira, mutações que resultaram em espigas maiores e com mais grãos
se propagaram, de modo que as espigas cresceram de geração em geração e transformaram-se
em sabugos de milho. Isso pode ser visto claramente em registros arqueológicos:
numa caverna no México foi encontrada uma sequência de sabugos cujo comprimento
variava de 1,20 centímetro a 20 centímetros. Mais uma vez, o mesmo traço que tornou
o milho atraente para seres humanos o tornou menos viável na natureza. Uma
planta com espiga tão grande não pode se propagar de um ano para outro, porque
quando a espiga cai na terra e os grãos germinam, a grande proximidade entre
tantos grãos competindo pelos nutrientes do solo impede que qualquer um deles
se desenvolva. Para que o pé de milho cresça, os grãos devem ser manualmente
separados do sabugo e plantados a uma distância suficiente uns dos outros –
algo que somente seres humanos podem fazer. Em suma, à medida que os grãos de
milho ficaram maiores, a planta foi se tornando inteiramente dependente de seres
humanos para sua sobrevivência.
O que começou como um processo
involuntário de seleção tornou-se finalmente deliberado quando agricultores
primitivos começaram a propagar características desejáveis de propósito. Transferindo
pólen do pendão de uma planta para o cabelo de outra, era possível criar novas variedades
que combinavam os atributos dos antecessores. Era preciso manter as novas variedades
separadas de outras para evitar a perda dos aspectos desejáveis. Análises genéticas
sugerem que um tipo particular de teosinto, chamado teosinto Balsas, tem maior probabilidade
de ter sido o progenitor do milho. Análises adicionais de variedades regionais do
teosinto Balsas sugerem que o milho foi originalmente cultivado no México
central, onde estão hoje os estados de Guerrero, México e Michoacán. A partir
dali, ele se espalhou e se tornou um alimento de primeira necessidade para
povos em todas as Américas: os astecas e os maias do México, os incas do Peru,
e muitas outras tribos e culturas em todas as partes das Américas do Norte, do
Sul e Central.
No entanto, o milho só pôde se tornar um
esteio alimentar com a ajuda de mais uma reviravolta tecnológica, uma vez que é
deficiente dos aminoácidos lisina e triptofano e da vitamina niacina, elementos
essenciais da dieta humana saudável. Quando o milho era apenas mais um gênero
alimentício entre muitos, essas deficiências nutricionais não tinham importância
porque outros alimentos, como vagens e abóbora, as compensavam. Mas uma dieta
com excesso de milho resulta em pelagra, uma doença nutricional caracterizada
por náusea, pele áspera, sensibilidade à luz e demência. (Acredita-se que essa
sensibilidade à luz explica a origem de mitos europeus sobre vampiros, após a
introdução do milho na dieta europeia, no século XVIII.) Felizmente, o milho
pode se tornar seguro se for tratado com hidróxido de cálcio, na forma de cinza
de madeira ou de conchas moídas, acrescentado diretamente à panela de cozimento
ou misturado com água para criar uma solução alcalina em que se deixa o milho
imerso da noite para o dia. Isso tem o efeito de amaciar os grãos e tornar seu
preparo mais fácil, o que provavelmente explica a origem da prática. Esse
processo tem um efeito mais importante, mas menos visível, porque também libera
os aminoácidos e a niacina, que existem no milho numa forma inacessível ou
“presa”, chamada niacitina. Como os grãos assim processados eram chamados de nixtamal
pelos astecas, o processo é conhecido como nixtamalização. Essa prática parece
ter sido desenvolvida muito cedo, já em 1500 a.C.; sem ela, as grandes culturas
das Américas com dietas baseadas no milho nunca poderiam ter se estabelecido.
Tudo isto demonstra que o milho não é, em
absoluto, um alimento que brota naturalmente. Seu desenvolvimento foi
qualificado por um cientista moderno como um dos mais impressionantes feitos de
modificação genética já empreendidos. Trata-se de uma tecnologia complexa, desenvolvida
por seres humanos ao longo de gerações, a tal ponto que o milho se tornou
incapaz de sobreviver por si mesmo, mas pôde fornecer alimento suficiente para
sustentar civilizações inteiras.
A inovação dos cereais
O milho é apenas um dos exemplos
mais extremos. Os dois outros principais alimentos básicos do mundo, que vieram
a sustentar a civilização no Oriente Próximo e na Ásia Oriental são,
respectivamente, o trigo e o arroz. Eles também são resultado de processos
seletivos humanos que propagaram mutações desejáveis para criar gêneros
alimentícios mais convenientes e abundantes. Como o milho, o trigo e o arroz
são cereais, e a diferença fundamental entre suas formas silvestres e
cultivadas é que as variedades domesticadas são “inquebráveis”. Os grãos estão
presos a um eixo central conhecido como raque. À medida que os grãos silvestres
amadurecem, a raque torna-se frágil, de modo que se quebra, se despedaça ao ser
tocada ou soprada pelo vento, espalhando os grãos como sementes. Isso faz
sentido da perspectiva da planta, já que assegura que os grãos só se espalhem
depois de maduros, mas é muito inconveniente do ponto de vista de seres humanos
que desejam colhê-los.
Num pequeno número de plantas, no entanto,
uma única mutação genética garante que a raque não se torne quebradiça, nem
mesmo quando as sementes amadurecem. Isso é chamado de “raque dura”. Essa
mutação é indesejável para as plantas em questão, uma vez que elas são
incapazes de dispersar suas sementes, mas foi muito útil para seres humanos coletores
de grãos silvestres, que, em consequência, provavelmente colheram um número
desproporcional de grãos mutantes de raque dura. Se alguns dos grãos tiverem
sido depois plantados para produzir uma safra no ano seguinte, a mutação terá
se propagado, aumentando a cada ano a proporção de mutantes de raque dura.
Arqueólogos demonstraram em experimentos de campo que foi exatamente isso o que
aconteceu com o trigo. Eles estimam que plantas com raques duras, inquebráveis,
tornaram-se predominantes em cerca de 200 anos – aproximadamente o tempo que
levou a domesticação do trigo, segundo os registros arqueológicos. (No milho, o
sabugo é de fato uma gigantesca raque inquebrável.)
Assim como com o milho, protoagricultores
selecionaram pés para obter traços desejáveis no trigo, no arroz e em outros
cereais durante o processo de domesticação. Uma mutação no trigo faz as glumas
que cobrem cada grão se soltarem mais facilmente, resultando em variedades que
se “autodebulham”. Em consequência, os grãos individuais ficam menos
protegidos, de modo que essa mutação é um mau negócio na natureza, mas muito
útil para agricultores, já que torna mais fácil debulhar os grãos comestíveis
apenas batendo feixes de trigo cortados sobre uma eira. Quando os grãos eram
colhidos do chão, grãos pequenos e aqueles com glumas ainda presas teriam sido
desprezados em favor de grãos maiores e sem glumas, o que ajudou a propagar
essas mutações úteis.
Outro traço comum a muitas plantas
domesticadas é a perda da dormência da semente, o mecanismo temporal natural
que determina quando uma semente germina. Muitas sementes requerem estímulos
específicos, como frio ou luz, antes de começar a germinar, para assegurar que
só o farão em circunstâncias favoráveis. Sementes que permanecem dormentes até
que um período de frio se encerre, por exemplo, não germinarão no outono e
esperarão até que o inverno tenha passado. Agricultores, no entanto, gostariam
que as sementes começassem a germinar assim que fossem plantadas. Dada uma
coleção de sementes, algumas das quais exibem dormência e outras não, é claro
que aquelas que começam a brotar imediatamente têm mais chance de ser colhidas
e assim de formar a base da próxima safra. Portanto, quaisquer mutações que
suprimem a dormência das sementes tenderão a ser propagadas.
De maneira semelhante, cereais silvestres
germinam e amadurecem em momentos diferentes. Isso assegura que, seja qual for
a frequência de chuvas, pelo menos alguns dos grãos vão amadurecer para
fornecer sementes para o ano seguinte. A colheita de todo um campo de grãos no
mesmo dia, contudo, favorece grãos que amadureceram até aquele momento. Grãos
excessivamente ou insuficientemente maduros serão menos viáveis se semeados no
ano seguinte. A intenção é reduzir a variação no tempo de amadurecimento de um ano
para outro, de modo que, finalmente, o campo inteiro amadureça ao mesmo tempo.
Isso não é ideal do ponto de vista da planta, pois significa que, potencialmente,
a safra inteira pode malograr, mas é muito conveniente para os agricultores.
No caso do arroz, a intervenção humana
ajudou a propagar propriedades desejáveis, como pés mais altos e maiores, para
facilitar a colheita, e mais ramos secundários, com grãos maiores, para
aumentar a produção. Por outro lado, a domesticação também tornou o trigo e o arroz
mais dependentes da intervenção humana. O arroz perdeu sua capacidade natural
de sobreviver em áreas alagadas, à medida que foi mimado por agricultores. E
tanto o trigo quanto o arroz tornaram-se menos capazes de se autorreproduzir
por causa das raques inquebráveis selecionadas pelos seres humanos. A
domesticação do trigo, do arroz e do milho, os três principais cereais, e de
seus irmãos menos importantes, a cevada, o centeio, a aveia e o milhete,
encerrou variações em torno do mesmo tema genético conhecido: alimento mais conveniente,
planta menos resistente.
Um processo semelhante ocorreu à medida
que os seres humanos domesticaram animais para fins alimentícios, a começar com
ovelhas e cabras no Oriente Próximo, por volta de 8000 a.C., seguidos por gado
vacum e porcos. (Os porcos foram domesticados de maneira independente na China
mais ou menos ao mesmo tempo, e os frangos foram domesticados no sudeste da
Ásia por volta de 6000 a.C.) A maioria dos animais domesticados tem cérebros menores,
visão e audição menos aguçadas que seus ancestrais silvestres. Isso reduz sua capacidade
de sobreviver na natureza, mas os torna mais dóceis, o que convém aos
agricultores.
Os seres humanos tornaram-se dependentes
de suas novas criações, e vice-versa. Ao fornecer uma provisão de alimentos
mais confiável e abundante, a agricultura tornou-se a base para novos estilos
de vida e sociedades muito mais complexas. Essas culturas basearam-se numa
série de alimentos, mas os mais importantes foram os cereais: trigo e cevada no
Oriente Próximo, arroz e milhete na Ásia, milho nas Américas. As civilizações
que surgiram posteriormente fundadas nessas bases alimentares, inclusive a
nossa, devem sua existência a esses antigos produtos de engenharia genética.
Os centros de origem do milho, do trigo e do arroz domesticados. |
Presente na criação
Essa dívida com o passado é
reconhecida em muitos mitos e lendas, nos quais a criação do mundo e o
nascimento da civilização após um longo período de barbárie estão estreitamente
relacionados com essas culturas vitais. Os astecas do México, por exemplo,
acreditavam que os homens foram criados cinco vezes, cada geração sendo um
melhoramento da anterior. Dizia-se que o teosinto havia sido o principal
alimento do homem na terceira e na quarta criações, até que, finalmente, na
quinta criação, o homem se alimentou com milho. Somente então prosperou, e seus
descendentes povoaram o mundo.
A história da criação dos maias, no sul do
México, narrada no Popul Vuh (ou “livro sagrado”) também envolve repetidas
tentativas de criar a humanidade. A princípio, os deuses moldaram os homens com
barro, mas as criaturas resultantes mal conseguiam enxergar, não podiam se
mover e logo foram dissolvidas pela água. Por isso os deuses tentaram de novo, dessa
vez fazendo os homens com madeira. Essas criaturas podiam andar de quatro e
falar, mas faltavam-lhes sangue e alma, e não honravam os deuses. Os deuses
destruíram esses homens também, de modo que tudo que restou foram alguns
macacos que habitavam em árvores. Finalmente, após muita discussão sobre a
escolha apropriada de ingredientes, os deuses fizeram uma terceira geração de
homens com espigas de milho brancas e amarelas. “Do milho amarelo e do milho
branco eles fizeram sua carne; de pasta de fubá fizeram os braços e as pernas
do homem. Somente pasta de fubá foi usada na carne de nossos primeiros pais, os
quatro homens, que foram criados.” Os maias acreditavam ser descendentes desses
quatro homens e de suas mulheres, criadas logo depois.
O milho figura também na história contada
pelos incas da América do Sul para explicar suas origens: em tempos antigos, as
pessoas em volta do lago Titicaca viviam como animais selvagens. O deus Sol,
Inti, apiedou-se delas e enviou seu filho Manco Capac e sua filha Mama Ocllo,
que eram também marido e mulher, para civilizá-las. Inti deu a Manco Capac um
bastão de ouro com o qual verificaria a fertilidade do solo e sua adequação
para o cultivo do milho. Tendo encontrado um lugar adequado, eles deveriam
fundar um Estado e instruir as pessoas no culto apropriado do deus Sol. As
viagens do casal finalmente os levaram ao vale Cuzco, onde o bastão de ouro
desapareceu na terra. Manco Capac ensinou às pessoas agricultura e irrigação,
Mama Ocllo ensinou-lhes fiação e tecelagem, e o vale tornou-se o centro da
civilização inca. O milho era considerado uma planta sagrada pelos incas,
embora a batata também formasse grande parte de sua dieta.
O arroz também aparece em inúmeros mitos
nos países onde é cultivado. Em mitos chineses, ele aparece para salvar a
humanidade quando ela está à beira da inanição. Segundo uma história, a deusa
Guan Yin apiedou-se dos seres humanos famintos e espremeu seus seios para
produzir leite, que escorreu para as espigas antes vazias dos pés de arroz e se
transformou em grãos. Depois ela apertou com mais força, fazendo uma mistura de
sangue e leite escorrer para alguns pés. Diz-se que isso explica por que existe
arroz nas variedades branca e vermelha. Outro conto chinês fala de um grande
dilúvio, após o qual restaram muito poucos animais para serem caçados. Quando
procuravam comida, as pessoas viram um cão indo em direção a elas com feixes de
sementes compridas e amarelas penduradas na cauda. Elas plantaram as sementes,
que se transformaram em arroz, e saciaram sua fome para sempre. Numa série de
mitos contados na Indonésia e em todas as ilhas da Indochina, o arroz aparece
como uma donzela delicada e virtuosa. A deusa indonésia do arroz, Sri, é a
deusa da terra que protege as pessoas contra a fome. Uma história conta como
Sri foi morta pelos outros deuses para protegê-la do assédio do rei dos deuses,
Batara Guru. Quando seu corpo foi enterrado, brotou arroz de seus olhos e um
arroz grudento cresceu de seu peito. Cheio de remorso, Batara Guru deu essas
plantas para a humanidade cultivar.
O mito da criação do mundo e do surgimento
da civilização contado pelos sumérios, os antigos habitantes do que é hoje o
sul do Iraque, refere-se a um momento, após a criação do mundo por Anu, em que
existiam pessoas, mas a agricultura era desconhecida. Ashnan, a deusa dos
grãos, e Lahar, a deusa das ovelhas, ainda não tinham aparecido; Tagtug, o
patrono dos artesãos, ainda não tinha nascido; e Mirsu, o deus da irrigação, e
Sumugan, o deus do gado, ainda não tinham chegado para ajudar a humanidade. Em
consequência, “os grãos ... e os grãos de cevada para as diletas multidões
ainda não eram conhecidos”. Em vez deles, as pessoas comiam capim e tomavam
água. As deusas dos grãos e dos rebanhos foram então criadas para fornecer
alimento para os deuses, mas por mais que eles comessem, nunca estavam
saciados. Somente com o surgimento de homens civilizados, que lhes faziam
oferendas regulares de alimentos, seus apetites foram finalmente satisfeitos.
Assim, plantas e animais domesticados foram um presente para o homem, mediante
a obrigação de fazer oferendas regulares para os deuses. Esse conto preserva
uma lembrança popular de um tempo anterior à adoção da agricultura, quando os
seres humanos ainda eram caçadores e coletores. De maneira semelhante, um hino
sumério à deusa dos grãos descreve uma era bárbara antes das cidades, campos, currais
de ovelhas e estábulos para o gado bovino – uma era que chegou ao fim quando a
deusa dos grãos inaugurou um novo tempo de civilização.
Explicações contemporâneas sobre a base
genética da domesticação de plantas e animais são, na realidade, apenas a versão
moderna, científica, desses mitos antigos e impressionantemente semelhantes da
criação pelo mundo todo. Hoje, diríamos que o abandono da caça e da coleta, a
domesticação de plantas e animais e a adoção de um estilo de vida sedentário
baseado na agricultura puseram a humanidade no caminho para o mundo moderno, e
que esses primeiros agricultores foram os primeiros seres humanos modernos,
“civilizados”. Reconhecidamente, esta é uma narrativa muito menos pitoresca que
aquelas fornecidas pelos vários mitos da criação, mas, uma vez que a
domesticação de certos cereais fundamentais foi um passo essencial rumo ao
nascimento da civilização, não há dúvida de que esses contos antigos contêm
muito mais que apenas um grão de verdade.
2. As raízes da
modernidade
“Maldita é a terra por tua causa; com sofrimento tu te
alimentarás dela todos os dias da tua vida.”
Gênesis 3:17
Um mistério agrícola
O mecanismo pelo qual plantas e
animais foram domesticados pode ser compreendido, mas isso pouco contribui para
explicar as motivações das pessoas que o fizeram. Por que os seres humanos
trocaram a caça e a coleta pela agricultura é uma das mais antigas, mais
complexas e mais importantes questões na história humana. Isso é curioso porque
a troca deixou as pessoas em condições significativamente piores, de uma
perspectiva nutricional e também em muitos outros aspectos. De fato, um
antropólogo descreveu a adoção da agricultura como “o pior erro na história da
raça humana”.
Ser um caçador-coletor era muito mais
divertido que cultivar a terra. Antropólogos que conviveram com grupos
sobreviventes de caçadores-coletores relatam que, mesmo nas áreas marginais em
que eles são obrigados a viver atualmente, a coleta de alimentos só ocupa uma pequena
parte de seu tempo – muito menos do que seria requerido para produzir a mesma quantidade
de comida por meio da agricultura. Os boxímanes !kung do Kalahari, por exemplo,
gastam normalmente de 12 a 19 horas por semana coletando comida, e os nômades
hazda da Tanzânia gastam menos de 14 horas. Isso deixa muito tempo livre para
atividades de lazer, participação em atividades sociais etc. Quando perguntado
por um antropólogo por que seu povo não havia adotado a agricultura, um
boxímane respondeu: “Por que deveríamos plantar, quando há tantas nozes de
mongongo no mundo?” (Frutos e nozes de mongongo, que constituem cerca da metade
da dieta dos !kung, são colhidos de árvores silvestres e são abundantes mesmo
quando não se faz nenhum esforço para propagá-los.) Na verdade, os caçadores-coletores
trabalham dois dias por semana e têm fins de semana de cinco dias.
O estilo de vida dos caçadores-coletores
nos tempos pré-agrícolas, em ambientes menos marginais, provavelmente era ainda
mais agradável. Costumava-se pensar que a mudança para a agricultura dera às pessoas
mais tempo para se dedicarem a atividades artísticas e ao desenvolvimento de
novos ofícios e tecnologias. A agricultura, nessa visão, teria sido uma libertação
da existência ansiosa e incerta do caçador-coletor. No entanto, o contrário é
que é verdadeiro. A agricultura é mais produtiva no sentido de que produz mais
alimentos por área: um grupo de 25 pessoas pode subsistir por meio da agricultura
em apenas dez hectares, uma área muito menor que os milhares de hectares de que
precisariam para subsistir caçando e coletando. A agricultura é, entretanto,
menos produtiva quando medida pela quantidade de comida produzida por hora de
trabalho; em outras palavras, é um trabalho muito mais árduo.
Certamente esse esforço valeria a pena se
significasse que as pessoas não precisavam mais se preocupar com desnutrição ou
inanição, não é? É o que se poderia pensar. No entanto, os caçadores-coletores
parecem ter sido muito mais saudáveis que os primeiros agricultores. Segundo
evidências arqueológicas, os agricultores tinham maior probabilidade que os caçadores-coletores
de sofrer hipoplasia do esmalte dentário – que causa linhas horizontais características
nos dentes e indica deficiência nutricional. A agricultura proporciona uma
dieta menos variada e menos equilibrada que a caça e a coleta. Os boxímanes
comem cerca de 75 diferentes tipos de plantas silvestres, em vez de depender de
algumas culturas básicas. Os cereais fornecem as calorias necessárias, mas não
contêm a série completa de nutrientes essenciais.
Por isso os agricultores eram mais baixos
que os caçadores-coletores. Isso pode ser determinado a partir de restos
esqueletais, mediante a comparação da idade “dentária” com a idade “esqueletal”
indicada pelo comprimento dos ossos longos. Uma idade esqueletal inferior à
idade dentária é evidência de crescimento tolhido pela desnutrição. Evidências esqueletais
da Grécia e da Turquia sugerem que, no fim da última Era do Gelo, cerca de 14 mil
anos atrás, a altura média dos caçadores-coletores era 1,75 metro para os homens
e 1,65 metro para as mulheres. Em 3000 a.C., após a adoção da agricultura,
essas médias tinham caído para 1,60 metro para os homens e 1,52 metro para as
mulheres. Foi só nos tempos modernos que os seres humanos recuperaram a
estatura dos antigos caçadores-coletores, e somente nas partes mais ricas do
mundo. Os gregos e os turcos modernos ainda são mais baixos que seus ancestrais
da Idade da Pedra.
Além disso, muitas doenças danificam os
ossos de maneiras características, e estudos de esqueletos revelam que
agricultores sofriam de várias doenças por desnutrição, raras ou ausentes entre
caçadores-coletores. Entre elas estão o raquitismo (deficiência de vitamina D),
o escorbuto (deficiência de vitamina C) e a anemia (deficiência de ferro). Os
agricultores eram também mais suscetíveis a doenças infecciosas como lepra,
tuberculose e malária, em decorrência do estilo de vida sedentário. A
dependência de cereais teve outras consequências específicas: os esqueletos
femininos frequentemente exibem evidências de articulações artríticas com
deformidades nos dedos dos pés, joelhos e na parte inferior das costas, todas elas
associadas ao uso diário de um almofariz-pedestal para moer grãos. Restos
dentários mostram que agricultores sofriam de cáries, desconhecidas entre caçadores-coletores,
porque os carboidratos das dietas saturadas de cereais eram metabolizados em
açúcares por enzimas da saliva na mastigação. A expectativa de vida, que pode
igualmente ser determinada a partir de esqueletos, também caiu: evidências do
vale do rio Illinois mostram que a expectativa de vida média caiu de 26 anos
entre caçadores-coletores para 19 entre agricultores.
Em alguns sítios arqueológicos é possível
acompanhar o desenvolvimento da saúde dos caçadores-coletores, que se tornavam
mais sedentários até, por fim, adotarem a agricultura. À medida que os grupos
de agricultores se estabelecem e crescem, a incidência de desnutrição, doenças
parasíticas e doenças infecciosas se eleva. Em outros sítios, é possível
comparar a condição de caçadores-coletores e agricultores vivendo lado a lado.
Os agricultores, sedentários, são invariavelmente menos saudáveis que seus
vizinhos que vagam livremente. Os agricultores tinham de trabalhar muito mais
tempo e mais arduamente para produzir uma dieta menos variada e menos
nutritiva, e eram muitos mais propensos a doenças. Diante de todas essas
desvantagens, por que cargas-d’água as pessoas adotaram a agricultura?
As origens da
agricultura
A resposta imediata é que elas
não compreenderam o que estava acontecendo até ser tarde demais. A mudança da
caça e da coleta para a agricultura foi gradual da perspectiva de agricultores
individuais, embora tenha sido muito rápida no contexto da história humana.
Pois, assim como as plantas formam um continuum
de silvestres a domesticadas, há uma gradação entre ser exclusivamente caçador
e coletor e depender inteiramente de produtos cultivados.
Caçadores-coletores por vezes manipulam
ecossistemas para aumentar a disponibilidade de alimentos, embora tal
comportamento fique muito longe do cultivo deliberado em grande escala que
chamamos de agricultura. O uso do fogo para limpar terras e estimular novo crescimento,
por exemplo, é uma prática que remonta a pelo menos 35 mil anos atrás. Os aborígines
australianos, um dos poucos grupos de caçadores-coletores que sobreviveram aos tempos
modernos, ocasionalmente plantam sementes para aumentar a disponibilidade de alimentos
quando voltam a uma região particular alguns meses depois. Seria um exagero chamar
isso de agricultura, já que esse alimento constitui apenas uma pequena fração
de sua dieta, mas a manipulação deliberada dos ecossistemas significa que eles
tampouco são exclusivamente caçadores-coletores.
A adoção da agricultura parece ter
acontecido à medida que as pessoas se moveram gradualmente ao longo do espectro
entre ser puros caçadores-coletores, passando a recorrer cada vez mais a
alimentos cultivados, até finalmente depender deles. Teorias para explicar essa
mudança são muitas, mas provavelmente não houve uma causa única. Em vez disso, houve
provavelmente uma combinação de fatores, cada um dos quais desempenhou um papel
maior ou menor nos vários territórios em que a agricultura surgiu de maneira
diversa.
Um dos fatores mais importantes parece ter
sido a mudança climática. Estudos do clima antigo, baseados em análise de
núcleos de gelo, amostras de solo de mares profundos e perfis de pólen,
descobriram que entre 18000 a.C. e 9500 a.C. o clima era frio, seco e
extremamente variável, de modo que qualquer tentativa de cultivar ou domesticar
plantas teria fracassado. De modo intrigante, há evidências de pelo menos uma
tentativa de fazê-lo, numa localidade chamada Abu Hureyra, no norte da Síria.
Por volta de 10700 a.C., os habitantes do local parecem ter começado a
domesticar centeio, mas a tentativa malogrou por força de um repentino período
frio conhecido como o Dryas recente, que começou por volta de 10700 a.C. e
durou cerca de 1.200 anos. Depois, por volta de 9500 a.C., o clima tornou-se
subitamente mais quente, mais úmido e mais estável, proporcionando uma condição
necessária, mas não suficiente, para a agricultura. Afinal, se o clima
recentemente estabilizado tivesse sido o único fator a propiciar a adoção da
agricultura, as pessoas a teriam adotado simultaneamente no mundo todo; como
elas não o fizeram, deve ter havido outras forças em ação.
Um desses fatores foi um maior
sedentarismo, à medida que caçadores-coletores em algumas partes do mundo
tornaram-se menos inquietos e começaram a passar a maior parte do ano num único
acampamento, até mesmo se estabelecendo em residências permanentes. Há muitos
exemplos de comunidades aldeãs sedentárias anteriores à agricultura, como
aquelas da cultura natufiana do Oriente Próximo, que floresceu no milênio
anterior ao Dryas recente, e outras no litoral norte do Peru e no noroeste da
América do Norte, na costa do Pacífico. Em todos os casos, essas pequenas
comunidades tornaram-se viáveis graças aos alimentos silvestres locais
abundantes, muitas vezes na forma de peixes ou mariscos. Normalmente, caçadores-coletores
deslocam seus acampamentos para evitar que a oferta de alimentos numa área
específica se esgote, ou para tirar proveito da disponibilidade sazonal de
diferentes alimentos. Mas não há necessidade de se mudar de um lugar para outro
quando o grupo se estabelece perto de um rio e o alimento vem até ele. O
aprimoramento de técnicas de coleta de alimentos no final da Idade da Pedra,
com flechas, redes e anzóis melhores, pode também ter promovido o sedentarismo.
Podendo extrair mais alimentos (como peixes, pequenos roedores ou mariscos) de
seus arredores, um bando de caçadores-coletores não precisava se deslocar
tanto.
O sedentarismo nem sempre levou à
agricultura, e alguns grupos de caçadores-coletores estabelecidos sobreviveram
até os tempos modernos sem jamais adotá-la. É certo, porém, que ele tornou a
mudança para a agricultura mais provável. Caçadores-coletores estabelecidos que
coletavam grãos silvestres, por exemplo, podem ter começado a plantar algumas
sementes para manter a oferta. O plantio poderia também ter se tornado uma
segurança contra variações na oferta de outros alimentos. E, como os grãos são
processados com o uso de moendas cujo transporte de um acampamento para outro
era inconveniente, um maior sedentarismo teria tornado os grãos um gênero
alimentício mais atraente. O fato de os grãos serem ricos em energia e de
poderem ser secados e armazenados por longos períodos também contava a seu
favor. Não eram um gênero alimentício extremamente empolgante, mas podia-se
contar com eles em circunstâncias extremas.
Não é difícil imaginar como
caçadores-coletores sedentários podem ter começado a depender mais intensamente
de cereais em sua dieta. O que no início era um alimento relativamente pouco
importante ganhou espaço pela simples razão de que protoagricultores podiam
assegurar sua disponibilidade (pelo plantio e armazenagem) como não podiam
fazer com outras comidas. Evidências arqueológicas do Oriente Próximo sugerem
que, inicialmente, protoagricultores cultivavam quaisquer cereais silvestres
que estivessem à mão, como trigo einkorn. Mas, à medida que se tornaram mais
dependentes deles, mudaram para itens mais produtivos, como trigo emmer, que
proporciona mais alimento com a mesma quantidade de trabalho.
O crescimento populacional resultante do
sedentarismo também foi sugerido como fator contribuinte para a adoção da
agricultura. Caçadores-coletores nômades têm de carregar tudo consigo quando
deslocam seu acampamento, inclusive bebês. Só quando uma criança começa a andar
sem ajuda, aos três ou quatro anos, sua mãe pode pensar em ter outro filho. Em
comunidades estabelecidas, no entanto, as mulheres não enfrentam esse problema,
e podem portanto ter mais filhos. Com isso, a demanda por alimentos nas
proximidades teria aumentado e poderia ter estimulado o plantio suplementar e,
finalmente, a agricultura. Um problema dessa linha de argumentação, porém, é
que em algumas partes do mundo a densidade populacional parece só ter crescido
de maneira significativa depois da adoção da agricultura, e não antes.
Há muitas outras teorias. Em certos
locais, caçadores-coletores podem ter se voltado para a agricultura quando as
espécies de caça de grande porte que eram suas presas preferidas escassearam. A
agricultura pode ter sido estimulada pela competição social, quando grupos rivais
competiam para promover os banquetes mais suntuosos; isso poderia explicar por
que, em algumas partes do mundo, alimentos de luxo parecem ter sido
domesticados antes de alimentos de primeira necessidade. Ou talvez a inspiração
fosse religiosa, e as pessoas plantassem sementes como um rito de fertilidade
ou para apaziguar os deuses depois de colher grãos silvestres. Já foi sugerido
que a fermentação acidental de cereais e a resultante descoberta da cerveja incentivaram a adoção
da agricultura, no intuito de garantir uma provisão regular.
O importante é que em nenhum momento
alguém tomou uma decisão consciente de adotar um estilo de vida inteiramente
novo. Em cada passo ao longo do caminho, as pessoas simplesmente decidiram pelo
que fazia mais sentido na ocasião: por que ser um nômade quando era possível se
estabelecer junto de uma boa provisão de peixes? Se não fosse possível contar
com fontes de alimentos silvestres, por que não plantar algumas sementes para aumentar
a oferta? A lenta e crescente dependência de alimentos cultivados em que se
viram os protoagricultores tomou a forma de uma mudança gradual, não de uma
reviravolta repentina. Em algum momento, porém, uma fronteira imperceptível foi
atravessada e as pessoas começaram a ficar dependentes da agricultura. A linha
é cruzada quando os recursos alimentares silvestres na área circundante,
plenamente explorados, já não são suficientes para sustentar a população. A
produção deliberada de alimento suplementar por meio da agricultura deixa então
de ser opcional e torna-se compulsória. Nesse ponto, não pode haver retorno a
um estilo de vida nômade, caçador-coletor – pelo menos sem uma perda
significativa de vidas.
Espalharam-se os
agricultores ou espalhou-se a agricultura?
Em seguida, a agricultura propõe
um segundo enigma. Depois que ganhou raízes em algumas partes do mundo, a
questão passa a ser: por que ela se disseminou por praticamente toda parte? Uma
possibilidade é que agricultores tenham se espalhado, deslocando ou exterminando
caçadores-coletores à medida que avançavam. Outra opção é que caçadores coletores
nas margens de áreas agrícolas podem ter decidido seguir o exemplo e tornar-se
eles mesmos agricultores, adotando os métodos, as plantas e os animais
domesticados de seus vizinhos. Essas duas possibilidades são conhecidas como
“difusão dêmica” e “difusão cultural”, respectivamente. Desse modo, foram os
próprios agricultores que se difundiram ou foi apenas a ideia de agricultura
que se difundiu?
A ideia de que os fazendeiros se
espalharam a partir de seus territórios natais cultivados, levando consigo
plantas domesticadas e conhecimento de técnicas agrícolas, é sustentada por evidências
de muitas partes do mundo. À medida que agricultores passaram a estabelecer novas
comunidades em terras não cultivadas, o resultado foi uma “onda de avanço”
centrada nas áreas onde a domesticação ocorreu primeiro. A Grécia, por exemplo,
parece ter sido colonizada por agricultores que chegaram por mar do Oriente
Próximo, entre 7000 a.C. e 6500 a.C. Arqueólogos encontraram no país muito
poucos sítios de caçadores-coletores, mas centenas de sítios agrícolas
primitivos. De maneira semelhante, agricultores que chegaram da China através
da península coreana parecem ter introduzido o cultivo do arroz no Japão a partir
de cerca de 300 a.C. Evidências linguísticas também sustentam a ideia de uma
migração a partir de territórios natais agrícolas, em que tanto línguas quanto
práticas agrícolas se dispersaram. A distribuição de famílias linguísticas na
Europa, no leste da Ásia e na Austronésia é amplamente compatível com
evidências arqueológicas sobre a difusão da agricultura. Hoje, quase 90% da
população do mundo fala algum idioma pertencente a uma das sete famílias de
línguas que tiveram suas origens em dois desses territórios: o Crescente Fértil
e partes da China. As línguas que falamos hoje, e as comidas que comemos,
descendem daquelas usadas pelos primeiros agricultores.
No entanto, existem também evidências que
sugerem que caçadores-coletores nem sempre foram expulsos ou exterminados por
agricultores forasteiros, mas ao contrário, que viviam ao lado deles e em
alguns casos tornaram-se também agricultores. O exemplo mais claro é encontrado
no sul da África, onde caçadores-coletores khoisan adotaram o gado bovino eurasiano
do norte e tornaram-se pastores desses rebanhos. Vários sítios arqueológicos
europeus fornecem evidências de agricultores e caçadores-coletores vivendo lado
a lado e trocando produtos. Como os dois tipos de comunidade tinham ideias
muito diferentes sobre os tipos de ambiente em que era desejável se
estabelecer, não há razão para que não pudessem coexistir, desde que restassem
nichos ecológicos adequados para os caçadores-coletores. As coisas, entretanto,
teriam ficado progressivamente mais difíceis para os caçadores-coletores que
viviam perto de agricultores. Estes não se preocupavam tanto em preservar
recursos alimentares silvestres perto de suas comunidades, uma vez que tinham
alimentos cultivados a que recorrer. Dessa forma, os caçadores-coletores ou se
juntavam às comunidades agrárias, ou adotavam eles mesmos a agricultura, ou
eram obrigados a se mudar para novas áreas.
Sendo assim, que mecanismos predominaram?
Na Europa, onde o advento da agricultura foi mais intensamente estudado, pesquisadores
usaram a análise genética para determinar se os ancestrais dos europeus
modernos eram predominantemente caçadores-coletores que adotaram a agricultura
ou agricultores imigrantes provenientes do Oriente Próximo. Nesses estudos, pessoas
da península anatoliana (oeste da Turquia), que se situa dentro do Crescente
Fértil, são consideradas geneticamente representativas dos primeiros
agricultores. De maneira semelhante, supõe-se que os bascos são os descendentes
mais diretos dos caçadores-coletores, por duas razões. Primeiro, a língua basca
não tem nenhuma semelhança com línguas europeias descendentes do
proto-indo-europeu, a família linguística introduzida na Europa juntamente com
a agricultura, parecendo antes remontar à Idade da Pedra. (Várias palavras bascas
para ferramentas começam com “aitz”, o termo usado para pedra, o que sugere que
datam de um tempo em que ferramentas de pedra estavam em uso.) Segundo, há
diversas variações genéticas específicas dos bascos que não são encontradas em
outros europeus.
Num estudo recente, amostras genéticas
foram colhidas desses dois grupos e depois comparadas com amostras de
populações de diferentes partes da Europa. Os pesquisadores descobriram que as
contribuições genéticas dos bascos e dos anatolianos variavam significativamente
através do continente: a contribuição anatoliana (isto é, do agricultor do Oriente
Próximo) era de 79% nos Bálcãs, 45% no norte da Itália, 63% no sul da Itália,
35% no sul da Espanha e 21% na Inglaterra. Em suma, a contribuição de
agricultores era mais elevada no leste e mais baixa no oeste. Isso fornece a
resposta para o enigma e sugere que a agricultura se difundiu como resultado de
um processo híbrido em que uma população agricultora migrante se espalhou pela
Europa a partir do leste e foi gradualmente diluída por meio de casamentos com
membros do grupo dos caçadores-coletores, de modo que a população resultante
terminou sendo descendente de ambos os grupos. Provavelmente, a mesma coisa
aconteceu também em outras partes do mundo.
A difusão da agricultura a partir de
territórios agrícolas natais, seguida pelo crescimento populacional das
comunidades agrárias, significou que os fazendeiros tornaram-se mais numerosos
que os caçadores-coletores dentro de poucos milhares de anos. Por volta de 2000
a.C., a maior parte da humanidade havia adotado a agricultura. Foi uma mudança
tão fundamental que até hoje, muitos milhares de anos depois, a distribuição
das línguas e dos genes humanos continua a refletir o advento da agricultura. Durante
a domesticação, plantas foram geneticamente reconfiguradas por seres humanos,
e, à medida que a agricultura foi adotada, seres humanos foram geneticamente
reconfigurados por plantas.
O homem, um animal
agrícola
Os agricultores e suas plantas e
animais domesticados selaram um grande pacto e seus destinos se entrelaçaram,
embora os agricultores não se dessem conta disso na época. Vejamos o milho. A
domesticação o tornou dependente do homem, mas sua aliança com os seres humanos
também o levou muito além de suas origens como uma obscura erva mexicana, e
hoje ele é um dos produtos mais amplamente cultivados na Terra. Do ponto de
vista da humanidade, por outro lado, a domesticação do milho tornou disponível
uma nova e abundante fonte de alimento, ao mesmo tempo que seu cultivo (como o
de outras plantas) incitou as pessoas a adotar um novo estilo de vida,
sedentário, baseado na agricultura. É o homem que está explorando o milho para
sua satisfação, ou é o milho que está explorando o homem? A domesticação, ao
que parece, é uma via de mão dupla.
Até hoje, milhares de anos depois que os
primeiros agricultores iniciaram o processo de domesticação das plantas e
animais, a humanidade continua sendo uma espécie agrícola, e a produção de
alimento continua sendo sua principal ocupação. A agricultura emprega 41% da
população mundial, mais que qualquer outra atividade, e ocupa 40% da área de
terras do globo. (Cerca de um terço dessa terra é usada para a produção de
plantas, e aproximadamente dois terços fornecem pastos para gado.) Os mesmos
três alimentos que sustentaram as primeiras civilizações continuam sendo os
fundamentos da existência humana: trigo, arroz e milho ainda fornecem a maior
parte das calorias consumidas pela raça humana. Somente uma pequena parcela da
comida consumida pelos seres humanos hoje vem de fontes silvestres: peixes,
mariscos e uma pequena quantidade de bagas, castanhas, cogumelos etc.
Em consequência, praticamente nenhum dos
alimentos que comemos hoje pode ser, de fato, qualificado como natural. A quase
totalidade deles é resultado de reprodução seletiva – inadvertida de início,
mas depois mais deliberada e cuidadosa, à medida que os agricultores propagaram
as características mais valiosas presentes na natureza para criar mutantes
novos e domesticados, mais adequados às necessidades humanas. Grãos, vacas e
frangos, tal como o conhecemos, não existem na natureza, e não existiriam hoje
sem a intervenção humana. Até as cenouras alaranjadas são criação humana.
Originalmente, elas eram brancas e roxas; a variedade alaranjada, mais doce,
foi criada por horticultores holandeses no século XVI como um tributo a
Guilherme I, príncipe de Orange. A tentativa de um supermercado britânico de
reintroduzir a variedade roxa tradicional em 2002 fracassou porque os fregueses
preferiram o tipo alaranjado seletivamente reproduzido.
Todas as plantas e animais domésticos são
tecnologias criadas pelo homem. Mais ainda, quase todas as plantas e animais
que conhecemos hoje remontam aos tempos antigos. A maioria foi domesticada
antes de 2000 a.C., e muito poucos foram criados desde então. Dos 14 animais de
grande porte domesticados, somente um, a rena, foi domesticada nos últimos
milênios, e tem valor marginal (embora sua carne seja muito saborosa). O mesmo
pode ser dito das plantas: mirtilos, morangos, oxicocos, kiwis, macadâmias,
pecãs e cajus foram todos domesticados há relativamente pouco tempo, mas nenhum
é um gênero alimentício importante.
Somente espécies aquáticas foram
domesticadas em quantidades significativas no século passado. Em suma, os
primeiros agricultores conseguiram domesticar a maioria das plantas e dos
animais que valiam a pena muitos milhares de anos atrás. Isso pode explicar por
que há uma suposição tão generalizada de que plantas e animais domesticados são
naturais, e por que esforços contemporâneos para refiná-los ainda mais, usando
técnicas modernas de engenharia genética, atraem tantas críticas e provocam
tanto medo. No entanto, pode-se alegar que a engenharia genética é apenas um
recente desdobramento num campo de tecnologia que remonta a mais de 10 mil anos
atrás. Milho tolerante a herbicidas não existe na natureza, é verdade – mas o
mesmo pode ser dito de qualquer outro tipo de milho.
A simples verdade é que a agricultura é profundamente antinatural. Ela fez mais para mudar o mundo, e teve mais impacto sobre o ambiente, que qualquer outra atividade humana. Levou ao desmatamento generalizado, à destruição ambiental, ao deslocamento de vida silvestre “natural” e à realocação de plantas e animais milhares de quilômetros distantes de seus habitats naturais. Envolve a modificação genética de plantas e animais para criar mutantes monstruosos que não existem na natureza e que, com frequência, não podem sobreviver sem a intervenção humana. Subverteu o modo de vida do caçador-coletor que definira a existência humana por dezenas de milhares de anos, incitando os seres humanos a trocar uma existência variada e sossegada de caça e coleta por vidas de trabalho árduo e enfadonho. A agricultura certamente não seria tolerada se tivesse sido inventada hoje. Apesar disso, a despeito de todos os seus defeitos, ela é a base da civilização tal como a conhecemos. Plantas e animais domesticados são os próprios fundamentos do mundo moderno.
A simples verdade é que a agricultura é profundamente antinatural. Ela fez mais para mudar o mundo, e teve mais impacto sobre o ambiente, que qualquer outra atividade humana. Levou ao desmatamento generalizado, à destruição ambiental, ao deslocamento de vida silvestre “natural” e à realocação de plantas e animais milhares de quilômetros distantes de seus habitats naturais. Envolve a modificação genética de plantas e animais para criar mutantes monstruosos que não existem na natureza e que, com frequência, não podem sobreviver sem a intervenção humana. Subverteu o modo de vida do caçador-coletor que definira a existência humana por dezenas de milhares de anos, incitando os seres humanos a trocar uma existência variada e sossegada de caça e coleta por vidas de trabalho árduo e enfadonho. A agricultura certamente não seria tolerada se tivesse sido inventada hoje. Apesar disso, a despeito de todos os seus defeitos, ela é a base da civilização tal como a conhecemos. Plantas e animais domesticados são os próprios fundamentos do mundo moderno.
Tom Standage
Uma história comestível da humanidade
Tradução:
Maria Luiza X. de A. Borges
Uma edição:
Zahar Editores
Disponibiliado por:
Le Livros
Le Livros
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais
lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um
novo nível."
INTRODUÇÃO Ingredientes do passado
Sumário
INTRODUÇÃO Ingredientes do passado
PARTE I Os
fundamentos comestíveis da civilização
1. A invenção da agricultura
2. As raízes da modernidade
PARTE II Comida
e estrutura social
3. Alimento, riqueza e poder
4. Seguir o alimento
PARTE III Os
caminhos dos alimentos
5. Estilhaços do paraíso
6. Sementes de impérios
PARTE IV Comida,
energia e industrialização
7. Novo Mundo, novos alimentos
8. A máquina a vapor e a batata
PARTE V Comida
é arma
9. O combustível da guerra
10. Luta por comida
PARTE VI Comida,
população e desenvolvimento
11. Alimentar o mundo
12. Paradoxos da abundância
EPÍLOGO Ingredientes
do futuro
Notas
Bibliografia
Agradecimentos
Índice remissivo
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