PARTE II
3. Alimento, riqueza e
poder
“É difícil adquirir riqueza, mas a pobreza está sempre à
mão.”
PROVÉRBIO MESOPOTÂMICO, 2000 A.C.
Orientação vocacional
A Lista das Profissões Usuais é
um documento da aurora da civilização, inscrito em pequenas tábuas de argila
com as endentações características da escrita cuneiforme. As versões mais
antigas, datadas de cerca de 3200 a.C., foram encontradas na cidade de Uruk (a
Erech dos dias de hoje), na Mesopotâmia, a primeira região onde a escrita e as
cidades surgiram. Existem muitas cópias dessa lista, pois era um texto-padrão
usado para ensinar escribas. A lista consiste em 129 profissões, sempre
escritas na mesma ordem, com as mais importantes no topo. Os itens listados
incluem “juiz supremo”, “prefeito”, “erudito” e “supervisor dos mensageiros”,
porém o significado de muitos deles é desconhecido. A lista indica que a
população de Uruk, provavelmente a maior cidade da época, era estratificada em
diferentes profissões especializadas, algumas mais importantes que as outras.
Essa era uma grande mudança em relação às aldeias de agricultores que haviam
emergido na região cerca de 5 mil anos antes. O alimento estava na raiz dessa
transformação.
A mudança de aldeias pequenas e
igualitárias para cidades grandes, socialmente estratificadas, foi possível por
conta de uma intensificação da agricultura, quando parte da população já
produzia mais alimentos que o necessário para sua própria subsistência. Esse
excedente podia, então, ser usado para sustentar outras pessoas – assim, não
era mais necessário que todos fossem agricultores. Em Uruk, apenas cerca de 80%
da população era de agricultores. Eles cultivavam campos que circundavam a
cidade num raio de 16 quilômetros. A produção excedente era apropriada por uma
elite dominante que redistribuía parte dela e consumia o resto. Essa
estratificação da sociedade, ocasionada pelo excedente de alimentos cultivados,
ocorreu não apenas na Mesopotâmia, mas em todas as partes do mundo em que havia
agricultura. Foi a segunda importante maneira pela qual o alimento ajudou a
transformar a natureza da existência humana. Com a agricultura, as pessoas se
estabeleceram; com a intensificação da produção, elas se dividiram em ricas e
pobres, em governantes e agricultores.
A ideia de que as pessoas têm diferentes
trabalhos ou profissões, e que algumas são mais ricas que outras, é considerada
natural hoje, mas durante a maior parte da existência humana essa percepção não
existia. A maioria dos caçadores-coletores, e, depois, dos primeiros
agricultores, possuía riqueza equivalente e passava seus dias fazendo as mesmas
coisas que os demais na comunidade. Estamos acostumados a pensar em comida como
algo que reúne as pessoas, seja literalmente, em volta da mesa numa reunião
social, ou metaforicamente, através de uma cozinha regional ou cultural
partilhada. A comida também pode dividir e separar. No mundo antigo, alimento
era riqueza, e controle do alimento era poder.
Como na adoção da agricultura, as mudanças
na produção de alimento e a consequente transformação das estruturas sociais
ocorreram simultaneamente e de forma entrelaçada. Uma elite dominante não
apareceu de repente exigindo que todos trabalhassem mais arduamente nos campos;
nem uma produtividade maior gerou um excedente repentino a ser disputado, com o
vencedor sendo coroado rei. Na verdade, o abandono do estilo de vida
caçador-coletor significou que as limitações à capacidade do indivíduo de
acumular bens e angariar prestígio – coisas que eram desaprovadas por
caçadores-coletores – deixaram de se aplicar. Ainda assim, o nascimento de
sociedades mais complexas levou algum tempo: na Mesopotâmia, a mudança de
aldeias simples para cidades complexas demandou cinco milênios, e também na
China e nas Américas ela demandou milhares de anos.
O controle da comida era igual a poder
porque ela, ao alimentar seres humanos e animais, mantinha literalmente tudo em
movimento. A apropriação do excedente de alimentos cultivados deu às elites
dominantes os meios para sustentar escribas, soldados e artesãos
especializados, em regime de tempo integral. Significou também que certa
parcela da população pôde ser utilizada em projetos de construção, já que os
agricultores que permaneceram na terra forneceriam alimento suficiente para
todos. Assim, uma abundância de comida excedente conferia a seu proprietário o
poder de fazer todos os tipos de coisas novas: travar guerras, construir
templos e pirâmides e sustentar a produção de itens artesanais elaborados por
escultores especializados, tecelões e ferreiros. No entanto, para compreender
as origens do poder dos alimentos é necessário começar examinando a estrutura
das sociedades de caçadores-coletores e perguntar por que, anteriormente, as
pessoas haviam considerado o acúmulo de alimento e poder tão perigoso e
desestabilizador – e por que isso mudou.
Antigos igualitários
Os caçadores-coletores podiam
passar apenas dois dias por semana vagando em busca de coisas para comer, mas
nem por isso suas vidas deixavam de ser regidas pela busca por comida. Bandos
de caçadores-coletores tinham de ser nômades, mudando-se a intervalos de
algumas semanas, assim que os recursos alimentares ao alcance de cada
acampamento começavam a se esgotar. Cada vez que o grupo se deslocava, tinha de
levar consigo todas as suas posses. A necessidade de carregar tudo limitava a
capacidade dos indivíduos de acumular bens materiais. Um inventário feito por
antropólogos modernos de uma família de caçadores-coletores africanos, por
exemplo, constatou que seus membros possuíam coletivamente uma faca, uma lança,
arco e flechas, um protetor de punho, uma rede, cestas, um enxó, um apito, uma
flauta, castanholas, um pente, um cinturão, um martelo e um chapéu. Poucas
famílias no mundo desenvolvido poderiam arrolar todas as suas posses numa única
frase. Esses itens eram compartilhados. Em vez de cada um ser obrigado a
carregar sua própria faca ou lança, faz muito mais sentido partilhá-los, para
que outras pessoas possam então carregar diferentes itens, como redes ou arcos.
Bandos em que as ferramentas eram partilhadas teriam sido mais flexíveis e
teriam tido mais probabilidade de sobreviver do que aqueles em que esses itens
eram individuais. Assim, proliferaram os bandos em que havia pressão social
para partilhar as coisas.
A obrigação de partilhar estendia-se
também à comida. Caçadores-coletores modernos, muitas vezes, seguem uma regra
segundo a qual qualquer pessoa que traga comida para o acampamento tem de
partilhá-la com todos aqueles que peçam. A regra fornece um seguro contra a
escassez de alimentos, pois nem todos podem estar certos de encontrar alimento
suficiente num dado dia, e mesmo os melhores caçadores só podem esperar matar
um animal a intervalos de alguns dias. Se todos forem egoístas e insistirem em
guardar sua própria comida para si mesmos, grande parte das pessoas passará
fome a maior parte do tempo. A partilha assegura que a provisão seja
equilibrada. Evidências etnográficas de caçadores-coletores modernos mostram
que alguns grupos têm regras ainda mais elaboradas para impor a partilha. Em
alguns casos, um caçador não tem sequer permissão para se servir de sua própria
caça (embora algum parente assegure que ele receba alimento indiretamente). De
maneira semelhante, reivindicar um pedaço de terra, e os recursos alimentares a
ele associados, não é permitido. Essas regras asseguram que os riscos e recompensas
da caça e da coleta sejam partilhados por todo o grupo. Historicamente, bandos
que partilhavam a comida tiveram mais probabilidade de sobreviver que aqueles
que não o faziam: a competição por recursos tende a estimular a
superexploração, e disputas de propriedade teriam provocado a fragmentação do grupo.
Mais uma vez, a partilha do alimento predominava porque conferia claras
vantagens aos bandos que a adotavam.
Tudo isso significava que
caçadores-coletores não tentavam acumular símbolos de status para aumentar seu
prestígio pessoal. Para que se incomodar, se esses bens deveriam ser partilhados
com outros? Só depois do advento da agricultura foi que as primeiras indicações
de riqueza ou posse privada apareceram. Como um antropólogo comentou, tendo
observado caçadores-coletores na África:
Um boxímane faria qualquer esforço para evitar que outro
boxímane sinta inveja dele, e por isso as poucas posses que os boxímanes têm
estão constantemente circulando entre os membros de seus grupos. Ninguém cuida
de conservar uma faca particularmente boa por muito tempo, ainda que possa
desejá-lo desesperadamente, porque ela se tornará objeto de inveja; quando se
sentar sozinho polindo um gume afiado na lâmina, ele ouvirá os sussurros dos
outros homens de seu bando dizendo: “Vejam-no ali, admirando sua faca enquanto
nós não temos nada.” Logo, alguém lhe pedirá sua faca, pois todos gostariam de
tê-la, e ele a dará. A cultura deles determina que partilhem uns com os outros,
e nunca ocorreu que um boxímane deixasse de partilhar objetos, comida ou água
com outros membros de seu bando, pois sem uma cooperação muito rígida eles não
poderiam sobreviver às fomes e secas que o Kalahari lhes impõe.
Os caçadores-coletores também desconfiam
de autopromoção e das tentativas de criar obrigações. Os boxímanes !kung, por
exemplo, acreditam que o caçador ideal deve ser modesto e discreto. Depois de
retornar da caça, deve minimizar a importância de suas façanhas, mesmo que
tenha matado um grande animal. Quando os homens vão recolher o animal abatido,
eles expressam seu desapontamento com o tamanho: “Ora, você nos fez andar até
aqui por causa desse saco de ossos?” Espera-se que o caçador finja concordar e
não se mostre ofendido. O objetivo de tudo isso é evitar que o caçador se considere
superior, como um !kung explicou para um etnógrafo visitante: “Quando um jovem
caça muita carne, ele passa a pensar em si mesmo como um chefe ou um grande
homem, e pensa no resto de nós como seus criados ou inferiores. Não podemos
aceitar isso. Por isso sempre desdenhamos de sua caça. Desse modo arrefecemos seu
coração e o tornamos dócil.”
Para
complicar ainda mais as coisas, os !kung têm uma tradição pela qual a carne de
um animal abatido pertence ao dono da flecha que o matou, não ao caçador que o
atingiu. (Se duas ou mais flechas provocam a morte, a carne pertence ao dono que
primeiro atingir o animal.) Como os homens trocam as flechas rotineiramente,
isso torna façanhas espetaculares de caçadores solitários ainda menos
prováveis. Caçadores particularmente habilidosos são assim impedidos de
angariar prestígio pessoal concedendo grandes quantidades de comida a outros, o
que poderia criar uma obrigação em contrapartida. De fato, ocorre justamente o
contrário: quando atravessa um período de sorte e consegue muita comida, um
caçador pode parar de caçar por algumas semanas, para dar a outros a chance de
também se sair bem e assim evitar qualquer possibilidade de ressentimento.
Afastar-se da caça por algumas semanas significa ainda que o caçador permite
que outros lhe forneçam comida, de modo a não haver nenhuma obrigação notável
para com ele.
Richard Borshay Lee, um antropólogo
canadense que viveu com um grupo !kung em várias viagens de pesquisa durante os
anos 1960, enfrentou essas regras quando tentou agradecer a seus anfitriões
oferecendo-lhes um banquete. Para tanto, comprou um boi grande e gordo e ficou
surpreso quando os boxímanes começaram a zombar dele por ter escolhido um
animal velho demais, magro demais, e cuja carne seria dura demais. No fim das
contas, porém, a carne do boi revelou-se saborosa e macia. Então por que os
boxímanes haviam sido tão críticos? “Os !kung são um povo arrebatadamente
igualitário e têm pouca tolerância com a arrogância, a avareza e a insociabilidade
entre seus membros”, concluiu Lee. “Quando veem sinais desse comportamento em
seus pares, têm uma série de truques para impor a humildade e pôr as pessoas de
volta na linha.” Os !kung, como outros caçadores-coletores, veem presentes
suntuosos como uma tentativa de exercer controle sobre outros, angariar apoio
político ou elevar o próprio status, coisas que vão contra a sua cultura. Seu
igualitarismo estrito pode ser visto como uma “tecnologia social” desenvolvida
para assegurar a harmonia social e uma provisão suficiente de alimento para
todos.
A comida determina a estrutura da
sociedade dos caçadores-coletores também de outras maneiras. O tamanho dos
grupos, por exemplo, depende da disponibilidade de recursos alimentares a uma
curta distância do acampamento. Um bando grande demais esgota a área
circundante mais rapidamente, obriga a um deslocamento mais frequente e exige
um território maior. Em consequência, o tamanho dos grupos varia de 6 a 12
pessoas em áreas onde o alimento é escasso a de 25 a 50 pessoas em áreas com
recursos mais abundantes. O bando é composto de uma ou mais famílias extensas
cujos membros casam-se entre si; assim, os componentes são em sua maioria
aparentados. Os bandos geralmente não têm líderes, embora algumas pessoas
possam ter funções específicas além das tradicionais tarefas masculinas e femininas
de caçar e coletar, respectivamente – como curar, fabricar armas ou negociar
com outros bandos. Mas não há especialistas em tempo integral, e essas
habilidades particulares não conferem status social mais elevado.
Os bandos de caçadores-coletores mantêm
alianças entre si tanto para garantir parceiros para casamentos quanto
segurança adicional contra a escassez de alimentos. No caso de escassez, um
bando pode, então, visitar outro com que seja relacionado por casamento e partilhar
um pouco de sua comida. A partilha intergrupal na forma de grandes banquetes também
ocorre em tempos de superabundância sazonal de alimentos. Esses banquetes, que parecem
universais entre caçadores-coletores, proporcionam uma oportunidade para
arranjar casamentos, realizar ritos sociais, cantar e dançar. Assim, o alimento
une sociedades de caçadores-coletores, forjando laços tanto dentro dos bandos
como entre eles.
Dito isto, é importante não romantizar demais
o estilo de vida dos caçadores-coletores. A “descoberta” de bandos de
caçadores-coletores por europeus no século XVIII levou à imagem idealizada do
“nobre selvagem”, que vivia num Éden não conspurcado. Quando Karl Marx e Friedrich
Engels desenvolveram a doutrina do comunismo no século XIX, foram inspirados em
parte pelo “comunismo primitivo” de sociedades de caçadores-coletores descritas
por Lewis H. Morgan, um antropólogo americano que estudou povos americanos
nativos. Mas, ainda que fosse mais sossegada e igualitária que a vida da
maioria das pessoas de hoje, a vida dos caçadores-coletores nem sempre era
idílica. O infanticídio era usado como meio de controle populacional e havia
conflitos rotineiros e generalizados entre diferentes bandos, com evidências de
morte violenta e até de canibalismo em alguns casos. A noção de que os
caçadores-coletores viviam num mundo perfeito e pacífico é sedutora, mas
errada. Mesmo assim, é claro que a estrutura de suas sociedades, sendo
determinada sobretudo pela natureza da oferta de alimento, era obviamente
diferente da estrutura das sociedades modernas. Assim, quando as pessoas
adotaram a agricultura e a natureza da oferta de alimentos foi transformada,
tudo mudou.
O aparecimento do
“Grande Homem”
Quando as pessoas começaram a se
estabelecer e a caça e a coleta transformaram-se gradativamente na agricultura,
as primeiras aldeias ainda eram comunidades amplamente igualitárias. Evidências
arqueológicas mostram que, habitadas usualmente por não mais de uma centena de pessoas,
elas eram formadas por cabanas ou casas de forma e tamanho similares. O
sedentarismo e a agricultura, porém, mudaram as regras que haviam desestimulado
as pessoas a buscar riqueza e status. Os mecanismos sociais desenvolvidos para
inibir as tendências inerentes do homem à organização hierárquica (claramente
visível em macacos e em muitas outras espécies animais) começaram a se
desgastar. Quando a pessoa não precisa mais se deslocar de um lugar para outro,
começa a ser possível acumular excedentes de alimento e outros bens. Os
primeiros sinais de diferenciação social começam a aparecer: povoados em que
algumas habitações são maiores que outras e contêm itens de prestígio como
conchas raras e objetos de adornos, cemitérios em que alguns túmulos contêm bens
valiosos... Tudo isso sugere que o conceito de propriedade privada tornou-se
rapidamente aceito – não há sentido em possuir símbolos de status se é preciso
partilhá-los – e que começou a se instalar uma hierarquia social em que algumas
pessoas eram mais ricas que outras.
Apesar de sua generalização só ter se dado
com a adoção da agricultura, em alguns lugares esse processo teve início antes
disso, quando caçadores-coletores de áreas particularmente ricas em alimentos
estabeleceram-se em aldeias permanentes. Aldeias agrícolas primitivas na bacia
de Hupei, na China, no alto rio Yangtze – região onde o arroz foi domesticado
por volta de 4000 a.C. – fornecem um bom exemplo. De 208 túmulos escavados,
alguns continham bens rebuscados, ao passo que outros não continham nada além
dos corpos dos mortos. De maneira semelhante, 128 túmulos datados de c.5500
a.C., em Tell es-Sawwan, no que é hoje o norte do Iraque, mostram uma clara
variação de objetos tumulares. Alguns túmulos contêm alabastro entalhado,
contas feitas de pedras exóticas ou cerâmicas, mas outros não contêm
absolutamente nenhum item tumular. Em todos os casos temos o mesmo padrão: a
adoção da agricultura conduziu à estratificação social, sutil no início, mas
depois cada vez mais pronunciada.
É fácil perceber como variações na
produtividade agrícola de diferentes famílias e sua capacidade de armazenar
certos alimentos (especialmente cereais secos) tornaram as pessoas mais
inclinadas a exigir direitos de propriedade sobre a produção. Como pode ser
trocada por outros itens, a produção alimentar armazenável excedente é
equivalente a riqueza. É certo, porém, que um povoado onde alguns habitantes
conseguem acumular mais alimento e quinquilharias do que outros é uma estrutura
ainda muito distante das hierarquias sociais complexas das primeiras cidades,
em que as elites dominantes apropriavam-se do excedente por direito e depois
distribuíam a porção dele que elas próprias não consumiam. Como esses líderes
poderosos emergiram, e como acabaram controlando os excedentes agrícolas?
Um passo importante ao longo do percurso
de uma aldeia igualitária para uma cidade estratificada parece ser o
aparecimento de “grandes homens”, que conquistam o controle do fluxo de comida
excedente e outros bens e assim reúnem um grupo de dependentes ou seguidores.
Talvez surpreendentemente, o meio de persuasão do grande homem não é a ameaça
de violência, mas sua abundante generosidade. Dando presentes a outros ele os
transforma em seus devedores, e os põe na obrigação de retribuir com presentes
mais generosos no futuro. Tais presentes muitas vezes vinham em forma de
comida. Para manter esse ciclo ativo, um grande homem deve persuadir sua
família a produzir comida excedente, que depois será dada a outros; em
contrapartida, ele recebe mais comida, que pode distribuir entre seus parentes
e também dar a outros, gerando assim mais obrigações. Esse processo pode ser
observado ainda hoje, pois a cultura do grande homem ainda existe em algumas
partes do mundo.
Na Melanésia, um grande homem pode tomar
várias esposas para aumentar os recursos excedentes à sua disposição: uma
mulher para cultivar a horta e produzir alimento, uma para catar madeira, outra
para pescar. Depois, distribui esses recursos cuidadosamente, deixando outras
pessoas em dívida com ele, pessoas que deverão pagar-lhe de volta com mais
alimento ou recursos; esses produtos serão passados adiante, assegurando assim
um círculo de obrigações ainda maior. Esse processo estimula a intensificação
da produção de alimentos e culmina, finalmente, em grandes banquetes com os
quais o grande homem tenta “criar um nome para si”. Ele convida pessoas de fora
de seu círculo usual, e até de outras aldeias, pondo-as na posição de devedoras
e trazendo-as, assim, para sua esfera de influência. Dessa maneira, o grande
homem se estabelece como um membro influente e poderoso da comunidade. A rivalidade
entre grandes homens acelera o processo, à medida que eles rivalizam para promover
os maiores banquetes e acumular o maior crédito.
Isso significa que os grandes homens são
ricos e preguiçosos? Longe disso. Para um grande homem, a riqueza não permite
que se acomode, pois ela só é útil se estiver circulando. Em alguns casos,
grandes homens podem até acabar ficando mais pobres que seus seguidores. Em grupos
esquimós no norte do Alasca, por exemplo, os mais respeitados capitães
baleeiros são responsáveis por negociar com caçadores de caribu do interior, e
assim terminam controlando a distribuição e a circulação de objetos de valor em
seu grupo. Mas, como devem dar tudo que recebem e não podem recusar um pedido
de ajuda, veem-se frequentemente em piores condições materiais que seus
seguidores. Grandes homens também têm de trabalhar pesado. Segundo um
observador na Melanésia, o grande homem “tem de trabalhar mais arduamente que
todos os outros para manter seus estoques de comida. Quem aspira a honras não
pode repousar sobre os louros, mas deve continuar a promover grandes banquetes
e a acumular crédito. É sabido que ele tem de labutar da manhã à noite.”
Tudo isso serve realmente a uma finalidade
prática dentro do grupo ou da aldeia: o grande homem age como uma carteira de
compensação para alimentos excedentes e outros bens, e pode determinar a melhor
forma de distribuí-los. Se uma família produz alimento extra, pode dar o excedente
a um grande homem na expectativa de cobrar o favor numa data posterior – quando
uma ferramenta precisar ser substituída ou a comida escassear. Assim, um grande
homem bem-sucedido integra e coordena a economia da comunidade e emerge como
seu líder. Mas não tem nenhum poder para coagir seus seguidores. A manutenção
de sua posição depende de sua capacidade de prover a subsistência do grupo e
administrar a redistribuição. Entre os nambikwara do Brasil, por exemplo, se o
líder do grupo não for suficientemente generoso e deixar de prover a
subsistência de seus seguidores, eles o deixarão de lado e ingressarão num
grupo diferente. Em grupos melanésios, líderes que deixam de distribuir o
excedente ou guardam uma parte grande demais para si mesmos podem ser depostos
ou até assassinados. Numa situação como essa, o grande homem tem muito mais de
um gerente que de um rei.
De cacicados a
civilizações
Ora, como um grande homem, cuja
posição depende de generosidade e comunhão, se transforma em chefe poderoso de um
grupo de aldeias, ou cacicado, e depois em rei, no topo de uma elite dominante?
Não é de surpreender, como no caso das origens e da difusão da agricultura, que
o mecanismo seja obscuro e que haja muitas teorias conflitantes. Mais uma vez,
é improvável que uma só teoria forneça a resposta – e certas explicações têm
mais fundamento em algumas partes do mundo do que em outras. No entanto,
considerando várias dessas teorias, é possível ter uma ideia de como cacicados,
e depois civilizações, podem ter se iniciado. Em cada caso, o surgimento da
estratificação social está estreitamente relacionado com a produção de comida.
Formas mais elaboradas de organização social tornam possível maior
produtividade agrícola, e um maior excedente de alimento pode sustentar formas
mais elaboradas de organização social. Mas como o processo se inicia?
Segundo uma teoria, um grande homem ou
líder pode se tornar mais poderoso coordenando atividades agrícolas, em
particular a irrigação. Os rendimentos do cultivo agrícola podem variar muito,
mas com o nivelamento de terras, a construção de canais de irrigação e de
sistemas de diques – coisas só possíveis com certo grau de organização social –
pode-se reduzir essas variações. Isso aumentaria a produtividade agrícola da
aldeia, e teria ainda outros efeitos. Membros da comunidade ficariam menos
propensos a partir depois de terem investido em sistemas de irrigação e passado
a depender deles; o controle do sistema de irrigação conferiria poder ao líder,
já que qualquer pessoa que criasse um conflito poderia ter seu fornecimento de
água reduzido; o sistema de irrigação poderia também precisar ser defendido,
com o uso de soldados em tempo integral custeados pelo excedente de alimento e
postos sob o controle do líder.
Em suma, algo iniciado como um projeto
agrícola comunitário poderia ter o efeito de aumentar enormemente o poder do
líder. Com seus seguidores mais dependentes e uma guarda privada para
protegê-lo, ele poderia então começar a reter uma parte maior do excedente para
seu próprio uso, para alimentar sua família, abastecer soldados etc. Sistemas
de irrigação são certamente um denominador comum de muitas civilizações
primitivas, desde a Mesopotâmia até o Peru. Eles são encontrados também em
cacicados, em lugares como o Havaí e o sudoeste da América do Norte. Alguns
cacicados que dependiam da irrigação não se tornaram, no entanto, mais
complexos ou nitidamente estratificados; e alguns esquemas elaborados de
irrigação parecem ser antes a consequência que a causa de maior organização
social. Assim, evidentemente outros fatores além da irrigação determinaram o
nascimento de civilizações complexas, embora ela pareça ter desempenhado um
papel importante em alguns casos.
Outra hipótese sugere que o armazenamento
comunal de excedentes agrícolas poderia fornecer ao líder uma oportunidade de
estabelecer maior controle sobre seus seguidores. Aldeões entregam cereais
excedentes ao grande homem prevendo presentes recíprocos numa data posterior,
estimulando-o a organizar a construção de um celeiro. Depois de construído e
abastecido, este fornece ao grande homem o “capital de giro” para fazer outras
coisas. Ele pode financiar artesãos especializados, em tempo integral, e
organizar obras agrícolas usando o excedente, sob a alegação de que tais
investimentos produzem um retorno positivo, que pode ser devolvido ao celeiro.
Projetos cada vez mais complexos de obras públicas legitimam então a posição do
líder e requerem um número crescente de administradores, que despontam como a
elite dominante. Segundo essa visão, há uma progressão natural desde a partilha
recíproca organizada por um grande homem até a redistribuição do excedente
supervisionada por um chefe poderoso.
No Oriente Próximo, grandes prédios
centrais começaram a aparecer dentro das aldeias depois de cerca de 6000 a.C.,
mas não está claro se eram celeiros partilhados, salões de banquetes,
construções religiosas ou casas de chefes. É possível que servissem a várias
dessas funções: um salão de banquetes construído para impressionar a aldeia
vizinha poderia ter sido o lugar lógico para armazenar comida, e um celeiro
teria sido um lugar óbvio para a realização de rituais de fertilidade a fim de
assegurar uma boa colheita. No Havaí, há evidências de que áreas públicas
construídas originalmente para banquetes foram mais tarde muradas, ficando seu
acesso restrito a um grupo selecionado, de alta posição social. Assim, templos
e palácios poderiam ter origem em casas comunais de armazenamento ou salões de
banquetes.
Uma terceira possibilidade é que a
competição por terras cultiváveis tenha levado à guerra entre comunidades em
áreas nas quais a terra era ambientalmente delimitada. No Peru, por exemplo, 78
rios correm das montanhas dos Andes para o litoral, atravessando 80 quilômetros
de um deserto extremamente árido. A agricultura é possível perto dos rios, mas
todas as áreas adequadas ao cultivo estão confinadas entre deserto, montanhas e
oceano. No Egito, a agricultura é possível numa faixa estreita ao longo do
Nilo, mas não no deserto que se estende além dele. E, nas planícies aluviais da
Mesopotâmia, somente áreas próximas ao Tigre e ao Eufrates são adequadas para a
agricultura. No início, essas áreas deviam ser esparsamente povoadas por alguns
agricultores; à medida que a população se expandiu (o sedentarismo e a agricultura
permitem que a população de agricultores cresça mais do que a de caçadores- coletores),
novas aldeias devem ter sido fundadas. Como toda a terra arável disponível
estava sendo usada, os agricultores intensificaram a produção, extraindo mais
alimento de uma dada área por meio de sistemas elaborados de terraços e
irrigação.
Finalmente, porém, eles chegaram ao limite
da produtividade agrícola, e as aldeias começaram a atacar umas às outras.
Quando uma aldeia derrotava outra, apropriava-se de sua terra ou obrigava seu
povo a entregar uma parte de sua colheita todos os anos. Desse modo, a aldeia
mais forte dentro de uma área crescia como classe dominante, e as aldeias mais
fracas tinham de entregar sua produção excedente, iniciando assim um sistema em
que os pobres cultivavam a terra para os ricos. Tudo isso parece plausível, mas
não há nenhuma evidência de que as pessoas chegaram ao limite da produtividade
agrícola em qualquer dos lugares onde sociedades estratificadas emergiram pela
primeira vez. No caso de uma seca ou de uma má colheita, contudo, é possível
imaginar aldeias com reservas de alimentos sendo atacadas por aldeias vizinhas
onde a comida tivesse acabado.
Uma visão mais ampla que abarca todas
essas teorias é a ideia de que sociedades mais complexas (isto é, aquelas com
liderança forte e hierarquia social bem definida) serão mais produtivas, mais
resistentes, mais capazes de sobreviver a privações e se defender. Assim, as aldeias
em que surgissem líderes fortes suplantariam outras aldeias próximas e menos organizadas,
e seriam lugares mais atraentes para se viver, pelo menos para aqueles que não se
importassem em se submeter à autoridade do líder. Em geral, supõe-se que o
surgimento de líderes fortes implica coerção, porém as pessoas poderiam
inicialmente ter achado que valia a pena entregar ao líder toda ou parte de sua
produção excedente se os benefícios que recebessem em troca – sistemas de
irrigação eficientes, maior segurança, realização de ritos religiosos para
conservar a fertilidade do solo, mediação em disputas – fossem considerados suficientemente
valiosos. Nesse caso, o líder teria condições de guardar uma parte cada vez maior
do excedente para seu próprio uso. Ora, depois que a pessoa se estabelece e
investe trabalho numa casa, em campos e sistemas de irrigação, ela tem uma
razão para permanecer onde está, mesmo que o líder comece a se pavonear,
afirmando ser descendente de um deus ou coisa do gênero.
Como podemos saber o que aconteceu? As
evidências arqueológicas mostram o processo de estratificação social ocorrendo
no mundo todo mais ou menos da mesma maneira. Ele culminou no surgimento de
civilizações da Idade do Bronze bastante comparáveis em diferentes partes do
mundo, mas em momentos diferentes: começando no Egito e na Mesopotâmia, por
volta de 3500 a.C.; durante a dinastia Shang no norte da China, por volta de 1400
a.C.; com a ascensão da civilização maia no sul do México, a partir de cerca de
300 d.C.; e na América do Sul por volta da mesma época, levando ao
estabelecimento do Império Inca no século XV.
O problema é que as evidências
arqueológicas não revelam muita coisa sobre o mecanismo de estratificação. Os
primeiros sinais de mudança são, em geral, maiores variações nos itens tumulares
e o surgimento de estilos de cerâmica regional mais elaborados, o que acontece
por volta de 5500 a.C. na Mesopotâmia, 2300 a.C. no norte da China e 900 a.C.
nas Américas. Essa cerâmica sugere algum grau de especialização e possivelmente
o despontar de elites capazes de sustentar artesãos em tempo integral. Grande
número de tigelas de cerâmica, feitas em tamanhos padrão, aparecem na
Mesopotâmia por volta de 3500 a.C., o que sugere que sua manufatura estava sob
controle centralizado e que medidas padrão de grãos e de outras riquezas
naturais eram usadas no pagamento de tributos e na distribuição de provisões.
No norte da China, povoados do período
Longshan (3000-2000 a.C.) começam a ter grandes muralhas; armas como lanças e
porretes tornam-se mais comuns. Na Mesopotâmia, aparecem entradas de
construções em forma de L, depósitos secretos de pedras usadas em atiradeiras e
trincheiras defensivas. Tudo isso é sugestivo de uma organização para fins de
defesa. Igualmente reveladores são os primeiros passos em direção à escrita, na
forma de fichas e selos usados para a administração, no oeste da Ásia, e
símbolos escritos em ossos por adivinhos da sorte, no norte da China.
Comunidades cada vez maiores, à medida que aldeias se transformam em vilas,
indicam melhor organização política, pela simples razão de que sem uma
autoridade reconhecida para a solução de conflitos as aldeias parecem não poder
crescer além de certo tamanho.
No início da dinastia Shang, na China, por
volta de 1850 a.C., há oficinas artesanais especializadas; algumas comunidades
têm certos tipos de oficinas e não outros, sugerindo especialização local
deliberada. A habilidade para trabalhar o bronze no Oriente Próximo e na China
e o ouro na América do Sul é mais um sinal da especialização dos ofícios. A
presença de requintadas peças em metal entre os itens tumulares indica
estratificação, em alguns casos num grau extraordinário. Nos túmulos “reais” da
cidade mesopotâmica de Ur, datados de c.2500 a.C., os mortos eram sepultados
com objetos de ouro ou prata, ou ainda com peças incrustadas de pedras
preciosas. Eram também acompanhados por dúzias de criados, músicos e
guarda-costas sacrificados, e até de bois para puxar suas bigas. Esses túmulos,
com exemplos semelhantes na China, fornecem notáveis e horripilantes evidências
de estratificação social.
Quando as primeiras cidades surgem, com
seus artesãos especializados organizados em distritos e construções monumentais
como templos e pirâmides, não há dúvida de que houve uma estratificação social.
De fato, há evidências escritas diretas dela. Na China, documentos detalham uma
complexa hierarquia de nobres, cada um com seu próprio território, sob um rei.
Nas cidades-Estado da Mesopotâmia, pequenas tábuas de argila registram impostos
pagos, artigos produzidos e provisões distribuídas; há também listas de membros
de associações diversas, desde cervejeiros até encantadores de serpentes. No
Egito, o Inspetor de Todas as Obras do Rei na Quarta Dinastia (o período em que
as pirâmides foram construídas) tinha uma grande equipe de funcionários e
escribas que contratavam, alimentavam e organizavam numerosos pedreiros em
tempo integral e um número maior ainda de operários da construção que se
revezavam. Isso envolvia uma montanha de listas de provisões e tabelas de
horários.
O surgimento da arquitetura monumental,
cujos muitos exemplos ainda vemos de pé por todo o mundo, fornece sem dúvida a
evidência mais direta e duradoura da estratificação social das primeiras
civilizações. Essas obras de grande escala só podem ser levadas a cabo sob uma
estratégia de administração eficiente, com um sistema de armazenagem do
alimento excedente e de sua distribuição na forma de provisões para os
operários. E também sob uma ideologia que convença as pessoas de que o projeto
de construção vale a pena – em suma, por uma sociedade hierárquica governada
por um rei todo-poderoso. A característica que define esses túmulos, templos e
palácios é serem muito maiores e elaborados que o necessário. Essas construções
são afirmações de poder, e à medida que as sociedades se tornam mais estratificadas,
tornam-se mais proeminentes.
Representação mesopotâmica de uma cidade, com diferentes tipos de trabalhadores supervisionados por um rei. |
As pirâmides do Egito, os zigurates da
Mesopotâmia e os templos em degraus do centro e do sul do México tornaram-se
possíveis graças aos excedentes agrícolas e ao consequente aumento da
complexidade social. Caçadores-coletores não teriam nem sonhado em construí-los,
e mesmo que tivessem, faltavam-lhes os meios – a riqueza na forma de alimento
excedente e as necessárias estruturas organizacionais – para fazê-lo. Esses
grandes edifícios representam monumentos não só ao surgimento das primeiras
civilizações, mas também ao nascimento de um grau novo e sem precedentes de
desigualdade e estratificação social que persiste desde então.
4. Seguir o alimento
“Fez chover maná para que o povo comesse: deu-lhe o pão dos
céus.”
Salmo 78, versículo 24
Uma indicação das
estruturas de poder
Numa manhã de maio, pouco antes
do nascer do sol, mais de 600 jovens incas luxuosamente vestidos alinharam-se
em duas fileiras paralelas num campo sagrado, cercados por caules oscilantes de
milho. Quando os primeiros lampejos do sol despontaram, começaram a cantar, de
início suavemente, mas com crescente intensidade à medida que o sol se elevava
no céu. Sua canção era um canto de vitória militar, ou haylli. O canto foi se avolumando ao longo da manhã, atingindo o
clímax ao meio-dia. Depois, tornou-se pouco a pouco mais suave durante a tarde
e terminou quando o sol se pôs. No crepúsculo, os rapazes, todos recém-iniciados
filhos de incas nobres, começaram a colher o milho. Essa cena, repetida a cada
ano, era apenas um de vários costumes incas relacionados ao milho que demonstravam
e reforçavam o status privilegiado da elite dominante.
Outro exemplo era a cerimônia do plantio
do milho, que ocorria em agosto. Quando o sol se punha entre duas grandes
colunas sobre o morro de Picchu, tal como vistas do centro de Cuzco, a capital
inca, era hora de o rei dar início à estação do cultivo. Ele fazia isso arando
e plantando um dos vários campos sagrados que só podiam ser lavrados por
membros da nobreza. Segundo o relato de uma testemunha ocular: “Na ocasião do
plantio, o próprio rei ia e arava um pouco ... o dia em que os incas faziam
isso era um festival solene de todos os senhores de Cuzco. Eles ofereciam
grandes sacrifícios a essa planície, especialmente em prata, ouro e crianças.”
Os nobres incas então lavravam a terra, mas só depois que o rei iniciara o
processo. “Se o rei não tivesse feito isso, nenhum índio ousaria cavar a terra,
e tampouco acreditaria que ela seria produtiva, se o rei não a tivesse cavado
primeiro”, mencionou outro observador. Outros sacrifícios de lhamas e porquinhos-da-índia
eram feitos quando o plantio do milho começava. No meio do campo, sacerdotisas
derramavam chicha, ou cerveja de milho, em torno de uma lhama branca. Essas oferendas
visavam a proteger os campos da geada, do vento e da estiagem.
Para os incas, a agricultura estava estreitamente
associada à guerra: a terra era derrotada, como numa batalha, pelo arado.
Assim, a cerimônia da colheita era realizada por jovens nobres como parte de
sua iniciação como guerreiros, e eles cantavam um haylli enquanto colhiam o milho para celebrar sua vitória sobre a
terra. No início da estação de cultivo seguinte, somente o inca soberano tinha
poder para derrotar a terra e se apoderar de suas energias reprodutivas para
assegurar o sucesso do ciclo agrícola, por isso tinha de cavar a terra
primeiro. Isso enfatizava seu poder sobre o povo: sem ele, todos morreriam de
fome. A derrota da terra era também uma reencenação da batalha entre os
primeiros incas e os habitantes nativos de Cuzco, os huallas, que os incas
tinham derrotado antes mesmo de plantar o primeiro milho. Na visão dos incas,
eles haviam triunfado sobre a natureza de duas maneiras: derrotando os
selvagens locais e depois introduzindo a agricultura. Os membros da elite
dominante afirmavam ser descendentes diretos dos vencedores daquela batalha
original. As cerimônias realçavam esse vínculo, e consequentemente o direito da
elite de governar as massas, ao mesmo tempo em que também sugeriam que a
estrutura hierárquica da sociedade era parte de uma antiga ordem natural. A
sugestão era que se o rei e seus nobres fossem derrubados, não haveria ninguém
para fazer as plantas crescerem.
Atividades desse tipo relacionadas ao
alimento eram amplamente usadas para definir e reforçar a posição privilegiada
da elite em civilizações primitivas. A comida, ou a capacidade de produzi-la,
era usada para pagar impostos e exigida como tributo após vitórias militares.
Oferendas de alimentos e sacrifícios eram usados para manter a estabilidade do universo
e assegurar a continuação do ciclo agrícola. Partilhas formais de comida, na
forma de provisões e salários e em banquetes e festivais, enfatizavam também
como ela – e portanto o poder – era distribuída. No mundo moderno, acompanhamos
o dinheiro para determinar onde está o poder. No mundo antigo, é o alimento que
revela as estruturas de poder. Para desvendar a organização das primeiras
civilizações, devemos seguir o alimento.
Comida é dinheiro
Os alimentos eram usados em
civilizações primitivas como moeda, em escambo e para pagar salários e
impostos. Eram transferidos dos agricultores para a elite de várias maneiras, e
depois redistribuídos na forma de salários e provisões para sustentar as atividades
dessa elite: construções, administração, guerra e assim por diante. O princípio
de que parte do excedente agrícola ou todo ele tinha de ser entregue é comum a
todas as civilizações primitivas, uma vez que, antes de mais nada, a
apropriação desse excedente foi a base fundamental para que elas surgissem.
Havia muitos arranjos diferentes. Em todos os casos, porém, a estrutura da
sociedade – para quem as pessoas trabalhavam, de onde vinha seu sustento e para
onde direcionavam suas lealdades – era definida pelo alimento.
No Egito e na Mesopotâmia, tributos eram
pagos diretamente na forma de alimento ou indiretamente na forma de trabalho
agrícola. A maioria dos agricultores egípcios não possuía sua própria terra,
arrendando-a de proprietários que reivindicavam uma fração da produção. O
Estado possuía muitas terras, o que, portanto, gerava grande receita em
provisão de alimentos. Outras terras pertenciam a funcionários públicos,
templos, nobres e ao próprio faraó, e também eram arrendadas a agricultores em
troca de uma parcela de sua colheita, com uma fração desse aluguel indo para o
Estado como imposto. O aluguel cobrado e o imposto arrecadado dependiam do
potencial agrícola da terra, de acordo com sua proximidade de poços e canais e
do nível que a cheia do Nilo alcançava a cada ano.
Os Papéis de Hekanakhte, uma série de
cartas datadas de c.1950 a.C., escritas por um sacerdote para sua família
quando ele estava afastado de sua terra, dão detalhes desse sistema em ação, ao
mesmo tempo em que fornecem um raro vislumbre da vida cotidiana no Antigo Egito.
Ao que parece, Hekanakhte administrava terras pertencentes a um templo, e em
suas cartas ele aconselha a família sobre que áreas cultivar e quanto esperar
que cada uma produzisse, quantas sacas de cevada cobrar ao arrendar terras a
outros agricultores e quantas pagar aos trabalhadores na propriedade. Fica
evidente que os tempos não são bons e que a comida está escassa; Hekanakhte
lembra sua família de que eles estão comendo melhor que a maioria das pessoas.
Há uma desavença por causa de uma criada chamada Senen, e muita indulgência é
demonstrada para com um rapaz mimado chamado Snofru. Dívidas e aluguéis são
cobrados em cevada e trigo, e em alguns casos jarros de óleo são aceitos como
pagamento no lugar deles: um jarro de óleo vale duas sacas de cevada, ou três
de trigo.
Os impostos, como os aluguéis, eram também
pagos na forma de alimento. Os cobradores de impostos levavam os víveres para
os centros administrativos regionais, onde eram redistribuídos como pagamento a
funcionários do governo, artesãos e agricultores recrutados para trabalhar para
o Estado em regime de corveia. Esses trabalhadores instalavam e mantinham
sistemas de irrigação, construíam túmulos e pirâmides, trabalhavam em minas e executavam
serviço militar. Durante um período de trabalho em regime de corveia, que podia
durar vários meses, os trabalhadores eram alimentados, abrigados e vestidos
pelo Estado. Foram trabalhadores sob esse regime que construíram as pirâmides;
listas de provisões mostram que eles recebiam diariamente porções de pão e
cerveja, complementadas com cebola e peixe. Um esquema semelhante prevalecia na
Mesopotâmia, onde a terra pertencia a famílias ricas, templos, conselhos
municipais ou ao palácio. Os agricultores entregavam uma fração de sua colheita
para arrendar a terra, e o rei arrecadava impostos sobre os campos não pertencentes
ao palácio. Desse modo, a maior parte do excedente ia para o rei, para os templos
erguidos a vários deuses e para os proprietários de terras. Como no Egito, o
trabalho em regime de corveia era usado em grandes projetos de construção.
Em algumas culturas, no entanto, os
impostos eram pagos unicamente na forma de trabalho. Na China, sob a dinastia
Shang, clãs rurais cultivavam seus próprios campos de propriedade comunal, mas
também trabalhavam em campos especiais cuja produção ia para o rei, governadores
rurais ou outras autoridades. De maneira semelhante, famílias de agricultores incas
cultivavam seus próprios campos e aqueles pertencentes a seu clã, ou ayllu. A produção dos campos dos ayllu sustentava o chefe local e o culto
ao deus local. Agricultores também passavam parte de seu tempo trabalhando em
campos do Estado ou de templos dedicados aos deuses mais importantes. Esse
esquema surgiu de um acordo firmado quando os ayllu, que eram anteriormente comunidades autônomas, foram incorporados
ao reino inca: foi permitido aos clãs conservar sua própria terra e sua
produção, contanto que, em troca, fornecessem mão de obra para cultivar campos
do Estado. Isso significava que o rei inca não recebia de seus súditos nenhum
alimento como imposto, o que o colocaria em débito para com eles; em vez disso,
os súditos trabalhavam na suas terras e ele ficava com a produção, que era
transportada para depósitos regionais. Os agricultores incas tinham também de
trabalhar ocasionalmente em regime de corveia em áreas como construção,
mineração ou serviço militar. Tudo isso era registrado mediante um sistema de
cordões coloridos com nós chamados de quipos.
A sociedade asteca era dividida em grupos
proprietários de terras chamados calpullis.
Diferentemente dos ayllu incas, cujos membros eram todos iguais sob o chefe, os
calpullis eram supervisionados por
algumas famílias de alta posição social pertencentes à nobreza asteca. Cada
família cultivava tanto seus próprios campos quanto campos partilhados, cuja produção
sustentava os nobres, os templos, os professores e os soldados do calpulli. Os calpullis tinham também de pagar certa quantidade de impostos e
trabalho, em regime de corveia, para o Estado. Além disso, o rei, instituições
estatais, nobres e guerreiros importantes possuíam suas próprias terras, que
eram cultivadas por agricultores sem terras que, em troca, recebiam apenas
comida suficiente para sobreviver. O resto da produção dessas terras ia
diretamente para seus proprietários.
O alimento também advinha de Estados
súditos, na forma de tributos extorquidos por Estados e cidades-Estado
dominantes dos vizinhos mais fracos, sob ameaça de uso de força militar,
geralmente após uma vitória bélica. Após a derrota de uma cidade-Estado por
outra, na Mesopotâmia por exemplo, a cidade perdedora seria saqueada e teria
também de pagar tributos regulares à cidade vencedora. Sargão da Acádia, que
conquistou as cidades-Estado da Mesopotâmia por volta de 2300 a.C. e as
unificou num império, exigiu vastas quantidades de tributos de cada cidade:
inscrições falam de armazéns inteiros de grãos sendo dados em pagamento. Além
de enfatizar sua superioridade, isso mantinha as cidades súditas fracas e a capital
de Sargão forte, permitindo-lhe também sustentar uma enorme equipe de
empregados: ele se gabava de alimentar 5.400 homens todos os dias. Ao redistribuir
tributos entre seus seguidores, os soberanos podiam reforçar sua liderança e
conservar apoio para outras campanhas militares.
Talvez o melhor exemplo de cobrança de
tributos seja o da “tríplice aliança” asteca entre Tenochtitlan, Texcoco e
Tlacopan. Essas três cidades-Estado cobravam tributos de todo o México central.
Estados súditos próximos, dentro e em torno do vale do México, tinham de fornecer
enormes quantidades de comida: todos os dias o chefe de Texcoco recebia milho, feijões,
abóboras, pimentas, tomates e sal para alimentar mais de 2 mil pessoas. Estados
mais distantes forneciam algodão, tecidos, metais preciosos, aves exóticas e
objeto manufaturados. O montante de imposto pago dependia da distância que
separava cada Estado das três capitais (como o controle que a aliança exercia
sobre aqueles mais distantes era mais fraco, ela exigia menos tributos deles) e
do fato de o Estado ter resistido ou não antes de se submeter ao domínio da
aliança (Estados que cediam sem lutar pagavam menos). O fluxo constante de alimento
e outros bens para a capital significava que não havia dúvida sobre onde se localizava
o poder. Os governantes astecas usavam esses tributos para pagar funcionários, abastecer
o exército e sustentar obras públicas. Tributos dados à nobreza reforçavam a
posição do soberano e simultaneamente enfraqueciam os chefes de Estados
subordinados, que terminavam com menos para distribuir entre seus próprios
seguidores: menos alimento significava menos poder.
Alimentando os deuses
À medida que os sistemas de
organização social tornaram-se mais complexos, o mesmo ocorreu com as práticas
religiosas que davam o respaldo cosmológico ao direito da elite de arrecadar
todos esses impostos. Entre as primeiras civilizações do mundo, as crenças e as
práticas religiosas variavam amplamente, mas em muitos casos havia uma clara
congruência entre o pagamento de impostos pelas massas à elite e o “pagamento”
de sacrifícios e oferendas pela elite aos deuses. Acreditava-se que essas
oferendas faziam a energia retornar à sua fonte divina, de modo que esta
pudesse continuar estimulando a natureza a fornecer alimentos aos seres
humanos. Em vez de serem tão poderosos que pudessem existir sem o apoio da
humanidade, os deuses eram concebidos como dependentes dos seres humanos, os quais
eram por sua vez dependentes dos deuses. Um texto egípcio de c.2070 a.C., por exemplo,
refere-se aos seres humanos como o “gado” do deus criador, sugerindo que o deus
ao mesmo tempo cuidava dos seres humanos e dependia deles para seu sustento. De
maneira semelhante, muitas culturas acreditavam que os deuses haviam criado a
humanidade para lhes fornecer alimento espiritual na forma de sacrifícios e
preces; em troca, os deuses forneciam alimento físico aos homens fazendo as
plantas e os animais crescerem. Sacrifícios eram considerados um meio essencial
de manter esse ciclo.
Algumas culturas mesoamericanas
acreditavam que, de tempos em tempos, os deuses sacrificavam a si mesmos, ou
uns aos outros, para assegurar a continuidade do universo e a sobrevivência da
humanidade. Os maias, por exemplo, acreditavam que o milho era a carne dos
deuses, contendo poder divino, e no tempo da colheita os deuses estavam, na verdade,
sacrificando-se para sustentar a humanidade. O poder divino transferia-se para
os seres humanos quando eles comiam o milho e ficava particularmente
concentrado em seu sangue. Sacrifícios humanos com derramamento de sangue eram
uma maneira de saldar essa dívida e devolver o poder divino aos deuses. Comida
e incenso também eram fornecidos como oferendas, mas os sacrifícios humanos
eram considerados os mais importantes.
Os astecas também consideravam os
sacrifícios humanos uma maneira de restituir a energia devida aos deuses. A Mãe
Terra, como acreditavam, era alimentada por sangue humano, e as plantas só
cresceriam se ela o recebesse em quantidade suficiente. Embora fosse
supostamente uma honra ser sacrificado, parece que as vítimas não pertenciam à
elite dominante, sendo em geral criminosos, prisioneiros de guerra e crianças.
Como se acreditava que a carne e o sangue humanos eram feitos de milho, esses
sacrifícios sustentavam o ciclo cósmico: o milho tornava-se sangue, e o sangue
era depois transformado de volta em milho. Vítimas dos sacrifícios eram
chamadas de “tortillas para os
deuses”. Os incas também pensavam que os sacrifícios eram necessários para
alimentar os deuses. Ofereciam lhamas, porquinhos-da-índia, aves, hortaliças
cozidas, bebidas fermentadas, chocolate, ouro, prata e requintados tecidos, que
eram queimados para liberar a energia gasta para tecê-los. Comidas e bebidas alcoólicas
feitas de milho eram tidas como particularmente apreciadas pelos deuses. Mas os
sacrifícios mais valiosos eram os humanos. Depois de subjugar uma nova região,
os incas sacrificavam seus mais belos habitantes.
Em templos egípcios, animais eram mortos e
sua carne era oferecida às imagens dos deuses. Acreditava-se que os deuses
incorporavam-se nas imagens três vezes por dia, para absorver a força vital das
oferendas, da qual necessitavam para reabastecer a energia gasta para manter o universo
em funcionamento. Oferendas de alimentos eram necessárias também para manter a força
vital de seres humanos mortos que haviam se tornado deuses. Assim, eram
frequentes as oferendas a faraós mortos; enchiam-se os túmulos com vasos de
comida para sustentá-los na vida após a morte. De maneira semelhante, na China,
sob a dinastia Shang, cereais, cerveja de milhete, animais (cães, porcos,
javalis, ovelhas e bois) e sacrifícios humanos, em geral de prisioneiros de
guerra, eram oferecidos tanto aos deuses quanto aos ancestrais dos reis. Pensava-se
que os deuses bebiam o sangue das vítimas abatidas. As oferendas mais elaboradas,
no entanto, eram feitas aos ancestrais dos reis Shang, que se alimentavam
desses sacrifícios. Se não fossem suficientemente bem alimentados, acreditavam
os reis Shang, os ancestrais puniriam seus descendentes com más colheitas,
derrotas militares e pragas.
Os mesopotâmicos acreditavam que os seres
humanos tinham o dever de prover alimentos e residências terrenas para os
deuses, que recebiam duas refeições por dia em seus templos. Eles dependeriam
desse alimento dado pelos humanos: na versão mesopotâmica da história do dilúvio,
os deuses destroem a humanidade e depois se arrependem, pois ficam famintos por
causa da falta de oferendas. Um deles, porém, Enki, avisa Utnapishtim (o equivalente
mesopotâmico do Noé bíblico) do dilúvio que se aproxima e lhe diz para
construir uma arca. Quando Utnapishtim emerge do barco e queima algo como um
sacrifício, os deuses se aglomeram em torno da fumaça “como moscas”, porque é o
primeiro alimento que recebem em dias. Em seguida, perdoam Enki por ter
permitido a alguns seres humanos sobreviver. Os mesopotâmicos acreditavam que
os deuses poderiam sobreviver sozinhos se produzissem seu próprio alimento, mas
eles criaram os humanos e lhes ensinaram agricultura para que o fizessem em seu
lugar.
Em todos esses casos, sacrifícios e
oferendas canalizam energia de volta para o reino espiritual na forma de
alimento para deuses e ancestrais, e asseguram que eles, por sua vez, continuem
a alimentar a humanidade, mantendo o ciclo agrícola em funcionamento. O oferecimento
de sacrifícios deu à elite um papel decisivo como intermediária entre os deuses
e as massas agricultoras. Ao pagar impostos, os agricultores trocavam alimento
por ordem e estabilidade terrenas, enquanto a elite administrava os sistemas de
irrigação, organizava defesas militares e assim por diante. Ao oferecer
sacrifícios aos deuses, a elite trocava alimento espiritual por ordem cósmica,
enquanto eles mantinham o equilíbrio do universo e a fertilidade do solo.
Certamente não foi por coincidência que
ideologias religiosas tão semelhantes surgiram nas civilizações primitivas,
distanciadas como estavam no tempo e no espaço. A noção de que os deuses
dependiam de oferendas da humanidade para sua sobrevivência foi peculiar a
essas culturas, sem dúvida por ser muito conveniente para os membros das elites
dominantes. Isso legitimava a distribuição desigual de riqueza e poder, e
fornecia uma advertência implícita de que, sem as atividades administrativas da
elite, o mundo acabaria. Os agricultores, seus governantes e os deuses
dependiam todos uns dos outros para assegurar sua sobrevivência; haveria uma
catástrofe se qualquer um deles se desviasse dos papéis que lhes eram designados.
Mas, assim como os agricultores tinham o imperativo moral de fornecer comida para
a elite, esta, por sua vez, tinha o dever de cuidar do povo e mantê-lo saudável
e em segurança. Havia, em suma, um pacto social entre os agricultores e seus
governantes (e, por extensão, os deuses): se nós provemos a sua subsistência,
vocês devem prover a nossa. O resultado era que impostos pagos em alimentos
terrenos e sacrifícios de alimento espiritual, todos justificados por ideologia
religiosa, reforçavam a ordem social e cultural.
As origens agrícolas da
desigualdade
No mundo moderno, a equação
direta de alimento com riqueza e poder não mais prevalece. Para as pessoas em
sociedades agrícolas, o alimento ainda funciona como uma provisão de valor, uma
moeda e um indicador de riqueza; é o que as pessoas labutam o dia todo para produzir.
Nas sociedades urbanas modernas, porém, é o dinheiro que desempenha esses papéis.
O dinheiro é uma forma mais flexível de riqueza, facilmente guardada e
transferida, e pode ser prontamente convertido em alimento num supermercado, na
quitanda, na cafeteria ou no restaurante. A comida só é equivalente a riqueza e
poder quando é escassa ou cara, como ocorreu na maior parte da história. Para
os padrões históricos, a comida hoje é relativamente abundante e barata, pelo
menos no mundo desenvolvido.
A comida, entretanto, não perdeu por
completo sua relação com a riqueza; seria estranho que isso tivesse acontecido,
sendo a conexão tão antiga. Mesmo em sociedades modernas há numerosos ecos do
papel econômico outrora central da comida, tanto nas palavras quanto nos costumes.
Chamamos de “ganha-pão” o trabalho que garante a subsistência do trabalhador. Em
inglês, dinheiro pode ser chamado de bread
ou dough. Refeições partilhadas
continuam sendo uma forma importante de moeda social. Um jantar requintado deve
ser retribuído com uma refeição igualmente suntuosa. Banquetes são uma maneira
usual de demonstrar riqueza e status e, no mundo dos negócios, de lembrar às
pessoas quem é o chefe. Em muitos países a linha da pobreza é definida em
relação à renda necessária para comprar um mínimo básico de gêneros alimentícios.
Pobreza é falta de acesso aos alimentos; portanto, riqueza significa não ter de
se preocupar em saber de onde virá a próxima refeição.
Uma característica comum a sociedades
ricas, contudo, é um sentimento de que a antiga conexão com a terra foi
perdida, assim como o desejo de restabelecê-la. Para os mais abastados nobres
romanos, o conhecimento de agricultura e a posse de grandes áreas de terra eram
uma maneira de demonstrar que não haviam se esquecido das origens de humildes agricultores
de seu povo. De maneira semelhante, muitos séculos depois, na França pré- revolucionária,
a rainha Maria Antonieta mandou construir uma fazenda planejada no terreno do
palácio de Versalhes, onde ela e suas damas de companhia, vestidas como
pastoras e ordenhadoras, ordenhavam vacas que haviam sido meticulosamente
limpas. Hoje, pessoas em muitas partes ricas do mundo gostam de cultivar seus
próprios alimentos, em hortas ou terrenos alugados da municipalidade. Em muitos
casos, elas poderiam facilmente dar-se ao luxo de, em vez disso, comprar as
frutas e hortaliças, mas o cultivo de seu próprio alimento proporciona uma
ligação com a terra, uma forma suave de exercício, uma provisão de produtos
frescos e uma fuga do mundo moderno. (O cultivo de alimentos sem uso de substâncias
químicas costuma ser muito valorizado nesses círculos.) Na Califórnia, a parte mais
rica do país mais rico do mundo, a comida simples dos camponeses italianos é
mais venerada. Na Índia, chegou a ser inaugurada uma aldeia turística, perto do
vibrante centro tecnológico de Bangalore, onde a classe média recém-enriquecida
experimenta uma versão romantizada da existência de seus antepassados, agricultores
de subsistência. Um dos privilégios da riqueza é a opção de imitar os estilos
de vida dos pobres camponeses.
A riqueza tende a afastar as pessoas do
cultivo da terra; de fato, não ter necessidade de trabalhar como agricultor é
uma outra maneira de definir riqueza. Hoje, as sociedades mais ricas são
aquelas em que a proporção da renda gasta com alimentos e a fração da força de trabalho
envolvida na sua produção são mais baixas. Os agricultores representam apenas cerca
de 1% da população em países ricos como os Estados Unidos e a Grã-Bretanha. Em países
pobres como Ruanda, o percentual da população dedicado à agricultura ainda é de
mais de 80% – como em Uruk 5.500 anos atrás. No mundo desenvolvido, a maioria
das pessoas tem trabalhos especializados sem relação com a agricultura, e teria
dificuldade em sobreviver caso se visse, de repente, obrigada a produzir sua
própria comida. O processo de separação em diferentes papéis, que teve início
quando as pessoas começaram a se dedicar à agricultura e abandonaram o estilo
de vida igualitário dos caçadores-coletores, chegou à sua conclusão lógica.
O fato de as pessoas no mundo desenvolvido
de hoje terem geralmente um trabalho específico – advogado, mecânico, médico ou
motorista de ônibus – é uma consequência direta dos excedentes alimentares que
resultam de um contínuo aumento de produtividade da agricultura, durante os
últimos milhares de anos. Outro corolário desses excedentes alimentares cada
vez maiores foi a divisão em ricos e pobres, poderosos e fracos. Nenhuma dessas
distinções pode ser encontrada num bando de caçadores-coletores, a estrutura
social que definiu a humanidade durante a maior parte de sua existência. Os
caçadores-coletores têm poucas posses, ou nenhuma, mas isso não significa que
sejam pobres. Sua “pobreza” só se torna visível quando eles são comparados com
membros das sociedades agrícolas, estabelecidas, que têm condições de acumular
bens. Riqueza e pobreza, em outras palavras, parecem ser consequências
inevitáveis da agricultura e de seu produto, a civilização.
Tom Standage
Uma história comestível da humanidade
Tradução:
Maria Luiza X. de A. Borges
Uma edição:
Zahar Editores
Disponibiliado por:
Le Livros
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A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.
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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."
Sumário
INTRODUÇÃO Ingredientes do passado
PARTE I Os fundamentos comestíveis da civilização
1. A invenção da agricultura
2. As raízes da modernidade
PARTE II Comida e estrutura social
3. Alimento, riqueza e poder
4. Seguir o alimento
PARTE III Os caminhos dos alimentos
5. Estilhaços do paraíso
6. Sementes de impérios
PARTE IV Comida, energia e industrialização
7. Novo Mundo, novos alimentos
8. A máquina a vapor e a batata
PARTE V Comida é arma
9. O combustível da guerra
10. Luta por comida
PARTE VI Comida, população e desenvolvimento
11. Alimentar o mundo
12. Paradoxos da abundância
EPÍLOGO Ingredientes do futuro
Notas
Bibliografia
Agradecimentos
Índice remissivo
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