domingo, 16 de agosto de 2015

COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI - FRIO

Nota do Blog: as inter-relações entre tempo e fatos estabelecidas pelo autor e a sua ideia propriamente dita da obrigatória simbiose entre as coisas, poderá ser melhor compreendida se a introdução do livro for lida, o que poderá ser feito em: 
http://adautogmjunior.blogspot.com.br/2015/08/como-chegamos-ate-aqui-introducao.html


                       2º CAPÍTULO - FRIO

     NOS MESES do início do verão de 1834, um navio de três mastros chamado Madagascar entrou no porto do Rio de Janeiro trazendo em seu porão uma carga extremamente implausível: um lago congelado da Nova Inglaterra. O Madagascar e a tripulação estavam a serviço de um empresário obstinado e empreendedor de Boston chamado Frederic Tudor. Hoje a história o conhece como “Rei do Gelo”, porém, durante a maior parte do início de sua vida adulta, ele foi um fracasso total, embora com uma tenacidade notável.
     “O gelo é um objeto interessante para contemplação”, escreveu Thoreau em Walden, olhando para a congelada extensão “lindamente azul” do lago de Massachusetts. Tudor cresceu contemplando o mesmo cenário. Era um jovem bem de vida de Boston, sua família havia muito tempo admirava a água congelada do lago de sua terra natal, Rockwood – não só pela estética, mas também pela permanente capacidade de manter as coisas frias. Como muitas famílias abastadas nos climas do norte, os Tudor armazenavam blocos de água do lago congelado em frigoríficos, cubos de gelo de noventa quilos que permaneciam maravilhosamente indissolúveis até a chegada dos meses quentes do verão, e um novo ritual começava: lascar fatias dos blocos para refrescar bebidas, fazer sorvete, resfriar um banho durante uma onda de calor.
     A ideia do bloco de gelo intacto por meses sem o benefício da refrigeração artificial soa estranha aos ouvidos modernos. Nós costumamos preservar o gelo graças às diversas tecnologias de congelamento do mundo atual. Mas o gelo na natureza é outro assunto – com exceção de um glaciar ocasional, consideramos que um bloco de gelo não pode sobreviver mais de uma hora no calor do verão, quanto mais meses.
     Mas Tudor sabia por experiência pessoal que um grande bloco de gelo podia durar muito nas temperaturas máximas do verão caso fosse resguardado do sol – ou pelo menos até o fim da primavera na Nova Inglaterra. Esse conhecimento plantaria a semente de uma ideia em sua cabeça, ideia que acabaria custando sua sanidade, sua fortuna e sua liberdade – antes de torná-lo um homem imensamente rico.
     Quando tinha dezessete anos, seu pai o mandou em viagem ao Caribe, acompanhando o irmão mais velho, John, que sofria de uma doença no joelho que o deixara praticamente inválido. A ideia era que os climas quentes melhorariam a saúde de John. Mas na verdade o efeito foi o oposto. Ao chegarem a Havana, os irmãos Tudor se sentiram oprimidos pelo clima quente e úmido. Logo navegaram de volta ao continente, parando em Savannah e Charleston, mas o calor do verão precoce os seguiu, e John ficou doente com o que parece ter sido uma tuberculose. Seis meses depois, ele morria, aos vinte anos.

Frederic Tudor

     Como intervenção médica, a aventura do irmão de Tudor no Caribe foi um completo desastre. Mas o sofrimento provocado pela inevitável umidade dos trópicos nas regalias de um cavalheiro do século XIX propiciou uma ideia radical – alguns diriam absurda – para o jovem Frederic Tudor: se ele conseguisse uma forma de transportar gelo do congelado norte para o Caribe, haveria um enorme mercado para ele. A história do comércio global já tinha demonstrado que vastas fortunas podiam ser feitas transportando-se uma mercadoria onipresente em certo ambiente para um local onde ela fosse escassa. Para o jovem Tudor, o gelo parecia ajustar-se perfeitamente a essa equação: quase inútil em Boston, o gelo seria inestimável em Havana.
     O comércio de gelo não era mais que um palpite, contudo, por alguma razão, Tudor manteve-o vivo em sua mente durante o luto, depois da morte do irmão, e ao longo dos anos sem rumo de um jovem de posses na sociedade de Boston. Em algum momento, dois anos após a morte do irmão, ele comunicou seu implausível esquema a seu irmão William e ao cunhado, o também próspero Robert Gardiner. Poucos meses depois do casamento da irmã, Tudor começou a escrever um diário. No frontispício, ele desenhou um esboço do edifício Rockwood, que há muito permitia à sua família escapar do calor do verão. Ele chamou-o de “Ice House diary”. A primeira anotação era: “Plano etc. para o transporte de gelo para climas tropicais. Boston, 1o de agosto de 1805. William e eu resolvemos neste dia juntarmos nossos recursos e embarcar no empreendimento de transportar gelo para o Caribe no próximo inverno.”
     A anotação era típica do comportamento de Tudor: alegre, confiante, quase comicamente ambiciosa. (O irmão William parecia menos convencido da viabilidade do esquema.) A confiança de Tudor em seu projeto derivava do valor final que o gelo obteria em seu caminho até os trópicos: “Em um país onde o calor é quase insuportável em algumas estações do ano”, ele escreveu em anotação posterior, “onde às vezes a necessidade primária da vida, a água, não pode ser obtida, a não ser em estado tépido, o gelo deve ser considerado um luxo muito maior que os outros.” O comércio de gelo estava destinado a dotar os irmãos Tudor de “fortunas tão grandes que nem saberíamos o que fazer com elas”. Tudor parece ter dado menos atenção aos desafios de transportar o gelo. Em correspondência do período, Tudor relata histórias de terceiros – quase certamente apócrifas –, de sorvete enviado intacto da Inglaterra a Trinidad, como primeira prova de que seu plano iria funcionar.
     Ao ler o “Ice House diary” agora, podemos ouvir a voz de um jovem acometido pela febre da convicção, fechando suas defesas cognitivas contra dúvidas e contra-argumentos.
     Por mais iludido que Frederic possa parecer, ele tinha uma coisa a seu favor: os meios para colocar em movimento a incrível façanha de seu plano. Tinha dinheiro suficiente para arrendar um navio e uma infinita fonte de gelo fabricado pela mãe natureza a cada inverno. Assim, em novembro de 1805, Tudor enviou seu irmão e o primo para a Martinica como guarda avançada, com instruções para negociar os direitos exclusivos sobre o gelo que seguiria vários meses depois. Enquanto esperava por notícias de seus emissários, Tudor comprou um navio chamado Favorite por US$ 4.750 e começou a colheita do gelo como preparativo para a viagem. Em fevereiro, Tudor zarpou do porto de Boston, com o Favorite portando uma carga completa de gelo de Rockwood, com destino ao Caribe. O esquema de Tudor foi corajoso o suficiente para atrair a atenção da imprensa, embora o tom tenha deixado algo a desejar. “Não é uma piada”, informou a Boston Gazette. “A embarcação com uma carga de oitenta toneladas de gelo zarpou desse porto para a Martinica. Esperamos que isso não se revele uma especulação escorregadia.”
     O escárnio do jornal se mostraria bem fundamentado, embora não pelas razões esperáveis. Apesar de inúmeros atrasos relacionados ao clima, o gelo sobreviveu à jornada em ótima forma. O problema apareceu num aspecto em que Tudor nunca havia pensado. Os moradores da ilha da Martinica não se interessaram pelos benefícios daquele exótico gelo. Eles simplesmente não sabiam o que fazer com aquilo.
     No mundo moderno, estamos habituados com a ideia de que um dia normal envolve a exposição a uma ampla variação de temperaturas. Gostamos de tomar café quente de manhã e sorvete de sobremesa, à tarde. Aqueles de nós que vivem em climas com verões quentes transitam entre o ar-condicionado dos escritórios e a mais brutal umidade; onde o inverno impõe as regras, nos agasalhamos bem, nos aventuramos pelas ruas geladas e aumentamos o termostato quando voltamos para casa. Mas a esmagadora maioria dos seres humanos que vivia em climas equatoriais em 1800 literalmente nunca tinha experimentado alguma coisa fria, nem uma vez. A ideia de água congelada era tão fantasiosa para os moradores da Martinica quanto um iPhone.
     As misteriosas, quase mágicas, propriedades do gelo acabariam afinal aparecendo em um dos grandes textos de introdução da literatura do século XX, Cem anos de solidão, de Gabriel García Márquez: “Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo.” Buendía lembrou-se de uma série de feiras itinerantes realizadas por ciganos durante sua infância, cada qual mostrando uma nova tecnologia extraordinária. Os ciganos exibiam lingotes magnéticos, telescópios e microscópios; mas nenhuma dessas conquistas da engenharia impressionou tanto os moradores da imaginária cidade sul-americana de Macondo quanto um bloco de gelo.
     Mas às vezes a simples novidade de um objeto pode tornar difícil discernir sua utilidade. Esse foi o primeiro equívoco de Tudor, apostar que a novidade absoluta do gelo seria um ponto a seu favor. Ele esperava que os blocos de gelo superassem todos os outros luxos. Em vez disso, eles apenas receberam olhares indiferentes.
     A indiferença diante dos poderes mágicos do gelo impediu que o irmão de Tudor, William, encontrasse um comprador exclusivo para a carga. Pior ainda, ele não conseguiu estabelecer um local adequado para armazenar a carga. Havia percorrido todo o caminho para a Martinica, mas deparou com a ausência de demanda para um produto que derretia ao calor tropical em ritmo alarmante. Postou panfletos ao redor da cidade incluindo instruções específicas sobre como transportar e preservar o gelo, mas encontrou parcos compradores. Ele conseguiu fazer um pouco de sorvete, impressionando alguns moradores locais, que acreditavam que a iguaria não poderia ser criada tão perto do equador. Em última análise, a viagem foi um completo fracasso. Em seu diário, Tudor estimou que tivesse perdido quase US$ 4 mil em sua desventura tropical.

     O TRISTE PADRÃO da viagem à Martinica se repetiria nos anos seguintes, com resultados cada vez mais catastróficos. Tudor enviou uma série de navios com gelo para o Caribe, obtendo apenas um ligeiro aumento na demanda do produto. Enquanto isso, a fortuna da família entrou em colapso, e os Tudor retiraram-se para a fazenda da família em Rockwood, que, como a maioria das terras da Nova Inglaterra, tinha perspectivas agrícolas muito parcas. Colher gelo era a última esperança da família. Contudo, era uma esperança que quase todos em Boston ridicularizavam abertamente, e uma série de naufrágios e embargos tornaram essa visão escarnecedora cada vez mais verdadeira. Em 1813, Tudor foi atirado à prisão dos caloteiros. Alguns dias depois, ele escreveu a seguinte anotação em seu diário:

Segunda-feira, dia 9, instante em que fui preso ... e trancado como devedor na prisão de Boston. ... Nesse dia memorável em minhas pequenas crônicas eu tenho 28 anos, seis meses e cinco dias de idade. Esse é um evento que eu não poderia ter evitado, mas é um clímax do qual tinha esperança de ter escapado, pois meus negócios afinal parecem caminhar bem, depois de uma luta terrível contra circunstâncias adversas, durante sete anos – porém, aconteceu, e tenho me esforçado para enfrentá-lo como faria com a tempestade do céu, a qual deve servir para fortalecer, e não para reduzir o espírito de um verdadeiro homem.

     O novo empreendimento de Tudor sofreu duas grandes desvantagens. Ele tinha um problema de demanda, pois a maioria de seus clientes potenciais não entendia como o produto podia ser útil. E havia a questão do armazenamento: ele perdia muito do produto para o calor, em particular quando chegava aos trópicos. Mas sua base na Nova Inglaterra propiciava uma vantagem crucial, além do próprio gelo. Ao contrário do Sul dos Estados Unidos, com suas plantações de açúcar e campos de algodão, os estados do Nordeste em grande parte eram desprovidos de recursos naturais que pudessem ser vendidos em outro lugar. Isso significava que os navios tendiam a deixar o porto de Boston vazios, rumando para o Caribe a fim de encher seus porões com cargas valiosas, antes de regressar aos mercados ricos da Costa Leste. Pagar a uma tripulação para conduzir um navio sem carga era queimar dinheiro. Qualquer carga era melhor que nada, o que significava que Tudor poderia negociar tarifas mais baixas para carregar seu gelo no que seria um navio sem carga, evitando a necessidade de comprar e manter sua própria frota.
     Parte da beleza do gelo, sem dúvida, era ser basicamente gratuito. Tudor só precisava pagar a trabalhadores para moldar os blocos retirados dos lagos congelados. A economia da Nova Inglaterra constava de outro produto igualmente inútil, a serragem, o principal refugo das serrarias. Após anos experimentando diferentes soluções, Tudor descobriu que a serragem era um excelente isolante para o gelo. Blocos em camadas, uns em cima dos outros, separados com serragem, duravam quase o dobro do tempo que o gelo desprotegido. Essa foi a frugal genialidade de Tudor: ele pegou três coisas que tinham custo zero – gelo, pó de serra e um navio vazio – e os transformou num próspero negócio.
     A catastrófica viagem inicial de Tudor para a Martinica deixou claro que ele precisava de um armazém nos trópicos que pudesse controlar; era muito perigoso manter seu produto perecendo em prédios não especificamente projetados para isolar o gelo do calor do verão. Ele tentou vários projetos de depósitos de gelo, até finalmente se decidir por uma estrutura de dupla camada que utilizava o ar entre duas paredes de pedra para manter o interior fresco.
     Tudor não entendia a base química molecular dessa decisão, mas tanto a serragem quanto a arquitetura da dupla camada tinham o mesmo princípio. Para o gelo derreter, era preciso retirar calor do ambiente circundante, quebrando o elo tetraédrico dos átomos de hidrogênio que propicia a estrutura cristalina do gelo. (A extração do calor a partir do ambiente circundante é que confere ao gelo sua capacidade milagrosa de nos refrescar.) O único lugar em que a troca de calor pode ocorrer é a superfície do gelo, e é por isso que os grandes blocos sobrevivem por tanto tempo – todas as ligações do hidrogênio de seu interior estão perfeitamente isoladas da temperatura exterior. Se você tenta proteger o gelo do calor externo com algum tipo de substância que conduz o calor de forma eficiente – um metal, por exemplo –, as ligações do hidrogênio logo se decompõem em água. Mas se você criar, entre o calor externo e o gelo, um tampão que conduz o calor precariamente, o gelo preservará seu estado cristalino por muito mais tempo. Como condutor térmico, o ar é cerca de 2 mil vezes menos eficiente que o metal e mais de vinte vezes menos eficiente que o vidro.
     Em seus depósitos de gelo, a estrutura de dupla camada de Tudor criou um isolante de ar que mantinha o calor do verão longe do gelo. Os invólucros de serragem nos navios criavam inúmeros bolsões de ar entre as aparas de madeira que mantinham o gelo isolado. Isolantes modernos, como o isopor, contam com a mesma técnica: o cooler que você leva no piquenique conserva a melancia gelada porque é feito de cadeias de poliestireno intercaladas com pequenos bolsões de gás.
     Em 1815, Tudor tinha afinal montado as peças-chave do quebra-cabeça do gelo: colheita, isolamento, transporte e armazenamento. Ainda perseguido por credores, ele começou a fazer embarques regulares para um depósito de gelo de alta tecnologia que construíra em Havana, onde o apetite por sorvetes teve lenta maturação. Passados quinze anos desde seu palpite inicial, o comércio de gelo de Tudor finalmente deu lucro. Na década de 1820, ele tinha por toda a América do Sul depósitos de gelo lotados de água congelada da Nova Inglaterra. Na década de 1830, os navios navegavam para o Rio de Janeiro e Bombaim. (A Índia acabaria por se revelar o mercado mais lucrativo.) Quando morreu, em 1864, Tudor havia acumulado uma fortuna de mais de US$ 200 milhões em valor atual.
     Três décadas depois de sua fracassada primeira viagem, Tudor escreveu as seguintes palavras no diário:

Neste mesmo dia eu parti de Boston trinta anos atrás, no Brig. Favorite Capt. Pearson, para a Martinica, com a primeira carga de gelo. No ano passado enviei mais de trinta cargas de gelo, e quarenta mais foram enviadas por outras pessoas. ... O negócio está estabelecido. Não pode ser abandonado agora nem depender apenas de uma única vida. A humanidade terá a bênção para sempre, morra eu logo ou tenha longa vida.

     O triunfante (embora muito atrasado) sucesso de Tudor vendendo gelo ao redor do mundo parece implausível para nós hoje, não só porque é difícil imaginar blocos de gelo sobrevivendo à travessia de Boston a Bombaim. Há uma curiosidade adicional, quase filosófica, nesse negócio do gelo. A maior parte do comércio de bens naturais envolve substâncias que prosperam em ambientes de alta energia. Cana-de-açúcar, café, chá, algodão – mercadorias em demanda nos séculos XVIII e XIX – eram fruto do calor escaldante de climas tropicais e subtropicais; os combustíveis fósseis que agora circulam pelo planeta em petroleiros e oleodutos são simplesmente energia solar captada e armazenada pelas plantas há milhões de anos.
     Em 1800, era possível ganhar uma fortuna pegando coisas que só cresciam em ambientes de alta energia e enviando-as para climas de baixa energia. Mas o comércio de gelo – talvez o único exemplo na história do comércio global – reverteu esse padrão. O que tornou o gelo valioso foi precisamente o estado de baixa energia do inverno da Nova Inglaterra, combinado com a peculiar capacidade do gelo de armazenar essa baixa energia por longos períodos de tempo. O dinheiro oriundo das colheitas dos trópicos causou um aumento populacional em climas que podiam ser implacavelmente quentes, o que, por sua vez, criou um mercado para um produto que lhe permitia mitigar o calor. Na longa história do comércio humano, a energia sempre esteve relacionada ao valor: quanto mais calor, mais energia solar, mais você podia crescer. Contudo, num mundo que se inclinava para o calor produtivo das plantações de cana de-açúcar e algodão, o frio também podia ter seu valor. Essa foi a grande sacada de Tudor.

     NO INVERNO DE 1846, Henry Thoreau viu cortadores de gelo empregados por Frederic Tudor talharem blocos do lago Walden com um arado puxado a cavalo. Parecia uma cena de Brueghel, homens trabalhando em uma paisagem invernal com ferramentas simples, longe da era industrial que trovejava em outras paragens. Mas Thoreau sabia que o trabalho deles estava ligado a uma rede mais ampla. Em seus diários, ele escreveu um alegre devaneio sobre o alcance global do comércio de gelo:

     Assim, parece que os encalorados habitantes de Charleston e Nova Orleans, de Madras e Bombaim e Calcutá, bebem da minha fonte. ... A água pura do Walden se mistura com a água sagrada do Ganges. Com ventos favoráveis, é levada para além das fabulosas ilhas da Atlântida e as Hespérides, faz o périplo de Hanno e, flutuando ao redor de Ternate e Tidore e na foz do golfo Pérsico, derrete-se nas tempestades tropicais dos mares da Índia e é descarregada em portos dos quais Alexandre apenas ouviu falar.

     No mínimo, Thoreau subestimou o alcance dessa rede global – pois o comércio de gelo criado por Tudor foi muito mais que água congelada. Os olhares estupefatos que observaram o primeiro carregamento de gelo de Tudor para a Martinica deram lugar, de uma forma lenta, mas constante, a uma dependência cada vez maior do gelo. Bebidas refrigeradas com gelo tornaram-se artigo essencial na vida nos estados do Sul. (Até hoje, os americanos gostam muito mais de suas bebidas com gelo que os europeus, herança distante da ambição de Tudor.) Em 1850, o sucesso de Tudor inspirou inúmeros imitadores, e mais de 100 mil toneladas de gelo foram enviadas de Boston para o mundo em um só ano. Em 1860, duas em cada três casas de Nova York contavam com entregas diárias de gelo. Um relato da época descreve como o gelo estava firmemente ligado aos rituais da vida diária:

     Em oficinas, gráficas, escritórios de contabilidade, operários, linotipistas, funcionários juntam-se para ter seu fornecimento diário de gelo. Cada escritório, canto ou recanto iluminado por um rosto humano é também refrigerado pela presença desse cristal amigo, ... tão bom como o óleo para a roda. Ele envolve todo o mecanismo humano em agradável ação, gira as rodas do comércio e impulsiona o motor do ramo energético.

     A dependência de gelo natural tornou-se tão grave que cada década ou cada inverno excepcionalmente quentes provocavam um frenesi nos jornais com especulações sobre a “falta de gelo”. Já em 1906, o New York Times publicava manchetes alarmantes: “Gelo acima de US$ 0,40 e racionamento à vista.” O jornal dava também o contexto histórico: “Em dezesseis anos, Nova York jamais enfrentou uma perspectiva tão grande de falta de gelo como este ano. Em 1890, houve muitos problemas, e todo o país teve de correr atrás de gelo. Desde então, no entanto, as necessidades de gelo têm crescido muito, e uma carência agora é um problema muito mais sério que era então.” Em menos de um século, o gelo tinha deixado de ser uma curiosidade para se tornar um luxo e depois uma necessidade.
     A refrigeração utilizando gelo alterou o mapa dos Estados Unidos, e em nenhum outro lugar a transformação foi mais acentuada que em Chicago. A explosão inicial de crescimento em Chicago se deu pela ligação de canais e linhas ferroviárias que conectavam a cidade tanto ao golfo do México quanto às cidades da Costa Leste. Sua localização privilegiada como centro de distribuição – por sua natureza e por uma das obras de engenharia mais ambiciosas do século – fazia o trigo fluir das abundantes planícies para os centros populacionais do Nordeste. Mas a carne não podia fazer essa viagem sem estragar. A partir de meados do século, Chicago desenvolveu um grande comércio de carne de porco em conserva, com os primeiros currais de abate de porcos nos arredores da cidade, antes de enviar a mercadoria para o Leste em barris. Mas a carne in natura continuou basicamente uma iguaria local.
     No entanto, à medida que o século avançava, desenvolveu-se um desequilíbrio de oferta e demanda entre as cidades famintas do Nordeste e o rebanho do Centro-Oeste. A imigração aumentava a população de Nova York e Filadélfia, bem como de outros centros urbanos, nos anos 1840 e 1850, e a oferta de carne local não conseguia atender ao aumento da demanda das cidades em crescimento. Enquanto isso, a conquista das grandes planícies permitia aos fazendeiros criar grandes manadas de gado sem uma base populacional correspondente de seres humanos para alimentar. Era possível enviar animais vivos de trem para matadouros locais nos estados do Leste, mas o transporte de vacas inteiras era caro, e os animais costumavam ficar desnutridos ou se feriam no trajeto. Quase metade estava intragável no momento em que chegava a Nova York ou Boston.

Blocos de gelo cortados de um lago flutuam na água, antes de ser armazenados num depósito, 1950.

     Foi o gelo que afinal forneceu uma maneira de contornar esse impasse. Em 1868, o magnata da carne de porco, Benjamin Hutchinson, construiu uma nova fábrica de embalagem, apresentando “salas refrigeradas com gelo natural que permitiam embalar a carne de porco durante todo o ano, uma das principais inovações na indústria”, de acordo com Donald Miller, em sua história de Chicago no século XIX, City of the Century. Este era o início de uma revolução que transformaria não só Chicago, mas toda a paisagem natural na região central dos Estados Unidos. Nos anos após o incêndio de 1871, as salas de refrigeração de Hutchinson inspiraram outros empreendedores a integrar as facilidades do gelo para a embalagem de alimentos. Aos poucos, iniciou-se o transporte de carne para o Leste em vagões ao ar livre, durante o inverno, contando com a temperatura ambiente para manter as carnes refrigeradas.

     Em 1878, Gustavus Franklin Swift contratou um engenheiro para construir um avançado carro frigorífico, projetado da estaca zero para transportar carne para a Costa Leste durante todo o ano. O gelo foi armazenado em caixas colocadas acima da carne; nas paradas ao longo da viagem, os funcionários podiam trocar os blocos de gelo de cima por novos blocos, sem perturbar a carne. “Foi essa aplicação da física elementar”, escreve Miller, “que transformou o antigo comércio e abate de carne bovina locais em negócio internacional, com carros refrigerados que resultaram naturalmente em navios refrigerados, levando a carne de Chicago para os quatro continentes.” O sucesso desse comércio mundial transformou a paisagem natural das planícies dos Estados Unidos de modo ainda hoje visível: as vastas pradarias foram substituídas por confinamentos industriais que, nas palavras de Miller, “criaram um sistema de produção [de alimentos] que foi a mais poderosa força ambiental na transformação da paisagem norte-americana desde que as geleiras da Idade do Gelo começaram sua retirada final”.

Garotos observam carregadores de gelo fazendo uma entrega no Harlem, 1936.

     Os currais de Chicago que surgiram nas últimas duas décadas do século XIX eram, como Upton Sinclair escreveu, “a maior agregação de trabalho e de capital já reunida num só lugar”. Quatorze milhões de animais eram abatidos, em média, por ano. De muitas maneiras, o complexo industrial de alimentos, tão desprezado pelos modernos defensores do “slow food”, começa com os estábulos de Chicago e a rede de transporte refrigerado que se espalhou a partir dos currais de engorda e dos matadouros. Progressistas como Upton Sinclair pintaram Chicago como uma espécie de Inferno de Dante da industrialização, mas, na realidade, a maior parte da tecnologia empregada nos currais teria sido reconhecida por um açougueiro medieval. A forma mais avançada de tecnologia na cadeia inteira era o vagão refrigerado. Theodore Dreiser acertou quando definiu a linha de montagem dos estábulos como “um plano inclinado direto para a morte, a dissecação e o refrigerador”.
     A história convencional diz que Chicago só se tornou viável graças à invenção da ferrovia e à construção do canal Erie. Mas isso conta apenas parte da história. O crescimento descontrolado de Chicago nunca teria sido possível sem as propriedades químicas peculiares da água, sua capacidade de armazenamento e liberação lenta do frio com um mínimo de intervenção humana. Se, por alguma razão, as propriedades químicas da água líquida fossem diferentes, a vida na Terra também teria uma forma radicalmente diversa (ou, mais provavelmente, nem teria evoluído). Se a água também não tivesse a peculiar aptidão para se congelar, quase certamente a trajetória da América do século XIX teria sido diferente. Você poderia enviar especiarias ao redor do mundo sem as vantagens da refrigeração, mas não poderia enviar carne. O gelo tornou imaginável um novo tipo de distribuição de alimento. Nós pensamos em Chicago como uma cidade de ombros largos, de impérios ferroviários e matadouros. Mas é igualmente verdadeiro dizer que ela foi construída sobre as ligações tetraédricas do hidrogênio.

     SE AMPLIARMOS nossas referências e olharmos para o comércio de gelo no contexto da história da tecnologia, há algo intrigante, quase anacrônico, na inovação de Tudor. Afinal, estávamos em meados do século XIX, uma era de fábricas alimentadas a carvão, com estradas de ferro e linhas telegráficas conectando as grandes cidades. O setor de ponta da tecnologia do frio ainda se baseava no corte de pedaços de água congelada de um lago. Os seres humanos vinham fazendo experiências com a tecnologia do calor pelo menos há 100 mil anos, desde o domínio do fogo – talvez a primeira inovação do Homo sapiens. Mas a outra extremidade do espectro térmico é muito mais desafiadora. Depois de um século de Revolução Industrial, o frio artificial ainda era uma ficção.
     A demanda comercial pelo gelo – todos aqueles milhões de dólares fluindo na direção contrária dos trópicos, para os barões do gelo da Nova Inglaterra – enviou um sinal pelo mundo de que havia dinheiro a ser ganho a partir do frio, o que inevitavelmente levou algumas cabeças inventivas à busca da próxima etapa lógica do frio artificial. Você poderia pensar que o sucesso de Tudor iria inspirar uma nova geração de mercenários empresários-inventores a criar a revolução na refrigeração feita pelo homem. No entanto, por mais que reconheçamos a cultura de empresas tecnológicas no mundo de hoje, nem sempre as inovações essenciais saem do setor privado. Novas ideias nem sempre são motivadas, como as de Tudor, por sonhos de “fortunas tão grandes que nem saberíamos o que fazer com elas”. A arte da invenção humana tem mais de uma musa. Enquanto o comércio de gelo começou com o sonho de um jovem em busca de riquezas incalculáveis, a história do frio artificial começou com uma necessidade mais urgente e humanitária: um médico tentando manter vivos seus pacientes.
     Essa é uma história que começa com insetos: em Apalachicola, na Flórida, cidade de 10 mil habitantes que vivem ao lado de um pântano, num clima subtropical, ambiente perfeito para a procriação de mosquitos. Em 1842, essa abundância de mosquitos significava, inevitavelmente, risco de malária. No modesto hospital do lugar, um médico chamado John Gorrie sentia-se impotente diante de dezenas de pacientes ardendo em febre.
     Desesperado por uma forma de reduzir a temperatura dos pacientes, Gorrie tentou suspender blocos de gelo no teto do hospital. Isso se revelou uma solução eficaz: os blocos de gelo esfriavam o ar; o ar esfriava os pacientes. Com a febre reduzida, alguns pacientes sobreviveram à doença. Mas a sagaz experiência de Gorrie, destinada a combater os efeitos perigosos de climas subtropicais, acabou prejudicada por outro subproduto do ambiente. A umidade tropical que fazia da Flórida um clima tão hospitaleiro para os mosquitos também ajudou a criar outra ameaça: os furacões. Uma série de naufrágios atrasou os embarques de gelo de Tudor, da Nova Inglaterra, deixando Gorrie sem o suprimento habitual.
     E assim o jovem médico começou a remoer uma solução mais duradoura para o hospital: fazer seu próprio gelo. Felizmente para Gorrie, por acaso aquele era o momento perfeito para ter essa ideia. Durante milhares de anos, a ideia de produzir frio artificial foi quase impensável para a civilização humana. Nós inventamos a agricultura, as cidades, os aquedutos e a imprensa, mas o frio continuou fora dos limites do possível por todos aqueles anos. De alguma forma, contudo, o frio artificial tornou-se imaginável no meio do século XIX. Para usar a maravilhosa frase do teórico da complexidade Stuart Kauffman, o frio tornou-se parte do “possível adjacente” desse período.

Dr. John Gorrie

     Como explicar essa descoberta? Não se trata apenas do caso de um gênio solitário que chega com uma invenção brilhante por ser mais inteligente que os outros. As ideias são fundamentalmente redes de outras ideias. Tomamos ferramentas, metáforas, conceitos e compreensão científica do nosso tempo e os recombinamos em algo novo. Mas se você não tem os blocos de construção certos, não vai chegar a uma ruptura, por mais brilhante que seja. A mente mais inteligente do mundo não poderia inventar uma geladeira no meio do século XVII. Ela simplesmente não fazia parte do possível adjacente naquele momento. Mas em 1850 as peças já tinham se juntado.
     A primeira coisa que tinha de acontecer parece hoje quase cômica para nós: tivemos de descobrir que o ar era feito de alguma coisa, que não era apenas um espaço vazio entre os objetos. Nos anos 1600, cientistas amadores descobriram um fenômeno bizarro, o vácuo, um ar que na verdade parecia ser composto de nada e que se comportava de forma diferente do ar normal. Chamas podiam ser extintas no vácuo; uma vedação a vácuo era tão forte que duas parelhas de cavalos não conseguiam rompê-la. Em 1659, o cientista inglês Robert Boyle colocou um pássaro numa jarra e sugou o ar com uma bomba de vácuo. O pássaro morreu, como Boyle desconfiava que aconteceria, mas, curiosamente, ele também congelou. Se o vácuo era tão diferente do ar normal a ponto de extinguir a vida, isso significava que devia haver alguma substância invisível que compunha o ar normal. Isso sugeriu que a alteração do volume ou da pressão dos gases podia alterar sua temperatura.
     Nosso conhecimento expandiu-se no século XVIII, quando o motor a vapor obrigou os engenheiros a descobrir exatamente como o calor se converte em energia inventando toda uma ciência da termodinâmica. Ferramentas de medição de calor e peso de maior precisão foram desenvolvidas, juntamente com escalas normatizadas, como as dos graus Celsius e Fahrenheit. Como acontece com frequência na história da ciência e das inovações, quando se dá um salto para diante na precisão das medidas, surgem novas possibilidades.
     Todos esses blocos de construção circulavam na cabeça de Gorrie, como moléculas de um gás pululando, formando novas conexões. Em seu tempo livre, ele começou a construir uma máquina de refrigeração utilizando a energia de uma bomba para comprimir o ar. A compressão aquecia o ar. A máquina refrigerava o ar comprimido, passando-o pelos canos resfriados com água. Quando o ar é expandido, remove calor do ambiente; e, assim como as ligações tetraédricas do hidrogênio dissolvem-se na água líquida, a extração de calor refrigera o ar circundante. Aquilo podia até ser usado para produzir gelo.
     Por incrível que pareça, a máquina de Gorrie funcionou. Não mais dependente do gelo enviado de mil quilômetros de distância, ele reduziu a febre dos pacientes com frio caseiro. Gorrie solicitou uma patente, prevendo corretamente um futuro em que o frio artificial, como escreveu, “poderia servir melhor à humanidade. ... Frutas, legumes e carnes serão preservados em trânsito pelo meu sistema de refrigeração, e assim serão apreciados por todos!”.
     No entanto, apesar de seu sucesso como inventor, Gorrie não chegou a lugar nenhum como homem de negócios. Graças ao êxito de Tudor, o gelo natural era abundante e barato quando as tempestades não perturbavam o comércio. Para piorar as coisas, Tudor lançou uma campanha de difamação contra Gorrie, alegando que o gelo produzido por sua máquina era infectado de bactérias. Esse foi um caso clássico de indústria dominante sabotando uma nova tecnologia muito mais poderosa, da mesma forma que os primeiros computadores com interfaces gráficas foram definidos por seus rivais como “brinquedos”, e não como “máquinas sérias”. John Gorrie morreu pobre, sem vender uma só máquina.
     Todavia, a ideia do frio artificial não morreu com Gorrie. Depois de milhares de anos de negligência, de repente o mundo se iluminou com as patentes apresentadas para algumas alternativas de refrigeração artificial. De repente a ideia estava em todos os lugares, não porque as pessoas a tivessem roubado de Gorrie, mas porque haviam chegado, de forma independente, à mesma arquitetura básica. Os blocos de construção conceituais encontravam se finalmente no lugar, e assim a ideia de criar artificialmente o ar frio de súbito estava “no ar”.
     Essas patentes que percorrem o planeta são exemplo de uma das grandes curiosidades da história da inovação, o que os estudiosos chamam hoje de “invenção múltipla”. Invenções e descobertas científicas tendem a vir em grupos, quando um punhado de investigadores geograficamente dispersos tropeça na mesma descoberta de forma independente. Na verdade, o gênio isolado que surge com uma ideia que ninguém poderia sequer sonhar é a exceção, não a regra. A maioria das descobertas torna-se imaginável num momento muito específico da história, e a partir daí várias pessoas começam a pensar nelas. A bateria elétrica, a telegrafia, a máquina a vapor e a biblioteca digital de música foram inventadas de forma independente por vários indivíduos num período de poucos anos. No início dos anos 1920, dois professores da Universidade Columbia analisaram a história das invenções e produziram um maravilhoso ensaio chamado “Are inventions inevitable?”. Eles descobriram 148 casos de invenções simultâneas, a maioria ocorrendo na mesma década. Outras centenas foram descobertas desde então.
     Com a refrigeração não foi diferente. O conhecimento da termodinâmica e da química básica do ar, combinado com as fortunas iniciadas com o comércio de gelo, tornou o frio artificial maduro para a invenção. Um desses inventores simultâneos foi o engenheiro francês Ferdinand Carré, que projetou, de forma independente, uma máquina de refrigeração que seguia os mesmos princípios básicos utilizados por Gorrie. Ele construiu protótipos da máquina de refrigeração em Paris, mas sua ideia acabaria por triunfar devido a eventos que se desdobraram do outro lado do Atlântico: um tipo diferente de fome de gelo na região Sul dos Estados Unidos. Após a eclosão da Guerra Civil, em 1861, a União bloqueou os estados do Sul a fim de paralisar a economia dos Confederados. A Marinha da União interrompeu o fluxo de gelo de forma mais eficaz que as tempestades que agitavam as águas da corrente do golfo do México. Tendo estabelecido uma dependência econômica e cultural do comércio de gelo, os encalorados estados do Sul viram-se de repente diante da desesperada necessidade de frio artificial.
     À medida que a guerra avançava, embarques de mercadorias contrabandeadas conseguiam eventualmente furar o bloqueio durante a noite e aportar em praias ao longo das costas do Atlântico e do golfo. Mas os traficantes não transportavam apenas cargas de pólvora e de armas. Às vezes traziam produtos muito mais inusitados: máquinas de fazer gelo baseadas no projeto de Carré. Esses novos dispositivos utilizavam amoníaco como refrigerante e podiam cuspir 180 quilos de gelo por hora. Máquinas de Carré eram transportadas da França para Geórgia, Louisiana e Texas. Uma rede de inovadores ajustou as máquinas de Carré, melhorando sua eficiência. Abriu-se um punhado de fábricas de gelo, marcando sua estreia no palco principal da industrialização. Em 1870, os estados do Sul produziam mais gelo artificial que qualquer outro lugar do mundo.
     Nas décadas que se seguiram à Guerra Civil, a refrigeração artificial eclodiu, e o comércio de gelo natural começou seu lento declínio rumo à obsolescência. A refrigeração tornou-se uma grande indústria, medida não apenas pelo dinheiro que mudava de mãos, mas também pelo tamanho dos engenhos: monstruosas máquinas a vapor pesando centenas de toneladas, mantidas por um exército de engenheiros em tempo integral. Na virada do século XX, Tribeca, em Nova York – bairro que agora abriga alguns dos lofts mais caros do mundo –, era essencialmente um refrigerador gigante, blocos inteiros de edifícios sem janelas projetados para resfriar o fluxo interminável de produtos do mercado de alimentos de Washington.
     Quase tudo na história do frio do século XIX girava em torno de fazê-lo cada vez maior, mais ambicioso. No entanto, a próxima revolução no frio artificial seguiria em direção oposta. O frio estava prestes a ficar pequeno. Aqueles longos blocos de refrigeradores de Tribeca logo encolheriam para caber em cada cozinha dos Estados Unidos. Ironicamente, porém, essa miniaturização do frio artificial acabaria desencadeando mudanças tão grandes na sociedade humana que se tornaram visíveis até do espaço sideral.

     NO INVERNO DE 1916, um excêntrico naturalista e empresário se mudou com sua jovem família para as remotas planícies de Labrador. Ele já tinha passado vários invernos ali, sozinho, criando raposas, iniciando uma empresa de peles e, ocasionalmente, transportando animais e fornecendo informações para a U.S. Biological Survey. Cinco semanas após o nascimento do filho, sua esposa e o bebê juntaram-se a ele. Labrador não era, para dizer o mínimo, o lugar ideal para um recém-nascido. O clima era implacável, com temperaturas atingindo regularmente menos 35°, e a região era totalmente desprovida de modernas instalações médicas. A comida também deixava muito a desejar. O clima sombrio em Labrador significava que tudo o que se comia no inverno era congelado ou em conserva; com exceção do peixe, não havia nenhuma fonte de alimentos frescos. Uma refeição típica seria o que os moradores locais chamavam de brewis: bacalhau salgado com um pão duro como pedra, cozidos e guarnecidos com scrunchions, pedaços fritos de gordura de porco salgada. Qualquer carne ou produto que estivesse congelado virava uma papa sem gosto logo que descongelado.

Anúncio de geladeira e freezer da General Electric, 1949.

     Mas o naturalista era um gourmet aventureiro, fascinado pela culinária de diferentes culturas. (Em seus diários, ele registrou que comia de tudo, de cascavel a gambá.) Por isso, aprendeu a pescar no gelo com alguns dos esquimós locais, abrindo buracos em lagos congelados e lançando uma linha para pescar trutas. Com temperaturas do ar muito abaixo de zero, um peixe retirado do lago congelava em questão de segundos.
     Sem querer, o jovem naturalista tinha topado com um poderoso experimento científico ao se sentar para comer com a família em Labrador. Ao descongelarem a truta das expedições de pesca no gelo, eles descobriram que o peixe tinha um sabor muito mais fresco que a comida habitual. A diferença era tão marcante que ele ficou obcecado para descobrir por que as trutas congeladas mantinham o sabor de forma tão eficaz. Assim, Clarence Birdseye iniciou uma investigação que acabaria por estampar seu nome nas embalagens de ervilhas congeladas e varas de pesca em supermercados pelo mundo todo.
     Em primeiro lugar, Birdseye concluiu que a truta preservava o frescor simplesmente porque tinha sido pescada há menos tempo. Mas, ao continuar estudando o fenômeno, começou a considerar que havia outro fator em ação. Para começar, trutas pescadas no gelo mantinham o sabor por meses, ao contrário de outros peixes congelados. Birdseye começou experimentando legumes congelados, e descobriu que os produtos congelados em pleno inverno por alguma razão tinham sabor melhor que os congelados no final do outono ou no início da primavera. Ele analisou a comida com um microscópio e notou uma diferença marcante nos cristais de gelo formados durante o processo de congelamento: o produto congelado que perdia seu sabor tinha cristais significativamente maiores, que pareciam quebrar a estrutura molecular do próprio alimento.
     Afinal Birdseye encontrou uma explicação coerente para a radical diferença de sabor: tudo tinha a ver com a velocidade do processo de congelamento. Um congelamento lento permitia que as ligações de hidrogênio do gelo formassem configurações cristalinas maiores. Mas um congelamento que acontece em segundos – “congelamento-relâmpago”, como chamamos hoje – gerava cristais muito menores, que causavam menos danos ao alimento. Os pescadores esquimós não tinham pensado nisso em termos de cristais e moléculas, mas já vinham saboreando os benefícios do congelamento-relâmpago há séculos, puxando peixes vivos da água para entrar em choque com o ar frio.
     À medida que continuava suas experiências, uma ideia começou a se formar na cabeça de Birdseye: com a refrigeração artificial cada vez mais comum, o mercado de alimentos congelados poderia ser imenso, se o problema da qualidade fosse resolvido. Assim, como Tudor fizera antes, Birdseye começou a tomar notas sobre suas experiências com o frio. E, como Tudor, continuou a pensar na ideia por uma década antes que ela se transformasse em alguma coisa comercialmente viável. Não foi uma epifania repentina ou um lampejo momentâneo, mas algo muito mais lento, uma ideia que toma forma, passo a passo, ao longo do tempo. Foi o que gosto de chamar de “palpite lento” – o contrário do “lampejo instantâneo”, uma ideia que vai entrando em foco ao longo de décadas, não em segundos.

Clarence Birdseye em Labrador, Canadá, 1912.

     A primeira inspiração para Birdseye tinha sido o auge do frescor: a truta puxada de um lago congelado. Mas a segunda seria exatamente o oposto: o casco de um navio de pesca comercial cheio de bacalhau apodrecendo. Depois da aventura em Labrador, Birdseye voltou para casa em Nova York e trabalhou com a Associação de Pesca, onde viu em primeira mão as péssimas condições que caracterizavam a empresa de pesca comercial. Birdseye escreveria mais tarde:

A ineficiência e a falta de saneamento na distribuição de peixe fresco me deixaram tão enojado que me empenhei em desenvolver um método que permitisse a remoção de resíduos não comestíveis de alimentos perecíveis nos pontos de produção, embalando-os em recipientes compactos e convenientes e distribuindo-os para as donas de casa com o seu frescor intrínseco intacto.

     Nas primeiras décadas do século XX, o negócio de comida congelada ainda era visto como o fundo do poço. Você podia comprar peixe congelado ou congelar você mesmo, mas ele era considerado intragável. (Na verdade, a comida congelada era tão terrível que foi banida das prisões do estado de Nova York por estar abaixo dos padrões culinários dos presidiários.) Um dos principais problemas era que a comida era congelada a temperaturas relativamente elevadas, muitas vezes a poucos graus abaixo do ponto de congelamento. No entanto, os avanços científicos ao longo das décadas anteriores tornaram possível produzir artificialmente temperaturas iguais às de Labrador.
     No início da década de 1920, Birdseye tinha desenvolvido um processo de congelamento rápido utilizando caixas empilhadas de peixe congelado a menos 40°. Inspirado pelo novo Modelo T, da fábrica de Henry Ford, ele criou um “congelador de correia dupla”, que acompanhava o processo de congelamento ao longo de uma linha de produção mais eficaz. Utilizando essas novas técnicas de produção, ele abriu uma empresa chamada General Seafood. Birdseye descobriu que quase tudo que congelava com esse método – frutas, carnes, legumes – se mantinha extremamente fresco depois do descongelamento.

Clarence Birdseye faz experiências com cenouras picadas para determinar os efeitos de várias velocidades de agitação e velocidades do ar no alimento.

     Levou mais de uma década para os alimentos congelados se tornarem um dos principais produtos da dieta americana. (Isso exigiu uma massa crítica de freezers, em supermercados e nas cozinhas das casas, só plenamente atendida nos anos do pós-guerra.) Mas as experiências de Birdseye foram tão promissoras que em 1929, poucos meses antes do crash da bolsa de valores, a General Seafood foi adquirida pela Postum Cereal Company, que imediatamente mudou o nome para General Foods. As aventuras de Birdseye com a pesca no gelo o tornaram multimilionário. Seu nome permanece nas embalagens de filés de peixe congelados até hoje.

Trabalhador de macacão examina caixas de ervilhas congeladas transportadas numa esteira, entre 1922 e 1950.

     A inovação dos alimentos congelados de Birdseye tomou forma como lenta intuição, mas também surgiu como uma espécie de colisão entre vários e diferentes espaços geográficos e intelectuais. Para imaginar um mundo de alimentos congelados, Birdseye precisou vivenciar os desafios de alimentar a família no clima ártico, em meio a um frio brutal; precisou passar um tempo com os pescadores esquimós; precisou inspecionar os contêineres imundos dos pesqueiros de bacalhau nos portos de Nova York; precisou do conhecimento científico de como produzir temperaturas muito abaixo de zero; precisou do conhecimento industrial de como construir uma linha de produção. Como toda grande ideia, a inovação de Birdseye não foi um simples insight, mas uma rede de outras ideias, entrelaçadas em nova configuração. O que tornou a ideia de Birdseye tão poderosa não foi apenas seu gênio individual, mas a diversidade de lugares e formas de conhecimento que conseguiu reunir.
     Em nossa era de produção de alimentos artesanais com recursos locais, as refeições prontas congeladas, servidas em bandejas, surgidas nas décadas seguintes à descoberta de Birdseye caíram em desuso. Mas, em sua encarnação original, os alimentos congelados tiveram impacto positivo sobre a saúde, melhorando a qualidade nutritiva da dieta dos americanos. A comida congelada ampliou o raio de distribuição de alimentos, tanto em termos de tempo quanto de espaço. Produtos colhidos no verão podiam ser consumidos meses mais tarde; peixes pescados no Atlântico Norte podiam ser consumidos em Denver ou Dallas. Era melhor comer ervilhas congeladas em janeiro que esperar cinco meses pelo produto fresco.

     NA DÉCADA DE 1950, os americanos tinham adotado um estilo de vida profundamente moldado pelo frio artificial, comprando comida congelada nos corredores refrigerados do supermercado local e empilhando-a no congelador de suas novas geladeiras, que representavam o que havia de mais recente em tecnologia de fabricação de gelo. Nos bastidores, toda a economia do frio era sustentada por uma vasta frota de caminhões refrigerados que transportavam as ervilhas congeladas Birds Eye (e suas inúmeras imitações) por todo o país.
     Nessa icônica família americana dos anos 1950, o mais novo aparelho produtor de frio não estava armazenando filés de peixe para o jantar nem fazendo gelo para os martínis. Estava resfriando (e desumidificando) a casa inteira. O primeiro “aparelho para o tratamento de ar” foi sonhado por um jovem engenheiro chamado Willis Carrier, em 1902. A história da invenção de Carrier é um clássico nos anais das descobertas por acaso. Engenheiro de 25 anos, Carrier foi contratado por uma empresa de impressão no Brooklyn para elaborar um esquema que os ajudasse a manter a tinta sem manchas nos meses úmidos do verão. A invenção de Carrier não apenas removeu a umidade da sala de impressão, como também refrigerou o ar. Ele notou que, de repente, todo mundo queria almoçar ao lado das prensas, e assim começou a projetar engenhocas que seriam construídas para regular a temperatura e a umidade nos espaços internos. Em alguns anos, Carrier havia formado uma empresa – ainda hoje um dos maiores fabricantes de ar-condicionado no mundo – que se concentrou nos usos industriais da tecnologia. Mas ele estava convencido de que o ar-condicionado devia também pertencer às massas.

Laboratório experimental da Carrier Corporation testa seu novo aparelho de ar-condicionado central de US$ 700, com capacidade para seis cômodos, que difunde o ar até o nível do chão; a névoa produzida na sala, chegando à altura de três metros, torna visível o ar mais frio, 1945.

     O primeiro grande teste aconteceu no fim de semana do Memorial Day de 1925, quando Carrier estreou um sistema experimental de ar-condicionado no cinema Rivoli, o novo carro- chefe da Paramount Pictures. Teatros eram lugares opressivos para se frequentar durante os meses de verão. (Aliás, inúmeras casas de espetáculos de Manhattan experimentaram a refrigeração à base de gelo durante o século XIX, com resultados previsivelmente úmidos). Antes do ar-condicionado, a ideia de um sucesso de bilheteria no verão teria parecido absurda. O último lugar em que você gostaria de estar num dia quente era uma sala lotada com milhares de outros corpos suados. E foi assim que Carrier convenceu Adolph Zukor, o lendário chefe da Paramount, de que ele ganharia dinheiro investindo em ar-condicionado central para seus cinemas.

Sistema de ar-condicionado na empresa de impressão Sackett & Wilhelms.

     O próprio Zukor compareceu ao teste do fim de semana do Memorial Day, acomodado discretamente numa das cadeiras do balcão. Carrier e sua equipe tiveram algumas dificuldades técnicas para levantar o aparelho e colocá-lo em funcionamento. Antes de o filme começar, a sala estava repleta de fãs se abanando furiosamente com as mãos. Mais tarde, Carrier relatou a cena em suas memórias:

Demora algum tempo para baixar a temperatura de um teatro que se enche depressa de gente num dia de calor, mais ainda com a casa lotada. De forma gradual, quase imperceptível, os leques foram pousados no colo quando o efeito do ar condicionado tornou-se evidente. Somente alguns calorentos crônicos persistiram, mas logo também pararam de se abanar. ... Depois fomos para o saguão e esperamos o sr. Zukor descer. Quando nos viu, não esperou que pedíssemos sua opinião. Disse, laconicamente: “Sim, as pessoas vão gostar disso.”

     ENTRE 1925 E 1950, a maioria dos americanos usufruía o ar-condicionado apenas em grandes espaços comerciais como cinemas, lojas de departamentos, hotéis ou edifícios de escritórios. Carrier sabia que o ar-condicionado estava se encaminhando para a esfera doméstica, mas as máquinas eram muito grandes e caras para uma casa de classe média. A Carrier Corporation ofereceu um vislumbre desse futuro como atração na Feira Mundial de 1939, “O Iglu do Amanhã”. Em uma bizarra estrutura que parecia um sorvete de baunilha de cinco andares, Carrier apresentou as maravilhas do ar-condicionado doméstico, acompanhadas por um esquadrão de “coelhinhas da neve”.
     Mas a visão de Carrier sobre a refrigeração doméstica seria adiada pela eclosão da Segunda Guerra Mundial. Somente nos anos 1940, depois de quase cinquenta anos de experimentação, o ar-condicionado afinal chegou às fachadas das casas, com o lançamento, no mercado, das primeiras unidades encaixáveis nas janelas. Em meia década, os americanos já instalavam mais de 1 milhão de unidades por ano. Quando refletimos sobre a miniaturização do século XX, nossos pensamentos naturalmente gravitam em torno do transistor ou do microchip, mas o marco do encolhimento do ar-condicionado também merece seu lugar nos anais da inovação: uma máquina que chegou a ser maior que uma cabine de caminhão e diminuiu até poder ser instalada numa janela.
     Essa redução logo desencadeou uma extraordinária cadeia de eventos, comparando-se em muitos aspectos ao impacto do automóvel no estabelecimento de padrões nos Estados Unidos. Lugares intoleravelmente quentes e úmidos – inclusive algumas das cidades onde Frederic Tudor tinha suado no verão quando jovem – de repente se tornaram suportáveis para uma fatia muito maior do público em geral. Por volta de 1964, o fluxo histórico de pessoas do Sul para o Norte, que caracterizou a era pós-Guerra Civil, tinha sido revertido. A região Sul expandiu-se, com novos imigrantes vindos dos estados mais frios, que conseguiam tolerar a umidade tropical ou o calor dos climas desérticos graças ao ar-condicionado doméstico. Tucson disparou de 45 mil habitantes para 210 mil em apenas dez anos; Houston cresceu de 600 mil para 940 mil na mesma década.

Irvin Theatre, anos 1920

     Na década de 1920, quando Willis Carrier fez sua primeira demonstração do ar-condicionado para Adolph Zukor no Teatro Rivoli, a população da Flórida era inferior a 1 milhão. Meio século depois, o estado caminhava para se tornar um dos quatro mais populosos do país, com 10 milhões de pessoas se abrigando em casas com ar-condicionado nos meses úmidos de verão. A invenção de Carrier circulou mais que apenas moléculas de oxigênio e água. Acabou circulando pessoas também.
     Grandes mudanças na demografia têm inevitáveis efeitos políticos. A migração para a região Sul mudou o mapa político dos Estados Unidos. De reduto democrata, o Sul foi cercado pela afluência maciça de aposentados, mais conservadores em sua concepção política. Como demonstra o historiador Nelson W. Polsby em How Congress Evolves, os republicanos do Norte que se mudaram para o Sul na era pós-ar-condicionado contribuíram tanto para desmontar a base democrata do Sul como a rebelião contra o movimento dos direitos civis. No Congresso, isso teve o paradoxal efeito de desencadear uma onda de reformas liberais, com os democratas do Congresso não mais divididos entre os conservadores sulistas e os progressistas no Norte.
     Mas é possível que o ar-condicionado tenha gerado o impacto mais significativo sobre a política presidencial. O inchaço populacional na Flórida, no Texas e na Califórnia do Sul mudou o colégio eleitoral para o Cinturão do Sol, com os estados de clima quente ganhando 29 votos no colégio eleitoral entre 1940 e 1980, enquanto os estados mais frios do Nordeste e do Cinturão Industrial perderam 31. Na primeira metade do século XX, apenas dois presidentes ou vice-presidentes vieram do Cinturão do Sol. A partir de 1952, no entanto, todas as candidaturas presidenciais vencedoras contaram com um candidato do Cinturão do Sol, até Barack Obama e Joe Biden romperem essa linhagem, em 2008.

O "Iglu do Amanhã". O dr. Willis H. Carrier segura um termômetro dentro de um iglu de exibição, na demonstração do ar-condicionado na Feira Mundial de St. Louis. O interior do iglu permaneceu com uma temperatura controlada constante de 20º

     Essa é a história de zoom longo: quase um século depois de Willis Carrier começar a pensar sobre como evitar as manchas da tinta no Brooklyn, nossa capacidade de manipular pequenas moléculas de ar e umidade ajudou a transformar a geografia da política americana. Mas a expansão do Cinturão do Sol nos Estados Unidos foi apenas um ensaio geral para o que acontece agora em escala planetária. Em todo o mundo, as megacidades que mais crescem estão sobretudo em climas tropicais: Chennai, Bangkok, Manila, Jacarta, Karachi, Lagos, Dubai, Rio de Janeiro. Os demógrafos preveem que essas cidades quentes terão mais de 1 bilhão de novos habitantes até 2025.
     É desnecessário dizer que muitos desses novos imigrantes não têm ar-condicionado em suas casas, pelo menos ainda não, e é uma questão em aberto se essas cidades serão sustentáveis a longo prazo, em particular as situadas em climas desérticos. Mas a capacidade de controlar a temperatura e a umidade em prédios de escritórios, lojas e casas mais abastadas permitiu que esses centros urbanos atraíssem uma base econômica que os catapultou até o status de megalópoles. Não por acaso as maiores cidades do mundo até a segunda metade do século XX – Londres, Paris, Nova York, Tóquio – estavam situadas quase exclusivamente em climas temperados. O que estamos vendo talvez seja a maior migração em massa da história da humanidade, a primeira a ser acionada por um aparelho doméstico.

     OS SONHADORES E INVENTORES que anunciaram a revolução do frio não tiveram momentos eureca, e suas brilhantes ideias não transformaram o mundo de imediato. Em quase todos os casos, eles tiveram palpites, mas foram tenazes o suficiente para manter esses palpites vivos durante anos, e mesmo décadas, até que as peças se juntassem. Hoje, algumas dessas inovações podem nos parecer triviais. Toda essa criatividade coletiva concentrada, década após década, só para tornar o mundo seguro para se comer uma refeição congelada diante da TV?
     O universo congelado que Tudor e Birdseye ajudaram a criar faria mais que apenas preencher o mundo com varas de pescar. Iria também povoar o mundo com pessoas, graças ao congelamento instantâneo e a criopreservação de sêmen humano, óvulos e embriões. Milhões de seres humanos em todo o mundo devem sua existência às tecnologias do frio artificial. Hoje, novas técnicas de criopreservação de ovócitos permitem às mulheres armazenar óvulos saudáveis nos anos de juventude, em muitos casos estendendo sua fertilidade até os 45 anos. Assim, grande parte da nova liberdade na forma como temos filhos agora – de casais de lésbicas a mães solteiras que usam bancos de esperma para conceber até mulheres que ficam duas décadas no mercado de trabalho antes de pensar em ter filhos – não teria sido possível sem a invenção do congelamento rápido.
     Quando pensamos em ideias inovadoras, tendemos a nos restringir à escala da invenção original. Quando descobrimos uma maneira de fazer frio artificial, achamos que isso só tornaria nossos quartos mais agradáveis, que dormiríamos melhor nas noites quentes, ou que teríamos fontes confiáveis de cubos de gelo para os nossos refrigerantes. Esse é o aspecto mais fácil de entender. No entanto, se contarmos a história do frio somente sob essa ótica, vamos perder seu escopo épico.
     Apenas dois séculos depois de Frederic Tudor começar a pensar sobre o transporte de gelo para Savannah, nosso domínio do frio está ajudando a reorganizar os padrões de assentamento em todo o planeta e a trazer milhões de novos bebês ao mundo. À primeira vista, o gelo parece um avanço trivial, um item de luxo, não uma necessidade. Contudo, ao longo dos dois últimos séculos, seu impacto tem sido impressionante, se analisado de uma perspectiva de zoom longo: da transformação da paisagem das grandes planícies americanas às novas vidas e estilos de vida resultantes de embriões congelados, até chegarmos às grandes cidades que florescem no deserto.





FRIO é o segundo capítulo do livro


 COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI
"A história das inovações que fizeram a vida moderna possível"

de STEVEN JOHNSON

editado pela ZAHAR


 com tradução de CLAUDIO CARINA

e disponibilizado pela LE LIVROS (http://lelivros.site/)



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"Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e não mais lutando por dinheiro e poder, então nossa sociedade poderá enfim evoluir a um novo nível."




















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