Nota do Blog: as inter-relações entre tempo e fatos estabelecidas pelo autor e a sua ideia propriamente dita da obrigatória simbiose entre as coisas, poderá ser melhor compreendida se a introdução do livro for lida, o que poderá ser feito em:
http://adautogmjunior.blogspot.com.br/2015/08/como-chegamos-ate-aqui-introducao.html
3º CAPÍTULO - SOM
CERCA DE 1 MILHÃO de anos atrás, os mares
retiraram-se da bacia que hoje circunda Paris, deixando um anel de depósitos
calcários que outrora haviam sido recifes de coral ativos. Com o tempo, o rio
Cure, na Borgonha, escavou lentamente um caminho através de alguns desses
blocos de calcário, criando uma rede de cavernas e túneis enfeitados de
estalactites e estalagmites formadas pela água da chuva e pelo dióxido de
carbono. Descobertas arqueológicas sugerem que os neandertalenses e os
primeiros homens modernos usaram as cavernas para abrigo e cerimônia por
dezenas de milhares de anos. No início de 1990, uma imensa coleção de antigas
pinturas foi descoberta nas paredes do complexo de cavernas em Arcy-sur-Cure:
mais de uma centena de imagens de bisões, mamutes, aves, peixes e até (e mais
assustadora) a marca da mão de uma criança. A datação radiométrica determinou
que as imagens tinham 30 mil anos. Acredita-se que somente as pinturas em
Chauvet, no sul da França, são mais antigas que essas.
Por razões compreensíveis, pinturas
rupestres costumam ser citadas como evidência de um desejo primordial de
representar o mundo em imagens. Eras antes da invenção do cinema, nossos
antepassados colecionavam e admiravam imagens tremeluzentes nas paredes de cavernas
iluminadas pelo fogo. No entanto, nos últimos anos, uma nova teoria surgiu
sobre o ritual primitivo das cavernas da Borgonha, centrada não apenas nas
passagens subterrâneas, mas também nos sons.
Alguns anos depois de as pinturas em Arcy-sur-Cure
serem descobertas, um etnomusicólogo da Universidade de Paris chamado Iegor
Reznikoff começou a estudar as grutas da mesma forma que um morcego o faria,
ouvindo ecos e reverberações criados em diferentes partes do complexo. Há muito
tempo era evidente que as imagens neandertalenses tinham sido agrupadas em
partes específicas da caverna, algumas mais ornamentadas e densas apareciam a
mais de um quilômetro de profundidade. Reznikoff concluiu que as pinturas foram
colocadas, de modo coerente, nas partes acusticamente mais interessantes das
cavernas, nos locais onde a reverberação era mais profunda. Se você gritar
diante das imagens dos animais do período Paleolítico na extremidade das
cavernas de Arcy-sur-Cure, vai ouvir sete ecos distintos de sua voz. Do ponto
de vista acústico, a reverberação leva quase cinco segundos para cessar após
suas cordas vocais pararem de vibrar. O efeito não é diferente da famosa técnica
da “parede de som” usada por Phil Spector nas gravações de 1960, que ele
produziu para artistas como The Ronettes, Ike e Tina Turner. No sistema de
Spector, afunilou-se o som gravado por um porão repleto de alto-falantes e
microfones, criando um enorme eco artificial. Em Arcy-sur-Cure, o efeito é
cortesia do ambiente natural da própria caverna.
A teoria de Reznikoff é que as comunidades
neandertalenses se reuniam ao lado das imagens que pintavam e entoavam algum
tipo de ritual xamanístico usando as reverberações da caverna para prolongar
magicamente o som de suas vozes. (Reznikoff também descobriu pequenos pontos
vermelhos pintados em outras partes ricas em sons da caverna.) Nossos antepassados
não podiam gravar os sons que ouviam da mesma forma como registraram sua
experiência visual do mundo em pinturas. Mas se Reznikoff estiver correto, os
primeiros seres humanos estavam ensaiando uma forma primitiva de engenharia do
som, amplificando e reforçando o mais inebriante dos sons: a voz humana.
Com o tempo, a motivação de amplificar –
e, em última análise, reproduzir – a voz humana abriu caminho para uma série de
avanços sociais e tecnológicos nas comunicações, na computação, na política e
nas artes. Nós aceitamos prontamente a ideia de que a ciência e a tecnologia
têm melhorado a nossa visão de forma notável, dos óculos aos telescópios Keck.
Mas nossas cordas vocais, vibrando no discurso e na música, também foram
intensamente valorizadas por significados artificiais. Nossas vozes ficaram
mais altas; começaram a viajar por fios depositados no fundo do oceano;
escaparam dos limites da Terra e começaram a repercutir em satélites. As
revoluções essenciais na visão em grande parte desenvolveram-se entre o
Renascimento e o Iluminismo: óculos, microscópios, telescópios; para ver com
mais clareza, ver mais longe, ver mais de perto. As tecnologias da voz só
chegaram com força total no final do século XIX. Quando chegaram, mudaram quase
tudo. Mas não começaram com a amplificação. O primeiro grande avanço na nossa
obsessão pela voz humana chegou com o simples ato de escrevê-la.
MILHARES DE ANOS DEPOIS daqueles cantores
neandertalenses reunidos nas seções reverberantes das cavernas da Borgonha, a
ideia da gravação de som era tão fantasiosa quanto um conto de fadas. Sim, ao
longo desse período nós aprimoramos a arte de projetar espaços acústicos para
amplificar vozes e instrumentos. O desenho das catedrais da Idade Média, afinal,
coadunava-se tanto à engenharia do som quanto a épicas experiências visuais. No
entanto, ninguém se preocupou em imaginar como captar o som diretamente. O som
era etéreo, não tangível. O melhor que se podia fazer era imitar o som com a
própria voz e os instrumentos.
O sonho de gravar a voz humana só se
apresentaria como possibilidade viável depois de duas descobertas fundamentais,
uma da física, outra da anatomia. Mais ou menos a partir de 1500, os cientistas
começaram a trabalhar com o pressuposto de que o som viajava através do ar em
ondas invisíveis. (Pouco tempo depois eles descobriram que essas ondas viajavam
quatro vezes mais depressa na água, fato curioso, mas que não seria útil por
outros quatro séculos.) No Iluminismo, livros detalhados de anatomia tinham
mapeado a estrutura básica do ouvido humano, documentando a maneira como as
ondas sonoras eram transmitidas através do canal auditivo, provocando vibrações
no tímpano. Nos anos 1850, um gráfico parisiense chamado Édouard-Léon Scott de
Martinville topou com um desses livros de anatomia, que despertou nele o
interesse pelo hobby da biologia e da física do som.
O ouvido humano |
Scott também estudou taquigrafia e já
tinha publicado um livro sobre a história da estenografia alguns anos antes de
começar a pensar sobre o som. Na época, a estenografia era a forma mais
avançada de tecnologia de gravação de voz; nenhum sistema podia captar a palavra
falada com a precisão e a velocidade de um estenógrafo treinado. Mas, ao
observar aquelas detalhadas ilustrações do ouvido interno, um novo conceito
começou a tomar forma no pensamento de Scott: talvez o processo de transcrição
da voz humana pudesse ser automatizado. No lugar de um ser humano escrevendo as
palavras, uma máquina poderia gravar as ondas sonoras.
Em março de 1857, duas décadas antes de
Thomas Edison inventar o fonógrafo, o instituto de patentes da França concedeu
a Scott a patente para uma máquina que gravava o som. A geringonça canalizava
ondas sonoras através de um dispositivo semelhante a uma cornucópia que
terminava com uma membrana de pergaminho. As ondas sonoras provocavam no pergaminho
vibrações que eram transmitidas para uma agulha feita com cerda de porco. A agulha
gravava as ondas em uma página escurecida com fuligem de carvão. Ele chamou sua
invenção de “fonoautógrafo”, a autoescrita do som.
Nunca
nos anais da invenção aconteceu uma combinação tão curiosa de presbiopia e miopia
como na história do fonoautógrafo. Por um lado, Scott conseguiu fazer uma
súbita transição de um conceito crucial – que as ondas sonoras podiam ser
retiradas do ar e registradas num instrumento de gravação – mais de uma década
antes que outros inventores e cientistas se dedicassem ao tema. (Quando você
está duas décadas adiante de Edison, pode ter certeza de que está indo muito
bem.) No entanto, a invenção de Scott foi paralisada por uma fundamental – e
até mesmo cômica – limitação. Ele inventou o primeiro dispositivo de gravação
de som na história. Esqueceu, contudo, de incluir a reprodução.
Na verdade, “esqueceu” é uma palavra muito
forte. Parece óbvio para nós, agora, que um dispositivo de gravação de som
também deve incluir um recurso que permita ouvir a gravação. Inventar o
fonoautógrafo sem incluir a reprodução parece inventar o automóvel e esquecer
de incluir a parte em que as rodas giram. Mas isso porque estamos julgando o
trabalho de Scott do outro lado da divisa. A ideia de que uma máquina pudesse
transmitir ondas sonoras originadas em outro local não era uma coisa intuitiva.
Só quando Alexander Graham Bell começou a reproduzir ondas de som no terminal
do telefone é que a reprodução tornou-se um avanço óbvio. Em certo sentido,
Scott teve de olhar em torno de dois pontos cegos significativos: a ideia de
que o som podia ser registrado e que essas gravações podiam ser reconvertidas
em ondas sonoras. Ele conseguiu compreender o primeiro passo, mas não chegou ao
segundo. Não tanto por ter esquecido ou falhado em fazer a reprodução
funcionar, mas porque a ideia não lhe ocorrera.
Se a reprodução nunca fez parte dos planos
de Scott, é justo perguntar por que exatamente ele quis construir o
fonoautógrafo. Para que serve um gravador que não reproduz gravações? Aqui nos
confrontamos com uma faca de dois gumes: confiar em metáforas dominantes ou tomar
emprestadas ideias de outros campos e aplicá-las em novo contexto. Scott teve a
ideia da gravação de áudio inspirado numa metáfora da estenografia: transcrever
ondas, em vez de palavras. Essa estruturação metafórica permitiu que ele desse
o primeiro passo anos antes de seus pares, mas também pode tê-lo impedido de
realizar o segundo. Quando palavras são convertidas em código de taquigrafia, a
informação captada é decodificada por um leitor que compreende o código. Scott
achou que o mesmo aconteceria com o fonoautógrafo. O dispositivo gravaria ondas
sonoras na fuligem, cada traço do estilete correspondendo a um fonema emitido
pela voz humana. As pessoas aprenderiam a “ler” esses rabiscos do mesmo jeito
que tinham aprendido a ler os rabiscos da taquigrafia. Em certo sentido, Scott
não tentava de fato inventar um dispositivo de gravação de áudio. Ele buscava
inventar o mais perfeito serviço de transcrição, só que teríamos de aprender
toda uma nova linguagem para lê-la.
Édouard-Léon Scott de Martinville, escritor francês e inventor do fonoautógrafo. |
Fonoautógrafo, cerca de 1857. |
Não era uma ideia louca, quando vista em
perspectiva. Os seres humanos já tinham provado que eram muito bons em aprender
a reconhecer padrões visuais. Internalizamos nosso alfabeto tão bem que nem
sequer precisamos pensar na leitura depois que aprendemos a ler. Por que as
ondas sonoras seriam diferentes quando estivessem dispostas numa página?
Infelizmente, o kit neural de ferramentas
dos seres humanos não parece incluir a capacidade de ler ondas sonoras com os
olhos. Cento e cinquenta anos se passaram desde a invenção de Scott, e hoje
dominamos a arte e a ciência do som num grau que o teria deixado atônito. Contudo,
nenhum de nós aprendeu a analisar visualmente as palavras faladas embutidas nas
ondas sonoras impressas. Aquela foi uma aposta brilhante, mas se revelou
perdedora. Já que íamos decodificar o áudio gravado, precisávamos reconvertê-lo
em som para decodificá-lo via tímpano, e não pela retina.
Podemos não saber ler formas sonoras, mas
também não somos tão indolentes. Durante o século e meio que se seguiu à
invenção de Scott, conseguimos inventar uma máquina que podia “ler” a imagem
visual de uma forma de onda e convertê-la de novo em som: os computadores. Apenas
alguns anos atrás, uma equipe de historiadores do som formada por David Giovannoni,
Patrick Feaster, Meagan Hennessey e Richard Martin descobriu um baú de fonoautógrafos
de Scott na Academia de Ciências de Paris, inclusive um exemplar fabricado em
abril de 1860, admiravelmente preservado. Giovannoni e seus colegas examinaram
as linhas fracas e irregulares rabiscadas na fuligem quando Lincoln ainda
estava vivo. Eles converteram a imagem numa forma de onda digital e reproduziram-na
pelos alto-falantes de um computador.
Primeiro eles acharam que estavam ouvindo
uma voz de mulher cantando a folclórica canção francesa “Au clair de la lune”;
depois perceberam que estavam tocando o áudio em velocidade dupla. Quando
baixaram para o ritmo certo, a voz de um homem surgiu entre estalidos e
chiados. Era Édouard-Léon Scott de Martinville ecoando do túmulo.
De modo compreensível, a gravação não era
da mais alta qualidade, mesmo tocada na velocidade correta. Durante a maior
parte do tempo, o ruído aleatório do aparelho de gravação abafava a voz de
Scott. Mas mesmo esse aparente fracasso ressalta a importância histórica da
gravação. Os estranhos assobios e a deterioração dos sinais de áudio se
tornariam comuns para os ouvidos do século XX. Todavia, esses não são os sons
que ocorrem na natureza. As ondas sonoras se abafam, ecoam e se condensam em
ambientes naturais, porém não se decompõem nos caóticos ruídos mecânicos. O som
da estática é um som moderno. Scott captou-o pela primeira vez, mesmo que ele
tenha levado um século e meio para ser ouvido.
O ponto cego de Scott não ficaria
completamente sem saída. Quinze anos depois de sua patente, outro inventor
começava a fazer experiências com o fonoautógrafo, modificando o projeto
original de Scott e incluindo a orelha real de um cadáver, a fim de compreender
melhor a acústica. Com essa nova configuração, ele chegou a um método de captar
e transmitir o som. O nome desse homem era Alexander Graham Bell.
POR ALGUM MOTIVO, a tecnologia do som
parece induzir um estranho tipo de surdez entre seus pioneiros mais avançados.
Quando surge uma nova ferramenta para compartilhar ou transmitir o som de outra
maneira, seu inventor tem dificuldades para imaginar como a ferramenta pode ser
utilizada. Quando completou o projeto original de Scott e inventou o fonógrafo,
em 1877, Thomas Edison imaginou que o dispositivo seria usado para enviar
cartas faladas pelo sistema postal. Os indivíduos iriam gravar suas missivas
nos rolos de cera do fonógrafo e postá-los no correio para serem reproduzidos
dias depois. Ao inventar o telefone, Bell cometeu um erro de inversão de
imagem: ele imaginou que um dos principais usos para o telefone seria o de transmitir
música ao vivo. Uma orquestra ou cantor se postaria numa das extremidades da linha,
enquanto os ouvintes apreciariam o som saindo do telefone do outro lado. Assim,
esses dois inventores lendários entenderam tudo ao contrário. As pessoas
acabaram usando o fonógrafo para ouvir música e o telefone para se comunicar
com os amigos.
Como forma de mídia, o telefone se
assemelhava mais às redes de pessoa a pessoa do serviço postal. Na era da mídia
de massa que viria a seguir, novas plataformas de comunicação iriam
naturalmente se inclinar em direção ao modelo dos criadores da grande mídia
para uma audiência passiva de consumidores. O sistema de telefonia seria um
modelo para comunicações mais íntimas – de um para um, e não de um para muitos
–, até o advento do e-mail, cem anos depois. As consequências do telefone foram
imensas e variadas. Ligações internacionais tornaram o mundo menor e mais próximo,
embora as linhas de conexão continuassem tênues até pouco tempo atrás.
A primeira linha transatlântica que permitiu
que cidadãos comuns realizassem chamadas entre os Estados Unidos e a Europa só
foi lançada em 1956. Na primeira configuração, o sistema permitia 24 chamadas
simultâneas. Esse era o total da largura de banda para uma conversa de voz
entre os dois continentes até cinquenta anos atrás – entre centenas de milhões de
vozes, apenas duas dúzias de conversas de cada vez. Curiosamente, o telefone
mais famoso do mundo – o “telefone vermelho”, que mantinha uma linha direta
entre a Casa Branca e o Kremlin – não era um telefone em sua concepção original.
Criado após o fiasco das comunicações que quase nos levou a uma guerra nuclear,
na crise dos mísseis de Cuba, a linha vermelha na verdade era um teletipo que
permitia o envio de mensagens rápidas e seguras entre as duas potências. As
chamadas de voz eram consideradas muito arriscadas, dadas as dificuldades de
tradução em tempo real.
Laboratório do inventor Alexander Graham Bell, onde ele fez experiências com a transmissão do som por eletricidade, 1886. |
O telefone também possibilitou
transformações menos óbvias. Popularizou o sentido moderno da palavra alô (hello) – como uma saudação que começa
uma conversa –, transformando-a numa das palavras mais reconhecidas em qualquer
lugar do planeta. As centrais telefônicas tornaram-se uma das primeiras rotas de
entrada para as mulheres numa classe “profissional”. (Só a AT&T empregava
250 mil mulheres em meados da década de 1940.) Em 1908, um executivo da
AT&T chamado John J. Carty argumentou que o telefone teve impacto tão
grande quanto o elevador na construção dos arranha-céus:
Funcionários instalam na Casa Branca o "telefone vermelho", a lendária linha de emergência que ligava a Casa Branca ao Kremlin durante a Guerra Fria, em 30 de agosto de 1963, em Washington. |
Pode parecer ridículo dizer que
Bell e seus sucessores foram os pais da moderna arquitetura comercial do
arranha-céu. Mas espere um minuto. Pegue o Singer Building, o Flatiron
Building, o Broad Exchange, o Trinity ou qualquer outro gigantesco edifício de
escritórios. Quanta mensagens você acha que entram e saem desses prédios todos
os dias? Suponha não houvesse telefone, e que cada mensagem tivesse de ser
levada pessoalmente por mensageiros. Que espaço você acha que os elevadores
deixariam para os escritórios? Essas estruturas seriam uma impossibilidade
econômica.
Talvez o legado mais importante do
telefone, contudo, esteja em uma estranha e maravilhosa organização que cresceu
fora dele, a Bell Labs, empresa que iria desempenhar papel fundamental na
criação de quase todas as principais tecnologias do século XX. Rádios, tubos de
vácuo, transistores, televisões, células solares, cabos coaxiais, raios laser,
microprocessadores, computadores, telefones celulares, fibras óticas – todas
essas ferramentas fundamentais da vida moderna descendem de ideias
originalmente geradas na Bell Labs. Não é à toa que a empresa ficou conhecida
como “fábrica de ideias”.
A questão interessante sobre a Bell Labs
não é o que a empresa inventou. (A
resposta para isso é simples: quase tudo.) A verdadeira questão é por que a Bell Labs foi capaz de criar
tanto do século XX. A história definitiva da Bell Labs, The Idea Factory, de Jon Gertner, revela o segredo para o sucesso
incomparável do laboratório. Não se tratava apenas de diversidade de talentos,
de tolerância ao erro e de vontade de fazer grandes apostas – todos esses
traços da Bell Labs também estavam presentes no famoso laboratório de Edison em
Menlo Park, bem como em outros centros de pesquisa ao redor do mundo. O que fez
a Bell Labs tão diferente teve a ver com a lei antitruste e com os gênios que
ela atraiu.
Já em 1913, a AT&T estava lutando
contra o governo dos Estados Unidos por causa do controle monopolista que a
empresa exercia sobre o serviço de telefonia do país. O monopólio era inegável.
Se você fizesse uma chamada telefônica nos Estados Unidos em algum momento
entre 1930 e 1984, estaria, quase sem exceção, usando a rede da AT&T. Esse
poder monopolista tornou a empresa imensamente lucrativa, uma vez que não
enfrentava nenhuma concorrência de porte.
A AT&T conseguiu manter os reguladores
nacionais a distância por setenta anos, convencendo-os de que a rede de
telefonia era um “monopólio natural” e necessário. Circuitos de telefone
analógicos eram complicados demais para serem administrados por uma miscelânea
de empresas concorrentes. Se os americanos quisessem um telefone em rede confiável,
o sistema precisava ser gerenciado por uma única empresa. No fim, os advogados do
Departamento de Justiça contrários ao monopólio elaboraram um acordo intrigante,
estabelecido oficialmente em 1956. A AT&T teria permissão para manter seu
monopólio sobre o serviço de telefonia, mas qualquer invenção patenteada que
tivesse origem na Bell Labs devia ser livremente licenciada para qualquer empresa
americana que a considerasse útil, e todas as novas patentes teriam de ser
licenciadas por taxa módica. Efetivamente, o governo disse à AT&T que podia
manter seus lucros, mas, em troca, teria de doar suas ideias.
Aquele foi um arranjo único, do tipo que
não gostaríamos de ver de novo. O poder de monopólio deu à empresa um fundo
para pesquisa quase infinito, porém, cada ideia interessante surgida das
pesquisas poderia ser logo adotada por outras empresas. Assim, grande parte do
sucesso americano em eletrônica no pós-guerra – dos transistores aos computadores
e telefones celulares – remonta, em última análise, ao acordo de 1956. Graças à
resolução antitruste, a Bell Labs tornou-se um dos híbridos mais estranhos da
história do capitalismo: a grande máquina lucrativa gerando novas ideias que,
para todos os efeitos práticos, eram socializadas. Os americanos tinham de pagar
um dízimo para a AT&T por seu serviço telefônico, mas as inovações geradas
pela companhia pertenciam a todos.
UM DOS AVANÇOS mais inovadores na história
da Bell Labs surgiu nos anos que antecederam o acordo de 1956. Por razões
compreensíveis, ele quase não recebeu atenção no momento. A revolução
resultante desse invento ainda precisaria de meio século para eclodir, e sua existência
era um segredo de Estado, quase tão bem guardado quanto o Projeto Manhattan. Contudo,
ele foi um marco, e mais uma vez começou com o som da voz humana.
A inovação que a Bell Labs criou de início
– o telefone Bell – nos levou a um limite crucial na história da tecnologia.
Pela primeira vez um componente do mundo físico era representado em termos de
energia elétrica de forma direta. (O telégrafo convertia símbolos feitos pelo
homem em eletricidade, mas o som pertencia ao mesmo tempo à natureza e à cultura.)
Alguém falava num receptor, gerando ondas sonoras que se tornavam pulsos de eletricidade,
que se transformavam novamente em ondas sonoras na outra extremidade. O som, de
certa forma, foi o primeiro de nossos sentidos a ser eletrificado. (No mesmo
período, a eletricidade nos ajudou a ver
o mundo de forma mais clara graças à lâmpada, mas só décadas depois iria gravar
e transmitir o que víamos.) Quando essas ondas sonoras tornaram-se elétricas,
elas puderam viajar grandes distâncias em velocidades surpreendentes.
No entanto, por mais que esses sinais
elétricos fossem mágicos, eles não eram infalíveis. Viajando de cidade em
cidade através de fios de cobre, eram vulneráveis à deterioração, à perda de
sinal e ao ruído. Os amplificadores, como veremos, ajudaram a resolver o
problema, reforçando os sinais à medida que eram transmitidos pela linha. Mas o
objetivo final era um sinal puro, uma espécie de representação perfeita da voz
que não se degradasse ao passar pela rede telefônica. Curiosamente, o caminho
que levou a esse objetivo começou com uma meta diferente, não a de manter
nossas vozes puras, mas de conservá-las em
segredo.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o
lendário matemático Alan Turing trabalhou em colaboração com A.B. Clark, da
Bell Labs, no desenvolvimento de uma linha segura de comunicações, sob o
codinome Sigsaly, que convertia as ondas sonoras da fala humana em expressões
matemáticas. O Sigsaly gravava uma onda sonora 20 mil vezes por segundo, captando
a amplitude e a frequência de onda naquele momento. Mas a gravação não era
feita convertendo a onda em sinal elétrico ou em sulco num cilindro de cera. Em
vez disso, transformava a informação em números codificados na linguagem
binária de 0 e 1. “Gravação”, na verdade, era a palavra errada para isso. Usando
um termo que se tornaria linguagem comum no hip-hop e entre adeptos da música
eletrônica cinquenta anos mais tarde, eles chamaram esse processo de sampling (“amostragem”). De fato, eles
estavam tirando fotos da onda sonora 20 mil vezes por segundo, mas os instantâneos
eram escritos em 0 e 1, de forma digital, não analógica.
O trabalho com amostras digitais tornou
mais fácil transmiti-las de maneira segura. Alguém procurando um sinal
analógico tradicional ouviria apenas uma rajada de ruído digital. (O Sigsaly
recebeu o nome de código Green Hornet porque a informação crua soava como o zumbido
de um inseto.) Os sinais digitais também podiam ser matematicamente
criptografados de forma muito mais eficaz que os analógicos. Apesar de terem
interceptado e gravado muitas horas de transmissões do Sigsaly, os alemães
jamais conseguiram interpretá-las.
Desenvolvido por uma divisão especial do
Army Signal Corps e supervisionado por pesquisadores da Bell Labs, o Sigsaly
entrou em operação em 15 de julho de 1943, com um histórico telefonema
transatlântico entre o Pentágono e Londres. No início da chamada, antes da
conversa se voltar para questões mais prementes de estratégia militar, o
presidente da Bell Labs, dr. O.E. Buckley, fez algumas observações
introdutórias sobre o avanço tecnológico que o Sigsaly representava:
Estamos reunidos hoje em Washington
e Londres para inaugurar um novo serviço, a telefonia secreta. Este é um evento
de destaque na condução da guerra e que outros aqui podem avaliar melhor que
eu. Como façanha técnica, gostaria de salientar que deve ser incluído entre os
principais avanços da arte da telefonia. Ele não só representa a realização de
um objetivo há muito procurado – o completo sigilo em transmissão radiofônica
–, como significa a primeira aplicação prática de novos métodos de transmissão
telefônica que prometem ter efeitos de longo alcance.
Se Buckley subestimou qualquer coisa foi a
importância desses “novos métodos”. O Sigsaly não foi apenas um marco na
telefonia. Foi um divisor de águas na história da mídia e das comunicações em
geral. Pela primeira vez, nossas experiências foram digitalizadas. A tecnologia
por trás do Sigsaly continuaria útil no fornecimento de linhas de comunicação seguras.
Mas a força verdadeiramente perturbadora que desencadeou viria de outra
estranha e magnífica propriedade que ele possuía: cópias digitais podiam ser
cópias perfeitas. Com o equipamento certo, amostras digitais de som podiam ser
transmitidas e copiadas com fidelidade absoluta. Assim, grande parte da
turbulência da paisagem da mídia moderna – a reinvenção da indústria musical,
que começou com serviços de compartilhamento de arquivos como o Napster, o
surgimento de streaming de mídia, bem
como o colapso das tradicionais redes de televisão – remonta ao zumbido digital
do Green Hornet. Se os robôs historiadores do futuro tivessem de marcar um
momento em que a “era digital” começou – o equivalente computacional ao 4 de
Julho ou ao dia da Queda da Bastilha –, o telefonema transatlântico de julho de
1943 certamente estaria no topo da lista. Mais uma vez, nosso desejo de
reproduzir o som da voz humana expandiu-se para a possibilidade adjacente. Pela
primeira vez nossa experiência do mundo estava se tornando digital.
AS AMOSTRAS DIGITAIS do Sigsaly viajaram
através do Atlântico como cortesia de outro avanço nas comunicações que a Bell
Labs ajudou a criar: o rádio. Curiosamente, apesar de ter se tornado afinal uma
mídia saturada pelo som de pessoas falando ou cantando, o rádio não começou
assim. As primeiras transmissões funcionais do rádio – criado por Guglielmo Marconi
e por uma série de outros brilhantes inventores esporádicos nas últimas décadas
do século XIX – foram quase exclusivamente dedicadas ao envio de mensagens em
código Morse. (Marconi chamou sua invenção de “telegrafia sem fio”.) No
entanto, quando a informação começou a fluir pelas ondas de rádio, não demorou
muito para que amadores e laboratórios de pesquisa começassem a pensar em como
transformar palavras faladas e música em componentes dessa mistura.
Um desses diletantes foi Lee De Forest, um
dos mais brilhantes e erráticos inventores do século XX. Trabalhando no seu
laboratório caseiro em Chicago, De Forest sonhava em combinar o telégrafo sem
fio de Marconi com o telefone de Bell. 9 Ele começou uma série de experiências
com um transmissor de centelha, dispositivo que criava um brilhante e monótono pulso
de energia eletromagnética que podia ser detectado por antenas a quilômetros de
distância, perfeito para enviar o código Morse. Uma noite, enquanto acionava
uma série de pulsos, De Forest notou algo estranho acontecendo em toda a sala:
sempre que criava uma centelha, a chama de seu lampião a gás ficava branca e aumentava
de tamanho. De alguma forma, De Forest pensou, a pulsação eletromagnética
intensificava a chama. Essa bruxuleante luz do gás piscando plantou uma semente
em sua cabeça: talvez o gás pudesse ser usado para amplificar a fraca recepção
de rádio, tornando-a forte o bastante para transportar o sinal mais rico em
informação das palavras faladas, e não apenas o staccato dos pulsos do código Morse.
Mais tarde ele escreveria, com típica grandiosidade: “Eu descobri um Império do
Ar Invisível, intangível, mas sólido como granito.”
Depois de alguns anos de tentativa e erro,
De Forest desenvolveu um bulbo preenchido com gás contendo três eletrodos
precisamente configurados, projetados para amplificar sinais de entrada sem
fio. Ele chamou o aparelho de Audion. Como dispositivo de transmissão para a
palavra falada, o Audion só tinha potência para transmitir sinais inteligíveis.
Em 1910, De Forest usou um dispositivo de rádio equipado com o Audion para
fazer, pela primeira vez na história, a transmissão da voz humana de um navio
para a costa. Mas ele tinha planos muito mais ambiciosos para seu dispositivo.
Imaginara um mundo em que sua tecnologia sem fio fosse utilizada não apenas em comunicações
militares e comerciais, mas também para o divertimento de massa, em particular
para tornar sua grande paixão, a ópera, disponível para todos. “Estou ansioso
pelo dia em que a ópera estará em cada casa”, declarou ao New York Times, acrescentando, um pouco menos romanticamente:
“Algum dia a publicidade ainda será enviada
ao longo do dispositivo sem fio.”
Em 13 de janeiro de 1910, durante uma
apresentação da Tosca no Metropolitan
Opera de Nova York, De Forest ligou
um microfone de telefone no corredor a um transmissor montado no telhado a fim de criar a primeira
transmissão ao vivo de uma rádio pública. Provavelmente o mais poético dos modernos inventores, De Forest viria a definir
sua transmissão: “As ondas do éter passam por cima das torres mais altas, e os
que estão entre elas continuam inconscientes das vozes silenciosas que passam
por eles, de todos os lados. ... E quando falam com eles, as notas de alguma
adorada melodia terrestre, sua admiração aumenta.”
Na verdade, essa primeira transmissão provocou
mais escárnio que admiração. De Forest convidou hordas de repórteres e
celebridades para ouvir a transmissão em seus receptores de rádio espalhados
pela cidade. A intensidade do sinal era terrível, e os ouvintes escutaram algo mais
parecido com o zumbido ininteligível de um besouro-verde que as notas de uma
adorada melodia terrestre. O Times
descreveu toda a aventura como “um desastre”. De Forest foi até processado pelo
procurador-geral dos Estados Unidos por fraude, acusado de exagerar o valor da tecnologia
sem fio do Audion e encarcerado por alguns minutos. Como precisava de dinheiro
para pagar os proventos de seus advogados, De Forest vendeu a patente do Audion
para a AT&T a preço de banana.
Quando os pesquisadores da Bell Labs
começaram a investigar o Audion, descobriram algo extraordinário: desde o
início, Lee De Forest estivera totalmente enganado sobre quase tudo que
inventara. O aumento da chama de gás nada tinha a ver com radiação eletromagnética:
fora provocado pelas ondas sonoras do ruído da centelha. O gás não detectou e
amplificou o sinal de rádio, apenas tinha tornado o dispositivo menos eficaz.
De alguma forma, porém, por trás do
acúmulo de erros de De Forest, uma bela ideia estava pronta para surgir. Durante
a década seguinte, os engenheiros da Bell Labs e de outras instituições
modificaram sua criação básica de três eletrodos, removendo o gás do bulbo de modo
a vedá-lo num perfeito recipiente a vácuo, transformando-o num transmissor e
num receptor. O resultado foi o tubo de vácuo, o primeiro grande avanço da
revolução eletrônica, um dispositivo que podia amplificar o sinal elétrico de
quase qualquer tecnologia que dele necessitasse. Televisão, radar, gravação de
som, amplificadores de guitarra, raios X, fornos de micro-ondas, a “telefonia
secreta” do Sigsaly, os primeiros computadores digitais, tudo dependeria dos
tubos de vácuo.
Mas a primeira grande corrente tecnológica
a levar o tubo de vácuo para as residências foi o rádio. De certa forma, essa
foi a realização do sonho de De Forest: um império do ar transmitindo belas
melodias para salas de estar em todos os lugares. No entanto, mais uma vez, a
visão de De Forest seria frustrada por eventos concretos. As melodias que
começaram a tocar nesses dispositivos mágicos foram apreciadas por quase todos,
exceto pelo próprio De Forest.
Lee De Forest, inventor americano, no final dos anos 1920. |
O RÁDIO COMEÇOU sua vida como uma
transmissão de duas vias, prática que continua até hoje com o radioamadorismo:
entusiastas amadores conversando entre si através das ondas, às vezes escutando
outras conversas. Mas, no início dos anos 1920, o modelo de transmissão que viria
a dominar essa tecnologia evoluiu. Estações profissionais começaram a
distribuir programas de notícia e entretenimento para consumidores que os
ouviam em receptores de rádio em suas casas. Quase de imediato, algo totalmente
inesperado aconteceu: o advento de uma mídia de massa para o som divulgou um
novo tipo de música nos Estados Unidos, uma música que até então pertencia
quase exclusivamente a Nova Orleans, às cidades fluviais do Sul dos Estados
Unidos e aos bairros afro-americanos de Nova York e Chicago. De súbito, o rádio
fez do jazz um fenômeno nacional. Músicos como Duke Ellington e Louis Armstrong
tornaram-se nomes conhecidos. No final dos anos 1920, a banda de Duke Ellington
realizava transmissões nacionais toda semana no Cotton Club, no Harlem; pouco
tempo depois, Louis Armstrong tornou-se o primeiro afro-americano a ter seu
próprio programa de rádio nacional.
Tudo isso deixou Lee De Forest tão
horrorizado que escreveu uma denúncia tipicamente barroca à National
Association of Broadcasters: “O que você fez com meu filho, o programa de
rádio? Você rebaixou essa criança, vestiu-a com os trapos do ragtime, do jive e do boogie- woogie.” Na verdade, a
tecnologia que De Forest ajudou a inventar era intrinsecamente mais adequada ao
jazz que às performances clássicas. O jazz sobressaía no débil e compactado som
dos primeiros rádios AM; grande parte da vasta amplitude dinâmica de uma
sinfonia se perdia. O trompete explosivo de Satchmo soava melhor no rádio que
as sutilezas de Schubert.
Na verdade, a colisão do jazz com o rádio
criou o primeiro surto de uma série de ondas culturais que rolaram pela
sociedade no século XX. Um novo som que aos poucos vinha sendo incubado numa
pequena parte do mundo – Nova Orleans, no caso do jazz – abre seu caminho para
a mídia de massa do rádio, ofendendo os adultos e eletrizando os jovens. O
canal escavado pelo jazz seria depois preenchido pelo rock’n’ roll de Memphis,
pelo pop britânico de Liverpool, pelo rap e o hip-hop do Centro-Sul e do
Brooklyn. Alguma coisa no rádio e na música parece ter incentivado esse padrão
de uma forma que a televisão e o cinema não conseguiram. Quase imediatamente
depois de uma mídia nacional ter surgido para compartilhar a música, subculturas
de som começaram a florescer nesse meio de comunicação. Já existiam artistas
“underground” antes do rádio – poetas e pintores empobrecidos –, mas o rádio
ajudou a criar um modelo que se tornaria lugar-comum: artistas do metrô que se
tornam celebridade da noite para o dia.
O compositor Duke Ellington apresenta-se no palco, por volta de 1935. |
Com o jazz, claro, havia um elemento
adicional importante. As celebridades instantâneas eram quase todas
afro-americanas: Duke Ellington, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Billie
Holiday. Aquele foi um grande avanço. Pela primeira vez os Estados Unidos
brancos davam as boas-vindas à cultura afro-americana em sua sala de estar,
ainda que através dos alto-falantes de uma emissora AM. As estrelas do jazz
forneceram aos Estados Unidos brancos um exemplo de afro-americanos famosos,
ricos e admirados por seu talento artístico, e não como militantes.
Óbvio que muitos desses músicos também se
tornaram fortes militantes, em músicas como “Strange fruit”, de Billie Holiday,
com a chocante narrativa de um linchamento no Sul. Os sinais de rádio tinham
uma espécie de liberdade intrínseca que se revelou libertadora no mundo real.
Aquelas ondas de rádio ignoraram a forma como a sociedade estava segmentada na
época, entre o mundo negro e o branco, entre diferentes classes econômicas. Os
sinais de rádio eram daltônicos. Assim como a internet, eles não romperam
tantas barreiras, mas viveram num mundo separado por elas.
O despontar do Movimento pelos Direitos
Civis esteve intimamente ligado à disseminação do jazz nos Estados Unidos. Para
muitos americanos, ele foi o primeiro ponto de contato cultural entre o país
negro e o branco, criado em grande parte pelos afro-americanos. Por si só, foi
um grande golpe contra a segregação. Martin Luther King explicitou essa relação
em declarações durante o Festival de Jazz de Berlim, em 1964:
Não é de estranhar que a busca de
identidade dos negros norte-americanos tenha sido tão defendida por músicos de
jazz. Muito antes de ensaístas e estudiosos modernos escreverem sobre “a
identidade racial” como problema para um mundo multirracial, os músicos já
retornavam às suas raízes para afirmar o que se agitava em suas almas. Muito do
poder do nosso Movimento pela Liberdade nos Estados Unidos tem vindo dessa
música. Ela vem nos fortalecendo com os seus doces ritmos quando a coragem
começa a falhar. Tem nos acalmado com suas ricas harmonias quando os espíritos
estão deprimidos. E agora o jazz é exportado para o mundo.
COMO MUITAS FIGURAS políticas do século
XX, Luther King estava em débito com o tubo de vácuo por outra razão. Pouco
depois que De Forest e a Bell Labs começaram a usar tubos de vácuo nas
transmissões do rádio, a tecnologia foi convocada para amplificar a voz humana
em contextos mais imediatos: poderosos amplificadores ligados a microfones
permitiam às pessoas falar ou cantar para grandes multidões pela primeira vez
na história. Os amplificadores a válvula finalmente transcenderam a engenharia
de som que prevalecia desde o Neolítico. Não éramos mais dependentes das
reverberações de cavernas, catedrais ou casas de ópera para fazer nossas vozes
soarem mais alto. Agora a eletricidade podia fazer o trabalho dos ecos, mas de
maneira mil vezes mais poderosa.
A amplificação criou um novo tipo de
evento político: manifestações de massa reunidas em torno de locutores. As
multidões já vinham desempenhando papel dominante nas agitações políticas do
século e meio anterior. Se há uma imagem icônica de revolução antes do século XX,
é o enxame de pessoas tomando as ruas das cidades em 1789 ou em 1848. Mas a amplificação
forneceu àquelas multidões fervilhantes um ponto focal: a voz do líder reverberando
na praça, no estádio ou no parque. Antes dos amplificadores, os limites de nossas
cordas vocais tornavam difícil falar para mais de mil pessoas ao mesmo tempo.
(Os elaborados estilos vocais do canto lírico em muitos aspectos eram treinados
para obter a projeção máxima, ultrapassando as limitações biológicas.) Contudo,
um microfone conectado a vários alto-falantes ampliou a gama do alcance da voz
em várias ordens de magnitude.
Ninguém reconheceu – ou explorou – esse
novo poder mais depressa que Adolf Hitler, cujos comícios em Nuremberg
dirigiam-se para mais de 100 mil seguidores, todos obcecados pelo som
amplificado da voz do Führer. Se retirarmos o microfone e o amplificador da
caixa de ferramentas da tecnologia do século XX, estaremos removendo uma das
formas que mais definiram a organização política desse século, de Nuremberg a
“Eu tenho um sonho”.
A amplificação a válvula também deu lugar
a um equivalente musical dos comícios políticos: os Beatles no Shea Stadium, o
festival de Woodstock, o Live Aid. Mas as idiossincrasias da técnica do tubo de
vácuo também tiveram um efeito mais sutil na música do século XX, tornando-a
mais alta e também mais barulhenta.
É difícil para os que vivem a vida toda
nesse nosso mundo pós-industrial entender quanto o som da industrialização foi
chocante para os ouvidos humanos um ou dois séculos atrás. Uma sinfonia de
discórdia inteiramente nova entrou de repente nos domínios da vida cotidiana,
em especial nas grandes cidades: o estrondo, o clangor de metal contra metal, a
rajada, a estridência ruidosa da máquina a vapor. Em muitos aspectos, o barulho
foi tão chocante quanto as multidões e os odores das grandes cidades. Nos anos
1920, já com sons eletricamente amplificados, começaram a rugir, ao lado do
resto do tumulto urbano, organizações como a Manhattan’s Noise Abatement
Society, defendendo uma metrópole mais tranquila.
Simpático à missão da entidade, um
engenheiro da Bell Labs chamado Harvey Fletcher criou um caminhão com
equipamentos supermodernos de som, e engenheiros da Bell rodavam lentamente por
Nova York medindo o som nos pontos mais barulhentos. (A unidade para medir o
volume do som – o decibel – se originou na pesquisa de Fletcher.) Fletcher e
sua equipe descobriram que alguns sons da cidade – a rebitagem e as perfurações
nas construções, o rugido do metrô – estavam no limiar de decibéis da dor
acústica. Na Cortlandt Street, conhecida como “Radio Row”, o ruído das vitrines
apresentando os últimos modelos de rádio era tão alto que chegava a abafar o do
metrô elevado.
Mas enquanto grupos favoráveis à redução
de ruídos lutavam contra o barulho moderno com regulamentações e campanhas
públicas, surgiu outra resposta. Em vez de repelir o som, nossos ouvidos começaram
a encontrar algo bonito nele. Desde o início do século XIX, as experiências
rotineiras da vida diária vinham sendo na verdade uma sessão de treinamento
para a estética do ruído. No entanto, foi o tubo de vácuo que afinal levou o
ruído às massas.
A partir dos anos 1950, guitarristas que
tocavam com amplificadores a válvula perceberam que poderiam fazer um novo e
intrigante tipo de som saturando o amplificador: uma camada rascante de ruído
na parte superior das notas gerada pelo próprio dedilhar das cordas da guitarra.
Tecnicamente falando, era o som do amplificador funcionando mal, distorcendo o som
que devia reproduzir. Para a maioria dos ouvidos, aquilo soou como se algo no equipamento
estivesse quebrado, mas um pequeno grupo de músicos começou a achar atraente
esse som.
Algumas das primeiras gravações de
rock’n’roll dos anos 1950 já mostrava uma quantidade modesta de distorção nas
trilhas da guitarra, mas a arte do ruído só iria realmente decolar nos anos
1960. Em julho de 1960, um baixista chamado Grady Martin estava gravando uma
frase melódica para uma música de Marty Robbins chamada “Don’t worry” quando
seu amplificador, com algum defeito, criou um som esquisito que hoje chamamos
de “distorção”. Robbins queria eliminar esse trecho da música, mas o produtor
insistiu em mantê-lo. “Ninguém conseguiu entender, porque soou como um
saxofone”, diria Robbins anos mais tarde. “Parecia um motor a jato decolando.
Era uma mistura de sons diferentes.” Inspirado na estranha e indefinível frase
musical de Martin, uma banda chamada The Ventures propôs a um amigo bolar um
dispositivo que adicionasse intencionalmente um efeito distorcido. Um ano depois,
já havia caixas de distorção no mercado; três anos mais tarde, Keith Richards
saturava a frase de abertura de “Satisfaction” com distorção, e nascia assim a
marca registrada do som dos anos 1960.
Algo semelhante se desenvolveu com um novo
som – desagradável, no começo – que ocorre quando alto-falantes amplificados e
microfones se encontram no mesmo espaço físico: o turbilhão estridente da
microfonia. A distorção era um som que ao menos tinha alguma semelhança
acústica com os sons industriais surgidos no século XVIII. (Daí o tom de “motor
a jato” do trecho do contrabaixista Grady Martin.) Mas a microfonia era uma
criatura completamente nova, que não existia sob nenhuma forma até a invenção
de alto-falantes e microfones, cerca de um século atrás. Engenheiros de som
faziam grandes esforços para eliminá-la de gravações de concertos, posicionando
os microfones de forma a não captarem o sinal dos alto-falantes e evitando o
vaivém infinito do guincho agudo de retorno.
Diagrama da taxonomia do som que ilustrava o livro City Noise. |
Contudo, mais uma vez, o que era mau
funcionamento para uns tornou-se música para outros, quando artistas como Jimi
Hendrix e o Led Zeppelin – e, mais tarde, experimentalistas punks como o Sonic
Youth – adotaram esse som em suas gravações e performances. Na verdade, Jimi
Hendrix não estava apenas tocando guitarra naquelas gravações cheias de
microfonia no fim dos anos 1960, ele estava criando um novo som gerado pela vibração
das cordas da guitarra, pelos microfones captadores do som da guitarra e pelos
alto-falantes, elaborando complexas e imprevisíveis interações entre as três
tecnologias.
Às vezes, inovações culturais surgem a
partir da utilização de novas tecnologias de modo não imaginado. De Forest e a
Bell Labs não tentaram inventar o comício quando desenharam os primeiros
esboços de um tubo de vácuo, mas acabaram facilitando a organização de
manifestações de massa graças à amplificação de uma voz falando para muitas
pessoas. Outras vezes, no entanto, a inovação vem de uma abordagem mais
improvável, a exploração deliberada de um defeito, transformando barulho e erro
em sinal utilizável. Cada nova tecnologia surge com seus próprios problemas de
funcionamento – e de vez em quando esses problemas abrem uma nova porta para o
possível adjacente. No caso do tubo de vácuo, nossos ouvidos aprenderam a
curtir um som que sem dúvida teria deixado Lee De Forest de cabelo em pé. Às
vezes o defeito de uma nova tecnologia é quase tão interessante quanto seu
funcionamento perfeito.
DOS NEANDERTALENSES CANTANDO nas cavernas
da Borgonha, passando por Édouard-Léon Scott de Martinville gorjeando em seu
fonoautógrafo, até chegar à radiodifusão de Duke Ellington no Cotton Club, a
história da tecnologia do som sempre teve a ver com o aumento do alcance e da
intensidade de nossas vozes e de nossos ouvidos. Contudo, a mais surpreendente guinada
de todas aconteceria apenas um século atrás, quando os homens perceberam que o som
podia ser aproveitado para outra coisa: nos ajudar a enxergar.
A utilização da luz para sinalizar a
presença de perigo na costa para os marinheiros é uma prática antiga. O farol
de Alexandria, construído vários séculos antes do nascimento de Cristo, foi uma
das sete maravilhas originais do mundo. Mas os faróis tinham fraco desempenho justamente
quando eram mais necessários: em tempestades, quando a luz que emitem é obscurecida
pela névoa e pela chuva. Muitos faróis empregavam sinos de alerta como complemento,
porém eles podiam ser facilmente abafados pelo rugido do mar. No entanto, as ondas
sonoras apresentam uma intrigante propriedade física: elas viajam quatro vezes
mais depressa sob a água que no ar e se mostram quase imperturbadas pelo caos
sonoro acima do nível do mar.
Em 1901, uma empresa sediada em Boston
chamada Submarine Signal Company (SSC) começou a fabricar um sistema de
dispositivos de comunicação que explorava essa propriedade das ondas sonoras
aquáticas: sinos embaixo d’água, que tocavam em intervalos regulares, e
microfones especiais para recepção submarina, chamados “hidrofones”. A SSC montou
mais de cem estações ao redor do mundo, principalmente em portos ou canais traiçoeiros,
onde os sinos submarinos alertavam embarcações equipadas com os hidrofones da empresa,
orientando-as quando estavam muito perto de rochas ou bancos de areia. O
sistema era engenhoso, mas tinha seus limites. Para começar, só funcionava em
locais onde a SSC havia instalado sinos de alerta. E era totalmente inútil na
detecção de perigos menos previsíveis, como outros navios ou icebergs.
A ameaça representada pelos icebergs para
as viagens marítimas ficou muito evidente para o mundo em abril de 1912, quando
o Titanic naufragou no Atlântico
Norte. Poucos dias antes do naufrágio, o inventor canadense Reginald Fessenden
topou com um engenheiro da SSC numa estação de trem, e, depois de um rápido
bate-papo, os dois combinaram que Fessenden iria até o escritório da empresa
para ver as mais recentes tecnologias de sinalização subaquática. Fessenden foi
um pioneiro do rádio sem fio, responsável pela primeira transmissão por rádio
da fala humana e pela primeira transmissão de rádio transatlântica de código
Morse em duas vias. Essa experiência levou a SSC a pedir para sua assessoria projetar
um sistema de hidrofones que filtrasse melhor o ruído de fundo da acústica submarina.
Quando a notícia do naufrágio do Titanic foi divulgada, quatro dias depois de
sua visita à SSC, Fessenden ficou chocado, como o resto do mundo. Mas teve uma
ideia sobre como evitar essas tragédias no futuro.
A primeira sugestão de Fessenden,
inspirada por suas experiências com a telegrafia sem fio, foi substituir os
sinos por um tom contínuo, de origem elétrica, que também podia ser usado para
transmissão em código Morse. Todavia, quando ele começou a pesquisar as possibilidades,
percebeu que o sistema poderia ser muito mais ambicioso. Em vez de apenas ouvir
os sons gerados em postos de alerta especialmente instalados e projetados, o
dispositivo de Fessenden iria gerar
seus sons a bordo do navio e ouvir os ecos criados pelo reflexo dos sons em
objetos na água, o mesmo sistema de ecolocalização usado pelos golfinhos em seu
nado pelo oceano. Adotando os mesmos princípios que tinham atraído os cantores
das grutas às seções mais reverberantes das cavernas de Arcy-sur-Cure,
Fessenden sintonizou o dispositivo de modo a ressoar somente num pequeno intervalo
do espectro de frequências, algo em torno de 540hz, ignorando assim todo o
ruído de fundo do ambiente aquático. Depois de chamar seu dispositivo de
“vibrador” por alguns meses, acabou batizando-o de “oscilador de Fessenden”.
Ele era um sistema para enviar e receber telegrafia submarina, e foi o primeiro
dispositivo de sonar funcional do mundo.
Mais uma vez, o calendário mundial de
eventos históricos ressaltou a premência da engenhoca de Fessenden. Apenas um
ano depois de ter concluído seu primeiro protótipo funcional, rompeu a Primeira
Guerra Mundial. Os submarinos alemães rondando o Atlântico Norte representam
então uma ameaça ainda maior para as viagens marítimas que o iceberg do Titanic. O perigo tornava-se
particularmente intenso para Fessenden, que, como cidadão canadense, era
fervoroso patriota do Império Britânico. (Parece também que ele se encontrava no
limite do racismo, desenvolvendo mais tarde, em suas memórias, uma teoria sobre
por que “os homens de cabelos loiros de ascendência inglesa” tinham sido tão
fundamentais para a inventiva moderna.)
Os Estados Unidos ainda levariam dois anos
para entrar na guerra, e os executivos da SSC não partilhavam a fidelidade de
Fessenden à bandeira inglesa. Diante do risco financeiro do desenvolvimento de duas novas tecnologias revolucionárias,
a empresa decidiu construir e comercializar o oscilador como dispositivo apenas
para o telégrafo sem fio.
Afinal, Fessenden pagou do próprio bolso
uma viagem a Portsmouth, na Inglaterra, para tentar convencer a Marinha Real
Britânica a investir em seu oscilador, mas eles também duvidaram daquela
invenção milagrosa. Fessenden escreveria mais tarde: “Eu implorei para nos
deixarem abrir a caixa e mostrar o que era o aparelho.” Suas súplicas foram sumariamente
ignoradas. O sonar só se tornaria componente-padrão da guerra naval durante a Segunda
Guerra Mundial. Até o Armistício, em 1918, mais de 10 mil vidas foram perdidas para
os submarinos. Os britânicos, e depois também os americanos, experimentaram
inúmeras medidas ofensivas e defensivas para combater esses predadores.
Ironicamente, contudo, a mais valiosa arma de defesa teria sido uma simples
onda sonora de 540hz rebatendo no casco do agressor.
Um dos criadores do rádio, Reginald Fessenden, testa sua invenção, 1906. |
Na segunda metade do século XX, os
princípios da ecolocalização seriam empregados para fazer muito mais que
detectar icebergs e submarinos. Embarcações de pesca – e praticantes de pesca
amadora – começaram a usar as variações do oscilador de Fessenden em suas
atividades. Cientistas recorreram ao sonar para explorar os últimos grandes
mistérios de nossos oceanos, revelando paisagens ocultas, recursos naturais e
fissuras geológicas. Oitenta anos após o naufrágio do Titanic ter inspirado Reginald Fessenden a urdir o primeiro sonar, uma
equipe de pesquisadores americanos e franceses usou um desses aparelhos para
descobrir o navio no fundo do oceano Atlântico, 3.650 metros abaixo da
superfície.
A inovação de Fessenden teve seu efeito
mais transformador em terra firme, contudo, onde os aparelhos de ultrassom,
empregando o som para enxergar o interior do útero, revolucionaram o
acompanhamento pré-natal, permitindo que os bebês e suas mães sejam rotineiramente
salvos de complicações que seriam fatais há menos de um século. Fessenden esperava
que sua ideia – o uso do som para enxergar – pudesse salvar vidas. Mesmo sem conseguir
persuadir as autoridades a colocá-lo em uso na detecção de submarinos, o
oscilador acabou salvando milhões de vidas, tanto no mar quanto em um lugar que
Fessenden nunca teria imaginado, o hospital.
Decerto o uso mais conhecido do ultrassom
envolve a identificação do sexo de um bebê durante a gravidez. Agora estamos
acostumados a pensar em termos de informações binárias, 0 ou 1, circuito ligado
ou desligado. Mas, entre todas as experiências da vida, há poucas encruzilhadas
binárias como o sexo de um filho antes de nascer. Vai ser menino ou menina? Quantas
consequências que podem mudar uma vida fluem dessa simples unidade de informação?
Como muitos de nós, eu e minha esposa ficamos sabendo o sexo de nossos filhos usando
o ultrassom. Hoje temos outros meios, mais precisos, de determinar o sexo do
feto, mas o primeiro acesso a esse conhecimento foi conseguido rebatendo ondas
sonoras no corpo de nossos filhos antes de eles nascerem. Assim como ocorria
com os neandertalenses que exploravam as cavernas de Arcy-sur-Cure, os ecos
lideraram o caminho.
Há, no entanto, um lado sombrio nessa
inovação. A introdução do ultrassom em países como a China, com forte
preferência cultural por filhos homens, levou a uma prática crescente de
abortos seletivos por sexo. Uma ampla oferta de máquinas de ultrassom foi
difundida em toda a China no início dos anos 1980. Embora o governo tenha logo
proibido oficialmente o uso delas para determinar o sexo do bebê, o emprego clandestino
da tecnologia para a identificação sexual se generalizou. Até o fim da década,
a proporção entre os sexos no nascimento em hospitais de toda a China era de
quase 110 meninos para cada cem meninas, com algumas províncias relatando
índices que chegavam a 118 para cem. Este pode ser um dos mais surpreendentes e
trágicos efeitos beija-flor em toda a tecnologia do século XX: alguém constrói
uma máquina para ouvir ondas sonoras a fim de identificar icebergs e, algumas
gerações adiante, milhões de fetos do sexo feminino são abortados em
decorrência da mesma tecnologia.
As distorções na proporção entre os sexos
na China moderna têm muitas lições importantes, sem mencionar a questão do
aborto em si e muito menos a do aborto baseado no gênero. Primeiro, são um
lembrete de que o avanço tecnológico não é puramente positivo em seus efeitos:
para cada navio salvo de um iceberg há inúmeras gestações interrompidas por falta
de um cromossomo Y. A marcha da tecnologia tem sua própria lógica interna, mas
a aplicação moral dessa tecnologia está em nossas mãos. Podemos decidir usar o
ultrassom para salvar ou eliminar vidas. (Ou ainda mais desafiador, podemos usar
o ultrassom para distorcer os limites da própria vida, detectando o batimento
cardíaco de um feto com semanas de gestação.) Na maioria das vezes, as
adjacências do progresso tecnológico e científico ditam o que podemos inventar
em seguida. No entanto, por mais inteligente que alguém fosse, não poderia
inventar uma ultrassonografia antes da descoberta das ondas de som. No entanto,
o que nós decidimos fazer com as invenções? Essa é uma questão mais complicada,
que requer um diferente conjunto de competências para responder.
Há outra lição, mais auspiciosa, na
história do sonar e do ultrassom: a rapidez com que nossa criatividade é capaz
de ultrapassar os limites da influência convencional. Nossos ancestrais notaram
pela primeira vez, dezenas de milhares de anos atrás, que o eco e a reverberação
têm o poder de alterar as propriedades sonoras da voz humana. Durante séculos, temos
utilizado essas propriedades para aumentar o alcance e o poder das nossas
cordas vocais, das catedrais até a Parede de Som de Phil Spector. Mas é difícil
imaginar que alguém estudando a física do som há duzentos anos pudesse prever
que esses ecos seriam usados para rastrear armas submarinas ou determinar o
sexo de uma criança por nascer. O que começou com um som mais emocionante e
intuitivo para os ouvidos humanos – o som de nossas vozes cantando, rindo,
trocando notícias ou fofocando – transformou-se em ferramentas de guerra e paz,
de vida ou morte. Assim como os lamentos distorcidos do amplificador a válvula,
nem sempre este é um som feliz. No entanto, muitas vezes acaba por ter uma
ressonância insuspeita.
"A história das inovações que fizeram a vida moderna possível"
de STEVEN JOHNSON
editado pela ZAHAR
com tradução de CLAUDIO CARINA
e disponibilizado pela LE LIVROS (http://lelivros.site/)
DADOS DE COPYRIGHT
Sobre a obra:
A presente obra é disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivo de oferecer conteúdo para uso parcial em pesquisas e estudos acadêmicos, bem como o simples teste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.
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