domingo, 23 de agosto de 2015

COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI - SOM

Nota do Blog: as inter-relações entre tempo e fatos estabelecidas pelo autor e a sua ideia propriamente dita da obrigatória simbiose entre as coisas, poderá ser melhor compreendida se a introdução do livro for lida, o que poderá ser feito em: 
http://adautogmjunior.blogspot.com.br/2015/08/como-chegamos-ate-aqui-introducao.html


                               3º CAPÍTULO - SOM    

CERCA DE 1 MILHÃO de anos atrás, os mares retiraram-se da bacia que hoje circunda Paris, deixando um anel de depósitos calcários que outrora haviam sido recifes de coral ativos. Com o tempo, o rio Cure, na Borgonha, escavou lentamente um caminho através de alguns desses blocos de calcário, criando uma rede de cavernas e túneis enfeitados de estalactites e estalagmites formadas pela água da chuva e pelo dióxido de carbono. Descobertas arqueológicas sugerem que os neandertalenses e os primeiros homens modernos usaram as cavernas para abrigo e cerimônia por dezenas de milhares de anos. No início de 1990, uma imensa coleção de antigas pinturas foi descoberta nas paredes do complexo de cavernas em Arcy-sur-Cure: mais de uma centena de imagens de bisões, mamutes, aves, peixes e até (e mais assustadora) a marca da mão de uma criança. A datação radiométrica determinou que as imagens tinham 30 mil anos. Acredita-se que somente as pinturas em Chauvet, no sul da França, são mais antigas que essas.
     Por razões compreensíveis, pinturas rupestres costumam ser citadas como evidência de um desejo primordial de representar o mundo em imagens. Eras antes da invenção do cinema, nossos antepassados colecionavam e admiravam imagens tremeluzentes nas paredes de cavernas iluminadas pelo fogo. No entanto, nos últimos anos, uma nova teoria surgiu sobre o ritual primitivo das cavernas da Borgonha, centrada não apenas nas passagens subterrâneas, mas também nos sons.
     Alguns anos depois de as pinturas em Arcy-sur-Cure serem descobertas, um etnomusicólogo da Universidade de Paris chamado Iegor Reznikoff começou a estudar as grutas da mesma forma que um morcego o faria, ouvindo ecos e reverberações criados em diferentes partes do complexo. Há muito tempo era evidente que as imagens neandertalenses tinham sido agrupadas em partes específicas da caverna, algumas mais ornamentadas e densas apareciam a mais de um quilômetro de profundidade. Reznikoff concluiu que as pinturas foram colocadas, de modo coerente, nas partes acusticamente mais interessantes das cavernas, nos locais onde a reverberação era mais profunda. Se você gritar diante das imagens dos animais do período Paleolítico na extremidade das cavernas de Arcy-sur-Cure, vai ouvir sete ecos distintos de sua voz. Do ponto de vista acústico, a reverberação leva quase cinco segundos para cessar após suas cordas vocais pararem de vibrar. O efeito não é diferente da famosa técnica da “parede de som” usada por Phil Spector nas gravações de 1960, que ele produziu para artistas como The Ronettes, Ike e Tina Turner. No sistema de Spector, afunilou-se o som gravado por um porão repleto de alto-falantes e microfones, criando um enorme eco artificial. Em Arcy-sur-Cure, o efeito é cortesia do ambiente natural da própria caverna.
     A teoria de Reznikoff é que as comunidades neandertalenses se reuniam ao lado das imagens que pintavam e entoavam algum tipo de ritual xamanístico usando as reverberações da caverna para prolongar magicamente o som de suas vozes. (Reznikoff também descobriu pequenos pontos vermelhos pintados em outras partes ricas em sons da caverna.) Nossos antepassados não podiam gravar os sons que ouviam da mesma forma como registraram sua experiência visual do mundo em pinturas. Mas se Reznikoff estiver correto, os primeiros seres humanos estavam ensaiando uma forma primitiva de engenharia do som, amplificando e reforçando o mais inebriante dos sons: a voz humana.
     Com o tempo, a motivação de amplificar – e, em última análise, reproduzir – a voz humana abriu caminho para uma série de avanços sociais e tecnológicos nas comunicações, na computação, na política e nas artes. Nós aceitamos prontamente a ideia de que a ciência e a tecnologia têm melhorado a nossa visão de forma notável, dos óculos aos telescópios Keck. Mas nossas cordas vocais, vibrando no discurso e na música, também foram intensamente valorizadas por significados artificiais. Nossas vozes ficaram mais altas; começaram a viajar por fios depositados no fundo do oceano; escaparam dos limites da Terra e começaram a repercutir em satélites. As revoluções essenciais na visão em grande parte desenvolveram-se entre o Renascimento e o Iluminismo: óculos, microscópios, telescópios; para ver com mais clareza, ver mais longe, ver mais de perto. As tecnologias da voz só chegaram com força total no final do século XIX. Quando chegaram, mudaram quase tudo. Mas não começaram com a amplificação. O primeiro grande avanço na nossa obsessão pela voz humana chegou com o simples ato de escrevê-la.

MILHARES DE ANOS DEPOIS daqueles cantores neandertalenses reunidos nas seções reverberantes das cavernas da Borgonha, a ideia da gravação de som era tão fantasiosa quanto um conto de fadas. Sim, ao longo desse período nós aprimoramos a arte de projetar espaços acústicos para amplificar vozes e instrumentos. O desenho das catedrais da Idade Média, afinal, coadunava-se tanto à engenharia do som quanto a épicas experiências visuais. No entanto, ninguém se preocupou em imaginar como captar o som diretamente. O som era etéreo, não tangível. O melhor que se podia fazer era imitar o som com a própria voz e os instrumentos.
     O sonho de gravar a voz humana só se apresentaria como possibilidade viável depois de duas descobertas fundamentais, uma da física, outra da anatomia. Mais ou menos a partir de 1500, os cientistas começaram a trabalhar com o pressuposto de que o som viajava através do ar em ondas invisíveis. (Pouco tempo depois eles descobriram que essas ondas viajavam quatro vezes mais depressa na água, fato curioso, mas que não seria útil por outros quatro séculos.) No Iluminismo, livros detalhados de anatomia tinham mapeado a estrutura básica do ouvido humano, documentando a maneira como as ondas sonoras eram transmitidas através do canal auditivo, provocando vibrações no tímpano. Nos anos 1850, um gráfico parisiense chamado Édouard-Léon Scott de Martinville topou com um desses livros de anatomia, que despertou nele o interesse pelo hobby da biologia e da física do som.

O ouvido humano

     Scott também estudou taquigrafia e já tinha publicado um livro sobre a história da estenografia alguns anos antes de começar a pensar sobre o som. Na época, a estenografia era a forma mais avançada de tecnologia de gravação de voz; nenhum sistema podia captar a palavra falada com a precisão e a velocidade de um estenógrafo treinado. Mas, ao observar aquelas detalhadas ilustrações do ouvido interno, um novo conceito começou a tomar forma no pensamento de Scott: talvez o processo de transcrição da voz humana pudesse ser automatizado. No lugar de um ser humano escrevendo as palavras, uma máquina poderia gravar as ondas sonoras.
     Em março de 1857, duas décadas antes de Thomas Edison inventar o fonógrafo, o instituto de patentes da França concedeu a Scott a patente para uma máquina que gravava o som. A geringonça canalizava ondas sonoras através de um dispositivo semelhante a uma cornucópia que terminava com uma membrana de pergaminho. As ondas sonoras provocavam no pergaminho vibrações que eram transmitidas para uma agulha feita com cerda de porco. A agulha gravava as ondas em uma página escurecida com fuligem de carvão. Ele chamou sua invenção de “fonoautógrafo”, a autoescrita do som.
     Nunca nos anais da invenção aconteceu uma combinação tão curiosa de presbiopia e miopia como na história do fonoautógrafo. Por um lado, Scott conseguiu fazer uma súbita transição de um conceito crucial – que as ondas sonoras podiam ser retiradas do ar e registradas num instrumento de gravação – mais de uma década antes que outros inventores e cientistas se dedicassem ao tema. (Quando você está duas décadas adiante de Edison, pode ter certeza de que está indo muito bem.) No entanto, a invenção de Scott foi paralisada por uma fundamental – e até mesmo cômica – limitação. Ele inventou o primeiro dispositivo de gravação de som na história. Esqueceu, contudo, de incluir a reprodução.
     Na verdade, “esqueceu” é uma palavra muito forte. Parece óbvio para nós, agora, que um dispositivo de gravação de som também deve incluir um recurso que permita ouvir a gravação. Inventar o fonoautógrafo sem incluir a reprodução parece inventar o automóvel e esquecer de incluir a parte em que as rodas giram. Mas isso porque estamos julgando o trabalho de Scott do outro lado da divisa. A ideia de que uma máquina pudesse transmitir ondas sonoras originadas em outro local não era uma coisa intuitiva. Só quando Alexander Graham Bell começou a reproduzir ondas de som no terminal do telefone é que a reprodução tornou-se um avanço óbvio. Em certo sentido, Scott teve de olhar em torno de dois pontos cegos significativos: a ideia de que o som podia ser registrado e que essas gravações podiam ser reconvertidas em ondas sonoras. Ele conseguiu compreender o primeiro passo, mas não chegou ao segundo. Não tanto por ter esquecido ou falhado em fazer a reprodução funcionar, mas porque a ideia não lhe ocorrera.
     Se a reprodução nunca fez parte dos planos de Scott, é justo perguntar por que exatamente ele quis construir o fonoautógrafo. Para que serve um gravador que não reproduz gravações? Aqui nos confrontamos com uma faca de dois gumes: confiar em metáforas dominantes ou tomar emprestadas ideias de outros campos e aplicá-las em novo contexto. Scott teve a ideia da gravação de áudio inspirado numa metáfora da estenografia: transcrever ondas, em vez de palavras. Essa estruturação metafórica permitiu que ele desse o primeiro passo anos antes de seus pares, mas também pode tê-lo impedido de realizar o segundo. Quando palavras são convertidas em código de taquigrafia, a informação captada é decodificada por um leitor que compreende o código. Scott achou que o mesmo aconteceria com o fonoautógrafo. O dispositivo gravaria ondas sonoras na fuligem, cada traço do estilete correspondendo a um fonema emitido pela voz humana. As pessoas aprenderiam a “ler” esses rabiscos do mesmo jeito que tinham aprendido a ler os rabiscos da taquigrafia. Em certo sentido, Scott não tentava de fato inventar um dispositivo de gravação de áudio. Ele buscava inventar o mais perfeito serviço de transcrição, só que teríamos de aprender toda uma nova linguagem para lê-la.

Édouard-Léon Scott de Martinville, escritor francês e inventor do fonoautógrafo.

Fonoautógrafo, cerca de 1857.


     Não era uma ideia louca, quando vista em perspectiva. Os seres humanos já tinham provado que eram muito bons em aprender a reconhecer padrões visuais. Internalizamos nosso alfabeto tão bem que nem sequer precisamos pensar na leitura depois que aprendemos a ler. Por que as ondas sonoras seriam diferentes quando estivessem dispostas numa página?
     Infelizmente, o kit neural de ferramentas dos seres humanos não parece incluir a capacidade de ler ondas sonoras com os olhos. Cento e cinquenta anos se passaram desde a invenção de Scott, e hoje dominamos a arte e a ciência do som num grau que o teria deixado atônito. Contudo, nenhum de nós aprendeu a analisar visualmente as palavras faladas embutidas nas ondas sonoras impressas. Aquela foi uma aposta brilhante, mas se revelou perdedora. Já que íamos decodificar o áudio gravado, precisávamos reconvertê-lo em som para decodificá-lo via tímpano, e não pela retina.
     Podemos não saber ler formas sonoras, mas também não somos tão indolentes. Durante o século e meio que se seguiu à invenção de Scott, conseguimos inventar uma máquina que podia “ler” a imagem visual de uma forma de onda e convertê-la de novo em som: os computadores. Apenas alguns anos atrás, uma equipe de historiadores do som formada por David Giovannoni, Patrick Feaster, Meagan Hennessey e Richard Martin descobriu um baú de fonoautógrafos de Scott na Academia de Ciências de Paris, inclusive um exemplar fabricado em abril de 1860, admiravelmente preservado. Giovannoni e seus colegas examinaram as linhas fracas e irregulares rabiscadas na fuligem quando Lincoln ainda estava vivo. Eles converteram a imagem numa forma de onda digital e reproduziram-na pelos alto-falantes de um computador.
     Primeiro eles acharam que estavam ouvindo uma voz de mulher cantando a folclórica canção francesa “Au clair de la lune”; depois perceberam que estavam tocando o áudio em velocidade dupla. Quando baixaram para o ritmo certo, a voz de um homem surgiu entre estalidos e chiados. Era Édouard-Léon Scott de Martinville ecoando do túmulo.
     De modo compreensível, a gravação não era da mais alta qualidade, mesmo tocada na velocidade correta. Durante a maior parte do tempo, o ruído aleatório do aparelho de gravação abafava a voz de Scott. Mas mesmo esse aparente fracasso ressalta a importância histórica da gravação. Os estranhos assobios e a deterioração dos sinais de áudio se tornariam comuns para os ouvidos do século XX. Todavia, esses não são os sons que ocorrem na natureza. As ondas sonoras se abafam, ecoam e se condensam em ambientes naturais, porém não se decompõem nos caóticos ruídos mecânicos. O som da estática é um som moderno. Scott captou-o pela primeira vez, mesmo que ele tenha levado um século e meio para ser ouvido.
     O ponto cego de Scott não ficaria completamente sem saída. Quinze anos depois de sua patente, outro inventor começava a fazer experiências com o fonoautógrafo, modificando o projeto original de Scott e incluindo a orelha real de um cadáver, a fim de compreender melhor a acústica. Com essa nova configuração, ele chegou a um método de captar e transmitir o som. O nome desse homem era Alexander Graham Bell.

POR ALGUM MOTIVO, a tecnologia do som parece induzir um estranho tipo de surdez entre seus pioneiros mais avançados. Quando surge uma nova ferramenta para compartilhar ou transmitir o som de outra maneira, seu inventor tem dificuldades para imaginar como a ferramenta pode ser utilizada. Quando completou o projeto original de Scott e inventou o fonógrafo, em 1877, Thomas Edison imaginou que o dispositivo seria usado para enviar cartas faladas pelo sistema postal. Os indivíduos iriam gravar suas missivas nos rolos de cera do fonógrafo e postá-los no correio para serem reproduzidos dias depois. Ao inventar o telefone, Bell cometeu um erro de inversão de imagem: ele imaginou que um dos principais usos para o telefone seria o de transmitir música ao vivo. Uma orquestra ou cantor se postaria numa das extremidades da linha, enquanto os ouvintes apreciariam o som saindo do telefone do outro lado. Assim, esses dois inventores lendários entenderam tudo ao contrário. As pessoas acabaram usando o fonógrafo para ouvir música e o telefone para se comunicar com os amigos.
     Como forma de mídia, o telefone se assemelhava mais às redes de pessoa a pessoa do serviço postal. Na era da mídia de massa que viria a seguir, novas plataformas de comunicação iriam naturalmente se inclinar em direção ao modelo dos criadores da grande mídia para uma audiência passiva de consumidores. O sistema de telefonia seria um modelo para comunicações mais íntimas – de um para um, e não de um para muitos –, até o advento do e-mail, cem anos depois. As consequências do telefone foram imensas e variadas. Ligações internacionais tornaram o mundo menor e mais próximo, embora as linhas de conexão continuassem tênues até pouco tempo atrás.
     A primeira linha transatlântica que permitiu que cidadãos comuns realizassem chamadas entre os Estados Unidos e a Europa só foi lançada em 1956. Na primeira configuração, o sistema permitia 24 chamadas simultâneas. Esse era o total da largura de banda para uma conversa de voz entre os dois continentes até cinquenta anos atrás – entre centenas de milhões de vozes, apenas duas dúzias de conversas de cada vez. Curiosamente, o telefone mais famoso do mundo – o “telefone vermelho”, que mantinha uma linha direta entre a Casa Branca e o Kremlin – não era um telefone em sua concepção original. Criado após o fiasco das comunicações que quase nos levou a uma guerra nuclear, na crise dos mísseis de Cuba, a linha vermelha na verdade era um teletipo que permitia o envio de mensagens rápidas e seguras entre as duas potências. As chamadas de voz eram consideradas muito arriscadas, dadas as dificuldades de tradução em tempo real.

Laboratório do inventor Alexander Graham Bell, onde ele fez experiências com a transmissão do som por eletricidade, 1886.

     O telefone também possibilitou transformações menos óbvias. Popularizou o sentido moderno da palavra alô (hello) – como uma saudação que começa uma conversa –, transformando-a numa das palavras mais reconhecidas em qualquer lugar do planeta. As centrais telefônicas tornaram-se uma das primeiras rotas de entrada para as mulheres numa classe “profissional”. (Só a AT&T empregava 250 mil mulheres em meados da década de 1940.) Em 1908, um executivo da AT&T chamado John J. Carty argumentou que o telefone teve impacto tão grande quanto o elevador na construção dos arranha-céus:

Funcionários instalam na Casa Branca o "telefone vermelho", a lendária linha de emergência que ligava a Casa Branca ao Kremlin durante a Guerra Fria, em 30 de agosto de 1963, em Washington.


Pode parecer ridículo dizer que Bell e seus sucessores foram os pais da moderna arquitetura comercial do arranha-céu. Mas espere um minuto. Pegue o Singer Building, o Flatiron Building, o Broad Exchange, o Trinity ou qualquer outro gigantesco edifício de escritórios. Quanta mensagens você acha que entram e saem desses prédios todos os dias? Suponha não houvesse telefone, e que cada mensagem tivesse de ser levada pessoalmente por mensageiros. Que espaço você acha que os elevadores deixariam para os escritórios? Essas estruturas seriam uma impossibilidade econômica.

     Talvez o legado mais importante do telefone, contudo, esteja em uma estranha e maravilhosa organização que cresceu fora dele, a Bell Labs, empresa que iria desempenhar papel fundamental na criação de quase todas as principais tecnologias do século XX. Rádios, tubos de vácuo, transistores, televisões, células solares, cabos coaxiais, raios laser, microprocessadores, computadores, telefones celulares, fibras óticas – todas essas ferramentas fundamentais da vida moderna descendem de ideias originalmente geradas na Bell Labs. Não é à toa que a empresa ficou conhecida como “fábrica de ideias”.
     A questão interessante sobre a Bell Labs não é o que a empresa inventou. (A resposta para isso é simples: quase tudo.) A verdadeira questão é por que a Bell Labs foi capaz de criar tanto do século XX. A história definitiva da Bell Labs, The Idea Factory, de Jon Gertner, revela o segredo para o sucesso incomparável do laboratório. Não se tratava apenas de diversidade de talentos, de tolerância ao erro e de vontade de fazer grandes apostas – todos esses traços da Bell Labs também estavam presentes no famoso laboratório de Edison em Menlo Park, bem como em outros centros de pesquisa ao redor do mundo. O que fez a Bell Labs tão diferente teve a ver com a lei antitruste e com os gênios que ela atraiu.
     Já em 1913, a AT&T estava lutando contra o governo dos Estados Unidos por causa do controle monopolista que a empresa exercia sobre o serviço de telefonia do país. O monopólio era inegável. Se você fizesse uma chamada telefônica nos Estados Unidos em algum momento entre 1930 e 1984, estaria, quase sem exceção, usando a rede da AT&T. Esse poder monopolista tornou a empresa imensamente lucrativa, uma vez que não enfrentava nenhuma concorrência de porte.
     A AT&T conseguiu manter os reguladores nacionais a distância por setenta anos, convencendo-os de que a rede de telefonia era um “monopólio natural” e necessário. Circuitos de telefone analógicos eram complicados demais para serem administrados por uma miscelânea de empresas concorrentes. Se os americanos quisessem um telefone em rede confiável, o sistema precisava ser gerenciado por uma única empresa. No fim, os advogados do Departamento de Justiça contrários ao monopólio elaboraram um acordo intrigante, estabelecido oficialmente em 1956. A AT&T teria permissão para manter seu monopólio sobre o serviço de telefonia, mas qualquer invenção patenteada que tivesse origem na Bell Labs devia ser livremente licenciada para qualquer empresa americana que a considerasse útil, e todas as novas patentes teriam de ser licenciadas por taxa módica. Efetivamente, o governo disse à AT&T que podia manter seus lucros, mas, em troca, teria de doar suas ideias.
     Aquele foi um arranjo único, do tipo que não gostaríamos de ver de novo. O poder de monopólio deu à empresa um fundo para pesquisa quase infinito, porém, cada ideia interessante surgida das pesquisas poderia ser logo adotada por outras empresas. Assim, grande parte do sucesso americano em eletrônica no pós-guerra – dos transistores aos computadores e telefones celulares – remonta, em última análise, ao acordo de 1956. Graças à resolução antitruste, a Bell Labs tornou-se um dos híbridos mais estranhos da história do capitalismo: a grande máquina lucrativa gerando novas ideias que, para todos os efeitos práticos, eram socializadas. Os americanos tinham de pagar um dízimo para a AT&T por seu serviço telefônico, mas as inovações geradas pela companhia pertenciam a todos.

UM DOS AVANÇOS mais inovadores na história da Bell Labs surgiu nos anos que antecederam o acordo de 1956. Por razões compreensíveis, ele quase não recebeu atenção no momento. A revolução resultante desse invento ainda precisaria de meio século para eclodir, e sua existência era um segredo de Estado, quase tão bem guardado quanto o Projeto Manhattan. Contudo, ele foi um marco, e mais uma vez começou com o som da voz humana.
     A inovação que a Bell Labs criou de início – o telefone Bell – nos levou a um limite crucial na história da tecnologia. Pela primeira vez um componente do mundo físico era representado em termos de energia elétrica de forma direta. (O telégrafo convertia símbolos feitos pelo homem em eletricidade, mas o som pertencia ao mesmo tempo à natureza e à cultura.) Alguém falava num receptor, gerando ondas sonoras que se tornavam pulsos de eletricidade, que se transformavam novamente em ondas sonoras na outra extremidade. O som, de certa forma, foi o primeiro de nossos sentidos a ser eletrificado. (No mesmo período, a eletricidade nos ajudou a ver o mundo de forma mais clara graças à lâmpada, mas só décadas depois iria gravar e transmitir o que víamos.) Quando essas ondas sonoras tornaram-se elétricas, elas puderam viajar grandes distâncias em velocidades surpreendentes.
     No entanto, por mais que esses sinais elétricos fossem mágicos, eles não eram infalíveis. Viajando de cidade em cidade através de fios de cobre, eram vulneráveis à deterioração, à perda de sinal e ao ruído. Os amplificadores, como veremos, ajudaram a resolver o problema, reforçando os sinais à medida que eram transmitidos pela linha. Mas o objetivo final era um sinal puro, uma espécie de representação perfeita da voz que não se degradasse ao passar pela rede telefônica. Curiosamente, o caminho que levou a esse objetivo começou com uma meta diferente, não a de manter nossas vozes puras, mas de conservá-las em segredo.
     Durante a Segunda Guerra Mundial, o lendário matemático Alan Turing trabalhou em colaboração com A.B. Clark, da Bell Labs, no desenvolvimento de uma linha segura de comunicações, sob o codinome Sigsaly, que convertia as ondas sonoras da fala humana em expressões matemáticas. O Sigsaly gravava uma onda sonora 20 mil vezes por segundo, captando a amplitude e a frequência de onda naquele momento. Mas a gravação não era feita convertendo a onda em sinal elétrico ou em sulco num cilindro de cera. Em vez disso, transformava a informação em números codificados na linguagem binária de 0 e 1. “Gravação”, na verdade, era a palavra errada para isso. Usando um termo que se tornaria linguagem comum no hip-hop e entre adeptos da música eletrônica cinquenta anos mais tarde, eles chamaram esse processo de sampling (“amostragem”). De fato, eles estavam tirando fotos da onda sonora 20 mil vezes por segundo, mas os instantâneos eram escritos em 0 e 1, de forma digital, não analógica.
     O trabalho com amostras digitais tornou mais fácil transmiti-las de maneira segura. Alguém procurando um sinal analógico tradicional ouviria apenas uma rajada de ruído digital. (O Sigsaly recebeu o nome de código Green Hornet porque a informação crua soava como o zumbido de um inseto.) Os sinais digitais também podiam ser matematicamente criptografados de forma muito mais eficaz que os analógicos. Apesar de terem interceptado e gravado muitas horas de transmissões do Sigsaly, os alemães jamais conseguiram interpretá-las.
     Desenvolvido por uma divisão especial do Army Signal Corps e supervisionado por pesquisadores da Bell Labs, o Sigsaly entrou em operação em 15 de julho de 1943, com um histórico telefonema transatlântico entre o Pentágono e Londres. No início da chamada, antes da conversa se voltar para questões mais prementes de estratégia militar, o presidente da Bell Labs, dr. O.E. Buckley, fez algumas observações introdutórias sobre o avanço tecnológico que o Sigsaly representava:

Estamos reunidos hoje em Washington e Londres para inaugurar um novo serviço, a telefonia secreta. Este é um evento de destaque na condução da guerra e que outros aqui podem avaliar melhor que eu. Como façanha técnica, gostaria de salientar que deve ser incluído entre os principais avanços da arte da telefonia. Ele não só representa a realização de um objetivo há muito procurado – o completo sigilo em transmissão radiofônica –, como significa a primeira aplicação prática de novos métodos de transmissão telefônica que prometem ter efeitos de longo alcance.

     Se Buckley subestimou qualquer coisa foi a importância desses “novos métodos”. O Sigsaly não foi apenas um marco na telefonia. Foi um divisor de águas na história da mídia e das comunicações em geral. Pela primeira vez, nossas experiências foram digitalizadas. A tecnologia por trás do Sigsaly continuaria útil no fornecimento de linhas de comunicação seguras. Mas a força verdadeiramente perturbadora que desencadeou viria de outra estranha e magnífica propriedade que ele possuía: cópias digitais podiam ser cópias perfeitas. Com o equipamento certo, amostras digitais de som podiam ser transmitidas e copiadas com fidelidade absoluta. Assim, grande parte da turbulência da paisagem da mídia moderna – a reinvenção da indústria musical, que começou com serviços de compartilhamento de arquivos como o Napster, o surgimento de streaming de mídia, bem como o colapso das tradicionais redes de televisão – remonta ao zumbido digital do Green Hornet. Se os robôs historiadores do futuro tivessem de marcar um momento em que a “era digital” começou – o equivalente computacional ao 4 de Julho ou ao dia da Queda da Bastilha –, o telefonema transatlântico de julho de 1943 certamente estaria no topo da lista. Mais uma vez, nosso desejo de reproduzir o som da voz humana expandiu-se para a possibilidade adjacente. Pela primeira vez nossa experiência do mundo estava se tornando digital.

AS AMOSTRAS DIGITAIS do Sigsaly viajaram através do Atlântico como cortesia de outro avanço nas comunicações que a Bell Labs ajudou a criar: o rádio. Curiosamente, apesar de ter se tornado afinal uma mídia saturada pelo som de pessoas falando ou cantando, o rádio não começou assim. As primeiras transmissões funcionais do rádio – criado por Guglielmo Marconi e por uma série de outros brilhantes inventores esporádicos nas últimas décadas do século XIX – foram quase exclusivamente dedicadas ao envio de mensagens em código Morse. (Marconi chamou sua invenção de “telegrafia sem fio”.) No entanto, quando a informação começou a fluir pelas ondas de rádio, não demorou muito para que amadores e laboratórios de pesquisa começassem a pensar em como transformar palavras faladas e música em componentes dessa mistura.
     Um desses diletantes foi Lee De Forest, um dos mais brilhantes e erráticos inventores do século XX. Trabalhando no seu laboratório caseiro em Chicago, De Forest sonhava em combinar o telégrafo sem fio de Marconi com o telefone de Bell. 9 Ele começou uma série de experiências com um transmissor de centelha, dispositivo que criava um brilhante e monótono pulso de energia eletromagnética que podia ser detectado por antenas a quilômetros de distância, perfeito para enviar o código Morse. Uma noite, enquanto acionava uma série de pulsos, De Forest notou algo estranho acontecendo em toda a sala: sempre que criava uma centelha, a chama de seu lampião a gás ficava branca e aumentava de tamanho. De alguma forma, De Forest pensou, a pulsação eletromagnética intensificava a chama. Essa bruxuleante luz do gás piscando plantou uma semente em sua cabeça: talvez o gás pudesse ser usado para amplificar a fraca recepção de rádio, tornando-a forte o bastante para transportar o sinal mais rico em informação das palavras faladas, e não apenas o staccato dos pulsos do código Morse. Mais tarde ele escreveria, com típica grandiosidade: “Eu descobri um Império do Ar Invisível, intangível, mas sólido como granito.”
     Depois de alguns anos de tentativa e erro, De Forest desenvolveu um bulbo preenchido com gás contendo três eletrodos precisamente configurados, projetados para amplificar sinais de entrada sem fio. Ele chamou o aparelho de Audion. Como dispositivo de transmissão para a palavra falada, o Audion só tinha potência para transmitir sinais inteligíveis. Em 1910, De Forest usou um dispositivo de rádio equipado com o Audion para fazer, pela primeira vez na história, a transmissão da voz humana de um navio para a costa. Mas ele tinha planos muito mais ambiciosos para seu dispositivo. Imaginara um mundo em que sua tecnologia sem fio fosse utilizada não apenas em comunicações militares e comerciais, mas também para o divertimento de massa, em particular para tornar sua grande paixão, a ópera, disponível para todos. “Estou ansioso pelo dia em que a ópera estará em cada casa”, declarou ao New York Times, acrescentando, um pouco menos romanticamente: “Algum dia a publicidade ainda será enviada ao longo do dispositivo sem fio.”
     Em 13 de janeiro de 1910, durante uma apresentação da Tosca no Metropolitan Opera de Nova York, De Forest ligou um microfone de telefone no corredor a um transmissor montado no telhado a fim de criar a primeira transmissão ao vivo de uma rádio pública. Provavelmente o mais poético dos modernos inventores, De Forest viria a definir sua transmissão: “As ondas do éter passam por cima das torres mais altas, e os que estão entre elas continuam inconscientes das vozes silenciosas que passam por eles, de todos os lados. ... E quando falam com eles, as notas de alguma adorada melodia terrestre, sua admiração aumenta.”
     Na verdade, essa primeira transmissão provocou mais escárnio que admiração. De Forest convidou hordas de repórteres e celebridades para ouvir a transmissão em seus receptores de rádio espalhados pela cidade. A intensidade do sinal era terrível, e os ouvintes escutaram algo mais parecido com o zumbido ininteligível de um besouro-verde que as notas de uma adorada melodia terrestre. O Times descreveu toda a aventura como “um desastre”. De Forest foi até processado pelo procurador-geral dos Estados Unidos por fraude, acusado de exagerar o valor da tecnologia sem fio do Audion e encarcerado por alguns minutos. Como precisava de dinheiro para pagar os proventos de seus advogados, De Forest vendeu a patente do Audion para a AT&T a preço de banana.
     Quando os pesquisadores da Bell Labs começaram a investigar o Audion, descobriram algo extraordinário: desde o início, Lee De Forest estivera totalmente enganado sobre quase tudo que inventara. O aumento da chama de gás nada tinha a ver com radiação eletromagnética: fora provocado pelas ondas sonoras do ruído da centelha. O gás não detectou e amplificou o sinal de rádio, apenas tinha tornado o dispositivo menos eficaz.
     De alguma forma, porém, por trás do acúmulo de erros de De Forest, uma bela ideia estava pronta para surgir. Durante a década seguinte, os engenheiros da Bell Labs e de outras instituições modificaram sua criação básica de três eletrodos, removendo o gás do bulbo de modo a vedá-lo num perfeito recipiente a vácuo, transformando-o num transmissor e num receptor. O resultado foi o tubo de vácuo, o primeiro grande avanço da revolução eletrônica, um dispositivo que podia amplificar o sinal elétrico de quase qualquer tecnologia que dele necessitasse. Televisão, radar, gravação de som, amplificadores de guitarra, raios X, fornos de micro-ondas, a “telefonia secreta” do Sigsaly, os primeiros computadores digitais, tudo dependeria dos tubos de vácuo.
     Mas a primeira grande corrente tecnológica a levar o tubo de vácuo para as residências foi o rádio. De certa forma, essa foi a realização do sonho de De Forest: um império do ar transmitindo belas melodias para salas de estar em todos os lugares. No entanto, mais uma vez, a visão de De Forest seria frustrada por eventos concretos. As melodias que começaram a tocar nesses dispositivos mágicos foram apreciadas por quase todos, exceto pelo próprio De Forest.

Lee De Forest, inventor americano, no final dos anos 1920.


O RÁDIO COMEÇOU sua vida como uma transmissão de duas vias, prática que continua até hoje com o radioamadorismo: entusiastas amadores conversando entre si através das ondas, às vezes escutando outras conversas. Mas, no início dos anos 1920, o modelo de transmissão que viria a dominar essa tecnologia evoluiu. Estações profissionais começaram a distribuir programas de notícia e entretenimento para consumidores que os ouviam em receptores de rádio em suas casas. Quase de imediato, algo totalmente inesperado aconteceu: o advento de uma mídia de massa para o som divulgou um novo tipo de música nos Estados Unidos, uma música que até então pertencia quase exclusivamente a Nova Orleans, às cidades fluviais do Sul dos Estados Unidos e aos bairros afro-americanos de Nova York e Chicago. De súbito, o rádio fez do jazz um fenômeno nacional. Músicos como Duke Ellington e Louis Armstrong tornaram-se nomes conhecidos. No final dos anos 1920, a banda de Duke Ellington realizava transmissões nacionais toda semana no Cotton Club, no Harlem; pouco tempo depois, Louis Armstrong tornou-se o primeiro afro-americano a ter seu próprio programa de rádio nacional.
     Tudo isso deixou Lee De Forest tão horrorizado que escreveu uma denúncia tipicamente barroca à National Association of Broadcasters: “O que você fez com meu filho, o programa de rádio? Você rebaixou essa criança, vestiu-a com os trapos do ragtime, do jive e do boogie- woogie.” Na verdade, a tecnologia que De Forest ajudou a inventar era intrinsecamente mais adequada ao jazz que às performances clássicas. O jazz sobressaía no débil e compactado som dos primeiros rádios AM; grande parte da vasta amplitude dinâmica de uma sinfonia se perdia. O trompete explosivo de Satchmo soava melhor no rádio que as sutilezas de Schubert.
     Na verdade, a colisão do jazz com o rádio criou o primeiro surto de uma série de ondas culturais que rolaram pela sociedade no século XX. Um novo som que aos poucos vinha sendo incubado numa pequena parte do mundo – Nova Orleans, no caso do jazz – abre seu caminho para a mídia de massa do rádio, ofendendo os adultos e eletrizando os jovens. O canal escavado pelo jazz seria depois preenchido pelo rock’n’ roll de Memphis, pelo pop britânico de Liverpool, pelo rap e o hip-hop do Centro-Sul e do Brooklyn. Alguma coisa no rádio e na música parece ter incentivado esse padrão de uma forma que a televisão e o cinema não conseguiram. Quase imediatamente depois de uma mídia nacional ter surgido para compartilhar a música, subculturas de som começaram a florescer nesse meio de comunicação. Já existiam artistas “underground” antes do rádio – poetas e pintores empobrecidos –, mas o rádio ajudou a criar um modelo que se tornaria lugar-comum: artistas do metrô que se tornam celebridade da noite para o dia.

O compositor Duke Ellington apresenta-se no palco, por volta de 1935.

     Com o jazz, claro, havia um elemento adicional importante. As celebridades instantâneas eram quase todas afro-americanas: Duke Ellington, Louis Armstrong, Ella Fitzgerald, Billie Holiday. Aquele foi um grande avanço. Pela primeira vez os Estados Unidos brancos davam as boas-vindas à cultura afro-americana em sua sala de estar, ainda que através dos alto-falantes de uma emissora AM. As estrelas do jazz forneceram aos Estados Unidos brancos um exemplo de afro-americanos famosos, ricos e admirados por seu talento artístico, e não como militantes.
     Óbvio que muitos desses músicos também se tornaram fortes militantes, em músicas como “Strange fruit”, de Billie Holiday, com a chocante narrativa de um linchamento no Sul. Os sinais de rádio tinham uma espécie de liberdade intrínseca que se revelou libertadora no mundo real. Aquelas ondas de rádio ignoraram a forma como a sociedade estava segmentada na época, entre o mundo negro e o branco, entre diferentes classes econômicas. Os sinais de rádio eram daltônicos. Assim como a internet, eles não romperam tantas barreiras, mas viveram num mundo separado por elas.
     O despontar do Movimento pelos Direitos Civis esteve intimamente ligado à disseminação do jazz nos Estados Unidos. Para muitos americanos, ele foi o primeiro ponto de contato cultural entre o país negro e o branco, criado em grande parte pelos afro-americanos. Por si só, foi um grande golpe contra a segregação. Martin Luther King explicitou essa relação em declarações durante o Festival de Jazz de Berlim, em 1964:

Não é de estranhar que a busca de identidade dos negros norte-americanos tenha sido tão defendida por músicos de jazz. Muito antes de ensaístas e estudiosos modernos escreverem sobre “a identidade racial” como problema para um mundo multirracial, os músicos já retornavam às suas raízes para afirmar o que se agitava em suas almas. Muito do poder do nosso Movimento pela Liberdade nos Estados Unidos tem vindo dessa música. Ela vem nos fortalecendo com os seus doces ritmos quando a coragem começa a falhar. Tem nos acalmado com suas ricas harmonias quando os espíritos estão deprimidos. E agora o jazz é exportado para o mundo.

COMO MUITAS FIGURAS políticas do século XX, Luther King estava em débito com o tubo de vácuo por outra razão. Pouco depois que De Forest e a Bell Labs começaram a usar tubos de vácuo nas transmissões do rádio, a tecnologia foi convocada para amplificar a voz humana em contextos mais imediatos: poderosos amplificadores ligados a microfones permitiam às pessoas falar ou cantar para grandes multidões pela primeira vez na história. Os amplificadores a válvula finalmente transcenderam a engenharia de som que prevalecia desde o Neolítico. Não éramos mais dependentes das reverberações de cavernas, catedrais ou casas de ópera para fazer nossas vozes soarem mais alto. Agora a eletricidade podia fazer o trabalho dos ecos, mas de maneira mil vezes mais poderosa.
     A amplificação criou um novo tipo de evento político: manifestações de massa reunidas em torno de locutores. As multidões já vinham desempenhando papel dominante nas agitações políticas do século e meio anterior. Se há uma imagem icônica de revolução antes do século XX, é o enxame de pessoas tomando as ruas das cidades em 1789 ou em 1848. Mas a amplificação forneceu àquelas multidões fervilhantes um ponto focal: a voz do líder reverberando na praça, no estádio ou no parque. Antes dos amplificadores, os limites de nossas cordas vocais tornavam difícil falar para mais de mil pessoas ao mesmo tempo. (Os elaborados estilos vocais do canto lírico em muitos aspectos eram treinados para obter a projeção máxima, ultrapassando as limitações biológicas.) Contudo, um microfone conectado a vários alto-falantes ampliou a gama do alcance da voz em várias ordens de magnitude.
     Ninguém reconheceu – ou explorou – esse novo poder mais depressa que Adolf Hitler, cujos comícios em Nuremberg dirigiam-se para mais de 100 mil seguidores, todos obcecados pelo som amplificado da voz do Führer. Se retirarmos o microfone e o amplificador da caixa de ferramentas da tecnologia do século XX, estaremos removendo uma das formas que mais definiram a organização política desse século, de Nuremberg a “Eu tenho um sonho”.
     A amplificação a válvula também deu lugar a um equivalente musical dos comícios políticos: os Beatles no Shea Stadium, o festival de Woodstock, o Live Aid. Mas as idiossincrasias da técnica do tubo de vácuo também tiveram um efeito mais sutil na música do século XX, tornando-a mais alta e também mais barulhenta.
     É difícil para os que vivem a vida toda nesse nosso mundo pós-industrial entender quanto o som da industrialização foi chocante para os ouvidos humanos um ou dois séculos atrás. Uma sinfonia de discórdia inteiramente nova entrou de repente nos domínios da vida cotidiana, em especial nas grandes cidades: o estrondo, o clangor de metal contra metal, a rajada, a estridência ruidosa da máquina a vapor. Em muitos aspectos, o barulho foi tão chocante quanto as multidões e os odores das grandes cidades. Nos anos 1920, já com sons eletricamente amplificados, começaram a rugir, ao lado do resto do tumulto urbano, organizações como a Manhattan’s Noise Abatement Society, defendendo uma metrópole mais tranquila.
     Simpático à missão da entidade, um engenheiro da Bell Labs chamado Harvey Fletcher criou um caminhão com equipamentos supermodernos de som, e engenheiros da Bell rodavam lentamente por Nova York medindo o som nos pontos mais barulhentos. (A unidade para medir o volume do som – o decibel – se originou na pesquisa de Fletcher.) Fletcher e sua equipe descobriram que alguns sons da cidade – a rebitagem e as perfurações nas construções, o rugido do metrô – estavam no limiar de decibéis da dor acústica. Na Cortlandt Street, conhecida como “Radio Row”, o ruído das vitrines apresentando os últimos modelos de rádio era tão alto que chegava a abafar o do metrô elevado.
     Mas enquanto grupos favoráveis à redução de ruídos lutavam contra o barulho moderno com regulamentações e campanhas públicas, surgiu outra resposta. Em vez de repelir o som, nossos ouvidos começaram a encontrar algo bonito nele. Desde o início do século XIX, as experiências rotineiras da vida diária vinham sendo na verdade uma sessão de treinamento para a estética do ruído. No entanto, foi o tubo de vácuo que afinal levou o ruído às massas.
     A partir dos anos 1950, guitarristas que tocavam com amplificadores a válvula perceberam que poderiam fazer um novo e intrigante tipo de som saturando o amplificador: uma camada rascante de ruído na parte superior das notas gerada pelo próprio dedilhar das cordas da guitarra. Tecnicamente falando, era o som do amplificador funcionando mal, distorcendo o som que devia reproduzir. Para a maioria dos ouvidos, aquilo soou como se algo no equipamento estivesse quebrado, mas um pequeno grupo de músicos começou a achar atraente esse som.
     Algumas das primeiras gravações de rock’n’roll dos anos 1950 já mostrava uma quantidade modesta de distorção nas trilhas da guitarra, mas a arte do ruído só iria realmente decolar nos anos 1960. Em julho de 1960, um baixista chamado Grady Martin estava gravando uma frase melódica para uma música de Marty Robbins chamada “Don’t worry” quando seu amplificador, com algum defeito, criou um som esquisito que hoje chamamos de “distorção”. Robbins queria eliminar esse trecho da música, mas o produtor insistiu em mantê-lo. “Ninguém conseguiu entender, porque soou como um saxofone”, diria Robbins anos mais tarde. “Parecia um motor a jato decolando. Era uma mistura de sons diferentes.” Inspirado na estranha e indefinível frase musical de Martin, uma banda chamada The Ventures propôs a um amigo bolar um dispositivo que adicionasse intencionalmente um efeito distorcido. Um ano depois, já havia caixas de distorção no mercado; três anos mais tarde, Keith Richards saturava a frase de abertura de “Satisfaction” com distorção, e nascia assim a marca registrada do som dos anos 1960.
     Algo semelhante se desenvolveu com um novo som – desagradável, no começo – que ocorre quando alto-falantes amplificados e microfones se encontram no mesmo espaço físico: o turbilhão estridente da microfonia. A distorção era um som que ao menos tinha alguma semelhança acústica com os sons industriais surgidos no século XVIII. (Daí o tom de “motor a jato” do trecho do contrabaixista Grady Martin.) Mas a microfonia era uma criatura completamente nova, que não existia sob nenhuma forma até a invenção de alto-falantes e microfones, cerca de um século atrás. Engenheiros de som faziam grandes esforços para eliminá-la de gravações de concertos, posicionando os microfones de forma a não captarem o sinal dos alto-falantes e evitando o vaivém infinito do guincho agudo de retorno.

Diagrama da taxonomia do som que ilustrava o livro City Noise.

     Contudo, mais uma vez, o que era mau funcionamento para uns tornou-se música para outros, quando artistas como Jimi Hendrix e o Led Zeppelin – e, mais tarde, experimentalistas punks como o Sonic Youth – adotaram esse som em suas gravações e performances. Na verdade, Jimi Hendrix não estava apenas tocando guitarra naquelas gravações cheias de microfonia no fim dos anos 1960, ele estava criando um novo som gerado pela vibração das cordas da guitarra, pelos microfones captadores do som da guitarra e pelos alto-falantes, elaborando complexas e imprevisíveis interações entre as três tecnologias.
     Às vezes, inovações culturais surgem a partir da utilização de novas tecnologias de modo não imaginado. De Forest e a Bell Labs não tentaram inventar o comício quando desenharam os primeiros esboços de um tubo de vácuo, mas acabaram facilitando a organização de manifestações de massa graças à amplificação de uma voz falando para muitas pessoas. Outras vezes, no entanto, a inovação vem de uma abordagem mais improvável, a exploração deliberada de um defeito, transformando barulho e erro em sinal utilizável. Cada nova tecnologia surge com seus próprios problemas de funcionamento – e de vez em quando esses problemas abrem uma nova porta para o possível adjacente. No caso do tubo de vácuo, nossos ouvidos aprenderam a curtir um som que sem dúvida teria deixado Lee De Forest de cabelo em pé. Às vezes o defeito de uma nova tecnologia é quase tão interessante quanto seu funcionamento perfeito.

DOS NEANDERTALENSES CANTANDO nas cavernas da Borgonha, passando por Édouard-Léon Scott de Martinville gorjeando em seu fonoautógrafo, até chegar à radiodifusão de Duke Ellington no Cotton Club, a história da tecnologia do som sempre teve a ver com o aumento do alcance e da intensidade de nossas vozes e de nossos ouvidos. Contudo, a mais surpreendente guinada de todas aconteceria apenas um século atrás, quando os homens perceberam que o som podia ser aproveitado para outra coisa: nos ajudar a enxergar.
     A utilização da luz para sinalizar a presença de perigo na costa para os marinheiros é uma prática antiga. O farol de Alexandria, construído vários séculos antes do nascimento de Cristo, foi uma das sete maravilhas originais do mundo. Mas os faróis tinham fraco desempenho justamente quando eram mais necessários: em tempestades, quando a luz que emitem é obscurecida pela névoa e pela chuva. Muitos faróis empregavam sinos de alerta como complemento, porém eles podiam ser facilmente abafados pelo rugido do mar. No entanto, as ondas sonoras apresentam uma intrigante propriedade física: elas viajam quatro vezes mais depressa sob a água que no ar e se mostram quase imperturbadas pelo caos sonoro acima do nível do mar.
     Em 1901, uma empresa sediada em Boston chamada Submarine Signal Company (SSC) começou a fabricar um sistema de dispositivos de comunicação que explorava essa propriedade das ondas sonoras aquáticas: sinos embaixo d’água, que tocavam em intervalos regulares, e microfones especiais para recepção submarina, chamados “hidrofones”. A SSC montou mais de cem estações ao redor do mundo, principalmente em portos ou canais traiçoeiros, onde os sinos submarinos alertavam embarcações equipadas com os hidrofones da empresa, orientando-as quando estavam muito perto de rochas ou bancos de areia. O sistema era engenhoso, mas tinha seus limites. Para começar, só funcionava em locais onde a SSC havia instalado sinos de alerta. E era totalmente inútil na detecção de perigos menos previsíveis, como outros navios ou icebergs.
     A ameaça representada pelos icebergs para as viagens marítimas ficou muito evidente para o mundo em abril de 1912, quando o Titanic naufragou no Atlântico Norte. Poucos dias antes do naufrágio, o inventor canadense Reginald Fessenden topou com um engenheiro da SSC numa estação de trem, e, depois de um rápido bate-papo, os dois combinaram que Fessenden iria até o escritório da empresa para ver as mais recentes tecnologias de sinalização subaquática. Fessenden foi um pioneiro do rádio sem fio, responsável pela primeira transmissão por rádio da fala humana e pela primeira transmissão de rádio transatlântica de código Morse em duas vias. Essa experiência levou a SSC a pedir para sua assessoria projetar um sistema de hidrofones que filtrasse melhor o ruído de fundo da acústica submarina. Quando a notícia do naufrágio do Titanic foi divulgada, quatro dias depois de sua visita à SSC, Fessenden ficou chocado, como o resto do mundo. Mas teve uma ideia sobre como evitar essas tragédias no futuro.
     A primeira sugestão de Fessenden, inspirada por suas experiências com a telegrafia sem fio, foi substituir os sinos por um tom contínuo, de origem elétrica, que também podia ser usado para transmissão em código Morse. Todavia, quando ele começou a pesquisar as possibilidades, percebeu que o sistema poderia ser muito mais ambicioso. Em vez de apenas ouvir os sons gerados em postos de alerta especialmente instalados e projetados, o dispositivo de Fessenden iria gerar seus sons a bordo do navio e ouvir os ecos criados pelo reflexo dos sons em objetos na água, o mesmo sistema de ecolocalização usado pelos golfinhos em seu nado pelo oceano. Adotando os mesmos princípios que tinham atraído os cantores das grutas às seções mais reverberantes das cavernas de Arcy-sur-Cure, Fessenden sintonizou o dispositivo de modo a ressoar somente num pequeno intervalo do espectro de frequências, algo em torno de 540hz, ignorando assim todo o ruído de fundo do ambiente aquático. Depois de chamar seu dispositivo de “vibrador” por alguns meses, acabou batizando-o de “oscilador de Fessenden”. Ele era um sistema para enviar e receber telegrafia submarina, e foi o primeiro dispositivo de sonar funcional do mundo.
     Mais uma vez, o calendário mundial de eventos históricos ressaltou a premência da engenhoca de Fessenden. Apenas um ano depois de ter concluído seu primeiro protótipo funcional, rompeu a Primeira Guerra Mundial. Os submarinos alemães rondando o Atlântico Norte representam então uma ameaça ainda maior para as viagens marítimas que o iceberg do Titanic. O perigo tornava-se particularmente intenso para Fessenden, que, como cidadão canadense, era fervoroso patriota do Império Britânico. (Parece também que ele se encontrava no limite do racismo, desenvolvendo mais tarde, em suas memórias, uma teoria sobre por que “os homens de cabelos loiros de ascendência inglesa” tinham sido tão fundamentais para a inventiva moderna.)
     Os Estados Unidos ainda levariam dois anos para entrar na guerra, e os executivos da SSC não partilhavam a fidelidade de Fessenden à bandeira inglesa. Diante do risco financeiro do desenvolvimento de duas novas tecnologias revolucionárias, a empresa decidiu construir e comercializar o oscilador como dispositivo apenas para o telégrafo sem fio.
     Afinal, Fessenden pagou do próprio bolso uma viagem a Portsmouth, na Inglaterra, para tentar convencer a Marinha Real Britânica a investir em seu oscilador, mas eles também duvidaram daquela invenção milagrosa. Fessenden escreveria mais tarde: “Eu implorei para nos deixarem abrir a caixa e mostrar o que era o aparelho.” Suas súplicas foram sumariamente ignoradas. O sonar só se tornaria componente-padrão da guerra naval durante a Segunda Guerra Mundial. Até o Armistício, em 1918, mais de 10 mil vidas foram perdidas para os submarinos. Os britânicos, e depois também os americanos, experimentaram inúmeras medidas ofensivas e defensivas para combater esses predadores. Ironicamente, contudo, a mais valiosa arma de defesa teria sido uma simples onda sonora de 540hz rebatendo no casco do agressor.

Um dos criadores do rádio, Reginald Fessenden, testa sua invenção, 1906.

     Na segunda metade do século XX, os princípios da ecolocalização seriam empregados para fazer muito mais que detectar icebergs e submarinos. Embarcações de pesca – e praticantes de pesca amadora – começaram a usar as variações do oscilador de Fessenden em suas atividades. Cientistas recorreram ao sonar para explorar os últimos grandes mistérios de nossos oceanos, revelando paisagens ocultas, recursos naturais e fissuras geológicas. Oitenta anos após o naufrágio do Titanic ter inspirado Reginald Fessenden a urdir o primeiro sonar, uma equipe de pesquisadores americanos e franceses usou um desses aparelhos para descobrir o navio no fundo do oceano Atlântico, 3.650 metros abaixo da superfície.
     A inovação de Fessenden teve seu efeito mais transformador em terra firme, contudo, onde os aparelhos de ultrassom, empregando o som para enxergar o interior do útero, revolucionaram o acompanhamento pré-natal, permitindo que os bebês e suas mães sejam rotineiramente salvos de complicações que seriam fatais há menos de um século. Fessenden esperava que sua ideia – o uso do som para enxergar – pudesse salvar vidas. Mesmo sem conseguir persuadir as autoridades a colocá-lo em uso na detecção de submarinos, o oscilador acabou salvando milhões de vidas, tanto no mar quanto em um lugar que Fessenden nunca teria imaginado, o hospital.
     Decerto o uso mais conhecido do ultrassom envolve a identificação do sexo de um bebê durante a gravidez. Agora estamos acostumados a pensar em termos de informações binárias, 0 ou 1, circuito ligado ou desligado. Mas, entre todas as experiências da vida, há poucas encruzilhadas binárias como o sexo de um filho antes de nascer. Vai ser menino ou menina? Quantas consequências que podem mudar uma vida fluem dessa simples unidade de informação? Como muitos de nós, eu e minha esposa ficamos sabendo o sexo de nossos filhos usando o ultrassom. Hoje temos outros meios, mais precisos, de determinar o sexo do feto, mas o primeiro acesso a esse conhecimento foi conseguido rebatendo ondas sonoras no corpo de nossos filhos antes de eles nascerem. Assim como ocorria com os neandertalenses que exploravam as cavernas de Arcy-sur-Cure, os ecos lideraram o caminho.
     Há, no entanto, um lado sombrio nessa inovação. A introdução do ultrassom em países como a China, com forte preferência cultural por filhos homens, levou a uma prática crescente de abortos seletivos por sexo. Uma ampla oferta de máquinas de ultrassom foi difundida em toda a China no início dos anos 1980. Embora o governo tenha logo proibido oficialmente o uso delas para determinar o sexo do bebê, o emprego clandestino da tecnologia para a identificação sexual se generalizou. Até o fim da década, a proporção entre os sexos no nascimento em hospitais de toda a China era de quase 110 meninos para cada cem meninas, com algumas províncias relatando índices que chegavam a 118 para cem. Este pode ser um dos mais surpreendentes e trágicos efeitos beija-flor em toda a tecnologia do século XX: alguém constrói uma máquina para ouvir ondas sonoras a fim de identificar icebergs e, algumas gerações adiante, milhões de fetos do sexo feminino são abortados em decorrência da mesma tecnologia.
     As distorções na proporção entre os sexos na China moderna têm muitas lições importantes, sem mencionar a questão do aborto em si e muito menos a do aborto baseado no gênero. Primeiro, são um lembrete de que o avanço tecnológico não é puramente positivo em seus efeitos: para cada navio salvo de um iceberg há inúmeras gestações interrompidas por falta de um cromossomo Y. A marcha da tecnologia tem sua própria lógica interna, mas a aplicação moral dessa tecnologia está em nossas mãos. Podemos decidir usar o ultrassom para salvar ou eliminar vidas. (Ou ainda mais desafiador, podemos usar o ultrassom para distorcer os limites da própria vida, detectando o batimento cardíaco de um feto com semanas de gestação.) Na maioria das vezes, as adjacências do progresso tecnológico e científico ditam o que podemos inventar em seguida. No entanto, por mais inteligente que alguém fosse, não poderia inventar uma ultrassonografia antes da descoberta das ondas de som. No entanto, o que nós decidimos fazer com as invenções? Essa é uma questão mais complicada, que requer um diferente conjunto de competências para responder.
     Há outra lição, mais auspiciosa, na história do sonar e do ultrassom: a rapidez com que nossa criatividade é capaz de ultrapassar os limites da influência convencional. Nossos ancestrais notaram pela primeira vez, dezenas de milhares de anos atrás, que o eco e a reverberação têm o poder de alterar as propriedades sonoras da voz humana. Durante séculos, temos utilizado essas propriedades para aumentar o alcance e o poder das nossas cordas vocais, das catedrais até a Parede de Som de Phil Spector. Mas é difícil imaginar que alguém estudando a física do som há duzentos anos pudesse prever que esses ecos seriam usados para rastrear armas submarinas ou determinar o sexo de uma criança por nascer. O que começou com um som mais emocionante e intuitivo para os ouvidos humanos – o som de nossas vozes cantando, rindo, trocando notícias ou fofocando – transformou-se em ferramentas de guerra e paz, de vida ou morte. Assim como os lamentos distorcidos do amplificador a válvula, nem sempre este é um som feliz. No entanto, muitas vezes acaba por ter uma ressonância insuspeita.





SOM é o terceiro capítulo do livro


 COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI
"A história das inovações que fizeram a vida moderna possível"

de STEVEN JOHNSON

editado pela ZAHAR


com tradução de CLAUDIO CARINA

e disponibilizado pela LE LIVROS (http://lelivros.site/)



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